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Um Café para Sócrates 
De Marc Sautet 
Livraria José Olympio Editora S.A. 
Tradução de Vera Ribeiro 
 
Marc Sautet 
 http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm 
 
 Café Filosófico - Marc Sautet 
 
Primeira parte 
Quem somos? 
 
Prólogo 
Domingo, praça da Bastilha 
A filosofia no café 
O consultório 
Em consulta 
Sessões coletivas 
Em seminário sobre a autenticidade 
Em viagem 
 
Segunda parte 
Onde estamos? 
 
Em viagem 
Derrota do pensamento 
O Iluminismo 
A Revolução heliocêntrica 
A revolução mercantil 
Galileu 
Copérnico 
Petty & Smith 
Marx 
A Revolução operária 
 
Terceira parte 
Para onde vamos? 
 
Totalitarismo 
Vitória da lei do lucro 
O nascimento do demos 
O nascimento do logos 
A lucidez de Sófocles 
O cansaço de Sócrates 
A vingança de Platão 
A traição de Aristóteles 
Os instrumentos animados 
A fatalidade 
Repetição 
À guisa da conclusão 
___________________________________ 
 
Texto publicado “doc” no seguinte endereço: 
http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm 
Organizado em “pdf” por 
filosofia@seed.pr.gov.br 
Prof. Francisco Bornholdt 
04 de Abril de 2004 
______________________________ 
www.cifra.pro.br 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm
http://www.cifra.pro.br
mailto:filosofia@seed.pr.gov.br
 
Um Café para Sócrates 
De Marc Sautet 
Livraria José Olympio Editora S.A. 
Tradução de Vera Ribeiro 
 
Prólogo 
 
 Domingo, 13 de dezembro de 1992, praça da Bastilha, por volta de 11 horas. Os cafés vão-se 
enchendo aos poucos. Num deles, porém, umas trinta pessoas se instalaram ao redor de mesas 
dispostas num retângulo. Consomem tranqüilamente o que lhes foi servido, até que alguém propõe: 
“A violência é específica do homem ou se encontra em toda a natureza?” É um belo tema. É dele que 
se falará durante duas horas. Pois o desafio é de porte: trata-se, nada mais, nada menos, de saber se 
o homem pode escapar à fatalidade da violência, que obviamente caracteriza as relações que ele 
mantém com seu semelhante. Mas é preciso também chegar a um acordo quanto ao campo da 
discussão: ao longo do trajeto, perceberemos que ele não tem limites, pois o que há por considerar é 
não apenas tudo o que vive na face da Terra, a fauna e a flora, ou tudo o que nela acontece, todos os 
eventos naturais, mas o mundo inteiro, ou seja, o Universo, o cosmo, em toda a sua extensão e em 
toda a sua história… 
 
 E é assim que transcorrerá a manhã no Café des Phares, numa troca incessante de 
argumentos mais ou menos sólidos, escorados em exemplos mais ou menos pertinentes, destinados a 
fundamentar tomadas de posição mais ou menos apressadas. Às 13 horas diz-se a última palavra. E 
se marca um encontro para a semana seguinte. 
 
Pois é assim que se tem praticado a filosofia, já se vão mais de dois anos, na praça da 
Bastilha. Alguns expressarão certa dúvida quanto à validade filosófica de um debate de bar. Outros 
sentirão tão somente desprezo por esse pequeno prazer que oferecem a si mesmos alguns parisienses 
carentes de uma tribuna. E alguns, quem sabe, acharão divertida a iniciativa e quererão saber mais 
sobre ela. 
 
Este livro tem por objetivo responder a estes e àqueles. É possível, com efeito, que esses 
encontros não tenham nenhuma importância, que constituam, quando muito, apenas um simples 
divertimento dominical de solitários desocupados. Mas também é possível que sejam um sinal – o 
sinal de que a filosofia, a despeito dos que cavaram sua sepultura, tem ainda um belo futuro pela 
frente e de que o pensamento, a despeito dos pessimistas, está longe de ter sido derrotado. Havemos 
de convir que isso merece uma reflexão. 
 
Pois é esse o âmago da questão. Empurrada há mais de um século para fora do campo do 
conhecimento pelos avanços da ciência, a filosofia, ainda por cima, foi recentemente suplantada pelas 
ciências humanas no campo da ação. Ridicularizada em sua pretensão de deter o código de acesso à 
verdade, por um lado, com as façanhas da física quântica e da bioquímica, ela teve ainda, por outro, 
que ceder lugar à sociologia, à economia política e à psicologia quando se trata de penetrar no cerne 
do mundo dos seres humanos para vencer os males reais. Ela resistiu, mas de nada adiantou. Nem a 
França nem a Alemanha, as duas nações em que o espírito das Luzes se manifestara de maneira mais 
intensa, puderam deter sua queda: nem a escola de Frankfurt nem Camus. Nem tampouco Sartre, 
cujo engajamento político tardio acabou com a escassa credibilidade que ela ainda conservava na 
cidade; após sua morte, só restou a seus herdeiros a alternativa entre a marginalidade esplêndida e o 
oportunismo mundano: de um lado, Deleuze, Foucault e outros como Baudrillard; de outro, os “novos 
filósofos”. Sem luz e sem calor, a filosofia é hoje tida por uma estrela morta, uma divindade caduca, 
padecendo o destino que outrora infligiu à religião: parece chegado o momento de deixar essa 
defunta entregue ao culto devoto da corte de seus servidores. 
Pode ser que a filosofia tenha ficado estéril. Mas estará por isso morta? E será que essa esterilidade é 
fatal? Fala-se muito, ultimamente, em ética e moral, deplora-se a corrupção dos políticos e dos 
homens de negócios, fica-se assustado com a extensão da miséria excludente, do tráfico de drogas, 
da selvageria das guerras interétnicas e do fanatismo religioso, invoca-se a solidariedade, o dever de 
intervenção, fica-se inquieto com os trabalhos laboratoriais no campo das armas químicas e no da 
genética… Acima de tudo, tenta-se não perder a cabeça, conservar o sangue-frio. E, para consegui-lo, 
o que é que se faz? Acaso se faz astrofísica, microbiologia? Antropologia, sociologia, psicopatologia? 
Economia política? Ou será que fazemos filosofia? Quando procuramos descobrir o que não funciona 
bem na Cidade, o que destrói a democracia, o que compromete a justiça, a liberdade, a igualdade, em 
suma, as relações entre os cidadãos, aquilo que impele os homens a se odiarem e a se matarem uns 
aos outros, quando estendemos esse exame ao conjunto das nações, a ponto de considerar o destino 
da humanidade inteira, que é que estamos fazendo? Na verdade, teremos algum dia tido tantas 
razões para filosofar? 
 
As páginas que se seguem tentam mostrar que esse uso espontâneo da filosofia em público 
não se deve ao acaso. Elas propõem que recuemos um pouco da crise atual para tentar identificar sua 
origem. Melhor ainda, convidam a confrontar a crise do mundo atual com a da cidade grega, onde 
nasceu a filosofia. Pois a filosofia nasceu há dois mil e quinhentos anos, numa situação de crise 
espantosamente semelhante à que conhecemos hoje: a crise da democracia ateniense. Por mais 
incrível que pareça, encontramo-nos, em larga medida, num impasse análogo… 
 
 Para corroborar esse fato, começarei por descrever uma prática da filosofia que atesta seu 
viço, seu vigor, sim, sua juventude! Refiro-me, é claro, ao debate do Café des Phares. Atualmente, o 
salão se enche todos os domingos, com uns cento e cinqüenta participantes ou até mais. As más 
línguas falam em modismo, em esnobismo tipicamente parisiense; para condenar a experiência, 
alegam a precariedade das condições de exercício da reflexão num local como esse. É verdade que o 
lugar é barulhento: levando-se em conta sua localização e a potência de sua cafeteira elétrica, esse 
barzinho não parece prestar-se particularmente à meditação metafísica. Aliás, para que os oradores 
fossem ouvidos por todos, foi preciso arranjar microfones e preparar o salão acusticamente, assim 
como o terraço. Mas, de onde veio a idéia de que o exercício da filosofia exige o silêncio e a solidão? 
 
 Não digo que esse exercício requeira o alvoroçoe a multidão. Apenas afirmo que uma coisa 
não impede a outra e que, num barzinho, mesmo com cento e cinqüenta pessoas, pode-se entabular 
uma reflexão que merece ser chamada de “filosófica”. Entabular não significa levar a termo. 
Significa… entabular. Com a liberdade posterior, para quem quiser aprofundar o assunto, de 
mergulhar nos livros evocados de improviso, de iniciar um diálogo a sós com um autor citado de 
passagem, na mais completa calma. 
 
Aliás, não vá ninguém duvidar disso, sou o primeiro a ter essa convicção. A filosofia também 
requer silêncio. Implica concentração, empenho, rigor, serenidade, intimidade. Antes mesmo que os 
debates no café ganhassem forma, eu havia aberto um consultório onde começara a receber 
“clientes” que vinham se consultar. Havia-me convencido de que muitas pessoas estavam desejosas 
de fazer uma pausa – uma pausa em sua vida trepidante de todos os dias, uma pausa na vida 
profissional, uma pausa na vida afetiva, uma pausa em seus hábitos de pensar – e de que faltava um 
lugar adequado para isso. 
 
Em grande parte, é claro, os consultórios de psicoterapia desempenham esse papel. Mas não é 
certo que essa função lhes caiba. Se o mal-estar do paciente tem origem em seu psiquismo, nada 
mais normal do que consultar um terapeuta. Mas, e quando não é esse o caso? Ainda quando são 
seus parentes, seu meio familiar que estão em questão, vá lá. Mas, e quando não é o sujeito que está 
em causa e sim a cidade, ou a nação, ou o Estado, ou os Estados ou nações, unidos ou desunidos, ou 
a espécie humana em seu conjunto? Pergunto: qual é a legitimidade da intervenção do terapeuta 
quando o mal-estar da pessoa que vai consultá-lo provém de uma situação geral defeituosa? Se 
alguém deve intervir, não será, antes… o filósofo? 
 
Até aqui, isso não era feito. Os psicoterapeutas, portanto, tinham o campo livre. O que é uma 
das razões de seu sucesso. Resta saber se é uma boa razão. Tirando proveito no inexorável 
descrédito dos padres e pastores, os médicos da psique descobrem-se agora numa concorrência 
selvagem com os astrólogos, numerologistas, cartomantes, videntes, marabus, iogues e outros gurus 
da new age. Sem ser necessariamente mais eficaz que todas as variedades de “ciências ocultas” e 
práticas mágicas, a psicoterapia ao menos pode exibir a garantia da seriedade de seus fundamentos 
teóricos. Mas de que eficiência pode ela se adornar para cuidar do que não é de sua alçada? Pensando 
bem, os terapeutas ultrapassam em muito seu campo de competência quando avançam pelo terreno 
da aventura humana compreendida em sua totalidade, em sua história, seu desenvolvimento, 
vicissitudes, regressões, promessas, esperanças desfeitas, perspectivas e o impacto desse conjunto 
de dados na pessoa que vai procurá-los. 
 
Vista por esse prisma, a legitimidade das ciências ocultas não é inferior à de qualquer espécie 
de terapia – muito pelo contrário, uma vez que elas se apresentam como uma resposta à questão do 
destino. “Conhecerei a felicidade?” Ou: “Encontrarei minha alma gêmea? Ficarei rico(a)? Conservarei 
ou recobrarei a saúde?” – eis o tema dessas consultas. Sabemos que inúmeros políticos – e não dos 
mais insignificantes – consultam seus astrólogos antes de uma eleição ou de uma data decisiva; 
quanto ao cidadão comum, ele teme sofrer um acidente ou morrer e quer saber mais a respeito. 
Também há quem deseje mal a outrem, quem queira livrar-se de seus inimigos, e existem praticantes 
que favorecem tais anseios. 
 
E daí? Para além das formulações ingênuas da “demanda” e aquém das conseqüências 
macabras que possam ter, o que impele as pessoas a buscar os praticantes das ciências ocultas é o 
lugar de cada indivíduo no todo: a sorte, o amor, o poder, tudo o que qualquer um pode esperar da 
vida encontra-se no centro do ato que pratica. Em suma, o que está no cerne das consultas é a 
questão do destino. Com a parcela de acaso e a parcela de determinação necessária que ele 
comporta. Pois o astrólogo não imputa a seu cliente a completa responsabilidade pelo que lhe sucede, 
mas o adverte sobre as correntes favoráveis ou desfavoráveis a seus atos e lhe sugere que adapte 
suas escolhas às “configurações” vigentes dos astros. Logo de saída, a pessoa que vai consultar-se é 
re-situada num todo que a ultrapassa em larga medida, o que, a priori, é pelo menos tão justo quanto 
polarizar todo o destino do indivíduo em seu passado pessoal e em sua dificuldade de assumi-lo. 
 
Confiantes nessa aptidão para desculpabilizar as pessoas que vão consultá-los, os praticantes 
das ciências ocultas dividem entre si benefícios cuja fonte é inesgotável, uma vez que ela se situa no 
desarvoramento do indivíduo frente a seu destino. Assim, muitos de seus clientes habituais esquivam-
se da “culpa” que os espera no consultório do psicoterapeuta e, depois, no divã do analista: pensando 
bem, eles ainda preferem correr o risco se ser tapeados por uma “ciência” assim, entre aspas, que 
pelo menos leva em conta a realidade do mundo externo, a natureza coletiva da história humana e a 
escassa margem de manobra de cada indivíduo para mudar o rumo das coisas. Rejeitando 
confusamente a idéia de um sujeito concebido como centro do Universo, muitos retornam à velha 
sabedoria popular, que reconhece que cada ser humano é muito insignificante. 
 
 Ainda mais que os filósofos se calam. Se ao menos fizessem seu trabalho! Se, em vez de 
repetirem incansavelmente o que aprenderam com seus mestres, os que se encarregam do ensino da 
filosofia entrassem na roda e formulassem as perguntas que importam: “É verdade que cada ser 
humano é o centro do mundo? Será possível, cada um por si, acabar com aquilo que nos atormenta a 
todos? Será que a solução de todos os nossos males, ou pelo menos de todas as nossas fraquezas, 
encontra-se num domínio completo de nossas frustrações infantis?” Se essas perguntas fossem 
formuladas por aqueles cujo ofício consiste em interrogar os que afirmam saber por que as coisas 
acontecem da maneira que acontecem, então, sem dúvida, muitos dos que confiam seu destino aos 
astrólogos e gurus pensariam duas vezes. 
 
 Do mesmo modo, se os filósofos profissionais, cujo número é considerável, perguntassem aos 
astrólogos e gurus, com toda a simplicidade necessária, de onde eles extraem sua ciência, o que 
entendem por “destino” e de que natureza são as forças a que dedicam seus talentos, talvez fosse 
possível separar as coisas, distinguir o que, na arte dessas pessoas, deve ser atribuído a uma 
habilidade real e o que não passa de subterfúgio, e discernir o que, nas motivações de seus clientes, 
decorre do desejo de fugir das responsabilidades, pela invocação da fatalidade, e do desejo de 
assumi-las, pelo aprofundamento da personalidade. 
 
Pois bem, falemos abertamente: a vocação do filósofo não é calar-se. Não é se retraindo que 
ele desempenha seu papel. É na rua, na cidade, misturando-se à vida de todo o mundo, 
perambulando pela praça do mercado, em meio à multidão dos negociantes e dos que oferecem 
entretenimento. Fazendo perguntas a uns e a outros. Questionando. Não porque ele mesmo saiba, 
porque disponha de um saber superior, mas, ao contrário, por invejar aqueles que sabem ou alegam 
saber. Ele quer saber, mas não quer ser tapeado. E, se há uma coisa a ser ensinada, é esta: é preciso 
empenho, método, atenção, concentração e calma, mas é também preciso o inverso – o confronto 
com o real, o convívio na multidão, o enfrentamento daqueles que pretendem iludir os outros. 
Meditação e luta. Silêncio e alarido. A solidão e a ágora. 
 
Alguns, é verdade, ergueram a voz. Mas, para dizer o quê? Que a razão havia acabado, que a 
sorte estava lançada, que a era das Luzes ia chegando ao fim. Numa segunda parte, submeterei essa 
afirmação a um exame atento. Por mais corajoso que seja, esse diagnóstico repousa, a meu ver, 
numa ilusão grosseira. A exemplo dos historiadores das idéias, os “pessimistas”consideram que o 
espírito humano dispõe de grande autonomia, que ele se manifesta livremente na história, por si só, e 
que no Ocidente, em particular, seus progressos determinaram o curso dos acontecimentos. Temo 
que, nesse aspecto, eles sejam vítimas de uma ilusão de óptica (no sentido estrito). Tentarei mostrar 
que esse ponto de vista opõe-se diretamente à realidade concreta e, mais ainda, ao próprio espírito 
do Iluminismo. Não teria havido vitória da razão sobre a superstição se Copérnico não houvesse 
mostrado que o centro do mundo não era a Terra, mas o Sol. Ora, não teria havido revolução 
cosmológica sem a reviravolta introduzida nas relações sociais pela economia de mercado. O motor da 
“modernidade” não foi a Razão, mas a generalização da troca de mercadorias. 
 
Nesse processo, darei minha contribuição para a pergunta: “De onde viemos?” Restar-me-á 
então responder a uma outra pergunta, aquela que nos importa acima de tudo: “Para onde vamos?” 
Esse será o tema da terceira parte. O fato de os pessimistas se enganarem não prova que os 
otimistas tenham razão. Descrever o futuro de nossa civilização como o retorno à barbárie talvez seja 
um contra-senso. Mas não justifica em nada o império exclusivo das leis de mercado sobre o destino 
da humanidade. Com efeito, é possível que esse império já esteja caduco. A todos os que afirmam 
que não temos alternativa, que todas as outras possibilidades fracassaram, que temos de nos resignar 
a esse regime, sob pena de recairmos nos horrores do totalitarismo, que só nos resta apostar na 
inventividade provocada pela pressão da concorrência, que cabe aos indivíduos tomar a iniciativa, 
ousar, inovar para sair do marasmo, que o futuro passa pela computação das informações em escala 
planetária, que as mercadorias mais preciosas, hoje, são imateriais, que o mercado mundial abriga 
imensas potencialidades de desenvolvimento e que certamente não é repisando o passado que nos 
posicionaremos como convém para o futuro, a todos esses proponho que suspendam seu julgamento 
por um instante. É que, sem saber, eles se acham na posição de alguns interlocutores de Sócrates, 
vinte e cinco séculos atrás. Sua incapacidade de explicar as causas do mal que corrói a Cidade 
impele-os a uma fuga voluntarista para o futuro. Ora, a analogia entre esse mal e o que precipitou a 
ruína de Atenas é flagrante. A menos que se queira a qualquer preço precipitar a catástrofe, acaso 
não vale a pena deter-se nisso? 
 Daí os trinta capítulos que se seguem. Primeiramente, apresentarei o debate do Café des 
Phares através de alguns dos seus momentos, assim como o consultório de filosofia que está na 
origem dele e tenta atender à demanda latente de filosofia em público; no percurso, evocarei os 
primórdios de minha experiência prática: as primeiras consultas, o primeiro seminário e a primeira 
viagem. Em seguida, exporei o que sinto sobre as razões dessa demanda, que estão na crise que hoje 
atravessamos. Formularei duas hipóteses: a primeira é que, por conhecermos mal o motor de nossa 
história, temos dificuldades em perceber a origem dos flagelos que nos assolam; a segunda é que a 
filosofia, ao nascer, viu-se confrontada com dois flagelos similares. De fato, é como se as nações 
modernas estivessem repetindo cegamente o erro que foi fatal para as cidades gregas, dois mil e 
quinhentos anos atrás. Por mais incongruente que isso possa parecer, minha impressão é de que a 
peça que estamos encenando já foi montada na Grécia, na época do nascimento da filosofia socrática. 
MARC SAUTET 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Um Café para Sócrates 
De Marc Sautet 
Livraria José Olympio Editora S.A. 
Tradução de Vera Ribeiro 
PRIMEIRA PARTE 
ONDE ESTAMOS? 
 
I 
Domingo, praça da Bastilha 
 
Domingo, portanto, 13 de dezembro de 1992, Café des Phares, praça da Bastilha, Paris. É 
meio-dia. Reina na sala um clima estranho. Trinta a quarenta pessoas fazem uma reunião, em vez de 
estampar a crônica indiferença (às vezes apenas fingida, é verdade) que costumam ter os fregueses 
uns pelos outros. Qual o assunto? Política, sem dúvida, certo? Ou algum acontecimento, um novo 
escândalo, um boato? Quem apurasse o ouvido nesse exato momento ouviria uma jovem afirmar que, 
quando rasga um pedaço de papel, ela o faz sofrer! Será louca? Não parece: é muito calma, bem 
arrumada e se empenha em explicar-se. Faz uma hora, está na companhia desse grupo, que está 
refletindo sobre a violência. Também ela se pergunta onde a violência começa e onde termina. 
Quando recebemos um golpe, “praticam uma violência” contra nós; quando o desferimos, “praticamos 
a violência” contra o outro, seja ele um ser humano ou um animal – por exemplo, um cão que nos 
incomoda e que repelimos com um pontapé ou que nos compraz machucar. Mas, quando damos um 
chute numa acha de lenha, estaremos praticando uma “violência” contra esse pedaço de madeira? E 
ao rasgarmos um pedaço de papel? A jovem diz que sim… 
 
E a coisa não é tão idiota quanto parece. Porque, no início da discussão, tratava-se de saber 
se a violência é universal ou apenas humana. Todos concordam em que a violência existe nas 
relações entre os homens, hoje e em toda a história da humanidade; por isso, o problema é saber se 
há uma fatalidade nisso, se a condição humana implica a violência e, se assim for, por quê. Supondo 
que a violência impere no universo, é difícil dizer de que modo o homem poderia livrar-se dela. Mas, 
mesmo não sendo esse o caso, é possível que ele esteja condenado a praticá-la para viver: ainda que 
possa abster-se de fazer o mal ao próximo ou de maltratar o cão por prazer, como pode evitar matar 
para comer? Será que consegue viver sem praticar violência contra seu meio ambiente? No passado, 
os homens cortavam madeira, quebravam-na e a queimavam para se aquecer: não era isso uma 
violência contra as árvores? Hoje em dia, milhões de homens continuam a se aquecer com lenha e, se 
podemos prescindir dela, nem por isso deixamos de destruir cada vez mais florestas para atender a 
outras necessidades: quando não dizimamos as árvores para fazer móveis e pasta de celulose, 
desmatamos para plantar café ou criar gado. Essa violência contra a natureza traduz-se no 
desaparecimento da cobertura vegetal do planeta. Até quando continuaremos a fechar os olhos a 
isso? 
 
Essa formulação não é desprezível. Alguns aprovam com verdadeiro fervor; outros mostram 
dúvida. Faz-se um silêncio incômodo. Será que a lista de argumentos ecológicos autoriza atribuir uma 
alma aos objetos? Por mais urgente que seja interrogar as condições de nossa grande casa, acaso o 
animismo é o futuro do homem? Supondo que eu cometa uma violência contra o papel ao rasgá-lo, 
resta saber se lhe faço algum mal. Quando dou um pontapé no cachorro, estou lhe fazendo mal, pois 
ele sente dor, mas por acaso o papel sente seja lá o que for? Não será um absurdo atribuir-lhe a 
sensação de dor, já que isso equivale a lhe conferir uma consciência? Nesse caso, por que não 
conferi-la também ao açúcar, que deve sofrer de maneira atroz ao se dissolver no café escaldante? 
 
A discussão atinge um clímax. Um dos participantes exige que se retorne ao bom senso, o 
qual só reconhece a violência quando exercida contra um ser vivo! A moça, sempre segura de si, finca 
pé em suas posições: como podemos saber, retruca, que as coisas inertes não têm consciência? 
 
E tem razão de insistir. Reconhecer que a violência só pode ser praticada contra os seres 
vivos já é reconhecer que ela pode ser exercida contra uma árvore, a qual – como reconhece o senso 
comum – é um ser vivo; quem sabe, portanto, se não sofre ao ser derrubada? Quem sabe se o galho 
não sofre ao ser cortado com o machado ou a serra elétrica, que fazem sua seiva escorrer como o 
sangue de um braço cortado? Quem sabe, por conseguinte, se a lenha “morta” não sofre ao ser 
cortada ese não sofre o papel, tirado da madeira ainda viva, ao ser rasgado? Isso, é claro, implica 
uma completa mudança de perspectiva, uma renúncia ao bom senso e a presença de uma consciência 
nas coisas, à maneira dos antigos ou dos primitivos, que por toda parte viam elfos, gênios, espíritos 
ou deuses em ação na natureza inteira. Do mundo humano ao reino animal, do reino animal ao reino 
vegetal, do reino vegetal ao mundo mineral, da superfície da Terra à esfera celeste, tudo volta a ser 
“animado”, o Universo inteiro enche-se de um fluxo divino e, ainda que por um instante, sentimo-nos 
filhos das estrelas… 
 
Aqueles que preferem ficar na Terra – por uma rejeição do misticismo ou pela recusa do 
antropomorfismo e do retorno aos piores arcaísmos, em nome da racionalidade, do materialismo ou, 
muito simplesmente, do laicismo – devem, no mínimo, enfrentar a seguinte dificuldade: se 
restringirem a violência aos limites da consciência, terão um bocado de trabalho para definir o que 
acontece na natureza quando um vulcão entra em erupção, quando ocorre um sismo ou quando um 
maremoto devasta uma cidade inteira. Mesmo sem tomar exemplos tão flagrantes quanto esses, que 
dizer de uma simples tempestade e de um relâmpago acompanhado de trovão, não será isso 
violência? O senso comum, nesse ponto, vê-se numa armadilha, porquanto é o primeiro a falar de tais 
acontecimentos e calamidades nesses termos. Se a violência implica a consciência, não se deve dizer 
que uma tempestade, um tufão ou um furacão são violentos! Ou deveremos afirmar que sua violência 
decorre da presença de vítimas, seres humanos ou, pelo menos, animais, os quais, eles sim, são 
dotados de consciência? Nesse caso, só se poderia falar em violência no tocante aos fenômenos dos 
quais os seres vivos são testemunhas! 
 
Como se vê, a questão não é simples. Depois de permitir que os dois campos se pronunciem, 
que explicitem seu pensamento e o ilustrem para se fazerem compreender com clareza, parece-me 
oportuno retomar a iniciativa. Traço uma curva no ar e pergunto se o terei ferido com o dorso da 
mão. Incredulidade dos presentes… Assim, parto para a ofensiva, pois tão cedo não me farão admitir 
que a violência é a lei que rege os destinos da espécie humana. Não duvido que essa idéia goze de 
grande prestígio. Tem a seu favor as provas fornecidas por uma rápida investigação do passado da 
humanidade – uma sucessão ininterrupta de guerras, conquistas e massacres. E quem não quer ser 
enganado pelas formas mais sutis de opressão – as de outrora ou as mais comuns hoje mesmo – 
dificilmente pode resistir aos atrativos dessa idéia, sob pena de passar por ingênuo ou por cúmplice. 
 
Temo, no entanto, que essa idéia repouse numa ilusão. Que a violência é universal, que é 
encontrada em toda a história da humanidade, em todo o mundo animal, que está presente nas 
erupções vulcânicas e nos movimentos das placas tectônicas que moldam o relevo de nosso planeta, 
que se oculta no âmago da atividade solar, que está na origem de nosso sistema galáctico e até 
mesmo do cosmo, sob o nome de big bang, tudo isso eu admito de bom grado. Mas o fato de a 
violência estar em toda parte não implica que esteja presente o tempo todo. 
 
Para que o cosmo se transforme em cosmo, é preciso que a violência ceda lugar a seu oposto: 
cosmos, em grego, significa “território posto em ordem” e, portanto, saída do caos. O nascimento do 
cosmo é a ordenação de elementos caóticos. Nosso sistema solar resultou de uma pacificação 
localizada do caos: planetas-satélites puseram-se em órbita regular em torno do Sol e foi essa 
regularidade que permitiu à Terra esfriar-se e, mais tarde, gerar vida. Assim, de certa maneira, foi 
por haver diminuído a violência natural, por ela haver cessado, que ganharam forma nosso planeta e 
a biosfera. 
 
O mesmo se aplica à história da humanidade. Não somos mais do que uma espécie animal 
entre outras, é claro, e toda a nossa pré-história foi marcada pela luta contra os flagelos naturais, 
dentre eles as espécies rivais. Mas nem por isso a violência é a lei que rege essa história até hoje. 
Ainda podemos classificar na categoria de violência as invasões bárbaras que serviram de prelúdio à 
era feudal, bem como os hábitos predatórios dos senhores. Mas é impossível caracterizar dessa 
maneira o motor da civilização moderna: o que está no cerne do progresso dos últimos séculos não é 
a postura predatória, mas o comércio; ora, o comércio repousa, exatamente, no oposto da violência: 
comerciar é trocar mercadorias equivalentes, quer sob a forma do escambo, quer por intermédio da 
moeda, em particular o ouro. Isso pressupõe que não se cometa nenhuma violência contra o outro. 
 
Contrariando as aparências, o capitalismo não repousa essencialmente na violência. Ao 
contrário, teve que triunfar sobre comportamentos dos senhores feudais e dos salteadores para impor 
a todos a lei do mercado. O fato de haver empregado meios bélicos para esse fim não altera nada: ele 
projetou uma ordem em que a violência tinha que ceder lugar ao comércio. E o comércio implica a 
negociação. Para terminar, o fato de a própria sociedade de mercado não estar em condições de 
realizar plenamente seu projeto e de, na impossibilidade de chegar à paz perpétua desejada por Kant, 
as negociações comerciais tenderem, com freqüência meio exagerada, a se transformar em guerras 
homicidas, eis algo que não é irrelevante mas que, na verdade, prova apenas uma coisa: que esse 
sistema tem limites sobre os quais seria conveniente refletir. 
 
Pois é isso mesmo que está em jogo: não se deixar tapear! Se os limites do sistema 
dominante é que são culpados pela violência, não se deve fazer da violência o verdadeiro motor da 
história humana e, por isso mesmo, uma fatalidade. Eis o que nos importa aqui: se a atração e a 
repulsa dos corpos celestes e das partículas de matéria regem a passagem do caos ao cosmo, não é 
ilícito supor que as relações sociais assumam um dia, em torno do ouro, a configuração assumida pela 
trajetória dos planetas em torno do Sol: a de uma curva suave e regular, tão harmoniosa e generosa 
quanto as carícias dos amantes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
Um Café para Sócrates 
De Marc Sautet 
Livraria José Olympio Editora S.A. 
Tradução de Vera Ribeiro 
 
PRIMEIRA PARTE 
ONDE ESTAMOS? 
 
II 
A filosofia no café 
 
Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo 
horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um 
bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito 
tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto, 
já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em 
comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior. 
 
Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte. 
O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista 
cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me 
encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de 
meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que havia um “filósofo” 
à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram 
até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão. 
Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte, 
narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas: 
caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da 
decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol,a eventualidade da morte do Universo etc. 
O tempo passou muito depressa. 
 
Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte 
efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia 
esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em 
geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e, 
idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas 
esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de 
felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o 
direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando-
o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da 
arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares. 
 
Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não 
compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de 
se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação: 
dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para 
construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua 
volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com 
um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver 
perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se 
esfumando em minha lembrança… 
 
Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente 
do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço 
do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se 
aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra 
alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um 
marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me 
deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o 
que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do 
homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas 
amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por 
nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se 
pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua 
barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo 
fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais. 
 
Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos, 
muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera 
da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre 
precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível 
ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia 
um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto, 
para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma? 
Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas 
paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns 
tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham 
vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso. 
Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era 
visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se 
tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu 
lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua 
gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças, 
creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje 
tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro: 
a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no 
coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro), 
lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se 
tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve 
entre os primeiros freqüentadores habituais. 
 
Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que 
“Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos 
rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o 
prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um 
rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se 
tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem 
nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com 
experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a 
todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de 
comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o 
debate do Café des Phares entrar em hibernação. 
 
Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os 
recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham 
misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por 
ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não 
agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um 
dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências 
de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam 
apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”, 
creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas 
radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências 
clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito. 
 
Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava 
margem a muitas tentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em 
primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se 
tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa 
disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena 
de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem 
esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegrementea dar. Diversos 
oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um 
dissesse qualquer coisa… 
 
Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos 
eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu 
mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber 
antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras, 
nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas 
começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em 
detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns 
participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus 
vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse 
margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir 
que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na 
esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma 
expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”. 
 
A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto 
desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao 
observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do 
“Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças, 
dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais 
emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere 
interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que 
emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a 
suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem, 
essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que, 
passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida… 
Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se 
banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não 
tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a 
repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte! 
 
Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A 
bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi 
dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento 
de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que 
não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se 
de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar 
um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira 
vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender 
que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível. 
 
Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou 
para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma 
expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado 
e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido 
levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi 
que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair 
prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma 
infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu 
conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo 
nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas 
do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não 
afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o 
destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos: 
se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma 
vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual 
um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na 
opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo… 
Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da 
experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está 
progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma 
experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de 
problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma 
calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate 
sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema. 
 
Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A 
pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”. 
Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio 
que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade 
ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida, 
havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia 
uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação 
dos médicos e psicólogos! 
 
Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é 
fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma 
fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de 
subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse 
ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão 
para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus 
contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos 
se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel, 
porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relação entre senhor e escravo é “dialética”, ou seja, 
constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O 
que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à 
história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como 
também o curso dos acontecimentos lhes é favorável. 
 
A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão 
histórica do destino das coletividades humanas. Há momentosem que a dependência é realmente 
uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o 
vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as 
possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”, 
exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de 
“Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada” 
preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o 
vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí. 
Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar 
indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar 
para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que 
este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas 
próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o 
senhor é supérfluo – e se livrar dele… 
 
A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a 
psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa 
teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento – 
uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois, 
para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar 
a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela 
que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria 
ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de 
pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com 
o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos 
novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por 
conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o 
problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da 
liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa 
por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a 
humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda 
estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por 
partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx. 
 
Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no 
que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a 
ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma 
confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato 
de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir. 
Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma 
leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira 
adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel 
tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence 
a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos 
professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por 
“burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história 
moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido 
muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias 
sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos 
dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência. 
 
Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela 
primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa. 
Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado 
por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos 
por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos 
numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa 
na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida 
do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela 
trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob 
o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca 
passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a 
leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo 
ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico. 
 
Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias 
provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor 
feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso 
porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado 
em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio 
desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para 
enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar-
se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas. 
Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens 
passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em 
que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se 
para chegar à prosperidade. 
 
Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo 
horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um 
bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito 
tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto, 
já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em 
comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior. 
 
Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte. 
O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista 
cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me 
encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de 
meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que haviaum “filósofo” 
à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram 
até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão. 
Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte, 
narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas: 
caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da 
decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol, a eventualidade da morte do Universo etc. 
O tempo passou muito depressa. 
 
Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte 
efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia 
esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em 
geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e, 
idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas 
esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de 
felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o 
direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando-
o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da 
arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares. 
 
Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não 
compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de 
se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação: 
dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para 
construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua 
volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com 
um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver 
perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se 
esfumando em minha lembrança… 
 
Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente 
do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço 
do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se 
aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra 
alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um 
marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me 
deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o 
que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do 
homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas 
amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por 
nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se 
pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua 
barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo 
fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais. 
 
Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos, 
muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera 
da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre 
precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível 
ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia 
um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto, 
para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma? 
Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas 
paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns 
tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham 
vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso. 
Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era 
visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se 
tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu 
lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua 
gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças, 
creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje 
tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro: 
a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no 
coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro), 
lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se 
tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve 
entre os primeiros freqüentadores habituais. 
 
Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que 
“Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos 
rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o 
prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um 
rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se 
tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem 
nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com 
experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a 
todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de 
comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o 
debate do Café des Phares entrar em hibernação. 
 
Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os 
recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham 
misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por 
ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não 
agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um 
dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências 
de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam 
apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”, 
creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas 
radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências 
clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito. 
 
Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava 
margem a muitastentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em 
primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se 
tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa 
disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena 
de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem 
esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegremente a dar. Diversos 
oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um 
dissesse qualquer coisa… 
 
Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos 
eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu 
mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber 
antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras, 
nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas 
começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em 
detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns 
participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus 
vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse 
margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir 
que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na 
esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma 
expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”. 
 
A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto 
desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao 
observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do 
“Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças, 
dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais 
emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere 
interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que 
emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a 
suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem, 
essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que, 
passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida… 
Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se 
banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não 
tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a 
repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte! 
 
Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A 
bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi 
dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento 
de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que 
não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se 
de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar 
um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira 
vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender 
que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível. 
 
Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou 
para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma 
expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado 
e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido 
levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi 
que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair 
prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma 
infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu 
conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo 
nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas 
do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não 
afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o 
destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos: 
se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma 
vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual 
um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na 
opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo… 
Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da 
experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está 
progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma 
experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de 
problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma 
calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate 
sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema. 
 
Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A 
pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”. 
Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio 
que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade 
ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida, 
havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia 
uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação 
dos médicos e psicólogos! 
 
Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é 
fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma 
fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de 
subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse 
ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão 
para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus 
contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos 
se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel, 
porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relaçãoentre senhor e escravo é “dialética”, ou seja, 
constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O 
que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à 
história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como 
também o curso dos acontecimentos lhes é favorável. 
 
A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão 
histórica do destino das coletividades humanas. Há momentos em que a dependência é realmente 
uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o 
vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as 
possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”, 
exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de 
“Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada” 
preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o 
vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí. 
Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar 
indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar 
para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que 
este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas 
próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o 
senhor é supérfluo – e se livrar dele… 
 
A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a 
psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa 
teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento – 
uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois, 
para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar 
a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela 
que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria 
ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de 
pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com 
o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos 
novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por 
conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o 
problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da 
liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa 
por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a 
humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda 
estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por 
partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx. 
 
Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no 
que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a 
ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma 
confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato 
de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir. 
Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma 
leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira 
adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel 
tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence 
a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos 
professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por 
“burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história 
moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido 
muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias 
sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos 
dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência. 
 
Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela 
primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa. 
Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado 
por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos 
por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos 
numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa 
na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida 
do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela 
trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob 
o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca 
passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a 
leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo 
ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico. 
 
Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias 
provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor 
feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso 
porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado 
em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio 
desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para 
enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar-
se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas. 
Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens 
passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em 
que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se 
para chegar à prosperidade. 
 
Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo 
horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um 
bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito 
tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto, 
já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em 
comum

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