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258 PARA ENTENDER NOSSO TEMPO: O SÉCULO XIX O Segundo Reinado no Brasil19 CAPÍTULO Sociedade escravista em ebulição A principal marca do Segundo Reinado no Brasil foi a questão escra- vista. Ela esteve presente nos principais debates políticos no parlamento, nos confrontos militares, como a Guerra do Paraguai, na expansão cafeei- ra, que impulsionou a economia no � nal do século XIX, e nas revoltas e movimentos sociais. A escravidão deixou marcas profundas na sociedade brasileira. Pre- conceitos de cor, marginalização e abismos sociais, desvalorização do tra- balho manual e desrespeito aos trabalhadores são apenas alguns traços deixados pela escravidão. Esses traços ainda são visíveis em seu cotidia- no, em suas relações pessoais ou familiares? PARA PENSAR HISTORICAMENTE p Partida para a colheita de café no Vale do Paraíba, fotografi a de Marc Ferrez, do século XIX. R ep ro d u çã o /In st it u to M o re ir a S al le s HGB_v2_PNLD2015_258a277_u2c19.indd 258 25/03/2013 16:36 O segundO reinadO nO Brasil 259 A ascensão da cafeicultura Na Europa, o café era considerado uma bebida de luxo desde o século XVII. Sua viabilidade como produto de exportação, porém, só se deu no fim do século XVIII, quando a produção colonial francesa se desorganizou e entrou em crise, em razão de turbulências revolucio- nárias. A produção brasileira passou a ser realizada em larga escala e voltada para a exportação. Cultivado em pequenas lavouras próximas ao Rio de Janeiro, o café logo atingiu a Zona da Mata mi- neira e boa parte do litoral fluminense. Em sucessi- vas etapas de expansão, fixou-se no Vale do Paraíba, entre as províncias do Rio de Janeiro e de São Paulo. Por volta de 1850, irradiou-se pelo oeste da província de São Paulo, atingindo a região de Campinas. A cres- cente demanda do produto no mercado internacional favoreceu a expansão do cultivo em direção ao Oeste Paulista, sobretudo a partir dos anos 1870. Nessa re- gião, o café encontrou solo e clima bastante favorá- veis, transformando a Província de São Paulo no prin- cipal centro produtor do país. O porto de Santos, por sua vez, situado no litoral paulista, tornou-se o mais importante escoadouro da produção cafeeira, ultra- passando o Rio de Janeiro em importância comercial. Da região de Campinas, as fazendas de café espalha- ram-se em direção a Ribeirão Preto, alcançando mais tarde o sul de Minas Gerais e o norte do Paraná. Em contraste com as regiões ditas “velhas” da lavoura cafeeira (Vale do Paraíba), as áreas “novas” (Oeste Paulista) firmaram-se após a proibição do trá- fico de africanos escravizados para o Brasil, nos anos 1850. Diante da necessidade de mão de obra da área cafeeira, voltada sobretudo para o abastecimento dos crescentes mercados norte-americano e europeu, ga- nhou impulso o tráfico interno (interprovincial e intra- provincial) de escravos, num total estimado de apro- ximadamente 400 mil até 1885, quando também foi proibido (Lei Saraiva-Cotegipe ou dos Sexagenários). No tráfico interprovincial, as províncias do Nor- te e do Nordeste passaram a suprir as áreas de café do Sudeste. No intraprovincial (ou intermunicipal), o flu- xo se deu de áreas mais pobres para áreas mais dinâ- micas, por exemplo, de áreas urbanas para as lavou- ras. Juntavam-se interesses entre donos de escravos: uns necessitavam de mão de obra e outros, também donos de escravos de outras regiões sem o dinamismo Economia E sociEdadE Com a antecipação da maioridade de dom Pedro II, em 1840, teve início o Segundo Reinado, apo- geu da Monarquia brasileira, representante legítima dos interesses das elites. Deu-se continuidade à centraliza- ção política e administrativa iniciada em 1837 e “pacifi- cou-se” o país, com a repressão às revoltas herdadas do período anterior, bem como a novos movimentos que colocariam em risco a ordem monárquica. Conserva- dores e liberais, os dois partidos de então, integraram o governo elitista de dom Pedro II, durante o “período de conciliação”, como foi denominado, contribuindo para consolidar a ordem imperial oligárquica brasileira. A oligarquia escravista-exportadora, em especial açucareira e cafeeira, bem como seus representantes na organização imperial, marcaram a feição do país duran- te o Segundo Reinado, mantendo a ordem socioeconô- mica construída ao longo do processo de colonização. Apesar da aparente continuidade entre o pe- ríodo colonial e o Império, emergiram novas forças sociais, em especial as nascidas do surto industrial e do processo de urbanização, na segunda metade do século XIX. O cacau e a borracha, de alto valor co- mercial no mercado externo, ganharam destaque na produção agrícola brasileira, e a mão de obra escrava foi sendo gradualmente substituída pela assalariada, constituída basicamente de imigrantes. Ao mesmo tempo que se mantinha o caráter eli- tista da dominação política, a economia tornava-se mais racional e produtiva, avançando no sentido do desenvolvimento capitalista, o que por sua vez envolvia mecanismos próprios de exclusão social. As transfor- mações promoveram a definitiva transferência do eixo econômico do Nordeste para o Sudeste, com grande crescimento populacional no novo polo econômico e mudanças na estrutura étnico-social da população. Em termos demográficos, o número absoluto de escravos, que aumentou até a década de 1850, passou a declinar acentuadamente até a década de 1880; na contagem total da população, o progressivo aumento do número de indivíduos livres e de bran- cos revelava a substituição da mão de obra escrava pela livre e a entrada de numerosos imigrantes euro- peus. A maioria desses indivíduos que compunham o novo perfil da população, no entanto, continuava excluída tanto de maior participação na riqueza produzida no país quanto dos mecanismos de poder político do Estado imperial. HGB_v2_PNLD2015_258a277_u2c19.indd 259 3/21/13 4:21 PM 260 Para entender nOssO temPO: O séculO XiX cafeeiro ou mais pobres, eram atraídos pela elevação dos preços dos seus cativos, vendendo-os. Estimati- vas apontam que na região fluminense e de São Paulo estava boa parte dos cativos do país, cerca de 30% em 1872, a maioria na lavoura cafeeira. Na dinâmica desses fluxos, ganhou força o de- saparecimento dos pequenos proprietários de escra- vos, bem como a diminuição do número de escravos urbanos, direcionados para as lavouras. Certamente esses elementos contribuíram para o fortalecimento da causa abolicionista mais à frente. À medida que foram ganhando maior importân- cia na vida econômica e política do país, com a trans- formação da Província de São Paulo em novo eixo econômico, os chamados “barões do café” fixaram-se nos elegantes arredores das cidades. Contavam com o desenvolvimento dos meios de transporte (estra- das de ferro e portos) e de comunicação (telégrafo e telefone). Não raro, dedicavam-se a outras atividades econômicas urbanas, como o comércio, bancos e in- dústrias, diversificando a economia nacional. A partir da década de 1820, o café assumiu a lide- rança das exportações brasileiras, enquanto produtos até então importantes, como açúcar, algodão, fumo e couros, perdiam posição. Nos anos 1880, a produção cafeeira brasileira já era responsável por 56% da pro- dução mundial, ampliando-se ainda mais nas déca- das seguintes, na época republicana. TíTulos de nobrezA e coopTAção A busca de titulagem nobiliárquica respondia ao reconhecimento do prestígio e poder econômico das elites do Império. A concessão de títulos de nobreza por parte da monarquia integrava-se à política de cooptação dos proprietários. No geral, os títulos mais elevados – como os de vis- conde, conde, marquês e duque – eram dados aos proprietários e altos burocratas que tinham cargos públicos ou militares, já o mais baixo – o de barão – aos proprietários rurais que não faziam parte da elite política. Inúmerosforam os cafeicultores do Vale do Paraíba cafeeiro que receberam títulos de nobreza durante o período imperial, em- bora os senhores de engenho, os banqueiros, os comissários e os comerciantes também tenham sido agraciados. Por não ser uma con- cessão hereditária, era necessário que nova solicitação fosse feita, inclusive para os filhos dos titulares. Entrar para a nobreza constituía o coroamento de um conjunto de atitudes e investimentos que deve- ria demonstrar poder e prestígio, antecedido, quase sempre, de certa fortuna acumulada. FARIA, Sheila de Castro. Barões do café. In: VAINFAS, Ronaldo (Dir.). Dicionário do Brasil imperial (1822-1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. p. 78. 0 126 km 252 SÃO PAULO MINAS GERAIS RIO DE JANEIRO OCEANO ATLÂNTICO Trópico de Capricórnio 50º O Rio de Janeiro Vassouras São Paulo Santos Campinas Ribeirão Preto PARANÁ MATO GROSSO Expansão da produção cafeeira Rota do café Rio Par aíba do Sul Portos importantes A rota do café no século XIX ∏ com o café, o sudeste do país assu- miu a liderança na economia agroex- portadora brasileira. O transporte do café era feito em tropas de mulas e, após os anos 1860, por ferrovias até os portos, sendo o do rio de Janeiro e o de santos (escoamento da produ- ção do Vale do Paraíba e de são Pau- lo, respectivamente) os principais exportadores de café. ali ficavam as casas comissárias, cujos donos eram responsáveis pela negociação da produção e às vezes fornecedores de valores antecipados, por conta da produção futura. Adaptado de: CAMPOS, Flavio de; DOLHNIKOFF, Miriam. Atlas história do Brasil. São Paulo: Scipione, 2002. p. 24. o início da industrialização brasileira: a “era Mauá” As dificuldades impostas ao desenvolvimento manufatureiro no Brasil, com a baixa tarifa alfan- degária (15%) sobre os importados britânicos, esta- belecida pelos tratados de 1810, diminuíram no Se- gundo Reinado: em 1842, o governo não renovou o tratado de comércio com a Inglaterra e decretou, em 1844, a Tarifa Alves Branco, que elevava o tributo sobre os produtos importados. Embora não tivesse sido essa a intenção (pre- tendia-se na verdade aumentar a arrecadação de impostos), a decisão acabou por favorecer um surto de desenvolvimento manufatureiro interno. Já no ano seguinte à implantação das novas taxas de im- portação, somou-se ao aumento da arrecadação al- fandegária a elevação do preço dos gêneros impor- tados, o que estimulou a implantação de indústrias, A ll m a p s /A rq u iv o d a e d it o ra HGB_v2_PNLD2015_258a277_u2c19.indd 260 3/21/13 4:21 PM O segundO reinadO nO Brasil 261 sobretudo no ramo têxtil, para abastecer o mercado interno. Mesmo assim, as exigências do fisco acaba- ram rebaixando em 30% a taxação sobre os tecidos de algodão importado, quando se pleiteava cerca do dobro disso, limitando empreendimentos. Pressões dos “agraristas”, que viam as tarifas protecionistas como um risco de medidas similares sobre os pro- dutos agrários nacionais que eram exportados, aca- baram se sobrepondo às intenções “industrialistas” assentadas em medidas alfandegárias de proteção. A sobrevivência de algumas fábricas nos anos 1860-1870 deveu-se também a uma conjuntura fa- vorável: a Guerra de Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), que quebrou sua produção de algodão, estimulando a produção têxtil no Brasil, e a Guerra do Paraguai (1866-1870), cujas despesas obrigaram o governo a buscar maior arrecadação, elevando as tarifas alfandegárias de importação. Nas iniciativas que contavam com capitais ad- vindos das áreas agrícolas ou comerciais, acabaram prevalecendo esforços isolados na criação de indús- trias. O principal exemplo coube a Irineu Evangelis- ta de Souza, o Barão de Mauá, que esteve à frente desse surto. Em meados do século XIX, possuía inú- meros empreendimentos industriais particulares. Mauá também se associou ao governo na constru- ção de ferrovias e rodovias e, em 1874, fez instalar o cabo submarino para comunicação telegráfica direta entre o Brasil e a Europa. Mesmo assim, seu sucesso relativo foi muito mais decorrente de suas relações pessoais do que de uma política governa- mental de incentivos. Em 1860, por pressão dos ca- feicultores (“agraristas”), foi reduzida a taxa para os importados, o que desestimulou investimentos em produção nacional. Mauá perdeu seus empreendi- mentos para os ingleses e acabou falindo em 1878. A atuação de Mauá e de outros empreendedo- res mostrou a potencialidade da economia brasileira, que podia integrar-se à modernidade capi- talista e desenvolver-se de manei- ra autônoma, embora ainda fosse inibida pelas permanências em sua estrutura escra- vocrata e provinciana. A instalação de empreendimentos industriais no Brasil do Segundo Reinado, significou uma mu- dança nas relações entre o país e as potências ca- pitalistas da época (Inglaterra e Estados Unidos, principalmente), sem, entretanto, romper a depen- dência. Apesar de certa modernização tecnológica, que permitiu rearranjos econômicos à medida que se desenvolviam as forças produtivas globais do ca- pitalismo, o surgimento de novas e várias indústrias no Brasil nada mais foi que um “surto”, e não um ver- dadeiro processo de industrialização. Outro aspecto do processo de modernização da economia brasileira foi a instalação de estra- das de ferro com o objetivo de melhorar o siste- ma de comunicações e transportes e, assim, fa- cilitar o escoamento da produção agrícola. Em 1854, foi inaugurada a primeira estrada de ferro do Brasil, a Rio-Petrópolis, obra de Mauá, ligan- do a Baía de Guanabara ao sopé da serra, com 14 km de extensão. No ano seguinte, com o patrocí- nio de empresas inglesas, teve início a construção da Ferrovia Recife-São Francisco e da Ferrovia dom Pedro II, mais tarde chamada de Central do Brasil, que recebeu também recursos do governo e de di- versos empresários brasileiros, devendo interligar o Rio de Janeiro e São Paulo. A modernização dos transportes esteve in- timamente relacionada ao desenvolvimento econô- mico do Império, unindo os centros produtores aos portos pelos quais a produção escoava, com desta- que para o açúcar no Nordeste e, especialmente, o café no Centro-Sul. Após a implantação da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, as ferrovias foram avançan- do até a Zona da Mata, em Minas Gerais, e pelo in- terior paulista. R e p ro d u ç ã o /B ib li o te c a N a c io n a l d e C a m b e rr a , C a n a d á . eixo das decisões políticas e de inova- ções econômicas, o rio de Janeiro era a feição urbana da modernidade conserva- dora do segundo reinado. Observe nesta gravura de augustus earle, de 1820, o in- tenso movimento no porto da cidade. P HGB_v2_PNLD2015_258a277_u2c19.indd 261 3/21/13 4:21 PM 262 Para entender nOssO temPO: O séculO XiX A questão da mão de obra no segundo reinado Até o início do século XIX, o tráfico escravista era legal e amplamente praticado. O desenvolvimento ca- pitalista, consolidado com a Revolução Industrial ini- ciada na Inglaterra, ampliou o mercado consumidor de gêneros industrializados, multiplicando as pres- sões pelo fim da escravidão, considerada um entrave ao crescimento capitalista. Os britânicos lideravam as pressões internacionais, e ao fazê-lo desejavam tam- bém preservar, na África, a mão de obra necessária aos empreendimentos que então estavam iniciando no continente. Além das razões econômicas, o desenvolvimen- to e a consolidação dos princípios liberais levaram di- versos grupos a combater a escravidão mundial por razões humanitárias, como afirma o historiador Ma- nolo Florentino: O abolicionismo britânico tinha natureza cultu- ral e política. na vanguarda do movimento estavam ativistas que não abriam mão da crença na unidade do gênero humano, com destaque para os quakers, que rejeitavam o uso da violência com omesmo em- penho com que recusavam qualquer sacramento ou hierarquia eclesiástica. tratando-se de conven- cer por meio da palavra e de petições antiescravistas, aju- dava contar com uma sólida tradição parlamentar, desfru- tar de liberdade de imprensa e circular pela eficiente rede inglesa de comunicações. mas o pulo do gato do mais ambi- cioso projeto de persuasão política surgido no Ocidente antes do advento do marketing moderno foi insistir no sofri- mento do africano como me- táfora do arbítrio vivido pelo inglês comum – o único meio de escamotear o fator racial que os apartava. O rapto de cidadãos reproduzia as tripulações da mais poderosa marinha do mundo – dezenas de mi- lhares de homens foram capturados por gangues armadas do serviço na- val durante as guerras napoleônicas. do mesmo modo, ainda no plano das sensibilidades, as terrí- veis condições materiais das primeiras gerações de operários britânicos estabeleciam pontes entre as trajetórias do inglês comum e as dos milhares de escravos capturados na África. eis o fermen- to para a abolição do tráfico em 1807, da escra- vidão na década de 1830 e da legitimação moral dos aprisionamentos feitos pela Royal Navy até a segunda metade do século. claro que tudo isso justificou as posteriores conquistas coloniais na África e na Ásia. mas a aven- tura abolicionista britânica bem merece uma estátua em cada uma das praças mais importantes das anti- gas sociedades escravistas das américas. FlOrentinO, manolo. sensibilidade inglesa. Revista de História da Biblioteca Nacional. disponível em: <www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/sensibilidade-inglesa>. acesso em: 21 nov. 2012. Logo após a independência, dom Pedro I assu- miu o compromisso de extinguir o tráfico negreiro até 1830, em troca do reconhecimento da emancipação do Brasil pela Inglaterra. O acordo, ratificado pela Re- gência em 1831, no entanto, não saiu do papel, sendo apenas uma lei “pra inglês ver”. p O aumento da importação de escravos nos anos imediatamente anteriores à lei eusébio de Queirós decorreu da preocupação dos senhores brasileiros com o es- perado desfecho das pressões inglesas. a lei, por sua vez, não extinguiu completa- mente o tráfico, que continuou ilegalmente, mas de forma bastante reduzida e em declínio. contudo, se o tráfico negreiro declinava, o tráfico interno ganhava impulso, abastecendo as áreas produtoras de café. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1956. p. 92. C a s s ia n o R ö d a /A rq u iv o d a e d it o ra A queda do tráfico de escravos para o brasil HGB_v2_PNLD2015_258a277_u2c19.indd 262 3/21/13 4:21 PM
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