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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde Arlete Antoniassi Intervenção piloto em idosos independentes submetidos às práticas educativas em saúde Mestrado Profissional em Educação nas Profissões da Saúde Sorocaba 2016 Arlete Antoniassi Intervenção piloto em idosos independentes submetidos às práticas educativas em saúde Trabalho apresentado à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE PROFISSIONAL em Educação nas Profissões da Saúde, sob orientação do Prof. Dr. Paulo Renato Canineu. Sorocaba 2016 Elaborado pela Biblioteca Prof. Dr. Luiz Ferraz de Sampaio Júnior. Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde – PUC-SP Antoniassi, Arlete A635 Intervenção piloto em idosos independentes submetidos às práticas educativas em saúde / Arlete Antoniassi. -- Sorocaba, SP : [s.n.], 2016. Orientador: Paulo Renato Canineu. Trabalho Final (Mestrado Profissional) -- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde. 1. Educação em Saúde. 2. Saúde do Idoso. 3. Qualidade de Vida. 4. Cognição. I. Canineu, Paulo Renato. II. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde. III. Título. BANCA EXAMINADORA __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ Aos meus pais, Ettore Antoniassi e Marlen Antoniassi (in memoriam), que me ofereceram a vida e qualificaram o meu caráter e a minha honra através dos seus exemplos de vida e de perseverança. À minha irmã, Elisete, e aos meus sobrinhos, Ana Carolina e Marcos Vinícios, pela confiança depositada, pelo apoio sempre presente, mesmo nos momentos extremos. Que meu intento sirva de exemplo para a pequena Lara: lute, sempre com amor, por aquilo em que acredita! Aos idosos, pela generosidade em doação. À presença Espiritual. AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Paulo Renato Canineu, cuja orientação foi essencial para a elaboração qualificada desta pesquisa. Aos Professores da Pós-graduação em Educação nas Profissões da Saúde: Dra. Alda Luiza Carlini, Dra. Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dr. Fernando Antonio Almeida, Dr. Flávio Morgado, Dra. Lúcia Rondelo Duarte, Dra. Maria Helena Senger, Dra. Raquel Aparecida de Oliveira, pela dedicação à educação. À inigualável turma deste Mestrado, amigos que permanecerão para sempre: Adriana, Bernardo, Camila Carlos, Claudia, Deborah, Juliana, Helena e Paulo. À Dra. Tatchia Puertas Garcia Poles, um agradecimento especial ao apoio incondicional. À Dra. Andrea Wernthaler, pela orientação na terapia artística. À Priscila Maria Franco da Frota, pelo treinamento das atividades corporais. Aos funcionários da Unidade de Saúde da Vila Sabiá, pela calorosa acolhida. À Dra. Priscilla Cecília Mendes Bartocci Luz, residente multiprofissional em saúde da família, colaboradora desta pesquisa. Aos funcionários e jovens usuários do Território Jovem, pelo ao trabalho com os idosos. Aos funcionários da PUC, Heloisa Helena Armenio, Antonio Pedro de Melo Maricato, Isabel Cristina Campos Feitosa, pela paciência. Vocês têm uma exemplar dedicação ao aluno! Aos Professores e Doutores Neil Ferreira Novo, Daniel Ferreira Netto e Neimar Fernandes, pela análise estatística. À Professora Helena Rodrigues Gonçalves, pela revisão textual. A Ingeborg Scheible, pela correção do texto em inglês e pelas nossas deliciosas tardes de chá e boa conversa. Aos meus amigos. Muito obrigada! Arlete Antoniassi “Tem sempre presente que a pele se enruga, que o cabelo se torna branco, que os dias se convertem em anos, mas o que é importante não muda: a sua força interior não tem idade.” Anjezë Gonxhe Bojaxhiu Madre Tereza de Calcutá1 RESUMO Antoniassi A. Intervenção piloto em idosos independentes submetidos às práticas educativas em saúde. Fenômeno mundial preocupante, o envelhecimento populacional traz implicações tanto para a sociedade quanto para a pessoa idosa. O comprometimento cognitivo, associado ou não às doenças crônico-degenerativas, limita a vida de relação dos idosos. A depressão, síndrome psiquiátrica mais frequente na terceira idade, prejudica a qualidade de vida, podendo provocar ou acentuar incapacidades funcionais. Diante disso, esta pesquisa caracterizou idosos independentes, usuários da unidade de saúde da família da Vila Sabiá, Sorocaba (SP) e descreveu a experiência de um piloto de intervenção de práticas educativas em saúde em grupo de idosos. Trata-se de um estudo descritivo e quantitativo, aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, desenvolvido com 35 idosos independentes. Sete indivíduos participaram de um piloto de intervenção com práticas educativas em saúde, por 12 semanas, de agosto a outubro de 2014. As práticas educativas em saúde envolveram movimentos corporais, conteúdos temáticos diversos, atividades artísticas e lúdicas. Dados estatísticos foram obtidos por 5 instrumentos: um questionário sobre aspectos socioeconômicos, demográficos e relacionados à saúde; o Mini-exame do Estado Mental (MEEM) para avaliação cognitiva; a Escala de Depressão Geriátrica reduzida (EDG-15), para rastreamento de transtorno de humor depressivo; o Questionário das Atividades Funcionais de Pfeiffer (QAF) para avaliação das Atividades Instrumentais de Vida Diária; o WHOQOL-Bref para a qualidade de vida. Utilizou-se o teste do qui-quadrado na correlação dos dados estatísticos e o teste “t” de Student na comparação dos resultados antes e após as práticas educativas em saúde do grupo piloto de intervenção. Resultados: a maioria dos indivíduos era do sexo feminino, na faixa etária de 60 a 65 anos, trabalhadores da raça branca e moradores em casa própria com cônjuge, católicos e com ensino fundamental. Houve prevalência de hipertensão arterial, diabetes tipo 2, obesidade e sintomas depressivos. O tipo de moradia conjunta dos idosos contribuiu para o diagnóstico de hipertensão arterial (p=0,03). A fé/crença pessoal/espiritualidade foram fatores individuais protetivos da diabetes (p=0,03). O grupo participante do piloto de intervenção apresentou mudança estatisticamente significativa no score total do MEEM (p=0,03). Conclusões: fatores relacionados ao aparecimento e à manutenção das principais DCNT (hipertensão arterial, diabetes e obesidade) e sintomas depressivos podem ser evitados por meio de mudanças comportamentais e de reorganização no estilo de vida. As práticas educativas em saúde contribuíram para a melhora do perfil cognitivo dos idosos, durante o período estudado. Descritores: Educação em Saúde; Saúde do Idoso; Qualidade de Vida; Cognição. ABSTRACT Antoniassi A. Pilot Intervention in independent elderly submitted to educational practices in health. An aging population is a disturbing worldwide phenomenon which has implications both for society and for the elderly people. Cognitive impairment associated or not to chronic degenerative diseases limits the life ratio of the elderly. Depression, the most common psychiatric syndrome among elderly, impairs their quality of life and can cause or increase functional disabilities. Thus, this study characterized independent elderly, users of the FamilyHealth Unit from Vila Sabiá, in Sorocaba (SP) and described the experience of a pilot intervention of educational practices in health of an elderly group. This is a descriptive and quantitative study approved by the Research Ethics Committee, developed with 35 independent elderly. Seven individuals participated in a pilot intervention with educational practices in health, for 12 weeks, from August to October in 2014. The educational health practices involved bodily movements, several thematic content, artistic and recreational activities. Statistical data were obtained through 5 instruments: a questionnaire on socioeconomic, demographic and health-related aspects; the Mini-Mental State Examination (MMSE) for cognitive assessment; the reduced Geriatric Depression Scale (GDS-15) for screening of depressive mood disorder; Functional Activities Questionnaire by Pfeiffer (FAQ) for evaluation of Daily Life Instrumental Activities; the WHOQOL-Bref for the quality of life. We used the chi-square test on the correlation of data and the Student "t" test in comparing the results before and after the educational practices in health intervention pilot group. Results: The majority of subjects were female, aged 60-65 years old, Caucasians workers and residents at proper home with spouse, Catholics and with elementary school level. There was prevalence of hypertension, type 2 diabetes, obesity and depressive symptoms. The type of joint housing of individuals contributed to the diagnosis of hypertension (p=0,03). The faith/ personal belief/ spirituality were individual protective factors of diabetes (p=0,03). The group participating in the intervention pilot showed statistically significant change in the total score of the MMSE (p=0,03). Conclusions: factors related to the appearance and maintenance of the major NCDs (hypertension, diabetes and obesity) and depressive symptoms can be prevented through behavioral changes and reorganization in lifestyle. Educational practices in health contributed to the improvement in the cognitive profile of the elderly subjects during the studied period. Keywords: Health Education; Health of the Elderly; Quality of life; Cognition. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Estruturas anatômicas do encéfalo em plano sagital. .............................. 32 Figura 2 - Interação entre os componentes da Classificação Internacional da Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. ................................................................... 48 Figura 3 - Práticas educativas em saúde: movimentos corporais com bastão. Sorocaba (SP), 2014. ............................................................................................ 130 Figura 4 - Práticas educativas em saúde: movimentos corporais com bola. Sorocaba (SP), 2014. .............................................................................................................. 131 Figura 5 - Práticas educativas em saúde: movimentos corporais de contração e expansão. Sorocaba (SP), 2014. .............................................................................. 132 Figura 6 - Práticas educativas em saúde: roda de conversa. Sorocaba (SP), 2014. ...... 133 Figura 7 - Práticas educativas em saúde: desenho representativo da imagem do conto de fadas. Sorocaba (SP), 2014. .................................................................... 134 Figura 8 - Práticas educativas em saúde: desenho de formas. Sorocaba (SP), 2014. ................................................................................................................................ 135 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Mini-exame do Estado Mental (MEEM). ................................................. 36 Quadro 2 - Escala de Depressão Geriátrica (EDG) .................................................. 43 Quadro 3 - Questionário das Atividades Funcionais. ................................................ 50 Quadro 4 - Domínios e facetas do WHOQOL-Bref. .................................................. 59 Quadro 5 - Cronograma das atividades semanais de grupo. ................................... 78 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Características sociodemográficas dos idosos independentes da USF Vila Sabiá, segundo a frequência absoluta (f) e percentual (%). Sorocaba (SP), 2014. ............ 85 Tabela 2 - Perfil das condições de saúde autorrelatadas dos idosos independentes da USF Vila Sabiá dos gêneros feminino e masculino, segundo a frequência absoluta (f) e percentual (%). Sorocaba (SP), 2014. ................................................. 88 Tabela 3 - Correlação entre Hipertensão arterial e idade dos idosos independentes da UBS Vila Sabiá dos gêneros feminino e masculino, segundo a frequência absoluta (N), média e desvio padrão (Sd). Sorocaba, 2014. ..................................... 88 Tabela 4 - Correlação entre a hipertensão arterial e os aspectos sociodemográficos dos idosos independentes da USF Vila Sabiá. Sorocaba (SP), 2014. ...................... 90 Tabela 5 - Correlação entre Diabetes e idade dos idosos independentes da UBS Vila Sabiá dos gêneros feminino e masculino, segundo a frequência absoluta (N), média e desvio padrão (Sd). Sorocaba, 2014. ..................................................................... 91 Tabela 6 - Correlação entre a diabetes e os aspectos sociodemográficos dos idosos independentes da USF Vila Sabiá. Sorocaba (SP), 2014. ........................................ 92 Tabela 7 - Distribuição de frequência de hipertensão arterial e diabetes nos idosos independentes da USF Vila Sabiá. Sorocaba (SP), 2014. ........................................ 93 Tabela 8 - Correlação entre a hipertensão arterial e os aspectos saúde dos idosos independentes da USF Vila Sabiá. Sorocaba (SP), 2014. ........................................ 94 Tabela 9 - Correlação entre diabetes e os aspectos saúde dos idosos independentes da USF Vila Sabiá. Sorocaba (SP), 2014. ................................................................. 95 Tabela 10 - Desempenho cognitivo aferido pelo Mini Exame do Estado Mental (MEEM) dos idosos independentes da USF Vila Sabiá dos gêneros feminino e masculino: mínimo, máximo, média e desvio padrão (Sd). Sorocaba (SP), 2014. .......................... 96 Tabela 11 - Scores da Escala de Depressão Geriátrica (EDG) e do Questionário das Atividades Funcionais (QAF) dos idosos independentes da USF Vila Sabiá dos gêneros feminino e masculino: mínimo, máximo, média e desvio padrão (Sd). Sorocaba (SP), 2014. ............................................................................................... 96 Tabela 12 - Qualidade de vida aferida pelo WHOQOL-Bref e domínios, dos idosos independentes da USF Vila Sabiá dos gêneros feminino e masculino segundo o mínimo, máximo, média e desvio padrão (Sd). Sorocaba (SP), 2014. ......................................... 97 Tabela 13 - Correlação entre hipertensão arterial e o resultado das escalas MEEM, EDG, QAF e WHOQOL-Bref aplicados nos idosos independentes da UBS Vila Sabiá, dos gêneros masculinos e femininos, Sorocaba (SP), 2014..................................... 99 Tabela 14 - Correlação entre diabetes e o resultado das escalas MEEM, EDG, QAF e WHOQOL-Bref aplicados nos idosos independentes da UBS Vila Sabiá, dos gêneros masculinos e femininos, Sorocaba (SP), 2014. ........................................ 101 Tabela 15 - Características sociodemográficas dos idosos independentes da USF Vila Sabiá, participantes do piloto de intervenção, segundo a frequência absoluta () e percentual (%). Sorocaba (SP), 2014. ................................................................. 102 Tabela 16 - Perfil das condições de saúde autorrelatadas dos idosos independentes da USF Vila Sabiá, dos gêneros feminino e masculino, participantes do piloto de intervenção, segundo a frequência absoluta () e percentual(%). Sorocaba (SP), 2014. .................................................................. 104 Tabela 17 - Scores do MEEM obtidos pelos idosos participantes do piloto de intervenção, em dois momentos, com intervalo de 12 semanas, antes e depois, das práticas educativas em saúde, segundo a média, desvio padrão. Sorocaba (SP), 2014.............105 Tabela 18 - Scores da EDG e do QAF obtidos pelos idosos participantes do piloto de intervenção, em dois momentos, com intervalo de 12 semanas antes e depois, das práticas educativas em saúde, segundo a média, desvio padrão. Sorocaba (SP), 2014...............106 Tabela 19 - Scores nos domínios do WHOQOL-Bref obtidos pelos idosos participante do piloto de intervenção, em dois momentos, com intervalo de 12 semanas antes e depois, das práticas educativas em saúde, segundo a média, desvio padrão. Sorocaba (SP), 2014....................................................................106 LISTA DE SIGLAS AIVD Atividades Instrumentais de Vida Diária APA American Psychiatric Association APS Atenção Primária à Saúde AVD Atividades de Vida Diária AVE Acidente Vascular Encefálico CCL Comprometimento Cognitivo Leve CID-10 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde décima edição CIF Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde Creci Centro de Referência da Cidadania do Idoso DCNT Doença Crônica não Transmissível DSM-5 Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – quinta edição EDG-15 Escala de Depressão Geriátrica – quinze EIAVD Escala de Independência em Atividades de Vida Diária EORTC-QL European Organization for Research and Treatment of Cancer Quality of Life FCMS Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde FAQ Functional Assessment Questionnaire GDS-15 Geriatric Depression Scale – fifteen HAS Hipertensão Arterial Sistêmica HIV Human Immunodeficiency Vírus IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IMC Índice de Massa Corporal MEEM Mini-exame do Estado Mental OMS Organização Mundial da Saúde ONU Organização das Nações Unidas PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio PNS Pesquisa Nacional de Saúde PUC Pontifícia Universidade Católica SNC Sistema Nervoso Central SP São Paulo SUS Sistema Único de Saúde TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido USF Unidade de Saúde da Família WHO World Health Organization WHOQOL GROUP World Health Organization Quality of Life Group WHOQOL-100 World Health Organization Quality of Life-100 WHOQOL-bref World Health Organization Quality of Life-bref WHOQOL-OLD World Health Organization Quality of Life-Old SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 19 2 ENVELHECIMENTO ............................................................................................. 21 2.1 O envelhecimento populacional ...................................................................... 21 2.2 O envelhecimento individual ............................................................................ 23 3 COGNIÇÃO ........................................................................................................... 29 3.1 Fatores associados ao déficit cognitivo no idoso ......................................... 32 3.2 Fatores de proteção das funções cognitivas .................................................. 34 3.3 Instrumento de rastreamento de comprometimento cognitivo ..................... 34 4 DEPRESSÃO NO IDOSO ..................................................................................... 37 4.1 Diagnóstico da depressão ................................................................................ 38 4.2 Fatores de risco para a depressão em idosos ................................................ 39 4.3 Fatores de proteção de depressão .................................................................. 42 4.4 Instrumento para rastreamento da depressão no idoso ................................ 42 5 FUNCIONALIDADE .............................................................................................. 45 5.1 Conceitos ........................................................................................................... 45 5.2 Instrumentos para avaliação funcional ........................................................... 49 5.3 Fatores preditivos de incapacidades funcionais ............................................ 51 6 QUALIDADE DE VIDA .......................................................................................... 53 6.1 Conceito de Qualidade de Vida ........................................................................ 55 6.2 Instrumentos de avaliação da qualidade de vida ........................................... 57 6.3 Fatores preditores de qualidade de vida nos idosos ..................................... 60 7 PRÁTICAS EDUCATIVAS EM SAÚDE ................................................................ 61 7.1 Contribuições dos contos de fadas na saúde ................................................ 64 7.2 Arte e saúde ....................................................................................................... 66 7.2.1 Arteterapia ........................................................................................................ 67 7.2.2 Terapia artística ................................................................................................ 67 7.3 Práticas corporais ............................................................................................. 68 7.3.1 As danças ......................................................................................................... 70 7.3.2 Euritmia ............................................................................................................ 70 8 OBJETIVOS .......................................................................................................... 73 9 MATERIAL E MÉTODOS ..................................................................................... 75 9.1 Local e período do estudo ............................................................................... 75 9.2 Participantes da pesquisa ................................................................................ 76 9.2.1 Critérios de inclusão e exclusão ...................................................................... 77 9.2.2 Grupos estudados............................................................................................ 77 9.3 Piloto de intervenção ........................................................................................ 78 9.3.1 A metodologia das práticas educativas em saúde ........................................... 78 9.4 Instrumentos de avaliação ............................................................................... 81 9.5 Análise estatística ............................................................................................ 83 9.6 Aspectos éticos ................................................................................................ 83 10 RESULTADOS .................................................................................................... 85 10.1 Caracterização da população do estudo ...................................................... 85 10.2 O piloto de intervenção ................................................................................ 101 11 DISCUSSÃO ..................................................................................................... 107 11.1 A população do estudo ................................................................................ 108 11.1.1 Características sociodemográficas ..............................................................108 11.1.2 Perfil da Saúde ........................................................................................... 109 11.1.3 Os instrumentos de avaliação ...................................................................... 115 11.2 O Piloto de intervenção – efeitos das práticas educativas em saúde .......... 120 11.2.1 Sobre as características sociodemográficas e o perfil da saúde ................. 122 11.2.2 Desempenho nos instrumentos de avaliação .............................................. 123 11.2.3 Retratos do processo ................................................................................... 125 12 CONCLUSÕES ................................................................................................. 137 REFERÊNCIAS ................................................................................................ 139 APÊNDICES .................................................................................................... 159 Apêndice A – Carta à Instituição ................................................................... 159 Apêndice B – TCLE ........................................................................................ 160 Apêndice C – Termo de Cessão de Direitos de Imagem ............................. 162 Apêndice D – Questionário sociodemográfico e de saúde ........................ 163 Apêndice E – Carta ao Coordenador do CEP .............................................. 164 ANEXOS .......................................................................................................... 167 Anexo A – Carta de Autorização da Instituição ........................................... 167 Anexo B – Aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa ............................ 168 Anexo C – Mini-exame Estado Mental .......................................................... 170 Anexo D – Escala de Depressão Geriátrica .................................................. 171 Anexo E – Questionário de Atividades Funcionais de Pfeiffer ................... 172 Anexo F – WHOQOL-Bref ............................................................................... 173 Anexo G – WHOQOL-Old ................................................................................ 177 Anexo H – Conto: Os Músicos de Bremen.................................................... 182 Anexo I – Conto: João Felizardo .................................................................... 186 Anexo J – Conto: O Rei Sábio ........................................................................ 188 19 1 INTRODUÇÃO Substanciando o envelhecer como parte natural do ciclo da vida, as ações de promoção da saúde com ênfase no envelhecimento saudável vêm contribuir para mudanças no paradigma da atenção à saúde dos idosos. Considerando-se que os indivíduos com doenças crônicas não transmissíveisi são os usuários adultos mais frequentes nas unidades de saúde da família, a educação em saúde faz-se importante proposta de intervenção, por propiciar a oportunidade na aquisição de habilidades para o alcance de uma melhor qualidade de vida nessa população. A educação em saúde dirigida para a saúde integral dos idosos tem um importante papel na evocação do potencial dessas pessoas quanto à conquista de maior controle sobre os fatores comportamentais determinantes da sua saúde.2,3 Com eixo central na educação em saúde, esta pesquisa desenvolveu-se a partir da vivência da autora como médica de equipe de saúde da família, com orientação para as práticas integrativas e complementaresii, especialmente a homeopatiaiii e a antroposofiaiv. Pode-se dizer que tanto a homeopatia quanto a antroposofia têm uma compreensão ampliada quanto à saúde e ao processo de adoecimento, na medida em que concebem o ser humano integral, ou seja, na sua dimensão individual – aspectos físico, emocional e espiritual – e na dimensão do contexto socioeconômico e cultural. Cogitando-se a educação em saúde para um grupo de idosos, em uma unidade de saúde da família e aliando-se a teoria à práxis antroposófica, descortinou-se a possibilidade de realizar uma pesquisa de campo para fundamentar cientificamente essa intervenção em saúde. i Grupo de doenças de etiologia incerta, múltiplos fatores de risco, longos períodos de latência, curso prolongado e que, associadas a deficiências e incapacidades funcionais, têm em comum um conjunto de fatores comportamentais de risco (tabagismo, sedentarismo, alimentação inadequada, alcoolismo), passíveis de modificação, por meio de ações como a educação em saúde. 176 ii As práticas integrativas e complementares são sistemas e recursos médicos que envolvem tecnologias de alta complexidade (conhecimento) e de baixa densidade (equipamentos e instrumentais médico- hospitalares) como formas naturais de prevenção de agravos e recuperação da saúde. 147 iii Criada por Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1753-1843), a homeopatia considera os sinais e os sintomas de uma doença como manifestações físicas e/ou psíquicas do desequilíbrio da energia vital no indivíduo. 147 iv A antroposofia foi introduzida pelo filósofo Rudolf Steiner (1861-1925) como uma ciência espiritual ou conhecimento da natureza do ser humano no universo. Dessa forma, a medicina antroposófica, utilizando- se dessa imagem espiritual do homem, considera o ser humano constituído por quatro elementos ou membros: corpo físico, corpo vital, corpo anímico (psíquico) e um Eu (cerne espiritual individual). 147,148,176 20 Para tanto, foram utilizadas avaliações quantitativas, buscando-se descrever a possível influência de tais práticas educativas em saúde na melhoria dos aspectos cognitivos, comportamentais, funcionais e de qualidade de vida dos participantes. Partindo-se dessas premissas, esta pesquisa consubstanciou-se em uma proposta de um piloto de intervenção de práticas educativas em saúde para idosos independentes. No texto que compõe esta dissertação, são apresentados referenciais teóricos acerca do envelhecimento da população e dos componentes do envelhecimento individual, seguindo-se de assuntos de interesse global da pesquisa: a cognição, a depressão, a funcionalidade, a qualidade de vida e as práticas educativas em saúde, que se encontram pormenorizadas na metodologia. Os resultados, a discussão e a conclusão estão organizados de forma a evidenciar a caracterização da população idosa independente, seguindo-se do piloto de intervenção. 21 2 ENVELHECIMENTO 2.1 O envelhecimento populacional O envelhecimento populacional é um fenômeno global, caracterizado pela modificação na estrutura etária4, com aumento quantitativo de idosos em relação às pessoas mais jovens na população. A modificação dessa estrutura etária deu-se de forma distinta e gradativa, ao longo dos anos5, nos países desenvolvidos, quando comparada aos países menos desenvolvidos. Nas nações desenvolvidas, principalmente as europeias, o envelhecimento populacional está relacionado à diminuição substancial da taxa de mortalidade pela melhoria na qualidade de vida da população6, em função de conquistas nos campos sociais, econômicos e da saúde: urbanização e saneamento das cidades, emprego, acesso aos bens e serviços, avanços tecnológicos da saúde. Já nos países em desenvolvimento, como o Brasil, a dinâmica do envelhecimento populacional está ligada à redução da mortalidade infantil, à diminuição da taxa de mortalidade da população idosa, à redução da taxa de fecundidade – fenômeno chamado transição demográfica.7 Segundo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)8, no censo de 2010, a população com 60 anos ou mais de idade alcançou 19,6 milhões. Com um crescimento médio de mais deum milhão de idosos por ano, estima-se que a população deverá atingir 41,5 milhões de pessoas, em 2030. Como podemos inferir, esse expressivo aumento do número de idosos tem como consequência, tanto para a sociedade quanto para o próprio indivíduo desse grupo etário, a busca dos fatores determinantes das condições de saúde, de vida e do processo do envelhecimento. Desse modo, é necessário conhecer os fatores ambientais, psicológicos, sociais, culturais e econômicos, numa “visão global do envelhecimento como processo e do idoso como ser humano”.9 No cenário atual, resultante das diferenças entre as taxas de mortalidade por sexo10, o maior contingente de idosos11 – cerca de 20 milhões ou 55,5% – é constituído de mulheres12 (feminilização do envelhecimento7,12), algumas em condições de viuvez, que não tiveram acesso à educação formal e à 22 profissionalização. Diante dessa realidade, segundo Camarano4, a “longevidade feminina nem sempre é vista como vantagem”. Por outro lado, há uma preponderância do gênero feminino nos centros urbanos11, que possibilita não só sua participação em atividades comunitárias e de lazer ou trabalho, mas também a apropriação no papel de provedora da família. Outra questão importante acerca do envelhecimento populacional refere-se às pessoas consideradas economicamente ativas ou inativas. A razão de dependência, que expressa a relação entre a população inativa (menores de 15 anos e maiores de 60 de idade) e a população ativa (de 15 a 59 anos de idade)13 é um importante indicador10 na avaliação da efetividade das políticas públicas (previdência, educação, saúde, trabalho). Segundo Camarano, Kanso e Melo12, no Brasil, há um “caráter bidimensional” na relação entre o envelhecimento e a dependência: enquanto o idoso depende funcional e afetivamente da família, esta pode ser subvencionada por questões financeiras. No Brasil, devido às desigualdades – econômica, regional, social –, o aumento da expectativa de vida mantém estreita relação com a transição epidemiológica6,7,14,15 (modificação dos padrões de morbidade, invalidez e morte), ocasionando uma grande diversidade nos padrões de adoecimento, dependência e morte15. Dessa forma, a população brasileira padece de doenças infecto- parasitárias, típicas de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, e de doenças crônicas não-infecciosas (hipertensão arterial, diabetes, obesidade e neoplasias), comuns em países desenvolvidos.16 Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS)17, embora o envelhecimento populacional evidencie o sucesso das políticas de saúde pública e do desenvolvimento socioeconômico, são necessárias políticas públicas governamentais, em conjunto com ações da sociedade, que possibilitem condições para um envelhecimento digno. No Brasil, a Constituição Federal da República (CF, 1988)18 foi o primeiro marco legal que, apoiado pelo Plano de Ação Internacional para o Envelhecimento de Viena (1982)19, impulsionou a Política Nacional do Idoso (Lei 8.842 de 1994)19, elaborada e criada em 13 de maio de 2002, a partir das diretrizes do Conselho Nacional dos Direitos do Idoso (CNDI). Em 2003, ocorreu a regularização dos direitos da pessoa idosa por meio da publicação do Estatuto do Idoso20, que passa a 23 assegurar, na forma da Lei, oportunidades e facilidades para a preservação da saúde física e mental, além do aperfeiçoamento moral, intelectual e social do idoso, com liberdade e dignidade. Considerando o envelhecimento da população brasileira, os avanços na gestão da saúde e do conhecimento científico e as necessidades de dar condições de autonomia e independência por meio de um conceito de saúde específico para os idosos, a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa tem por finalidade primordial: Recuperar, manter e promover a autonomia e a independência dos indivíduos idosos, direcionando medidas coletivas e individuais de saúde para esse fim, em consonância com os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde. É alvo dessa política todo cidadão e cidadã brasileiros com 60 anos ou mais de idade (PNSPI, PT - nº 2528/GM 19 de outubro de 2006). 21 A PNSPI tem como diretrizes21: promoção do envelhecimento ativo e saudável; a atenção integral da pessoa idosa; estímulo às ações intersetoriais; provimento de recursos capazes de assegurar a qualidade da atenção à saúde da pessoa idosa; estímulo à participação do controle social; formação e educação permanente dos profissionais de saúde do SUS na área de saúde da pessoa idosa; divulgação e informação sobre a PNSPI; promoção de cooperação nacional e internacional das experiências na atenção à saúde da pessoa idosa; apoio ao desenvolvimento de estudos e pesquisas. Os estudos interdisciplinares sobre o envelhecimento são importantes para subsidiar a elaboração de planejamentos e ações para enfrentar os desafios impostos pelo envelhecimento populacional. 2.2 O envelhecimento individual Processo único, irreversível e natural, o envelhecimento é individual e acompanhado de progressivas perdas de funções, capacidades e papéis sociais, dependendo de qualidades básicas e adquiridas no meio ambiente, com implicações na família, nas políticas públicas e na distribuição de renda da sociedade.4 Embora haja variadas características que marcam a passagem para a última fase da vida, como aparência física, surgimento de doença crônica, perda de capacidades físicas e mentais e de papéis sociais e familiares, a delimitação do seu 24 início é difícil, na medida em que a vida toda é afetada por condições sociais, econômicas, regionais, culturais, étnicas e de gênero.4 Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU)22 e o Estatuto do Idoso20, são idosos os indivíduos com idade igual ou superior a 60 anos nos países em desenvolvimento. Esse parâmetro cronológico é utilizado nos estudos científicos9, principalmente na área da saúde, visto que não há uma idade precisa que marque o limiar de passagem entre a vida adulta e a velhice, sob o ponto de vista físico- biológico, psicológico ou social. Papaléo Netto9 define o envelhecimento como um processo continuum, a velhice – fase da vida – e o idoso como o resultado final de um conjunto cujos componentes estão inter-relacionados: O envelhecimento é conceituado como um processo dinâmico e progressivo, no qual há modificações morfológicas, funcionais, bioquímicas e psicológicas, que determinam perda da capacidade de adaptação do indivíduo ao meio ambiente, ocasionando maior vulnerabilidade e maior incidência de processos patológicos que terminam por leva-lo à morte (p.10). De acordo com Neri23, o envelhecimento do ser humano comporta: Expressiva variabilidade, dependendo do nível de desenvolvimento biológico e psicológico atingido pelos indivíduos e pelas coortes em virtude da ação conjunta da genética, dos recursos sociais, econômicos, médicos, tecnológicos e psicológicos (p. 20). De modo geral, a senescência ou envelhecimento normal inicia-se após o ápice da maturidade sexual do ser humano, com declínio gradual e progressivo da estrutura física e das funções fisiológicas. Também chamado de envelhecimento bem-sucedido, o envelhecimento normativo pode ser consequência da herança genética, da pouca exposição às doenças, das atitudes comportamentais e do ambiente favorável, bem como do acesso aos recursos de saúde e sociais. Nesse sentido, chama-se senilidade ou envelhecimento patológico aquele associado a comprometimentos na saúde. Segundo a OMS2, quatorze milhões de pessoas (85%) com idades entre 30 a 70 anos, que vivem em países em desenvolvimento, são acometidas pelas doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) – doenças cardiovasculares, respiratórias crônicas, neoplasias, diabetes. No 25 Brasil, as DCNT, associadas às doenças neurodegenerativas e osteomusculares, contribuempara incapacidade na vida produtiva do idoso.24,25 As atividades educativas, que estimulam mudanças no estilo de vida ou no comportamento de risco dos indivíduos, são imprescindíveis na medida que há expressiva associação das principais DCNT com tabagismo, alcoolismo, obesidade, sedentarismo, níveis elevados do colesterol, alto consumo de sal e de alimentos processados, baixa ingestão de verduras e frutas.25 Considerando o idoso como agente participativo nas questões socioeconômicas, culturais, civis e espirituais, a OMS26 propôs o termo envelhecimento ativo para expressar um processo de potencialização das oportunidades de saúde, da participação social e da segurança, com o objetivo de aumentar a expectativa de vida saudável para todos que se encontram em processo de envelhecimento, incluindo os indivíduos com incapacidades físicas, fragilizados ou que necessitem de cuidados, melhorando sua qualidade de vida. O idoso independente é todo aquele capaz de realizar as atividades de vida diária (banhar-se, vestir-se, utilizar banheiro com controle de esfíncteres vesical e anal, transferir-se da cama para a cadeira, alimentar-se com a própria mão) e sem necessitar da ajuda de terceiros. De acordo com o grau de comprometimento da capacidade funcional, os idosos com potencial para desenvolvimento de fragilidade são aqueles que, mesmo independentes, apresentam alguma restrição nas atividades instrumentais de vida diária (cozinhar, controlar a própria medicação, fazer compras, cuidar do dinheiro, usar telefone, fazer pequenas tarefas domésticos, sair de casa desacompanhado, utilizar transporte coletivo). Conceitua-se idoso frágil todos com idade igual ou superior a 75 anos, além daqueles com as seguintes condições: hospitalização recente; doenças comprometedoras da funcionalidade física ou mental (acidente vascular encefálico, doenças neurodegenerativas, etilismo, neoplasia terminal, amputações de membros); acamados; limitados por pelo menos uma incapacidade nas atividades básicas de vida diária; moradores em Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI); os que convivem com alguma forma de violência doméstica.27–30 Resultante da associação de fatores biopsicológicos e sociais suscitados ao longo da vida, a fragilidade do idoso corrobora a importância da avaliação geriátrica 26 global. Os sistemas neurológicos, musculares, endócrinos e imunológicos comprometidos delineiam uma síndrome de fragilidade, clinicamente observável, com marcha lentificada, atividade física reduzida, diminuição da força da preensão da mão dominante, perda ponderal não intencional e queixa de fadiga. A sarcopenia29 (perda da massa muscular) e a dinapenia (diminuição da força muscular), correlacionadas a um conjunto de interações – distúrbios da inervação, diminuição de hormônios, aumento de mediadores inflamatórios e alterações da ingestão proteico-calórica – são os fatores preponderantes na síndrome de fragilidade do idoso, que tem diminuída a sua capacidade homeostática orgânica, com consequências danosas na capacidade funcional, resultando desde incapacidades até a morte.27,28 Na área da saúde, a vulnerabilidade correlaciona-se com a contingência ao adoecimento resultante de causas contextuais históricas, individuais ou coletivas. Os idosos têm maior chance à vulnerabilidade frente a adversidades sociais, econômicas, ambientais, psicológicos ou culturais, que podem associar-se ao declínio físico próprio da senescência. Nesse sentido, o envelhecimento dá-se de forma patológica (senilidade), por acúmulo de eventos nocivos à sua individualidade, acarretando necessidade de recursos protetivos, nem sempre disponíveis ou alcançáveis por essa parcela da população.23,31–34 Relacionada à incapacidade do exercício da liberdade, por causas física, psíquica, social, educacional ou econômica, a vulnerabilidade não pressupõe a perda da autonomiav. Segundo Almeida35, enquanto a autonomia envolve um conceito individual, a vulnerabilidade remete-se ao estabelecimento de relações desiguais entre indivíduos. Com ênfase nos aspectos psicossociais do envelhecimento bem-sucedido, os termos resiliência e vulnerabilidade são associados como contrafaces da disponibilidade psíquica individual frente às diversidades da vida. A resiliência refere-se a uma resposta de flexibilidade adaptativa do indivíduo, por meio de recursos internos (intrapsíquicos), para lidar com ambientes desfavoráveis ou com situações estressoras.36,37 v Autonomia refere-se a habilidade individual de controle, decisão e ação sobre a modo de andar a vida baseado em regras e preferências próprios da pessoa. 26 . 27 Não obstante a relevância dos conceitos acerca da fragilidade, da vulnerabilidade e da resiliência dos idosos, o aprofundamento desses temas escapa aos objetivos desta pesquisa. Considerando-se a heterogeneidade do envelhecimento e os aspectos multifatoriais envolvidos no processo, o idoso confronta-se com alterações morfofisiológicas inexoráveis. Diante disso, efetivamente, a preservação da autonomia, por meio da manutenção das funções cognitivas, da capacidade funcional física, do estado mental, além da participação social e da satisfação com a vida, são os componentes mais favoráveis para o alcance do envelhecimento saudável ou bem sucedido.6,23 28 29 3 COGNIÇÃO Termo empregado para descrever o funcionamento mental do indivíduo, a cognição inclui as habilidades de perceber (atenção), lembrar (memória), tomar decisões, planejar, sequenciar e produzir respostas adequadas às solicitações e estímulos externos, integrando esse processamento de informações com experiências anteriores.38 O envelhecimento pode levar a alterações das funções cognitivas, sendo na memória as mais evidentes.39 Como se pode perceber, a função cognitiva pode ser analisada de acordo com a integração de experiências, ou seja, de acordo com os processos, com as estratégias e com os potenciais para aprendizagem e uso do que foi aprendido em variadas e novas situações, de forma que sua disfunção pode afetar a capacidade funcional em todas as esferas da vida: social, interpessoal, trabalho, lazer e atividades de vida diária.39 Embora exista uma variabilidade no ritmo do declínio cognitivo normal do envelhecimento, esse ritmo é relacionado a fatores individuais de natureza biológica e de natureza genética, ambos associados a condições ambientais e socioculturais. Quanto aos processos orgânicos, esse declínio, que ocorre mais frequentemente após os 70 anos, está associado a alterações neurológicas típicas do envelhecimento, como a limitação do funcionamento sensorial e a diminuição no processamento de informações.40 Como já se afirmou, o envelhecimento normal pode levar ao declínio gradual das funções cognitivas, relacionadas aos processos neurológicos que se alteram com a idade. Muitos idosos temem que a perda de memória, como dificuldades para recordar nomes, números de telefone e objetos guardados, seja sinal inicial de demência.41 O sistema nervoso central (SNC) é o sistema biológico mais comprometido com o processo de envelhecimento, pois é o responsável pela vida de relação (sensação, movimento, funções psíquicas, entre outras) e pela vida vegetativa (funções biológicas internas).42 A memória é uma função do SNC responsável pela aquisição, armazenamento e evocação de informações. A maioria das informações que constituem a memória é aprendida através dos sentidos, em episódios que são 30 denominados experiências. Os momentos de grandes emoções – como medo, paixão, tristeza, alegria, entre outros – são importantes na fixação da memória. Algumas informações, porém, são adquiridas pelo processointerno de memórias pré-existentes modificadas ou não (insight). Há tantas memórias possíveis quantas são as experiências e insights.42 As memórias podem ser separadas em dois grupos principais: as declarativas43,44, relacionadas a eventos ou fatos ocorridos, e as de procedimento43,44, que estão associadas às habilidades adquiridas durante a vida (andar de bicicleta, tocar violino, etc.) e que podem ser evocadas automaticamente. As memórias declarativas podem ser subdivididas em episódica43 – que detém a referência do tempo e do espaço físico das informações, principalmente em eventos ou aprendizagem recentes – e semântica43 – que retém a autobiografia e a representação do universo individual, sendo, portanto, construída ao longo dos anos vividos. Todas as memórias são associativas43, na medida em que são adquiridas por meio da ligação entre grupos de estímulos: ouvir música é um estímulo que pode provocar sensação prazerosa; caso a experiência seja reforço (repetição) de outras sensações prazerosas semelhantes – segundo estímulo –, ocorre o condicionamento. A capacidade de retenção da informação enquanto ela está sendo processada é chamada de memória de trabalho.43,44 Esse processamento pode demorar poucos segundos e, como é sustentado apenas por atividades neuronais em rede durante a percepção do estímulo, essa memória não pode ser evocada. Ao ler a frase “o dia está bonito”, pode-se, por exemplo, demorar poucos segundos para processar a informação (memória de trabalho ou memória operacional), compreender e interligar as palavras para que a frase tenha um sentido, mas não se tem acesso a essa evolução de trabalho, em si, no nível da consciência. Se essa frase puder ser evocada por um período de tempo de até 6 horas, define-se a memória de curta duração43; caso ela permaneça por um período de tempo maior (horas, dias, semanas ou anos), será nomeada memória de longa duração.43 A memória de curta duração mantém a cognição em funcionamento durante o período de tempo necessário para a integração definitiva do evento na memória de longa duração. 31 A memória de curta duração44 detém a capacidade de manter e operar informações durante a realização de tarefas cognitivas – procurar um papel e uma caneta enquanto se fala ao telefone – e mantém a cognição em funcionamento durante o período de tempo necessário para a integração definitiva na memória de longa duração de um evento considerado relevante pela individualidade. Em formato de cavalo-marinho e localizado nos lobos temporais do cérebro humano, o hipocampo43 é a estrutura principal associada às memórias declarativas e à conversão da memória de curto prazo para a de longo prazo (Figura 1). O hipocampo faz parte do sistema límbico45, que é responsável pelos comportamentos emocional, social e sexual, pelo aprendizado, pela memória e motivação, tendo como principal função a integração de informações sensitivo- sensoriais com estado psíquico interno: afeto, grau de alerta (estado de consciência) e ansiedade. Por serem extremamente complexos, o sistema e a sequência envolvidos na formação das memórias de longa duração são brevemente mencionados para demonstrar a fragilidade e a susceptibilidade às falhas da organização neurobiológica advindas com a idade. Os processos envolvidos nas memórias de curta43,44 duração ocorrem como eventos paralelos e, ao mesmo tempo, vinculados aos da memória de longa duração: trata-se de estímulos liberados no hipocampo que irão determinar o quanto as memórias consolidadas inicialmente persistirão com o tempo. Diante do exposto, contida no termo cognição38, a memória está relacionada à capacidade de perceber (através dos órgãos sensitivos – olhos, ouvidos, boca, nariz, pele), codificar, armazenar, consolidar e recuperar informações que são integradas como experiência ou aprendizado do indivíduo. Sob o conceito de cognição, as funções executivas46–48 são o conjunto das habilidades voluntárias individuais para a resolução de problemas, através do planejamento e sequenciamento das ações necessárias para a realização de tarefas futuras (ajuste preparatório49), mantendo a atenção dirigida e impedindo interferências de estímulos que possam interromper o curso da ação (controle inibitório49). De acordo com a neuropsicologia, as funções executivas exigem flexibilidade cognitiva47,49 e capacidade para suster modificações comportamentais48 diante de contratempos e eventos novos. 32 Figura 1 - Estruturas anatômicas do encéfalo em plano sagital. Fonte: Adaptada de Fundació GAEM MS Research. 50 3.1 Fatores associados ao déficit cognitivo no idoso O declínio cognitivo que acompanha a idade tem início e progressão extremamente variáveis, dependendo de fatores educacionais, de saúde e de personalidade, bem como do nível intelectual global e das capacidades mentais específicas do indivíduo.41 Para Gorman e Campbell51, em 1995, comparando-se com pessoas mais jovens, o déficit cognitivo em idosos consiste em lentidão leve, generalizada e perda de precisão. Ainda segundo esses autores, um nível educacional elevado mostrou-se preventivo para o embotamento do estado mental durante o envelhecimento normal. Em um estudo longitudinal da população geral acima de sessenta anos, Schaie52, em 1996, observou que, embora nenhum dos participantes da pesquisa tivesse evidenciado declínio generalizado em todas as habilidades cognitivas, o 33 envelhecimento incidiu, especialmente, nas tarefas que exigiam rapidez, atenção, concentração e raciocínio indutivo. Estudo realizado por Santos et al.53, em 2012, demonstrou associação significativa entre a queixa de desempenho de memória, percepção de estresse, sintomas de depressão e de baixa autoestima. Os idosos com queixa subjetiva de comprometimento de memória apresentaram maior estresse, mais sintomas de depressão e baixa autoestima em comparação aos idosos sem queixa. Em revisão de publicações, Ávilla e Bottino54 observaram que muitos estudos sugerem que as alterações cognitivas em idosos deprimidos resulta em baixo desempenho em testes de avaliação de memória como consequência de disfunções executivas, déficits de atenção e diminuição da velocidade de processamento de informações e que, nos idosos com depressão de início tardio ou com depressão recorrente, os déficits cognitivos são mais graves com pior prognóstico devido ao risco de desenvolvimento de síndromes demenciais. A fim de investigar a relação entre queixas de memória, faixa de escolaridade e desempenho cognitivo em idosos, Paulo e Yassuda55, em 2010, estudaram setenta e sete frequentadores do Centro de Referência da Cidadania do Idoso (Creci), em São Paulo, e verificaram que os resultados sugerem que as queixas não variam de acordo com as faixas de escolaridade e não apontam associação significativa entre queixas e desempenho cognitivo. Essa investigação reafirma a tese de que a percepção subjetiva de perda de memória estaria mais associada a depressão e a traços da personalidade. Os resultados sugerem que o número de sintomas de ansiedade é proporcional à frequência de esquecimentos relatados. Adicionalmente, não se encontrou relação significativa entre queixas e sintomas depressivos, mas associação positiva com os sintomas de ansiedade.55 Segundo Canineu41, os idosos que apresentam disfunção cognitiva, principalmente de memória, além do esperado no processo normal de envelhecimento, porém com manutenção das atividades funcionais, devem ser cuidadosamente avaliados, pois podem estar num processo inicial de demência. 34 3.2 Fatores de proteção das funções cognitivas Os processos de natureza sociocultural determinam o desenvolvimento e a manutenção da experiência, que pode ter uma ação compensatória em relação às perdasdecorrentes do envelhecimento biológico. Dessa forma, nesse processo de declínio, os fatores socioculturais e ambientais são determinantes no desenvolvimento e na manutenção das capacidades individuais, uma vez que podem atuar como ação compensatória em relação às inexoráveis perdas decorrentes do envelhecimento biológico.40 Souza et al.56, em pesquisa com uma amostra de 50 idosos institucionalizados, que não apresentavam alterações neurológicas ou de memória, observaram os melhores desempenhos nos indivíduos com os seguintes aspectos: mulheres, nos subtestes que envolviam habilidade de memória; idosos considerados jovens, nas provas de memória relacionadas à evocação; pessoas com maior grau de instrução nas habilidades que envolviam linguagem. Argimon e Stein57, além de corroborarem a influência da escolaridade como fator de proteção do declínio cognitivo do idoso, apontam a hipótese de que algumas características sociodemográficas, como envolvimento com a comunidade, diferentes atividades de lazer, convívio com familiares e atividades físicas, também podem atuar como fatores protetivos individuais e ambientais. 3.3 Instrumento de rastreamento de comprometimento cognitivo O Mini-exame do Estado Mental (MEEM) ou Mini-mental State Examination (MMSE) foi idealizado por Folstein58, na década de 1970, com o objetivo de ser um exame simples, rápido e prático na avaliação do estado cognitivo de pacientes. O termo “mini”, segundo o autor, refere-se ao fato de esse exame focar a esfera cognitiva de forma completa, sem inclusão dos aspectos relativos aos transtornos de humor e hábitos mentais (forma de pensar). Hoje em dia, embora não seja recomendado para diagnóstico, o MEEM é considerado um importante instrumento para rastreio de comprometimento cognitivo e também para avaliação temporal do grau de comprometimento cognitivo dos pacientes, bem como para acompanhamento da eficácia de tratamentos, pesquisas clínicas e estudos epidemiológicos.58,59 35 Como o nível de escolaridade59,60 do paciente pode influenciar o resultado do MEEM, Bertolucci, Brucki, Compacci e Juliano61 propuseram a adequação desse instrumento para uso no Brasil com adaptações validadas para o português e sugestões de pontos de corte estratificados para uma abordagem mais fidedigna e uniforme59 em relação à heterogeneidade educacional da população brasileira (Quadro 1). O MEEM apresenta confiabilidade confirmada61, pode ser utilizado em ambulatórios ou hospitais58–60, não requer um testador especialista, e as perguntas são feitas numa ordem pré-determinada (em lista) em duas seções58: a primeira para respostas verbalizadas sobre orientação espacial e temporal, memória e atenção; e a segunda com comandos verbais e escritos, escrita espontânea e cópia de desenho de um polígono complexo. O score máximo é 3058, o mínimo é de 23 para pacientes com algum nível de escolaridade e de 18 para aqueles sem instrução escolar formal60. Os pacientes que apresentarem score abaixo do mínimo podem ser considerados com prováveis comprometimentos cognitivos, necessitando de uma ampla avaliação geriátrica.62 36 Quadro 1 - Mini-exame do Estado Mental (MEEM). Fonte: Adaptada de Bertolucci et al. 61 37 4 DEPRESSÃO NO IDOSO Utilizada, de forma geral, para denominar uma disposição de ânimo triste (desânimo) de uma pessoa, a palavra depressão também descreve sucessivos fenômenos, desde uma situação de desequilíbrio afetivo passageiro, passando por um mal estar geral (disforia), até uma doença depressiva maior, que necessita de intervenção psiquiátrica. A peculiaridade de todas essas formas de apresentação é a diminuição do humor e, nos casos mais graves, falta de interesse e desprazer nas atividades cotidianas.63–65 A depressão pode surgir como sintoma, síndrome ou doença. Como sintoma, ela está ligada à reação situacional (exposição a agentes estressores, infortúnio financeiro, condição social) ou a alguns quadros clínicos (demência, uso de alguns medicamentos, doenças clínicas, etc.); como síndrome, além das alterações do humor, podem estar presentes alterações cognitivas, psicomotoras e vegetativas (alteração do sono e do apetite); e como doença, pode ter várias classificações (transtorno depressivo maior, melancolia, distimia, depressão integrante do transtorno bipolar tipos I e II, depressão como parte da ciclotimia, etc.).64 A depressão tem efeito negativo na qualidade de vida do idoso, que tende apresentar maior comprometimento físico, social e funcional, causando sofrimento, desagregação familiar e incapacidades. Quanto maior a gravidade do quadro inicial, associado à inexistência de tratamento adequado, pior o prognóstico, aumentando a co-morbidade e a mortalidade.22,66 Embora os sintomas depressivos possam ser comuns entre os idosos, principalmente nos que apresentam doenças crônicas e deficiências neurológicas, é essencial a diferenciação entre tristeza e depressão, pelo alto risco de comprometimento físico e desenvolvimento de uma depressão maior, o que pode aumentar o consumo de medicamento.22 Os transtornos mentais estão entre as mais prevalentes condições crônicas, sendo a depressão a mais frequente síndrome psiquiátrica na terceira idade67, de modo que sua presença necessita ser avaliada.22,63 No Brasil, a prevalência de depressão entre as pessoas idosas varia de 4,7% a 36,8%22. Segundo Frank et al.68, as prevalências da depressão podem variar segundo a descrição da população de idosos, do método utilizado para o diagnóstico e do lugar de 38 referência (comunidade, instituição de longa permanência, serviço de atenção básica ou ambulatório especializado), presença de co-morbidades e fatores de risco. 4.1 Diagnóstico da depressão O diagnóstico da depressão é determinado fundamentalmente a partir da descrição dos sintomas pelo paciente (história clínica), com busca minuciosa de transtornos psiquiátricos pregressos, uso de substâncias (medicamentos ou drogas) e a presença de doenças crônicas. Deve-se realizar avaliação cognitiva, funcional, psicológica e social, bem como coleta de informações a respeito de suas atividades de trabalho e de lazer, além de verificar o suporte e a dinâmica familiar, a rede de relacionamentos, a estrutura econômico-financeira e social. A capacidade funcional e a autonomia são relevantes no estado de saúde do idoso”.68 Embora seja possível utilizar a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, atualmente, na 10ª edição (CID- 10, de novembro de 1996), da OMS, como critério para a classificação dos transtornos de saúde mental, no Brasil, o mais utilizado na área da geriatria68 é o Manual de Diagnóstico Estatístico de Doença Mental69, em sua 5ª edição – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5, de maio de 2013) –, da American Psychiatric Association (APA). Segundo o DSM-569, existem critérios para o diagnóstico de um episódio depressivo maior: ocorrência de cinco (ou mais) sintomas, com comprometimento funcional, durante período mínimo de duas semanas, sendo, pelo menos, um dos sintomas, humor deprimido ou perda de interesse/prazer. Os demais sintomas são os seguintes: (a) perda ou ganho de peso acentuado sem estar de dieta; (b) insônia ou excesso de sono (hipersonia), quase todos os dias; (c) agitação ou retardo psicomotor, quase todos os dias; (d) fadiga ou perda de energia; (e) sentimento de inutilidade ou culpa excessiva ou inadequada; (f) capacidade diminuída de pensar ou concentrar, ou indecisão, quase todos os dias; (g) pensamento de morte recorrente ou ideação suicida, ou tentativa de suicídio. Os sintomas depressivos, que não se devem aos efeitos fisiológicos diretos de uma substânciaou outra condição médica, causam sofrimento significativo e 39 prejuízo no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo. É na Atenção Primária de Saúde (APS) que a maioria dos pacientes idosos é atendida, principalmente em decorrência de suas doenças crônicas, de modo que o diagnóstico de depressão é de fundamental importância, para que sejam diagnosticados corretamente e não tenham terapêutica inapropriada. Com efeito, um consenso realizado em 2011, pela Sociedade Espanhola de Psicogeriatria70, verificou que os psiquiatras também necessitam de uma formação específica em psicogeriatria, para maior efetividade do tratamento de idosos deprimidos. Os transtornos depressivos podem ser classificados em três categorias quanto ao tempo e à intensidade: transtornos depressivos recorrentes, quando, entre episódios depressivos, ocorre um breve e pequeno aumento de humor e da atividade (hipomania); transtornos depressivos persistentes, quando os episódios persistem por anos; distimia, quando há rebaixamento crônico do humor com episódios muito curtos que não podem ser classificados como transtorno depressivo recorrente.71 Não preenchendo critérios para a classificação de depressão maior, distimia ou transtorno depressivo, existe a depressão subsindrômica, que ocorre com a presença de sintomas depressivos evidentes por longo período de tempo, podendo evoluir, em 25% dos casos, para depressão maior.68 4.2 Fatores de risco para a depressão em idosos Em pacientes idosos, o curso da depressão tende a ser reincidente e crônico68,72, e, quando há recorrência ou recaída, o tempo entre os episódios é mais curto. Estudo realizado por Reynolds72, em 2001, demonstrou que pacientes idosos com disfunção executiva estão em alto risco de recaída e recorrência. As prevenções secundárias são primordiais para diminuir angústia e sofrimento nas recaídas, nas recorrências e nos sintomas residuais, evitando uma cronificação da depressão nos idosos. Determinadas síndromes depressivas do idoso estão associadas a quadros neurodegenerativos. Há frequente co-morbidade entre dor e depressão nos idosos, justificada por disfunção compartilhada das vias nervosas de transmissão da dor e das zonas emocionais.70 40 Há unanimidade entre especialistas de que a depressão no idoso manifesta-se tipicamente com queixas somáticas70 e preocupação com a perda de memória do que propriamente por sintomas afetivos.68 Pode haver associação de queixa de cansaço exagerado (sensação de fadiga) e observação por parte dos familiares de redução das atividades em geral, além de desinteresse pelo ambiente.64 A depressão geriátrica grave está associada a uma disfunção cognitiva, incluindo o funcionamento da memória episódica63, a função executiva e a velocidade de processamento.68 A presença de comprometimento das habilidades cognitivas nesses pacientes idosos está relacionada com maior gravidade e pior prognóstico.70 Segundo estudo realizado por Silva e et al.73, em 2013, há evidência de que sintomas depressivos colaboram consideravelmente para a incapacidade funcional, com dependência nas tarefas de vida diária entre os idosos, para a escassa qualidade de vida74 e para o aumento do nível de sofrimento e angústia de seus cuidadores.67 Há vários fatores adjuntos às mudanças fisiológicas próprias do envelhecer que contribuem ainda mais para suscetibilidade ao transtorno depressivo tardio66 ou desencadeantes da depressão em idosos vulneráveis: doenças crônicas, acontecimentos da vida (luto, solidão), revés econômico (empobrecimento) e fatores sócio-demográficos (isolamento, deslocalização), entre outros.66,75 O ingresso em uma residência geriátrica é um fator claramente associado à depressão.70 Enquanto nos adultos jovens há maior prevalência de transtornos depressivos, os idosos apresentam mais sintomas depressivos.68 Streiner et al.76 verificaram, em estudo realizado em 2006, que a prevalência de transtornos psiquiátricos (ansiedade ou de humor) diminui linearmente após a idade de 55 anos, independentemente do gênero. Segundo Kockler e Heun77, os sintomas depressivos são mais prevalentes nas mulheres jovens adultas do que nos homens, e a diferença de gênero para transtornos depressivos não é tão clara após os 75 anos de idade.68 Distúrbios do apetite são mais frequentes na mulher idosa deprimida, enquanto os homens idosos deprimidos apresentam mais agitação.77 Em relação à diferença de gênero para depressão em idosos, um estudo longitudinal de sete anos, no Japão, em 2011, Tanaka et al.78 verificaram risco maior para desenvolvimento de transtorno depressivo nos seguintes grupos: homens sedentários, mulheres com IMC (Índice de Massa Corporal) igual ou maior que 25, 41 mulheres com mais de nove horas de sono por dia e fumantes. Em outro estudo, também realizado no oriente (Taiwan), as mulheres idosas com sobrepeso e obesas foram menos propensas à depressão do que seus pares de peso normal.79 Um estudo longitudinal, realizado com idosos não institucionalizados, em Amisterdam80, verificou que a depressão aumenta o risco de morte, e a ansiedade (generalizada ou depressão e ansiedade mista) tem efeito protetor na mortalidade de homens idosos. Enquanto homens idosos viúvos têm o risco de 10 a 20% de apresentarem sintomas depressivos no primeiro ano após a morte do cônjuge, mulheres idosas viúvas estão em menor risco, pois se adaptam melhor à condição de viuvez. A convivência com um companheiro(a) é fator protetor para transtorno de humor em ambos os sexos.68 Na nova versão do DSM-581, o luto, considerado forte fator estressor, por poder desencadear transtornos mentais graves, foi retirado do critério de exclusão para depressão maior, para indivíduos que passaram por essa adversidade em menos de dois anos. Em relação à escolaridade, vários estudos68,79,82,83 verificaram não só a importância do nível de instrução como fator protetor de transtorno de depressão em idosos, mas também que sintomas depressivos estão presentes em idosos analfabetos e com menor nível de escolaridade. Muitos estudos relacionam sintomas depressivos e depressão com baixos recursos financeiros68,84, pobreza e aposentadoria.82,85 Idosos que permanecem em atividade laborativa estão menos sujeitos à depressão.79 O suporte social está significativamente associado com depressão, em particular, no idoso: quanto maior a rede de inter-relacionamentos, maior proteção, menor o risco de depressão68,83 Dessa forma, especial atenção deverá ser dada aos que moram sozinhos, pela possibilidade de experimentarem a solidão e a ausência de trocas emocionais.82 A ausência ou o rebaixamento do cuidado emocional, durante a primeira fase da vida, a infância, pode determinar depressão no idoso, assim como traumas68, adversidades e desestrutura na família.66 42 Em instituições de longa permanência, a depressão é um importante fator de risco para idosos68, principalmente quando eles têm história de depressão anterior à institucionalização, apresentam distúrbio do sono ou são do gênero feminino.86 Outros fatores que predispõem ao transtorno depressivo no idoso são: adicção (álcool e tabaco)78, distúrbios ou perdas sensoriais (visão e audição), uso de medicamentos (anti-hipertensivos, analgésicos e sedativos87, antiparkinsonianos). 4.3 Fatores de proteção de depressão O ambiente oportuno66 pode intervir positivamente na vida do idoso, assim como a aquisição de um comportamento de vida mais saudável com práticas de exercícios físicos regulares79,88, espiritualidade89, participação social75 e lazer.87 Esses hábitos atuam como fatores protetores, melhorando a qualidade de vida e coibindo o desenvolvimento dos sintomas ou transtorno de humor depressivo. A identificação precoce dos sintomas depressivos ou o diagnósticode transtorno de humor depressivo, mesmo com a perspectiva de co-morbidade (doenças crônicas), traz benefício na qualidade de vida do idoso74, na medida em que torna possível uma intervenção terapêutica. 4.4 Instrumento para rastreamento da depressão no idoso O rastreamento dos transtornos de humor depressivo nos idosos é de extrema importância e deveria ser realizado de forma sistemática90, principalmente na atenção primária à saúde – considerada porta de entrada do paciente no sistema de saúde do país e onde há um grande índice de sub-reconhecimento dos sintomas depressivos.68 Por apresentar boa sensibilidade, especificidade e confiabilidade62, a Escala de Depressão Geriátrica-15 (EDG-15) ou Geriatric Depression Scale-15 (GDS-15), uma versão abreviada da escala de 30 questões elaborada por Sheikh e Yesavage62, é um dos instrumentos mais utilizado para o rastreamento dos transtornos de humor depressivos nos idosos62,90,91 A EDG-15 é composta por quinze perguntas, com possibilidade de resposta dicotomizada – sim ou não – para cada uma delas (Quadro 2). O ponto de corte 43 sugerido é 662,91: score abaixo de 6 é considerado normal; igual ou superior a 6 é sugestivo de transtorno depressivo. Quadro 2 - Escala de Depressão Geriátrica (EDG) Fonte: Adaptada de Almeida OP e Almeida AS. 90 44 45 5 FUNCIONALIDADE O processo do envelhecimento traz alterações orgânicas progressivas92 na vida de uma pessoa, com rapidez de evolução variável de um indivíduo para outro, de modo que os idosos formam um grupo de alta heterogeneidade93 quanto aos aspectos físico e mental. Os comprometimentos auditivo94–97, visual97, motor96 e cognitivo, associados ou não às doenças crônico-degenerativas93, limitam a vida de relação dos idosos, podendo ocasionar dependência nas suas atividades habituais ou cotidianas. O idoso saudável é aquele que, além de, a partir de suas próprias decisões – autonomia22 –, pode agir livremente sem depender da ajuda de outras pessoas para realizar suas atividades, dispõe de suporte familiar, mantém-se emancipado economicamente e integrado na sociedade. Em concordância com Ramos98, a saúde ou bem-estar ao longo do envelhecimento resulta de um equilíbrio multidimensional da reserva funcional do idoso, apesar da provável existência de problemas relacionados à saúde. A investigação dos elementos relacionados com a capacidade funcional dos idosos é importante na compreensão dos determinantes do envelhecimento saudável99 e, consequentemente, oferece informações para o planejamento e execução de programas especiais de atenção para essa parcela da população.100 Vale ressaltar que a capacidade funcional é um importante indicador de saúde98,101, e seu declínio está associado ao aumento da mortalidade102 entre os idosos. Para garantir uma “expectativa de vida sem incapacidades físicas”26, o sistema público de saúde do Brasil – Sistema Único de Saúde (SUS) – deve efetivamente permitir o acesso universal das pessoas idosas, com prioridade nas ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação de doenças.103 5.1 Conceitos Funcionalidade é uma expressão genérica104 que se refere ao grau de precisão com que uma pessoa pode executar atividades em sua vida cotidiana, desde sua ideação até a ação propriamente dita; assim, capacidade funcional expressa o potencial105 que um ser humano apresenta de pensar e agir de forma 46 individual e independente. Incapacidade e capacidade funcional, de acordo com Lopez104, “são as duas faces da mesma moeda” relacionadas à saúde e influenciadas por diversos fatores ambientais ou pessoais. Na tentativa de aprofundar o conhecimento, vários estudos104,106–109 apontam um debate sobre dois aspectos distintos acerca dos conceitos envolvidos na funcionalidade e na incapacidade: um diz respeito ao modelo médico, que julga a incapacidade como uma doença, deficiência ou trauma relacionado diretamente com o indivíduo e que, portanto, necessita de intervenção médico-assistencial; o outro refere-se a um modelo social, que reputa a incapacidade como uma questão criada na interação do indivíduo com a sociedade, rechaçando a incapacidade como um atributo individual. No ponto central dessa dialética, estaria a forma de enfrentamento do problema: o objetivo do modelo médico é o tratamento ou a promoção de meios para adaptar o indivíduo incapacitado a novos comportamentos; já o modelo social propõe uma ação participativa de toda a sociedade para execução de ações ambientais. Ambos os modelos envolvem políticas: o primeiro, as políticas públicas de saúde, e o segundo, as políticas sociais e as questões relativas aos direitos humanos. Baseando-se em uma abordagem integrada dos modelos médico e social, a OMS107, em 2001, aprovou a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF)110, cuja concepção diferenciada da funcionalidade, da incapacidade e da saúde passou a ser um marco referencial104, um importante recurso na análise das condições da vida humana, para a implantação de políticas de inclusão social106 e para a legislação sobre os direitos humanos109, nacional ou internacionalmente. Enquanto a CID-1071 fornece uma codificação de base etiológica (origem causal da doença), a CIF, com posição neutra em relação à etiologia, oferece uma codificação para problemas funcionais e de estrutura corporal associados à saúde.109 Desse modo, ambas devem ser utilizadas de forma complementar104,106,107 para a obtenção de um retrato mais fidedigno sobre o estado de saúde individual ou populacional. A CIF109 dá o seguinte exemplo: “duas pessoas com a mesma doença podem ter diferentes níveis de funcionalidade, e duas pessoas com o mesmo nível de funcionalidade não têm necessariamente a mesma condição de saúde”. 47 A CIF está estruturada em duas partes, cada uma com dois componentes: funcionalidade e incapacidade, com funções do corpo (funções fisiológicas dos sistemas orgânicos, incluindo as psicológicas), e estrutura do corpo (partes anatômicas, órgãos, membros); fatores contextuais, com os componentes ambientais e pessoais (Figura 2). A funcionalidade109 indica aspectos positivos nas atividades e nas participações; já os processos de incapacidade109 indicam aspectos negativos das mesmas e incluem as dimensões: deficiência (impairment)107, quando sistemas ou partes do corpo não funcionam adequadamente; e incapacidade (disability)107, quando as pessoas não conseguem desempenhar atividades. As deficiências podem ser temporárias ou permanentes (quanto à duração), progressivas, regressivas ou estáveis (quanto à evolução), intermitentes ou contínuas (quanto ao intervalo de aparecimento).109 A incapacidade pode ser baixa ou grave, podendo variar ao longo do tempo. Para clarificar o tema abordado, algumas definições são importantes: atividade é a realização de uma tarefa ou ação por um indivíduo, ou seja, é a funcionalidade sob perspectiva individual; participação é o envolvimento (inclusão, aceitação, acesso) do indivíduo em uma determinada situação da vida, ou seja, é a funcionalidade sob a perspectiva social; limitação de atividade diz respeito à dificuldade de ação de um indivíduo; restrição de participação consiste nas dificuldades do desempenho de papéis sociais; desempenho descreve o que o indivíduo faz no seu ambiente cotidiano; capacidade tem relação com aptidão individual para realizar ações107,109 Exemplificando esses conceitos: uma pessoa soropositiva para o HIV pode estar sem sintomas da doença, não apresentar deficiência, ser capaz de realizar várias tarefas, contudo, por discriminação, ela pode ter acesso negado a um emprego.109 Expondo a biografia do indivíduo, ao demonstrar como seu estilo de vida e o ambiente físico-social107 inter-relacionam-se,