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Um Café para Sócrates De Marc Sautet Livraria José Olympio Editora S.A. Tradução de Vera Ribeiro Marc Sautet http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm Café Filosófico - Marc Sautet Primeira parte Quem somos? Prólogo Domingo, praça da Bastilha A filosofia no café O consultório Em consulta Sessões coletivas Em seminário sobre a autenticidade Em viagem Segunda parte Onde estamos? Em viagem Derrota do pensamento O Iluminismo A Revolução heliocêntrica A revolução mercantil Galileu Copérnico Petty & Smith Marx A Revolução operária Terceira parte Para onde vamos? Totalitarismo Vitória da lei do lucro O nascimento do demos O nascimento do logos A lucidez de Sófocles O cansaço de Sócrates A vingança de Platão A traição de Aristóteles Os instrumentos animados A fatalidade Repetição À guisa da conclusão ___________________________________ Texto publicado “doc” no seguinte endereço: http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm Organizado em “pdf” por filosofia@seed.pr.gov.br Prof. Francisco Bornholdt 04 de Abril de 2004 ______________________________ www.cifra.pro.br http://www.pfilosofia.pop.com.br/03_filosofia/03_04_um_cafe_para_socrates/um_cafe_para_socrates.htm http://www.cifra.pro.br mailto:filosofia@seed.pr.gov.br Um Café para Sócrates De Marc Sautet Livraria José Olympio Editora S.A. Tradução de Vera Ribeiro Prólogo Domingo, 13 de dezembro de 1992, praça da Bastilha, por volta de 11 horas. Os cafés vão-se enchendo aos poucos. Num deles, porém, umas trinta pessoas se instalaram ao redor de mesas dispostas num retângulo. Consomem tranqüilamente o que lhes foi servido, até que alguém propõe: “A violência é específica do homem ou se encontra em toda a natureza?” É um belo tema. É dele que se falará durante duas horas. Pois o desafio é de porte: trata-se, nada mais, nada menos, de saber se o homem pode escapar à fatalidade da violência, que obviamente caracteriza as relações que ele mantém com seu semelhante. Mas é preciso também chegar a um acordo quanto ao campo da discussão: ao longo do trajeto, perceberemos que ele não tem limites, pois o que há por considerar é não apenas tudo o que vive na face da Terra, a fauna e a flora, ou tudo o que nela acontece, todos os eventos naturais, mas o mundo inteiro, ou seja, o Universo, o cosmo, em toda a sua extensão e em toda a sua história… E é assim que transcorrerá a manhã no Café des Phares, numa troca incessante de argumentos mais ou menos sólidos, escorados em exemplos mais ou menos pertinentes, destinados a fundamentar tomadas de posição mais ou menos apressadas. Às 13 horas diz-se a última palavra. E se marca um encontro para a semana seguinte. Pois é assim que se tem praticado a filosofia, já se vão mais de dois anos, na praça da Bastilha. Alguns expressarão certa dúvida quanto à validade filosófica de um debate de bar. Outros sentirão tão somente desprezo por esse pequeno prazer que oferecem a si mesmos alguns parisienses carentes de uma tribuna. E alguns, quem sabe, acharão divertida a iniciativa e quererão saber mais sobre ela. Este livro tem por objetivo responder a estes e àqueles. É possível, com efeito, que esses encontros não tenham nenhuma importância, que constituam, quando muito, apenas um simples divertimento dominical de solitários desocupados. Mas também é possível que sejam um sinal – o sinal de que a filosofia, a despeito dos que cavaram sua sepultura, tem ainda um belo futuro pela frente e de que o pensamento, a despeito dos pessimistas, está longe de ter sido derrotado. Havemos de convir que isso merece uma reflexão. Pois é esse o âmago da questão. Empurrada há mais de um século para fora do campo do conhecimento pelos avanços da ciência, a filosofia, ainda por cima, foi recentemente suplantada pelas ciências humanas no campo da ação. Ridicularizada em sua pretensão de deter o código de acesso à verdade, por um lado, com as façanhas da física quântica e da bioquímica, ela teve ainda, por outro, que ceder lugar à sociologia, à economia política e à psicologia quando se trata de penetrar no cerne do mundo dos seres humanos para vencer os males reais. Ela resistiu, mas de nada adiantou. Nem a França nem a Alemanha, as duas nações em que o espírito das Luzes se manifestara de maneira mais intensa, puderam deter sua queda: nem a escola de Frankfurt nem Camus. Nem tampouco Sartre, cujo engajamento político tardio acabou com a escassa credibilidade que ela ainda conservava na cidade; após sua morte, só restou a seus herdeiros a alternativa entre a marginalidade esplêndida e o oportunismo mundano: de um lado, Deleuze, Foucault e outros como Baudrillard; de outro, os “novos filósofos”. Sem luz e sem calor, a filosofia é hoje tida por uma estrela morta, uma divindade caduca, padecendo o destino que outrora infligiu à religião: parece chegado o momento de deixar essa defunta entregue ao culto devoto da corte de seus servidores. Pode ser que a filosofia tenha ficado estéril. Mas estará por isso morta? E será que essa esterilidade é fatal? Fala-se muito, ultimamente, em ética e moral, deplora-se a corrupção dos políticos e dos homens de negócios, fica-se assustado com a extensão da miséria excludente, do tráfico de drogas, da selvageria das guerras interétnicas e do fanatismo religioso, invoca-se a solidariedade, o dever de intervenção, fica-se inquieto com os trabalhos laboratoriais no campo das armas químicas e no da genética… Acima de tudo, tenta-se não perder a cabeça, conservar o sangue-frio. E, para consegui-lo, o que é que se faz? Acaso se faz astrofísica, microbiologia? Antropologia, sociologia, psicopatologia? Economia política? Ou será que fazemos filosofia? Quando procuramos descobrir o que não funciona bem na Cidade, o que destrói a democracia, o que compromete a justiça, a liberdade, a igualdade, em suma, as relações entre os cidadãos, aquilo que impele os homens a se odiarem e a se matarem uns aos outros, quando estendemos esse exame ao conjunto das nações, a ponto de considerar o destino da humanidade inteira, que é que estamos fazendo? Na verdade, teremos algum dia tido tantas razões para filosofar? As páginas que se seguem tentam mostrar que esse uso espontâneo da filosofia em público não se deve ao acaso. Elas propõem que recuemos um pouco da crise atual para tentar identificar sua origem. Melhor ainda, convidam a confrontar a crise do mundo atual com a da cidade grega, onde nasceu a filosofia. Pois a filosofia nasceu há dois mil e quinhentos anos, numa situação de crise espantosamente semelhante à que conhecemos hoje: a crise da democracia ateniense. Por mais incrível que pareça, encontramo-nos, em larga medida, num impasse análogo… Para corroborar esse fato, começarei por descrever uma prática da filosofia que atesta seu viço, seu vigor, sim, sua juventude! Refiro-me, é claro, ao debate do Café des Phares. Atualmente, o salão se enche todos os domingos, com uns cento e cinqüenta participantes ou até mais. As más línguas falam em modismo, em esnobismo tipicamente parisiense; para condenar a experiência, alegam a precariedade das condições de exercício da reflexão num local como esse. É verdade que o lugar é barulhento: levando-se em conta sua localização e a potência de sua cafeteira elétrica, esse barzinho não parece prestar-se particularmente à meditação metafísica. Aliás, para que os oradores fossem ouvidos por todos, foi preciso arranjar microfones e preparar o salão acusticamente, assim como o terraço. Mas, de onde veio a idéia de que o exercício da filosofia exige o silêncio e a solidão? Não digo que esse exercício requeira o alvoroçoe a multidão. Apenas afirmo que uma coisa não impede a outra e que, num barzinho, mesmo com cento e cinqüenta pessoas, pode-se entabular uma reflexão que merece ser chamada de “filosófica”. Entabular não significa levar a termo. Significa… entabular. Com a liberdade posterior, para quem quiser aprofundar o assunto, de mergulhar nos livros evocados de improviso, de iniciar um diálogo a sós com um autor citado de passagem, na mais completa calma. Aliás, não vá ninguém duvidar disso, sou o primeiro a ter essa convicção. A filosofia também requer silêncio. Implica concentração, empenho, rigor, serenidade, intimidade. Antes mesmo que os debates no café ganhassem forma, eu havia aberto um consultório onde começara a receber “clientes” que vinham se consultar. Havia-me convencido de que muitas pessoas estavam desejosas de fazer uma pausa – uma pausa em sua vida trepidante de todos os dias, uma pausa na vida profissional, uma pausa na vida afetiva, uma pausa em seus hábitos de pensar – e de que faltava um lugar adequado para isso. Em grande parte, é claro, os consultórios de psicoterapia desempenham esse papel. Mas não é certo que essa função lhes caiba. Se o mal-estar do paciente tem origem em seu psiquismo, nada mais normal do que consultar um terapeuta. Mas, e quando não é esse o caso? Ainda quando são seus parentes, seu meio familiar que estão em questão, vá lá. Mas, e quando não é o sujeito que está em causa e sim a cidade, ou a nação, ou o Estado, ou os Estados ou nações, unidos ou desunidos, ou a espécie humana em seu conjunto? Pergunto: qual é a legitimidade da intervenção do terapeuta quando o mal-estar da pessoa que vai consultá-lo provém de uma situação geral defeituosa? Se alguém deve intervir, não será, antes… o filósofo? Até aqui, isso não era feito. Os psicoterapeutas, portanto, tinham o campo livre. O que é uma das razões de seu sucesso. Resta saber se é uma boa razão. Tirando proveito no inexorável descrédito dos padres e pastores, os médicos da psique descobrem-se agora numa concorrência selvagem com os astrólogos, numerologistas, cartomantes, videntes, marabus, iogues e outros gurus da new age. Sem ser necessariamente mais eficaz que todas as variedades de “ciências ocultas” e práticas mágicas, a psicoterapia ao menos pode exibir a garantia da seriedade de seus fundamentos teóricos. Mas de que eficiência pode ela se adornar para cuidar do que não é de sua alçada? Pensando bem, os terapeutas ultrapassam em muito seu campo de competência quando avançam pelo terreno da aventura humana compreendida em sua totalidade, em sua história, seu desenvolvimento, vicissitudes, regressões, promessas, esperanças desfeitas, perspectivas e o impacto desse conjunto de dados na pessoa que vai procurá-los. Vista por esse prisma, a legitimidade das ciências ocultas não é inferior à de qualquer espécie de terapia – muito pelo contrário, uma vez que elas se apresentam como uma resposta à questão do destino. “Conhecerei a felicidade?” Ou: “Encontrarei minha alma gêmea? Ficarei rico(a)? Conservarei ou recobrarei a saúde?” – eis o tema dessas consultas. Sabemos que inúmeros políticos – e não dos mais insignificantes – consultam seus astrólogos antes de uma eleição ou de uma data decisiva; quanto ao cidadão comum, ele teme sofrer um acidente ou morrer e quer saber mais a respeito. Também há quem deseje mal a outrem, quem queira livrar-se de seus inimigos, e existem praticantes que favorecem tais anseios. E daí? Para além das formulações ingênuas da “demanda” e aquém das conseqüências macabras que possam ter, o que impele as pessoas a buscar os praticantes das ciências ocultas é o lugar de cada indivíduo no todo: a sorte, o amor, o poder, tudo o que qualquer um pode esperar da vida encontra-se no centro do ato que pratica. Em suma, o que está no cerne das consultas é a questão do destino. Com a parcela de acaso e a parcela de determinação necessária que ele comporta. Pois o astrólogo não imputa a seu cliente a completa responsabilidade pelo que lhe sucede, mas o adverte sobre as correntes favoráveis ou desfavoráveis a seus atos e lhe sugere que adapte suas escolhas às “configurações” vigentes dos astros. Logo de saída, a pessoa que vai consultar-se é re-situada num todo que a ultrapassa em larga medida, o que, a priori, é pelo menos tão justo quanto polarizar todo o destino do indivíduo em seu passado pessoal e em sua dificuldade de assumi-lo. Confiantes nessa aptidão para desculpabilizar as pessoas que vão consultá-los, os praticantes das ciências ocultas dividem entre si benefícios cuja fonte é inesgotável, uma vez que ela se situa no desarvoramento do indivíduo frente a seu destino. Assim, muitos de seus clientes habituais esquivam- se da “culpa” que os espera no consultório do psicoterapeuta e, depois, no divã do analista: pensando bem, eles ainda preferem correr o risco se ser tapeados por uma “ciência” assim, entre aspas, que pelo menos leva em conta a realidade do mundo externo, a natureza coletiva da história humana e a escassa margem de manobra de cada indivíduo para mudar o rumo das coisas. Rejeitando confusamente a idéia de um sujeito concebido como centro do Universo, muitos retornam à velha sabedoria popular, que reconhece que cada ser humano é muito insignificante. Ainda mais que os filósofos se calam. Se ao menos fizessem seu trabalho! Se, em vez de repetirem incansavelmente o que aprenderam com seus mestres, os que se encarregam do ensino da filosofia entrassem na roda e formulassem as perguntas que importam: “É verdade que cada ser humano é o centro do mundo? Será possível, cada um por si, acabar com aquilo que nos atormenta a todos? Será que a solução de todos os nossos males, ou pelo menos de todas as nossas fraquezas, encontra-se num domínio completo de nossas frustrações infantis?” Se essas perguntas fossem formuladas por aqueles cujo ofício consiste em interrogar os que afirmam saber por que as coisas acontecem da maneira que acontecem, então, sem dúvida, muitos dos que confiam seu destino aos astrólogos e gurus pensariam duas vezes. Do mesmo modo, se os filósofos profissionais, cujo número é considerável, perguntassem aos astrólogos e gurus, com toda a simplicidade necessária, de onde eles extraem sua ciência, o que entendem por “destino” e de que natureza são as forças a que dedicam seus talentos, talvez fosse possível separar as coisas, distinguir o que, na arte dessas pessoas, deve ser atribuído a uma habilidade real e o que não passa de subterfúgio, e discernir o que, nas motivações de seus clientes, decorre do desejo de fugir das responsabilidades, pela invocação da fatalidade, e do desejo de assumi-las, pelo aprofundamento da personalidade. Pois bem, falemos abertamente: a vocação do filósofo não é calar-se. Não é se retraindo que ele desempenha seu papel. É na rua, na cidade, misturando-se à vida de todo o mundo, perambulando pela praça do mercado, em meio à multidão dos negociantes e dos que oferecem entretenimento. Fazendo perguntas a uns e a outros. Questionando. Não porque ele mesmo saiba, porque disponha de um saber superior, mas, ao contrário, por invejar aqueles que sabem ou alegam saber. Ele quer saber, mas não quer ser tapeado. E, se há uma coisa a ser ensinada, é esta: é preciso empenho, método, atenção, concentração e calma, mas é também preciso o inverso – o confronto com o real, o convívio na multidão, o enfrentamento daqueles que pretendem iludir os outros. Meditação e luta. Silêncio e alarido. A solidão e a ágora. Alguns, é verdade, ergueram a voz. Mas, para dizer o quê? Que a razão havia acabado, que a sorte estava lançada, que a era das Luzes ia chegando ao fim. Numa segunda parte, submeterei essa afirmação a um exame atento. Por mais corajoso que seja, esse diagnóstico repousa, a meu ver, numa ilusão grosseira. A exemplo dos historiadores das idéias, os “pessimistas”consideram que o espírito humano dispõe de grande autonomia, que ele se manifesta livremente na história, por si só, e que no Ocidente, em particular, seus progressos determinaram o curso dos acontecimentos. Temo que, nesse aspecto, eles sejam vítimas de uma ilusão de óptica (no sentido estrito). Tentarei mostrar que esse ponto de vista opõe-se diretamente à realidade concreta e, mais ainda, ao próprio espírito do Iluminismo. Não teria havido vitória da razão sobre a superstição se Copérnico não houvesse mostrado que o centro do mundo não era a Terra, mas o Sol. Ora, não teria havido revolução cosmológica sem a reviravolta introduzida nas relações sociais pela economia de mercado. O motor da “modernidade” não foi a Razão, mas a generalização da troca de mercadorias. Nesse processo, darei minha contribuição para a pergunta: “De onde viemos?” Restar-me-á então responder a uma outra pergunta, aquela que nos importa acima de tudo: “Para onde vamos?” Esse será o tema da terceira parte. O fato de os pessimistas se enganarem não prova que os otimistas tenham razão. Descrever o futuro de nossa civilização como o retorno à barbárie talvez seja um contra-senso. Mas não justifica em nada o império exclusivo das leis de mercado sobre o destino da humanidade. Com efeito, é possível que esse império já esteja caduco. A todos os que afirmam que não temos alternativa, que todas as outras possibilidades fracassaram, que temos de nos resignar a esse regime, sob pena de recairmos nos horrores do totalitarismo, que só nos resta apostar na inventividade provocada pela pressão da concorrência, que cabe aos indivíduos tomar a iniciativa, ousar, inovar para sair do marasmo, que o futuro passa pela computação das informações em escala planetária, que as mercadorias mais preciosas, hoje, são imateriais, que o mercado mundial abriga imensas potencialidades de desenvolvimento e que certamente não é repisando o passado que nos posicionaremos como convém para o futuro, a todos esses proponho que suspendam seu julgamento por um instante. É que, sem saber, eles se acham na posição de alguns interlocutores de Sócrates, vinte e cinco séculos atrás. Sua incapacidade de explicar as causas do mal que corrói a Cidade impele-os a uma fuga voluntarista para o futuro. Ora, a analogia entre esse mal e o que precipitou a ruína de Atenas é flagrante. A menos que se queira a qualquer preço precipitar a catástrofe, acaso não vale a pena deter-se nisso? Daí os trinta capítulos que se seguem. Primeiramente, apresentarei o debate do Café des Phares através de alguns dos seus momentos, assim como o consultório de filosofia que está na origem dele e tenta atender à demanda latente de filosofia em público; no percurso, evocarei os primórdios de minha experiência prática: as primeiras consultas, o primeiro seminário e a primeira viagem. Em seguida, exporei o que sinto sobre as razões dessa demanda, que estão na crise que hoje atravessamos. Formularei duas hipóteses: a primeira é que, por conhecermos mal o motor de nossa história, temos dificuldades em perceber a origem dos flagelos que nos assolam; a segunda é que a filosofia, ao nascer, viu-se confrontada com dois flagelos similares. De fato, é como se as nações modernas estivessem repetindo cegamente o erro que foi fatal para as cidades gregas, dois mil e quinhentos anos atrás. Por mais incongruente que isso possa parecer, minha impressão é de que a peça que estamos encenando já foi montada na Grécia, na época do nascimento da filosofia socrática. MARC SAUTET Um Café para Sócrates De Marc Sautet Livraria José Olympio Editora S.A. Tradução de Vera Ribeiro PRIMEIRA PARTE ONDE ESTAMOS? I Domingo, praça da Bastilha Domingo, portanto, 13 de dezembro de 1992, Café des Phares, praça da Bastilha, Paris. É meio-dia. Reina na sala um clima estranho. Trinta a quarenta pessoas fazem uma reunião, em vez de estampar a crônica indiferença (às vezes apenas fingida, é verdade) que costumam ter os fregueses uns pelos outros. Qual o assunto? Política, sem dúvida, certo? Ou algum acontecimento, um novo escândalo, um boato? Quem apurasse o ouvido nesse exato momento ouviria uma jovem afirmar que, quando rasga um pedaço de papel, ela o faz sofrer! Será louca? Não parece: é muito calma, bem arrumada e se empenha em explicar-se. Faz uma hora, está na companhia desse grupo, que está refletindo sobre a violência. Também ela se pergunta onde a violência começa e onde termina. Quando recebemos um golpe, “praticam uma violência” contra nós; quando o desferimos, “praticamos a violência” contra o outro, seja ele um ser humano ou um animal – por exemplo, um cão que nos incomoda e que repelimos com um pontapé ou que nos compraz machucar. Mas, quando damos um chute numa acha de lenha, estaremos praticando uma “violência” contra esse pedaço de madeira? E ao rasgarmos um pedaço de papel? A jovem diz que sim… E a coisa não é tão idiota quanto parece. Porque, no início da discussão, tratava-se de saber se a violência é universal ou apenas humana. Todos concordam em que a violência existe nas relações entre os homens, hoje e em toda a história da humanidade; por isso, o problema é saber se há uma fatalidade nisso, se a condição humana implica a violência e, se assim for, por quê. Supondo que a violência impere no universo, é difícil dizer de que modo o homem poderia livrar-se dela. Mas, mesmo não sendo esse o caso, é possível que ele esteja condenado a praticá-la para viver: ainda que possa abster-se de fazer o mal ao próximo ou de maltratar o cão por prazer, como pode evitar matar para comer? Será que consegue viver sem praticar violência contra seu meio ambiente? No passado, os homens cortavam madeira, quebravam-na e a queimavam para se aquecer: não era isso uma violência contra as árvores? Hoje em dia, milhões de homens continuam a se aquecer com lenha e, se podemos prescindir dela, nem por isso deixamos de destruir cada vez mais florestas para atender a outras necessidades: quando não dizimamos as árvores para fazer móveis e pasta de celulose, desmatamos para plantar café ou criar gado. Essa violência contra a natureza traduz-se no desaparecimento da cobertura vegetal do planeta. Até quando continuaremos a fechar os olhos a isso? Essa formulação não é desprezível. Alguns aprovam com verdadeiro fervor; outros mostram dúvida. Faz-se um silêncio incômodo. Será que a lista de argumentos ecológicos autoriza atribuir uma alma aos objetos? Por mais urgente que seja interrogar as condições de nossa grande casa, acaso o animismo é o futuro do homem? Supondo que eu cometa uma violência contra o papel ao rasgá-lo, resta saber se lhe faço algum mal. Quando dou um pontapé no cachorro, estou lhe fazendo mal, pois ele sente dor, mas por acaso o papel sente seja lá o que for? Não será um absurdo atribuir-lhe a sensação de dor, já que isso equivale a lhe conferir uma consciência? Nesse caso, por que não conferi-la também ao açúcar, que deve sofrer de maneira atroz ao se dissolver no café escaldante? A discussão atinge um clímax. Um dos participantes exige que se retorne ao bom senso, o qual só reconhece a violência quando exercida contra um ser vivo! A moça, sempre segura de si, finca pé em suas posições: como podemos saber, retruca, que as coisas inertes não têm consciência? E tem razão de insistir. Reconhecer que a violência só pode ser praticada contra os seres vivos já é reconhecer que ela pode ser exercida contra uma árvore, a qual – como reconhece o senso comum – é um ser vivo; quem sabe, portanto, se não sofre ao ser derrubada? Quem sabe se o galho não sofre ao ser cortado com o machado ou a serra elétrica, que fazem sua seiva escorrer como o sangue de um braço cortado? Quem sabe, por conseguinte, se a lenha “morta” não sofre ao ser cortada ese não sofre o papel, tirado da madeira ainda viva, ao ser rasgado? Isso, é claro, implica uma completa mudança de perspectiva, uma renúncia ao bom senso e a presença de uma consciência nas coisas, à maneira dos antigos ou dos primitivos, que por toda parte viam elfos, gênios, espíritos ou deuses em ação na natureza inteira. Do mundo humano ao reino animal, do reino animal ao reino vegetal, do reino vegetal ao mundo mineral, da superfície da Terra à esfera celeste, tudo volta a ser “animado”, o Universo inteiro enche-se de um fluxo divino e, ainda que por um instante, sentimo-nos filhos das estrelas… Aqueles que preferem ficar na Terra – por uma rejeição do misticismo ou pela recusa do antropomorfismo e do retorno aos piores arcaísmos, em nome da racionalidade, do materialismo ou, muito simplesmente, do laicismo – devem, no mínimo, enfrentar a seguinte dificuldade: se restringirem a violência aos limites da consciência, terão um bocado de trabalho para definir o que acontece na natureza quando um vulcão entra em erupção, quando ocorre um sismo ou quando um maremoto devasta uma cidade inteira. Mesmo sem tomar exemplos tão flagrantes quanto esses, que dizer de uma simples tempestade e de um relâmpago acompanhado de trovão, não será isso violência? O senso comum, nesse ponto, vê-se numa armadilha, porquanto é o primeiro a falar de tais acontecimentos e calamidades nesses termos. Se a violência implica a consciência, não se deve dizer que uma tempestade, um tufão ou um furacão são violentos! Ou deveremos afirmar que sua violência decorre da presença de vítimas, seres humanos ou, pelo menos, animais, os quais, eles sim, são dotados de consciência? Nesse caso, só se poderia falar em violência no tocante aos fenômenos dos quais os seres vivos são testemunhas! Como se vê, a questão não é simples. Depois de permitir que os dois campos se pronunciem, que explicitem seu pensamento e o ilustrem para se fazerem compreender com clareza, parece-me oportuno retomar a iniciativa. Traço uma curva no ar e pergunto se o terei ferido com o dorso da mão. Incredulidade dos presentes… Assim, parto para a ofensiva, pois tão cedo não me farão admitir que a violência é a lei que rege os destinos da espécie humana. Não duvido que essa idéia goze de grande prestígio. Tem a seu favor as provas fornecidas por uma rápida investigação do passado da humanidade – uma sucessão ininterrupta de guerras, conquistas e massacres. E quem não quer ser enganado pelas formas mais sutis de opressão – as de outrora ou as mais comuns hoje mesmo – dificilmente pode resistir aos atrativos dessa idéia, sob pena de passar por ingênuo ou por cúmplice. Temo, no entanto, que essa idéia repouse numa ilusão. Que a violência é universal, que é encontrada em toda a história da humanidade, em todo o mundo animal, que está presente nas erupções vulcânicas e nos movimentos das placas tectônicas que moldam o relevo de nosso planeta, que se oculta no âmago da atividade solar, que está na origem de nosso sistema galáctico e até mesmo do cosmo, sob o nome de big bang, tudo isso eu admito de bom grado. Mas o fato de a violência estar em toda parte não implica que esteja presente o tempo todo. Para que o cosmo se transforme em cosmo, é preciso que a violência ceda lugar a seu oposto: cosmos, em grego, significa “território posto em ordem” e, portanto, saída do caos. O nascimento do cosmo é a ordenação de elementos caóticos. Nosso sistema solar resultou de uma pacificação localizada do caos: planetas-satélites puseram-se em órbita regular em torno do Sol e foi essa regularidade que permitiu à Terra esfriar-se e, mais tarde, gerar vida. Assim, de certa maneira, foi por haver diminuído a violência natural, por ela haver cessado, que ganharam forma nosso planeta e a biosfera. O mesmo se aplica à história da humanidade. Não somos mais do que uma espécie animal entre outras, é claro, e toda a nossa pré-história foi marcada pela luta contra os flagelos naturais, dentre eles as espécies rivais. Mas nem por isso a violência é a lei que rege essa história até hoje. Ainda podemos classificar na categoria de violência as invasões bárbaras que serviram de prelúdio à era feudal, bem como os hábitos predatórios dos senhores. Mas é impossível caracterizar dessa maneira o motor da civilização moderna: o que está no cerne do progresso dos últimos séculos não é a postura predatória, mas o comércio; ora, o comércio repousa, exatamente, no oposto da violência: comerciar é trocar mercadorias equivalentes, quer sob a forma do escambo, quer por intermédio da moeda, em particular o ouro. Isso pressupõe que não se cometa nenhuma violência contra o outro. Contrariando as aparências, o capitalismo não repousa essencialmente na violência. Ao contrário, teve que triunfar sobre comportamentos dos senhores feudais e dos salteadores para impor a todos a lei do mercado. O fato de haver empregado meios bélicos para esse fim não altera nada: ele projetou uma ordem em que a violência tinha que ceder lugar ao comércio. E o comércio implica a negociação. Para terminar, o fato de a própria sociedade de mercado não estar em condições de realizar plenamente seu projeto e de, na impossibilidade de chegar à paz perpétua desejada por Kant, as negociações comerciais tenderem, com freqüência meio exagerada, a se transformar em guerras homicidas, eis algo que não é irrelevante mas que, na verdade, prova apenas uma coisa: que esse sistema tem limites sobre os quais seria conveniente refletir. Pois é isso mesmo que está em jogo: não se deixar tapear! Se os limites do sistema dominante é que são culpados pela violência, não se deve fazer da violência o verdadeiro motor da história humana e, por isso mesmo, uma fatalidade. Eis o que nos importa aqui: se a atração e a repulsa dos corpos celestes e das partículas de matéria regem a passagem do caos ao cosmo, não é ilícito supor que as relações sociais assumam um dia, em torno do ouro, a configuração assumida pela trajetória dos planetas em torno do Sol: a de uma curva suave e regular, tão harmoniosa e generosa quanto as carícias dos amantes. Um Café para Sócrates De Marc Sautet Livraria José Olympio Editora S.A. Tradução de Vera Ribeiro PRIMEIRA PARTE ONDE ESTAMOS? II A filosofia no café Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto, já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior. Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte. O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que havia um “filósofo” à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão. Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte, narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas: caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol,a eventualidade da morte do Universo etc. O tempo passou muito depressa. Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e, idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando- o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares. Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação: dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se esfumando em minha lembrança… Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais. Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos, muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto, para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma? Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso. Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças, creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro: a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro), lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve entre os primeiros freqüentadores habituais. Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que “Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o debate do Café des Phares entrar em hibernação. Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”, creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito. Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava margem a muitas tentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegrementea dar. Diversos oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um dissesse qualquer coisa… Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras, nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”. A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do “Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças, dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem, essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que, passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida… Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte! Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível. Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos: se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo… Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema. Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”. Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida, havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação dos médicos e psicólogos! Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel, porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relação entre senhor e escravo é “dialética”, ou seja, constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como também o curso dos acontecimentos lhes é favorável. A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão histórica do destino das coletividades humanas. Há momentosem que a dependência é realmente uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”, exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de “Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada” preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí. Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o senhor é supérfluo – e se livrar dele… A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento – uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois, para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx. Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir. Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por “burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência. Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa. Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico. Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar- se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas. Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se para chegar à prosperidade. Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto, já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em comum encontram-se regularmente nesse café para “falar de filosofia”. E em número cada vez maior. Na primeira vez não eram mais de dez. Foi em julho de 1992. Naquele dia, falamos da morte. O que não estava previsto. Foi assim: Em breve aparição na rádio France Inter, durante a revista cultural de sábado às 13h, eu havia comentado de passagem que aos domingos costumava me encontrar com alguns amigos no Café des Phares para verificar em que pé estava a inauguração de meu consultório da rue de Sévigné. Alguns ouvintes do programa concluíram que haviaum “filósofo” à sua disposição nas manhãs de domingo, para dialogar no café da praça da Bastilha… Assim, foram até lá, rodaram um pouco pelo terraço e acabaram me encontrando. Entabulou-se uma discussão. Alguém evocou as NDE (near death experiences), experiências de estados próximos da morte, narradas em livros sensacionalistas por pessoas acidentadas ou reanimadas em situações extremas: caberia denegri-las ou, ao contrário, prestar atenção nelas? Abordaram-se as questões do Além e da decadência das civilizações, o prognóstico da morte do Sol, a eventualidade da morte do Universo etc. O tempo passou muito depressa. Na semana seguinte, alguns retornaram e outros apareceram por lá: falou-se da arte efêmera. Um tema bizarro, levantado por ocasião de uma exposição surpreendente: uma artista fazia esculturas de açúcar sobre as quais, todas as noites, derramava água… Aquilo era arte ou não? Em geral, o artista almeja perenizar seu nome, produzindo obras o mais duradouras possível e, idealmente, passíveis de imortalizá-lo: como qualificar de arte algo que visa ao efêmero? Ora, aquelas esculturas eram tão belas que, uma vez desfeitas, desaparecidas, deixavam um longo rastro de felicidade, a exemplo daquelas representações teatrais de que saímos com pesar. Recusar à arte o direito de ser fugidia equivaleria a recusar ao ator ou ao diretor teatral o título de artista, reservando- o unicamente ao autor! E o mesmo se daria com a ópera. Não é o teatro o lugar por excelência da arte efêmera? Assim se desenrolou, meio lá meio cá, o segundo debate no Café des Phares. Quem eram aquelas pessoas? Não sei. De situação modesta, discretas, até tímidas, não compareciam para se impor, mas para trocar idéias. Lembro-me de um jovem casal que acabara de se lançar na “criação de eventos” para a promoção de empresas com dificuldades de comunicação: dir-se-ia que eram dois pombinhos, certos de se amar para sempre, à procura de bons materiais para construir um ninho sólido, mas perturbados pelo barulho e pela fúria de tudo o que acontecia à sua volta. Ainda me lembro de uma mulher mais velha, secretária de uma empresa de cosméticos, com um longo passado de sindicalista, cansada mas de espírito muito forte, e que parecia ainda não haver perdido por completo a esperança de tornar o mundo mais justo e mais fraterno. Os outros vão-se esfumando em minha lembrança… Na impossibilidade de guardar a imagem dos primeiros rostos, lembro-me esplendidamente do debate seguinte. Fazia um tempo magnífico naquele domingo de outono, tão bonito que o terraço do bistrô estava tomado de gente. Pois bem, uns quarenta fregueses tinham acabado por se aproximar do pequeno núcleo inicial, até formar um círculo espantoso, cada um tomando a palavra alternadamente e procurando se fazer ouvir, apesar do trânsito ao redor… O tema “O que é um marginal?” fora proposto por um estudante ginasiano. Não era inspirador para todo o mundo e me deu panos para manga. É que atingia em cheio todos aqueles que se recusam a adotar como regra o que os outros denominam de “norma” e que muitas vezes conduz o homem a ser apenas o lobo do homem. Num irreprimível arroubo de poesia contagiante, um orador tomou a defesa dos artistas amaldiçoados por sua época, fazendo deles o fermento necessário de uma sociedade sempre por nascer, na qual o homem possa enfim tornar-se não um lobo, mas um deus para o homem! Ele se pôs de pé. Parecia um velho professor, muito elegante em seu terno de lã, com sua bengala, sua barba e seus óculos, disposto a encerrar na beleza uma vida por demais conformista, como um belo fruto que ninguém colheu e que procura cair por si mesmo, antes que seja tarde demais. Esse debate foi realmente uma alegria. Inesperado, imprevisível, inaudito. Alguns amigos, muitos desconhecidos, todos dispostos em círculo no terraço do Café des Phares, em frente à Ópera da Bastilha, com a suavidade do veranico outonal, a cumplicidade do Sol… Mas a felicidade é sempre precária: como perpetuá-la quando fecha o tempo? Foi o que se deu na semana seguinte: impossível ficar do lado de fora! Tivemos que nos resignar a entrar. No fundo, bem lá no fundo do salão, havia um banco comprido, que uma espécie de biombo separava do resto; ali nos refugiamos, portanto, para abordar outro assunto. Acaso a alegria seria a mesma? Narcisismo. O tema surgiu da situação, pois, confinados naquela sala dos fundos, cujas paredes eram revestidas de espelhos, éramos diretamente confrontados com o prazer que alguns tinham de se mirar neles, a ponto de se esquecerem dos demais. Assim, uma das pessoas que tinham vindo “refletir” achou perfeitamente natural procurar inteirar-se mais do famoso mito de Narciso. Chamava-se Martine. Era bonita, viva e irrequieta. Buscava um contato com a filosofia, mas era visível que temia decepcionar-se mais uma vez. Eu estava atento a ela. Por acaso, acabou se tornando assídua, a ponto de não mais nos separarmos… Nosso poeta não estava presente, mas seu lugar foi prontamente tomado por um pequeno personagem de voz débil, impecável atrás de sua gravata, bem penteado, grave, até mesmo afetado, funcionário estatal (do Ministério das Finanças, creio). Possuía uma cultura ímpar em nossa pequena assembléia e apelava para uma doutrina hoje tida por obsoleta, mas que, em sua época, deu a muitos a impressão de possuir as chaves do futuro: a de Augusto Comte, o positivismo! Aliás, ele possuía as chaves de um lugar espantoso, bem no coração do Marais, onde o positivismo continua a ter sua igreja (graças a um mecenas brasileiro), lugar esse que um dia nos levou a visitar, uma vez estabelecida a confiança. Sua silhueta logo se tornou familiar e, enquanto novos rostos iam aparecendo a cada semana, “Augusto Comte” esteve entre os primeiros freqüentadores habituais. Houve outros habitués que se afirmaram no correr das sessões. Menos doutos do que “Augusto Comte”, sem dúvida alguma, menos precisos na exposição dos pontos de vista, menos rigorosos no manejo da língua, mas igualmente cativantes: homens de quem sabíamos apenas o prenome, mas que se empenhavam zelosamente em fazer o debate progredir – como Jacques, um rapazola baixote e gorducho que se encolerizava tão lindamente em todos os encontros, que logo se tornou indispensável para o bom humor geral; mulheres jovens ou muito menos jovens, que, sem nada ficarem a dever no tocante à paixão, não hesitavam em ilustrar suas colocações com experiências pessoais – como Antoinette, advogada de ofício, cuja franqueza impunha respeito a todos. De uma semana para outra, o grupo era diferente, posto que ninguém tinha a obrigação de comparecer. Mas estava dado o impulso e, ao ocupar suas instalações de inverno, o Sol não fez o debate do Café des Phares entrar em hibernação. Ao contrário! O grupinho refugiado na sala dos fundos do café não parava de acolher os recém-chegados. Vez por outra, freqüentadores habituais do balcão na hora do aperitivo vinham misturar-se ao debate em andamento. A princípio escutando distraidamente, decerto surpresos por ouvir aquelas colocações num lugar tão pouco adequado, eles iam chegando e, quando não agüentavam mais, pediam a palavra. Hei de me lembrar por muito tempo dos quatro blacks que um dia pediram para entrar na brincadeira, um após outro, num impressionante crescendo de referências de alto nível. Eram músicos, tinham tocado a noite inteira e, nesse começo de manhã, queriam apenas tomar um último trago antes de dormir… Qual era mesmo o assunto? “O poder das palavras”, creio; ainda revejo muito bem a cena, a sucessão daqueles quatro peritos no reggae, esgotados, mas radiantes por intervirem no debate, por improvisarem um discurso carregado de densas referências clássicas – uma espécie de “improviso” sobre o conceito. Não obstante, a perenidade do debate nada tinha de certo. Sua forma livre e ingênua dava margem a muitastentações, as quais, caso se houvessem imposto, logo o teriam condenado. Em primeiro lugar, o intelectualismo: a tendência ao exagero no registro da “seriedade”. Dado que se tratava de “filosofia”, era importante, pensavam alguns, lidar apenas com os conceitos próprios dessa disciplina, rechear o discurso de referências apropriadas e invocar Kant, Hegel e Heidegger, sob pena de cair na trivialidade da discussão de botequim. Daí a só conceder a palavra aos que dominassem esse tipo de saber seria apenas um passo, que eles se apressariam alegremente a dar. Diversos oradores intervieram cronicamente nesse sentido, censurando-me por deixar que qualquer um dissesse qualquer coisa… Assim, foi preciso frustrar esse clã para dar aos outros o gosto pela filosofia. Os assuntos eram escolhidos na hora, sem consulta prévia, e eu não tinha intenção nem vontade de propô-los eu mesmo. Vinham me pedir para refletir de improviso, portanto estava fora de questão eu saber antecipadamente do que deveria falar. A morte, a arte efêmera, o narcisismo, o poder das palavras, nada disso tinha sido previsto e era muito melhor assim. Em pouco tempo, diversos temas começaram a entrar em concorrência e realmente tivemos que decidir, que escolher um em detrimento dos outros. Pois bem, esse foi um excelente meio de rechaçar a tendência de alguns participantes a “elevar” subitamente o debate, sem que os preocupasse a idéia de verem seus vizinhos confundirem-se rapidamente. Bastava eu escolher aquele dentre os temas que menos desse margem a esse tipo de situação. Correndo o risco de enfurecer os “intelectuais” de visita ao lhes pedir que se expressassem com palavras do dia-a-dia, era freqüente eu optar por um tema incomum na esfera da filosofia clássica: uma frase banal, que a priori desse pouca margem à reflexão, ou uma expressão corriqueira. Daí o debate sobre “A primeira vez”. A primeira vez! No dia em que essa expressão foi proposta, senti-me um tanto desconcertado, sem saber espontaneamente o que dizer. Mas, confesso, senti um certo prazer ao observar o desamparo dos que tinham vindo para que falássemos do “Bem”, do “Direito”, do “Estado”… Percebendo o pudor de uns e de outros, enquanto me vinham à mente ínfimas lembranças, dei-me conta de que havia algo de paradoxal nessa formulação. De fato, à primeira vista, nada é mais emocionante do que uma primeira experiência: é um momento importante e que, como tal, confere interesse à vida – o primeiro dia de aula, o primeiro beijo, a primeira viagem ao exterior… Que emoções! Quantas batidas do coração por conter, quanto desejo por temperar, quanta espera a suportar, quanto medo a vencer, quanta angústia a sufocar, quanta repugnância a superar! Pois bem, essa denominação, “primeira”, traz em germe a condenação do que ela mesma sugere, já que, passada a primeira vez, vem a segunda, depois a terceira, e por fim não se conta mais; é a vida… Perfila-se assim uma perspectiva desoladora: através da repetição da primeira vez, a experiência se banaliza e, no final das contas, a morte se apodera do vivo, pois, afinal, o que é uma vez que já não tem importância? A vida, portanto, torna insignificante aquilo que importava da primeira vez: a repetição mata o interesse da vida. Por conseguinte, a vida é a morte! Paradoxal em seu desenvolvimento, essa expressão revela-se ainda por cima contraditória. A bem da verdade, o que acontece uma primeira vez é único. Assim, o primeiro beijo que se deu foi dado uma vez só: longe de inaugurar uma série de experiências análogas, ele constitui um momento de exceção que só tem sentido em relação ao passado e nenhum em relação ao futuro. Fez-se o que não se fizera até então. A história divide-se em duas. Existem um antes e um depois. Logo, trata-se de uma experiência que não pode se repetir; não pode haver uma “segunda vez”. Não se pode dar um primeiro beijo duas vezes, assim como não se pode caminhar duas vezes na Lua pela primeira vez. Por isso, stricto sensu, “a primeira vez” é uma formulação absurda, uma vez que dá a entender que pode ser sucedida por aquilo que ela tornou impossível. Tal constatação, estabelecida enquanto caminhávamos pelas lembranças de cada um, bastou para me alegrar nesse dia. Os que participaram do debate perceberam que, partindo de uma expressão anódina, era possível chegar a reflexões surpreendentes. De minha parte, fiquei perturbado e radiante: perturbado por esbarrar naquele impasse, até então insuspeitado, e radiante por ter sido levado a descobri-lo ao falar de improviso num café. Ainda mais que, remoendo essas idéias, percebi que elas teriam divertido os antigos. Pelo menos alguns deles, com certeza, teriam sabido sair prontamente do impasse. Como? Supondo que tudo o que acontece aqui já teria ocorrido uma infinidade de vezes. Era o que pensavam sobretudo certos estóicos. Segundo eles, o cosmo, em seu conjunto, nascia, desdobrava-se e desaparecia numa conflagração que era prelúdio de um novo nascimento: na face da Terra, portanto, tudo estava fadado a reviver exatamente as mesmas coisas do ciclo anterior. E isso deveria repetir-se sem parar. Para eles, esse era o melhor meio de não afundar no desespero por ocasião de um infortúnio ou de não cantar vitória cedo demais quando o destino era auspicioso – em suma, de conservar o sangue-frio perante o curso dos acontecimentos: se tudo se repete eternamente e nos mínimos detalhes, nenhuma perda é irreparável, nenhuma vitória é definitiva. A primeira vez? Para os estóicos, ela não existe, pois o tempo não é linear: qual um círculo, ele passa e volta a passar ininterruptamente pelos mesmos pontos, de modo que, na opinião deles, sem dúvida alguma, ninguém jamais deu um primeiro beijo… Mas nem por isso a partida estava ganha. É que, uma vez abertas as comportas da experiência pessoal – uma experiência necessária para justificar uma afirmação e atestar que se está progredindo de maneira a obter a adesão dos outros ou, ao contrário, sua objeção em nome de uma experiência inversa -, o debate do Café des Phares poderia mergulhar rapidamente num desabafo de problemas pessoais: a fórmula “no que me diz respeito” poderia se tornar a lei, o que seria uma calamidade tão fatal quanto a tendência ao cenáculo por parte dos adoradores do conceito. O debate sobre “A dependência” permitiu encontrarmos a resposta para o problema. Com esse tema, evidentemente, a fórmula “no que me diz respeito” tinha caminho livre. A pessoa que o levantara sofria flagrantemente por não ter sabido libertar-se do domínio do “outro”. Havia uma comoção no ar e o clima era intensamente psi. Para a maioria dos participantes, era óbvio que a “dependência” estava ligada à patologia: significava que o eu não havia atingido a maturidade ou que se refugiava numa relação mórbida com o outro, por medo de sua liberdade. Sem dúvida, havia uma multiplicidade de razões para isso e uma infinidade de casos ilustrativos, mas, se havia uma coisa certa, era que se tratava de uma doença, cujo tratamento entrava na alçada da corporação dos médicos e psicólogos! Pareceu-me oportuno, nesse dia, fazer referência a Hegel, a fim de abalar esse consenso. Já é fácil observar que a dependência de um ser humano em relação a outro pode ser considerada uma fase durante a qual se prepara a emancipação do “dependente”, o qual, sem esse momento de subordinação, não poderia acumular as forças necessárias a sua autonomia. Podemos pensar, nesse ponto, na relação da criança com os pais: a criança tem que passar pela obediência e pela submissão para, um dia, por sua vez, tornar-se adulta. Foi essa evidência que Kant utilizou para levar seus contemporâneos a ouvirem a mensagem do Iluminismo: é chegado o momento de os povos modernos se tornarem adultos, pois faz séculos que estão sob a autoridade da Igreja e da monarquia… Hegel, porém, vai ainda mais longe. Mostra que até a relaçãoentre senhor e escravo é “dialética”, ou seja, constitui em si mesma um fator de progresso, é uma força motriz da evolução das relações sociais. O que equivale a dizer que ele faz o imperativo moral de Kant passar para a condição de lei inerente à história humana: não apenas é hora de os povos subjugados se livrarem de qualquer tutela, como também o curso dos acontecimentos lhes é favorável. A referência a Hegel permite sair do terreno da patologia clínica, em prol de uma visão histórica do destino das coletividades humanas. Há momentos em que a dependência é realmente uma coisa boa, de vez que, num confronto, mesmo intenso, ela permite preservar a vida: quando o vencido, fazendo pouco de sua honra, concorda em se colocar a serviço do vencedor, ele tem todas as possibilidades de ser poupado. É esse o cenário celebrizado da “dialética do senhor e do escravo”, exposta por Hegel em 1807 na Fenomenologia do espírito, no livro I, capítulo II, sob o título de “Independência e dependência da consciência de si”. Ali vemos “aquele cuja vida foi preservada” preferir esta última à liberdade e se tornar escravo daquele que o venceu; inversamente, vemos o vencedor tornar-se senhor daquele a quem preferiu não matar. Pois bem, as coisas não param por aí. Conforme o combinado, o escravo passa a trabalhar para seu senhor e, com isso, a se afirmar indispensável, dentro de pouco tempo, enquanto vai adquirindo o controle das coisas. Sem trabalhar para viver, o senhor logo se torna dependente do trabalho do escravo, no momento mesmo em que este, havendo partido do nada, torna-se o criador das condições de vida do senhor e das suas próprias, uma vez que é ele quem as assegura. Chega o dia em que o escravo pode considerar que o senhor é supérfluo – e se livrar dele… A questão da dependência, portanto, é muito mais rica e muito mais complexa do que a psicologia clínica nos permite apreender. Ademais, a história não se deteve por aí: não somente essa teoria teve imenso sucesso na época do próprio Hegel, pois deu ao Aufklärung – ao Esclarecimento – uma legitimidade decuplicada, como também foi incorporada por outros pensadores, pouco depois, para que justificassem sua própria visão da história. Assim foi que Marx serviu-se dela para anunciar a emancipação do proletariado: sendo a classe trabalhadora a classe operária por definição, aquela que garante as condições de vida de seu senhor (o burguês, o capital), o esquema hegeliano deveria ser-lhe aplicado em primeiríssimo lugar. Em muito pouco tempo, isso fez com que um bom número de pessoas que haviam aplaudido Hegel mudasse de idéia. Pautados na identificação do “progresso” com o trabalho, os socialistas se apropriaram da dialética hegeliana em detrimento dos abastados e dos novos-ricos, que haviam acreditado que ela os protegia de qualquer crítica conservadora e que, por conseguinte, sentiram-se desde então fortemente tentados a mergulhar no pessimismo. Levantar o problema da dependência, portanto, é passar do singular para o universal, de meu uso pessoal da liberdade para o da humanidade inteira. Nessa mudança do centro de gravidade, a interrogação passa por uma fase histórica: trata-se de indagar se existe na história dos homens um momento em que a humanidade inteira possa considerar-se adulta e se esse momento já ficou para trás ou se ainda estamos à sua espera. E, nessa investigação de grande envergadura, convém delimitar o exame por partes, para saber se o que importa é o “momento” de Hegel ou o que foi designado por Marx. Vê-se que estamos redondamente enganados quando nos comprazemos com a fórmula “no que me diz respeito” e verificamos que o livre exercício da fala num debate de bar não implica a ditadura da comoção, por menos atenta que esteja a razão. No entanto, isso não obriga a uma confissão pública de culpa quanto ao conteúdo “teórico” requerido das intervenções. Não é pelo fato de eu conhecer Hegel que aqueles que não o conhecem devem ficar calados e se contentar em ouvir. Citar Hegel não é bloquear o outro, mas, ao contrário, é sugerir-lhe uma pista, convidá-lo a uma leitura pessoal desse autor, a entrar na Fenomenologia, porém com simplicidade, da maneira adequada, isto é, formulando ao filósofo a questão debatida no café naquela manhã. Citar Hegel tampouco é fazer uma alusão, deitar um olhar significativo aos conhecedores, marcar que se pertence a um clã. Ainda mais que, no caso, não existe consenso. A alusão não basta. A maioria dos professores de filosofia acompanha Marx, sem torcer o nariz, quando ele traduz “senhor” por “burguês” e “escravo” por “trabalhador”, fazendo da fábula hegeliana o relato codificado da história moderna; outros vêem nisso uma falta de discernimento e tentam restituir a essa história um sentido muito menos histórico, chegando até a sugerir que, a rigor, ela não tem nada a ver com as categorias sociais e que tudo se passa no “espírito”, cujas metamorfoses Hegel expõe. Quando nos servimos dessa “dialética”, portanto, não podemos agir como se sua significação fosse uma evidência. Tristes das piscadelas entendidas! Esse debate sobre a dependência ofereceu-me, pela primeira vez, a oportunidade de testar em público a maneira como eu mesmo encarava essa coisa. Lembrei que Hegel se exprimira na língua alemã… Aquilo que traduzimos por “mestre” é designado por Hegel através da palavra Herr, que significa, antes de qualquer coisa, “senhor”; o que traduzimos por “escravo” é o que Hegel chama de Knecht, ou seja, “criado” ou “servo”. Portanto, achamo-nos numa configuração ainda muito mais histórica do que a proposta por Marx: a meu ver, Hegel designa na Fenomenologia a passagem do feudalismo para o capitalismo. O “senhor”, aquele que dirige a vida do vencido, é o senhor feudal, saído das grandes invasões e que se apropriou da terra e dos que nela trabalhavam; o “escravo” é o servo, o vencido naquele caos gigantesco, que perdeu sua liberdade sob o impacto das hordas germânicas: assim, o servo colocou-se a serviço do senhor feudal, que em troca passou a protegê-lo do risco de novas invasões (escandinavas, ao norte, mouras, ao sul, e hunas, a leste). O que chamamos “dialética do senhor e do escravo”, portanto, é o processo pelo qual o servo ocidental veio a se emancipar do jugo do seu protetor, o senhor germânico. Esse processo passou pelo trabalho e, acima de tudo, pela circulação das mercadorias provenientes do trabalho. A princípio incondicionalmente restrito à gleba e às muralhas do senhor feudal, o servo, com efeito, aos poucos passou a dispor dos meios para conquistar sua liberdade. Isso porque, no correr dos séculos, o dinheiro voltou a circular. O comércio, por muito tempo estagnado em ponto morto, reativou a circulação das mercadorias e da moeda; os comerciantes, a princípio desprovidos de poder, beneficiaram-se da ordem (bastante precária) gerada pelo feudalismo para enriquecer e se proteger autonomamente nos burgos, cercados por muralhas, e a eles foram juntar- se ali os servos fugitivos, que se tornaram artesãos e, por sua vez, aumentaram o volume das trocas. Em suma, o trabalho prevaleceu sobre a força. O centro de gravidade das relações entre os homens passou imperceptivelmente do castelo (do senhor feudal) para a cidade (dos burgueses), até o dia em que o senhor, aos olhos de seu antigo servo, tornou-se um parasita inútil do qual foi preciso livrar-se para chegar à prosperidade. Todo domingo a coisa recomeça. O assunto muda, mas o diálogo é reiniciado. No mesmo horário, no mesmo local. Num bistrô. Um bistrô comum, é verdade, meio kitsch, fora de moda e um bocado barulhento, no qual a máquina e o moedor de café, em especial, comprometeram por muito tempo a transmissão das palavras – para não falar na circulação de automóveis na praça. Entretanto, já lá se vão agora mais de dois anos, pessoas que na maioria não se conheciam e nada tinham em comum
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