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LÍNGUA PORTUGUESA Capítulo 2 Trovadorismo, Humanismo e Classicismo: as origens da Literatura em Língua Portuguesa238 O soneto O soneto, fórmula poética criada por Petrarca, também foi introduzido em Portugal por Sá de Miranda. Trata-se de um poema de estrofes de medida fixa: 14 versos distribuídos em quatro estrofes, sendo as duas primeiras delas de quatro versos (quartetos) e as duas últimas de três versos (tercetos). O soneto português é, geralmente, escrito em redondilhas maiores ou decassílabos heroicos. Observe: Quando entoar começo com voz branda Vosso nome d’amor, doce, e suave, A terra, o mar, vento, agoa, flor, folha, ave Ao brando som s’alegra, move, e abranda. Nem nuvem cobre o Ceo, nem na gente anda Trabalhoso cuidado, ou peso grave, Nova cor toma o Sol, ou se erga, ou lave No claro Tejo, e nova luz nos manda. Tudo se ri, se alegra, e reverdece. Todo Mundo parece que renova. Nem ha triste planeta, ou dura sorte. A minh’alma só chora, e se entristece. Maravilha d’Amor cruel, e nova! O que a todos traz vida, a mim traz morte. FERREIRA, Antonio. “Soneto XII”. FONSECA, Pedro José da. (Ed.). Poemas lusitanos do doutor Antonio Ferreira. Lisboa: Regia OfficinaTypografica, 1771. p. 49. v. 1. Perceba que os renascentistas não voltaram a acreditar na mitologia clássica greco-latina. Os deuses e heróis clássicos e suas aventuras fantásticas eram usados apenas de forma ilustrativa. Os artistas renascentistas recuperavam imagens belas e narrativas interessantes e reformulavam essas ideias segundo os temas da época e os valores cristãos que queriam reforçar ou discutir. O homem renascentista ainda era católico, mas tinha uma relação mais maleável com os ensinamentos da Igreja. Desse modo, temas greco-latinos são misturados a cenas bíblicas. Atenção O soneto apresentado é de autoria do poeta classicista Antonio Ferreira (1520-1569) e descreve o sentimento amoroso aproximado de elementos da natureza. Os poetas classicistas, como o autor, abordaram intensamente o tema do amor e a manutenção dos valores da natureza (bucolismo) diante dos avanços científicos. Por meio da figura do pastor ou do apelo a elementos como o sol, a lua e as árvores, a poesia classicista discorre sobre a necessidade de reaproximação do homem com a natureza, ao mesmo tempo que procura aceitar e entender o mundo citadiano moderno. © N a ta lia B ra ts la v s k y D re a m s ti m e .c o m Fig. 9 Antiga biblioteca universitária em Praga, República Tcheca. F R E N T E 2 239 Luís de Camões Luís Vaz de Camões (1524-1580) é um dos mais conhe- cidos e aclamados poetas portugueses. Autor de alguns dos versos mais famosos da literatura lusitana em todas as épocas, Camões viveu no Renascimento, época em que surgiu a ideia de que o autor era o sujeito e proprietário intelectual das obras que produzia. Nesse momento, pas- saram a ser celebrados por toda a Europa os artistas e os cientistas considerados geniais, ou seja, próximos das divindades e mais elevados do que as pessoas comuns. Ig n a z F e rt ig /B ib lio te c a N a c io n a l d e P o rt u g a l (D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 10 Ignaz Fertig, Luiz de Camões, 1855, litografia, Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, Portugal. Assim, Camões se tornou o artista da época mais glori- ficado pela Corte portuguesa e passou a ser tratado como uma celebridade. Descendente de uma família fidalga em- pobrecida, não se sabe ao certo até que ponto o autor conseguiu estudar, visto que não se formou em universida- des como os demais poetas classicistas portugueses. De todo modo, sua obra demonstra profundo conhecimento da literatura clássica greco-latina, dos cronistas portugueses e dos artistas italianos do Renascimento, com a produção de poemas líricos – os quais contêm algumas das descrições do amor mais conhecidas da história da língua portuguesa –, peças de teatro e quatro volumes de cartas, além do con- sagrado poema épico Os Lusíadas. À sua época, Camões foi aplaudido na Corte, viveu sua juventude de forma descompromissada e, em sua vida adulta, participou ativamente da expansão ultramarina que enriqueceu o Reino de Portugal. Ele experienciou a prisão, foi herói militar, esteve no exílio por algum tempo, viveu grandes amores, teve o reconhecimento da quali- dade de sua obra e enfrentou sérias doenças até chegar à velhice. Essas variadas facetas do poeta aparecem em sua obra na forma de uma linguagem elogiosa, mas crítica. Camões canta o heroísmo português, mas não deixa de apontar os erros de seu povo e os pontos fortes e fracos das Grandes Navegações. A poesia lírica camoniana A produção lírica de Camões é bastante variada: escrita tanto na medida velha quanto na nova, aborda questões medievais e tradições populares, mas também temas clás- sicos e renascentistas, como o neoplatonismo amoroso. A força de sua obra está no modo original como o autor se apropria dos motivos literários em moda na época. Nesse contexto, o neoplatonismo amoroso surge como o modelo do amor ideal. Os artistas renascentistas reinterpretam o mito da caverna de Platão, entendendo que, quanto mais distantes os amantes esti- vessem do amor físico, mais próximos estariam do amor verdadeiro. Este só poderia se manifestar no mundo conceitual das essências, enquanto o amor físico/carnal estaria inevitavelmente atrelado ao plano fugaz do mundo das aparências. Atenção São características da lírica camoniana: y a elocução harmoniosa de elementos que se entre- cruzam; y o cantar docemente; y o emprego de muitas figuras de linguagem; y a manutenção da mesura medieval, sem o uso de pa- lavras que pudessem ofender a amada; y o conceito de que a amada tem razão em desprezar o poeta; y o rebaixamento de posição do poeta em relação à amada; y os sonetos terminados com palavras longas, no intuito de elevar o afeto amoroso. A poesia lírica camoniana desenvolve-se sob um perma- nente antagonismo entre o amor sensual e o amor espiritual, a inteligência e a sensibilidade, a humildade e o orgulho, a inocência e a culpa, entre outros. A partir dessa característica, Camões trata de conflitos dolorosos e da busca frustrada pelo equilíbrio de si mesmo e do mundo à sua volta. Observe como essa questão se dá em um dos poemas líricos (sonetos) mais famosos do autor: Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que se ganha em se perder. É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata lealdade. Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo Amor? CAMÕES, Luís de; MATOS, Maria Vitalina Leal de (Sel.). Lírica de Luís de Camões: antologia. Alfragide: Caminho, 2012. p. 129. LÍNGUA PORTUGUESA Capítulo 2 Trovadorismo, Humanismo e Classicismo: as origens da Literatura em Língua Portuguesa240 Embora Camões tenha escrito interessantes poemas em medida velha, foi com sonetos como o apresentado que a poesia camoniana se destacou no contexto da época. Nesse tipo de poesia, percebem-se uma apreen- são mais complexa do amor e da vida, a idealização da mulher amada aos moldes neoplatônicos e a alusão aos “desconcertos do mundo”, os quais consomem o homem renascentista de dúvidas e anseios com relação ao futuro do reino e à fé cristã. Camões discute intensamente a questão da injustiça, a qual faz com que determinadas pessoas sejam punidas, e outras recompensadas. Ele também aborda temas como a fama e a felicidade, consideradas efêmeras, além de tratar da inconstância dos sentimentos. A poesia épica camoniana Na Antiguidade Clássica, a épica se caracterizava pela celebração dos feitos heroicos e acontecimentos grandiosos que demonstravam a bravura de um povo, simbolicamente representado na figura de um herói de grande valor. Tal valor seria assim eternizado por meio da escrita. O período eufóricoque vivia Portugal propiciava o aparecimento de obras literárias desse teor, as quais exaltavam o valor dos portugueses como desbravadores de mares. O grande poema épico de Camões, Os Lusíadas (1572), celebra a nação portuguesa por meio do relato ficcional da viagem de Vasco da Gama à Índia. É uma epopeia por- tuguesa formulada à imitação da Ilíada e da Odisseia, de Homero, e da Eneida, de Virgílio, obras que celebravam, respectivamente, o poderio grego e o Império Romano. Simbolicamente, Camões procurava mostrar como os por- tugueses estavam à altura daquelas grandes civilizações do passado e que tinham potencial, inclusive, para superá-las. Compare os versos de abertura desses poemas épicos: Ilíada, de Homero, na tradução de Manuel Odorico Mendes (século XIX) Canto I Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos, Verdes no Orco lançou mil fortes almas, Corpos de heróis a cães e abutres pasto: HOMERO. Ilíada e Odisseia. [livro eletrônico]. MENDES, Manoel Odorico (Trad.) [s.l]: FV Éditions, 2014. Odisseia, de Homero, na tradução de Manuel Odorico Mendes (século XIX) Canto I Canta, ó Musa, o varão que astucioso, Rasa Ílion santa, errou de clima em clima, Viu de muitas nações costumes vários. Mil transes padeceu no equóreo ponto, Por segurar a vida e aos seus a volta; HOMERO. Ilíada e Odisseia. [livro eletrônico]. MENDES, Manoel Odorico (Trad.) [s.l]: FV Éditions, 2014. In : L u ís d e C a m õ e s O s L u s ía d a s d e L u ís d e C a m õ e s L is b o a : e m c a s a d e A n to n io G õ ç a lu e z , 15 7 2 / B ib lio te c a N a c io n a l d e P o rt u g a l (D o m ín io p ú b lic o ) Fig. 12 Fac-símile da folha de rosto da primeira edição de Os Lusíadas. F ra n ç o is G é ra rd /W e b G a lle ry o f A rt ( D o m ín o p ú b lic o ) Fig. 11 François Gérard, Psiquê e Cupido, 1798, Museu do Louvre, Paris, França.
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