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LITERATURA DE PAÍSES DE LÍNGUA PORTUGUESA Stélio Furlan José Carlos Siqueira Jurema Oliveira E d u ca çã o L IT E R A T U R A D E P A ÍS E S D E L ÍN G U A P O R T U G U E S A S té lio F ur la n Jo sé C ar lo s S iq ue ira Ju re m a O liv ei ra O objetivo principal desta obra é o de compreender elementos para o estudo crítico-produtivo das manifestações canônicas da literatura portuguesa, entre 1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental, além de apresentar uma discussão sobre gêneros literários e tradição oral da literatura africana. Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discursivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias portuguesas do medievo ao período contemporâneo, além de apresentar os princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de língua portuguesa. Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6396-3 CAPA_Literatura de Países de Língua Portuguesa.indd 1 06/11/2017 09:38:43 Stélio Furlan José Carlos Siqueira Jurema Oliveira IESDE BRASIL S/A Curitiba 2017 Literatura de pa ses de l ngua portuguesa CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F984L Furlan, Stélio Literatura de países de língua portuguesa / Stélio Furlan, José Carlos Siqueira, Jurema Oliveira. - 1. ed. - Curitiba, PR : IESDE Brasil, 2017. 320 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6396-3 1. Literatura portuguesa - História e crítica. I. Siqueira, José Carlos. II. Oliveira, Jurema. III. Título. 17-45424 CDD: 869.09 CDU: 821.134.3(09) Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. © 2008-2010-2017 – IESDE Brasil S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qual- quer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos direitos autorais. Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br Produção FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão IESDE Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem Capa Holmes Su/Shutterstock.com Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao aluno | 5 1. Trovadorismo: 1198-1418 | 7 2. O Humanismo | 25 3. Classicismo: 1527-1580 | 45 4. Barroco: 1580-1756 | 71 5. Arcadismo: 1756-1825 | 89 6. O Romantismo: prosa | 107 7. O Romantismo: poesia | 129 8. O Realismo: 1865-1890 | 151 9. Simbolismo | 177 10. O Saudosismo | 197 11. Modernismo: Geração de Orpheu | 211 12. Modernismo presencista | 229 13. Gêneros literários e tradição oral | 243 14. José Saramago: história, ficção e identidade | 255 15. Mia Couto e a narrativa contemporânea moçambicana | 271 Gabarito | 283 Referências | 299 Carta ao aluno Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave? Carlos Drummond de Andrade “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘Navegar é preciso, viver não é preciso’. Quero para mim o espírito (d)esta frase, transformada a forma para a casar com o que eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar”: essa conhecida passa- gem de Fernando Pessoa serve-nos de mote para justificarmos as travessias e os percursos pelo vasto espaço da literatura portuguesa. – 6 – Literatura de países de língua portuguesa O objetivo principal é o de compreender elementos para o estudo crí- tico-produtivo das manifestações canônicas da literatura portuguesa, entre 1189 e 1915, situando-a no contexto da literatura ocidental, além de apresen- tar uma discussão sobre gêneros literários e tradição oral da literatura africana. Como estratégia de leitura, vamos centrar nosso investimento discur- sivo e investigativo no que singulariza as diferentes manifestações literárias portuguesas do medievo ao período contemporâneo, além de apresentar os princípios norteadores da construção identitária da literatura africana de lín- gua portuguesa. Nesse processo de traçar os perfis de uma literatura contemporânea da África de língua portuguesa e de Portugal não podemos deixar de estudar José Saramago, um autor que desde a sua primeira obra redimensiona a ideia de história, ficção e identidade para estabelecer a dinâmica do pensamento da contemporaneidade. Assim, se Portugal tem um Saramago que se consagrou como ficcionista que recorre à história para recontá-la de forma inovadora, Moçambique tem um Mia Couto, um autor capaz de articular tradição oral com aspectos oriun- dos da cultura portuguesa para criar uma prosa poética híbrida. Em última instância, desejamos que estas páginas sobre literatura portu- guesa e africana estimulem a reflexão sobre a importância da literatura como um modo privilegiado de conhecimento, como uma maneira especial de ver e dizer o mundo. E também que possam incentivar o contato prazeroso com o texto, ao que chamaremos fruição textual. Boa leitura! Trovadorismo: 1198-1418 Lo vers es fis e naturause bos celui qui be l’enten; e melher es, qui.l joi aten.1 Bernart de Ventadorn (1150-1180) 1.1 Contexto histórico Os primeiros registros escritos da literatura portuguesa são em verso. As produções do primeiro período medieval, que se estende dos séculos XII ao XV, são agrupadas no movimento literá- rio conhecido como Trovadorismo. 1 “A canção é autêntica e sincera, / capaz de honrar àquele que a compreenda bem; / Mas melhor é para aquele que aguarda as alegrias do amor.” – tradução de Segismundo Spina. 1 Stélio Furlan José Carlos Siqueira Literatura de países de língua portuguesa – 8 – Figura 1 – Iluminura medieval com representação de uma cena trovadoresca. A expressão Trovadorimo deriva do verbo provençal trobar, que exprimia o fazer poético da época enquanto ação de compor, de inventar, de criar. Em A lírica trovadoresca, livro indispensável aos estudiosos da poética medieval, Segismundo Spina sugere que entre tantas etimologias propostas a mais acei- tável se associa à tese litúrgica da poesia trovadoresca. Assim, trobar derivaria do vocábulo tropare, “decalcada sobre tropo – interpolação, adição ou intro- dução de texto literário e musical numa peça da liturgia. Daí tropare – fazer tropos, compor (um poema, uma melodia), inventar, descobrir” (SPINA, 1996, p. 407). Chamava-se trobador o poeta que criava, instrumentava e, por vezes, entoava suas próprias composições poéticas. As cantigas também eram criadas e divulgadas pelo segrel, o trovador profissional, que ia de corte em corte com o seu jogral (dançarino, acrobata, mímico). O músico era o menestrel. Um dos mais notáveis trovadores medievais foi, por certo, o rei D. Dinis (1261-1325). As suas cantigas evidenciam um dos momentos mais altos da poesia no sentido da apropriação dos recursos verbais e da sua adequação ao dizer poético. D. Dinis levou a bom termo o desejo de todo trovador medie- val, a saber, a plena realização da aliança entre motz el son, entre a palavra e música. Leia-se: – 9 – Trovadorismo: 1198-1418 Quer’eu em maneira de proençal fazer agora un cantar d’amor, e querrei muit’i loar mia senhor a que prez nen fremusura non fal, nen bondade; e mais vos direi en: tanto a fez Deus comprida de ben que mais que todas las do mundo val.2 (DOM DINIS, 2008) Figura 2 – D. Dinis, sexto rei de Portugal, subiu ao trono em 1279 e governou até 1325. Afora o incentivo à agricultura, destacou-se pela fundação da primeira universidade de Portugal, em 1290, então sediada na cidade de Lisboa. 2 “Quero fazer agora uma canção de amor ao modo provençal. E quero louvar a minha sen- hora, a quem honra nem formosuras não faltam, nem bondade; e mais vos direi ainda: tanto Deus a fez cheia de virtudes,que no mundo não há outra igual.” Literatura de países de língua portuguesa – 10 – De imediato, surgem estas perguntas: 2 Como esse fragmento textual chegou até nós se foi escrito por volta de 700 anos atrás? 2 Em que língua foi escrito? O que significa compor um “cantar d’amor” ao modo provençal? 2 Enfim, o que se entende por “amor” e qual a importância de se estudar textos medievais? Ora bem, a referida estrofe e as demais composições da lírica trovado- resca medieval encontram-se preservadas em três compilações manuscritas chamadas de cancioneiros. Se o mais antigo é o Cancioneiro da Ajuda, com- posto de 310 cantigas (acredita-se que compilado entre os séculos XIII e XIV), o mais completo é o Cancioneiro da Biblioteca Nacional, formado de 1.647 manuscritos de cantigas líricas e satíricas. O nosso interesse se volta para o Cancioneiro da Vaticana, assim designado por ter sido encontrado na Biblioteca do Vaticano, contendo 1.205 cantigas de vários autores, entre os quais D. Dinis e suas 137 cantigas. 1.2 A poesia trovadoresca Os poemas recebiam o nome de cantigas (ou canções e mesmo cantares) pelo fato de o lirismo medieval associar-se intimamente com a música: a poesia era cantada, ou entoada e instrumentada. Letra e pauta musi- cal andavam juntas de molde a formar um corpo único e indissolúvel. Daí compreender que o texto sozinho, como o temos hoje, apenas fornece uma incompleta e pálida imagem do que seriam as cantigas quando cantadas ao som do instrumento, ou seja, apoiadas na pauta musical. (MOISÉS, 1997, p.15) – 11 – Trovadorismo: 1198-1418 Observe essa necessária proximidade nas seguintes iluminuras: Figura 3 – Cantiga de Afonso X , o Sábio. Figura 4 – Um fólio da cantiga “Ondas do mar de Vigo”, de Martin Codax. Note-se que a cantiga de D. Dinis foi grafada em galego-português, que era a língua utilizada por todos os poetas do período, por conta da impor- tância de Santiago de Compostela (capital da Galiza), situada na extremidade noroeste da Península Ibérica. Portugal, que a partir do século XII se firmou como reino independente, mantinha laços econômicos, sociais e culturais com a Galiza e tais relações favoreceram o surgimento de uma língua de traços específicos: o galego-por- tuguês. Isso justifica o fato de a produção literária da época ter sido elaborada nessa variação linguística. Literatura de países de língua portuguesa – 12 – 1.2.1 Características da poesia trovadoresca As cantigas medievais se dividem em composições líricas e satíricas. No primeiro caso, situam-se as cantigas de amor e as cantigas de amigo. Já as com- posições satíricas se dividem em cantigas de escárnio e cantigas de maldizer. Se as cantigas líricas versam em geral sobre o amor ou sua ausência, nas cantigas satíricas faz-se a crítica a pessoas, comportamentos ou instituições do mundo feudal. Caso a crítica seja velada, indireta, temos uma cantiga de escárnio. Já a zombaria direta, agressiva, com expressões de baixo calão, define uma cantiga de maldizer. É interessante notar que os critérios que diferenciavam tais modalidades da poética trovadoresca galego-portuguesa foram sistematizados na chamada Arte de Trovar, redigida no século XIII, que se encontra anexa ao Cancioneiro da Biblioteca Nacional. Leia-se: E como há algumas cantigas em que falam tanto eles como elas, por isso é importante que entendais se são de amor ou de amigo, por- que se falam eles na primeira cobra e elas na outra, é de amor, pois move-se segundo a argumentação dele (como vos dissemos antes); e se falam elas na primeira cobra, então é de amigo; e se falam ambos em uma cobra, então depende de qual deles fala primeiro na cobra. (VIEIRA, 2008) Em síntese, o que define uma canção de amor ou de amigo é a voz do poema presente na primeira cobra ou estrofe. Se a voz que abre o poema é a de um eu lírico masculino, esse poema é classificado como uma canção de amor, a exemplo da composição de D. Dinis. 1.2.2 A poesia trovadoresca em Portugal D. Dinis demonstra consciência artesanal ao revelar o modo do seu fazer poético: tecer uma canção à maneira de proençal, o que gera toda uma expectativa de leitura. A estrofe é reveladora das regras da arte que chegam a Portugal no século XII, oriundas da Provença, a região Sul da França medie- val, palco do esplendor do trovadorismo. O trovadorismo à provençal não só se difundiu para o continente europeu como também influenciou o lirismo europeu dos séculos vindouros. – 13 – Trovadorismo: 1198-1418 Na cantiga Quer’eu en maneira de proençal, ao revelar a firme disposição de louvar a “mha senhor”, a qual não faltam a honra, a formosura e a bon- dade, D. Dinis cede à descrição física e moral da mulher prevista pelas regras da arte daquele tempo. É de se notar que o trovador mantém em sigilo a identidade da sua musa. E o sentimentalismo hiperbólico típico dos trovado- res medievais se exibe nesse encarecimento do feminino: ela é um verdadeiro prodígio criado por Deus, uma coleção de excelências – logo, inigualável perante as demais. 1.3 Cantiga de amor Ao cantar uma dama de eleição (“mha senhor”), o trovador comporta-se como um vassalo diante do seu suserano. A expressão mha senhor utilizada pelo trovador significava “minha senhora”. No medievo, o termo senhor se associava a senhorio, significando tanto uma propriedade territorial quanto os meios de que dispõe um senhor feudal “para se apropriar do rendimento do trabalho realizado por homens sob o seu domínio” (FRANCO JÚNIOR, 1995, p.192). Assim, uma forma de organização social é sugerida a partir do texto poético. Em outras palavras, o ritual amoroso da cantiga de amor repro- duz a relação entre senhor e vassalo típico do medievo. Comentando essa transposição do esquema social criado pelo feudalismo, Segismundo Spina afirma que o amor se tornou um “serviço” (culto) prestado pelo trovador à sua dama, como compromisso que se estabelecia entre o senhor e vassalo. Segismundo Spina apresenta-nos um quadro bastante convincente dos aspectos mais relevantes da mensagem poética do amor cortês à provençal: Do princípio de que o Amor é fonte perene de toda Poesia, e de que o amor é leal, inatingível, sem recompensa (porque a dama é sans merci) decorre todo o formalismo sentimental dessa poesia: 2 a submissão absoluta à sua dama; 2 uma vassalagem humilde e paciente; 2 uma promessa de honrá-la e servi-la com fidelidade; 2 o uso do senhal (imagem ou pseudônimo poético com que o trova- dor oculta o nome da mulher amada); Literatura de países de língua portuguesa – 14 – 2 a mesura, prudência, moderação, a fim de não abalar a reputação da dama (pretz), pois a inobservância deste preceito acarreta a sanha da mulher; 2 a mulher excede a todas do mundo em formosura (de que resulta o tema do elogio impossível); 2 por ela o trovador despreza todos os títulos, todas as riquezas e a posse de todos os impérios; 2 o desprezo dos intrigantes da vida amorosa; 2 a invocação de mensageiros da paixão do amante (pássaros); 2 a presença de confidentes da tragédia amorosa. (SPINA, 1996, p. 363) Isso explica o respeito constante, a moderação, a mais completa sub- missão do trovador diante da mulher. Tais elementos estão associados a uma das principais concepções medievais sobre o amor: o que se convencionou chamar amour courtois ou “amor cortês”. Sobre as especificidades do amor cortês, Georges Duby afirma que “Esse amor, os historiadores da literatura corretamente o chamaram cortês. Os textos que nos fazem conhecer suas regras foram todos compostos no século XII, em cortes, sob a observação do príncipe e para corresponder às suas expectativas.” Nesse sentido, o autor afirma que as regras do “amor delicado” vinham reforçar as regras da moral vassálica, o que o leva a assinalar as correspondências entre o que essas canções expõem e “a verdadeira organização dos poderes e das relações da sociedade” (DUBY, 1989, p. 59-65). A compreensão desse formalismo sentimental,que torna a arte de amar uma etiqueta cerimoniosa de corte, em consequência, em signo de distinção da nobreza, ajuda a explicar aquele famoso verso de Camões: amor “é servir a quem vence o vencedor”. O fragmento textual de D. Dinis apresentado ganha interesse como poe- ma-síntese de uma das manifestações líricas do medievo – a canção de amor. Graças à consciência artesanal do trovador, assegura-se a qualidade estética de versos tecidos ao gosto provençal. Também de D. Dinis, a composição a seguir, sendo inequivocamente de amor, é uma verdadeira obra-prima da poesia medieval. – 15 – Trovadorismo: 1198-1418 Em gram coita, senhor, que peior que mort’é, vivo, per bõa fé, e polo voss’amor esta coita sofr’eu por vós, senhor, que eu vi polo meu gram mal; e melhor mi será de moirer por vós já; e, pois me Deus nom val, esta coita sofr’eu por vós, senhor, que eu polo meu gram mal vi; e mais mi val morrer ca tal coita sofrer pois por meu mal assi esta coita sofr’eu por vós, senhor, que eu vi por gram mal de mi, pois tam coitad’and’eu. (DOM DINIS, 2008) Glossário: Gram coita: grande sofrimento. Per bõa fé: na esperança. Nom val: não me socorre. Observe que D. Dinis faz uso, com maestria, das técnicas da composição poética comuns ao lirismo trovadoresco: o refrão, o paralelismo, a atafinda e a fiinda. Literatura de países de língua portuguesa – 16 – O refrão ou estribilho – fragmento poético ao qual se regressa ao final de cada estrofe (esta coyta sofr`eu ⁄ por vós, senhor, que eu) – sugere a existência de um coro ou de um solista, assim decorrendo da inseparabilidade entre letra e pauta musical. O refrão se encadeia à estrofe seguinte pelo processo de encadeamento ou atafinda, e isso permite que o lamento plangente do eu lírico se desen- volva sem interrupção até o final da cantiga, rematada com um dístico (ou estrofe de dois versos). Conforme a Arte de Trovar medieval, trata-se da fiinda. Leia-se: As fiindas são coisas que os trovadores sempre costumaram pôr no fim das suas cantigas, para concluírem e acabarem melhor nelas os argumentos (razones) que disseram nas cantigas, chamando-lhes fii- nda, porque quer dizer conclusão de argumento. E essa fiinda podem fazê-la de uma ou de duas ou de três ou de quatro palavras (versos). (MONGELLI, 2003, p. 147) Afora o refrão, você pode observar também o uso do paralelismo, um processo repetitivo que envolve versos com a mesma estrutura sintática e/ou semântica no corpo da composição – no caso, “Vy polo meu gram mal, Polo meu gram mal vy”. No aspecto temático, D. Dinis retoma os lugares-comuns típicos da cantiga de amor. Embora o foco não esteja voltado à celebração das virtu- des da donna, sua idealização é evidente. Observe que nesse poema a coyta (ou, conforme um termo utilizado por Caetano Veloso, a queixa) derivada do tormento passional do sujeito poético masculino se associa ao olhar. O olhar é, por certo, janela da alma e nesse caso não surge como o responsável pela transmissão do amor ao coração, pois antes disso expressa a perdição do eu lírico. Vale lembrar que o olhar como causa do tormento amoroso é uma cons- tante, não só na lírica medieval, mas circunstância típica da tópica amatória da poesia romântica luso-brasileira, como os poemas “Este inferno de amar”, de Almeida Garrett e “Olhos verdes”, de Gonçalves Dias. – 17 – Trovadorismo: 1198-1418 1.4 Cantiga de amigo É interessante notar que o sentimento de perda da continuidade do rela- cionamento amoroso remete a um dos primeiros textos poéticos escritos da literatura portuguesa. Há quem diga que a cantiga de amigo “Ai eu coytada”, de D. Sancho I (1154-1211), rei de Portugal, dedicada à formosa Maria Paes Ribeiro, merece ser considerada o manuscrito inaugural da literatura portu- guesa. Observe como o trovador incorpora poeticamente o ponto de vista feminino para descrever o sentido saudosismo da mulher perante a ausência do amado: Ai eu coitada! Como vivo en gran cuidado por meu amigo que ei alongado! Muito me tarda o meu amigo na Guarda! Ai eu coitada! Como vivo en gran desejo por meu amigo que tarda e non vejo! Muito me tarda o meu amigo na Guarda! (apud SPINA, 1996, p. 319) Glossário: Cuidado: aflição. Ei alongado: tenho esperado. Desejo: recordação saudosa. Literatura de países de língua portuguesa – 18 – O manuscrito dessa composição se encontra registrado no Cancioneiro da Biblioteca Nacional, sob o número 456. Logo no primeiro verso, a mulher se diz coytada. Como dissemos, a palavra coyta traduzia o tormento passional dos amantes. Ela sofre de saudade (en gran desejo) de tanto esperar (que ei alongado) por seu namorado que se está em uma cidade distante (na Guarda). O fato de não vê-lo intensifica ainda mais a recordação saudosa. A aparente simplicidade dessa cantiga é típica de uma das manifes- tações da poesia lírica que se desenvolveu na Península Ibérica. Nas canti- gas de amigo, que têm origem galego-portuguesa, percebe-se o papel ativo da mulher na busca de soluções para os seus anseios erótico-sentimentais. A composição é válida para se pensar um tipo peculiar de cantiga de amigo, o das paralelísticas, que aliam uma simplicidade de motivos e recur- sos semânticos ao elaborado arranjo da sua expressão, através de um esquema de repetitividade que enriquece o sentido pelo tom de litania e sugestão encantatória, muitas vezes magoada, perplexa ou interroga- tiva, que cria. (CANTIGAS DE AMIGO, 2008) Em outras palavras, entre os temas desenvolvidos nas cantigas de amigo, encontramos situações da vida amorosa das moças casadoiras. A mulher expressa os seus ciúmes e dúvidas, ou faz confidências dos seus sucessos amorosos. As cantigas de amigo também podem ser dialogadas, embora o sujeito poético feminino não dirija necessariamente o seu lamento para o destina- tário do seu amor (o amigo), mas para a mãe ou amigas, ou mesmo para elementos inanimados (árvores, ondas). Afora o tipo de voz que inicia as cantigas, o espaço é decisivo para a sua classificação. As canções de amor são identificadas por traduzirem o ponto de vista de um sujeito poético masculino e pelo cenário palaciano. Já as canti- gas de amigo se ambientam fora do palácio e do templo: ora no campo, sob frondosas avelaneiras ou pinheiros, ora junto ao mar, ora à frente das igrejas. Enfim, não se pode esquecer que essas duas modalidades da lírica medie- val se destinavam ao canto e a dança. O esquema paralelístico e o estribilho ou refrão são os elementos formais que punham em evidência essa relação. – 19 – Trovadorismo: 1198-1418 Figura 5 – Descoberto por Pedro Vindel este pergaminho contém as letras e as respectivas pautas musicais das cantigas de Martim Codax (segunda metade do séc. XIII). Segundo Spina, o esquema paralelístico diz respeito a um processo repe- titivo que constitui o fundamento da poesia popular, sendo que na sua base “estão presentes a música e a dança alternada a dois coros” (SPINA, 1996, p. 396). A presença do coro é sugerida pelo refrão ou estribilho: “um fragmento poético no corpo da composição, ao qual regressa constantemente o coro (às vezes cantados por um solista), entre a execução de uma estrofe e outra” (SPINA, 1996, p. 400). É o que ocorre na cantiga de D. Sancho, tanto pela presença do refrão (“Muito me tarda / o meu amigo na Guarda!”), quanto pelo recurso à estru- tura simples da forma paralelística: “Como vivo en gran cuidado / Como vivo en gran desejo”. A repetição de versos semelhantes, com alterações nas palavras finais, permite que a ideia principal se reproduza ao longo do poema, facili- tando sua memorização. Literatura de países de língua portuguesa – 20 – 1.5 Cantigas de escárnio e maldizer Apesar de alguns estudiosos considerarem a vertente satírica do trovado- rismo como uma produção menor dentro desse movimento (MOISÉS, 1980, p. 28), acreditamos que ela tenha qualidade e significado relevantes dentro da lite- ratura medieval. As modalidadessatíricas que estudaremos são escárnio e maldizer. Nas cantigas de escárnio, como já dissemos, o trovador critica sem indi- vidualizar a pessoa que estaria sendo criticada. As de maldizer são aquelas em que a pessoa criticada é mencionada. Fazendo um esquema, temos: 2 cantiga de escárnio – sátira a alguém com sutileza, sendo que o pro- cesso estilístico utilizado é a ironia; 2 cantiga de maldizer – sátira direta, com linguagem obscena. Tais cantigas revelam aspectos típicos da vida dos jograis ou segreis, bem como da corte. Os jograis levavam uma vida diferente do artificialismo cortês ou do regime servil a que estava sujeito o trabalhador comum. Socialmente, esses artistas eram párias. Nas suas canções, eles contavam suas experiências com mulheres da vida, bebedeiras, fidalgos de menor expressão com preten- sões a senhor feudal, as sovinices de um senhor etc. No entanto, esse tipo de cantiga não se restringia ao jogral, pois qual- quer trovador, até mesmo o rei D. Dinis, trataram dessa temática e lançaram mão desse gênero poético. Em algumas cantigas, podemos inclusive ver a rivalidade entre jograis e trovadores: os primeiros queriam ascender da condi- ção de executantes para a de compositores, enquanto os segundos defendiam a manutenção da hierarquia. Em termos políticos, a sátira foi pouco utilizada, mas ela é o documento de uma época, pois a condição dos jograis – andando de castelo em castelo, de feira em feira – possibilita-nos o conhecimento daquela realidade sob variados aspectos. Tomemos como exemplo disso a canção de João Garcia Guilhade: Ai dona fea! foste-vos queixar porque vos nunca louv’en meu trobar mais ora quero fazer un cantar en que vos loarei toda via; e vedes como vos quero loar: dona fea, velha e sandia! – 21 – Trovadorismo: 1198-1418 Ai dona fea! se Deus mi perdon! e pois havedes tan gran coraçon que vos eu loe en esta razon, vos quero já loar toda via; e vedes qual será a loaçon: dona fea, velha e sandia! Dona fea, nunca vos eu loei en meu trobar, pero muito trobei; mais ora já un bon cantar farei en que vos loarei toda via; e direi-vos como vos loarei: dona fea, velha e sandia! (GUILHADE, 2008) O poeta João Garcia Guilhade foi um importante trovador português do século XIII e nos deixou, além de cantigas de escárnio como “Ai Dona Fea”, também cantigas de amor e de amigo (COHEN, 1996). No poema citado, o trovador se dirige a uma dama que se queixava de nunca receber versos dele, louvando sua pessoa. Irritado com a cobrança, o poeta explica que os únicos elogios que lhe poderia fazer eram “feia, velha e louca”. 1.6 Principais trovadores 2 João Soares de Paiva – considerado o mais antigo poeta em portu- guês com a canção “Ora faz host’o senhor de Navarra”. O poema se encontra no Cancioneiro da Vaticana. 2 Paio Soares de Taveirós – visto como o autor de um dos primeiros textos em português, “Canção da Ribeirinha” (1189 ou 1198). Sua obra se encontra no Cancioneiro da Ajuda. 2 D. Afonso X, o Sábio – rei de Leão e Castela, era avô de D. Dinis. Escreveu numerosos versos, sendo os mais conhecidos as Cantigas de Santa Maria. 2 D. Dinis – a figura mais proeminente do trovadorismo português. Foi rei de Portugal, grande incentivador das artes e do conheci- mento (fundou a Universidade de Coimbra) e um dos melhores e mais profícuos poetas do período. Frequentou todos os gêneros poéticos da época: cantigas de amor, amigo, escárnio e maldizer. Literatura de países de língua portuguesa – 22 – 2 Martim Codax – sua história é pouco conhecida, mas as poucas composições (sete cantigas de amigo) que nos deixou foram com- piladas junto com a notação musical dos poemas. 1.7 A permanência do Trovadorismo Aproveitando o fio da meada, ao longo do século XIX e do século XX ocorreu uma verdadeira revisitação à cultura medieval. Se a Era Clássica esco- lheu o passado greco-latino como modelo, o Romantismo escolheu para si a recriação do passado medieval. Enquanto estética do século XIX, o Romantismo se relaciona com a reação aos preceitos clássicos e a busca da identidade nacional. Daí a valo- ração do medievo, berço da nação lusitana e da cristandade. O gosto pelo medievo se constata tanto na arquitetura com a (re)construção de templos góticos como também nos motivos poéticos e procedimentos compositivos da literatura medieval. Vamos dar dois exemplos. 2 Alexandre Herculano, principal escritor do movimento român- tico em Portugal, escreveu um romance histórico intitulado Eurico, o Presbítero (1844), ambientado no século VIII, que revive o clima das novelas de cavalaria e o espírito das Cruzadas típicas da prosa medieval. O autor também era poeta e um de seus versos é autoexplicativo: “Eu, o cristão, trovador do exílio” (HERCULANO, 2008). 2 Almeida Garrett, no melhor livro de poemas do romantismo por- tuguês, intitulado Folhas Caídas, retoma o lirismo fluente, de rit- mos populares, das composições medievais. Leia-se o poema inti- tulado “Barca Bela”: Pescador da barca bela, Onde vais pescar com ela, Que é tão bela, Ó pescador? Não vês que a última estrela No céu nublado se vela? – 23 – Trovadorismo: 1198-1418 Colhe a vela, Ó pescador! Deita o laço com cautela, Que a sereia canta bela... Mas cautela, Ó pescador! Não se enrede a rede nela, Que perdido é remo e vela Só de vê-la, Ó pescador, Pescador da barca bela, Inda é tempo, foge dela, Foge dela Ó pescador! (ALMEIDA GARRETT, 2008) A retomada dos processos de composição da arte poética medieval se observa pela escolha da chamada medida velha – no caso, as redondilhas (os dois primeiros versos possuem sete sílabas poéticas). Note-se ainda que esse poema reitera um mesmo verso, à guisa de refrão, como remate de cada estrofe. Enfim, a repetição de versos com a mesma identidade semân- tica, na primeira e na última estrofe, lembra a estrutura paralelística das cantigas trovadorescas. Para Garrett, a reação romântica contra a literatura clássica de feições greco-latinas “trouxe a renascença da poesia nacional e popular”. Segundo ele, “nenhuma coisa pode ser nacional se não for popular” (FERREIRA, s.d., p. 5). Assim, Garrett deixa bem claro que essa retomada é uma contribuição à busca da cor local, ou dos matizes da identidade pátria. Dicas de estudo 2 A propósito das manifestações da literatura medieval, consulte o site <http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/trovador.htm>, acesso em: 29 set. 2017, que apresenta vários exemplos das modalidades da poesia trovadoresca. Vale dizer que esse site é considerado a maior base de dados sobre a literatura portuguesa, do medievo às textualidades contemporâneas. Literatura de países de língua portuguesa – 24 – Atividades 1. A propósito das origens das cantigas de amor galego-portuguesas, António José Saraiva e Oscar Lopes afirmam, em sua História da Li- teratura Portuguesa, que os provençais eram os modelos a seguir. Cite versos de D. Dinis que podem corroborar essa tese. 2. O que significa escrever uma canção de amor à maneyra de proençal? Justifique apontando pelo menos três das suas principais característi- cas temáticas. 3. É possível estabelecer correspondências entre o que as canções de amor expõem e a organização da sociedade medieval? Justifique. O Humanismo Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades. Luís de Camões 2.1 O homem como centro do universo No romance Os Maias (1888), do escritor realista Eça de Queirós, há um personagem bastante divertido chamado João da Ega, que pretende escrever um livro muito peculiar, As memórias de um átomo: Este átomo (o átomo do Ega, como se lhe chamava a sério em Coimbra) aparecia no primeiro capítulo, rolando ainda no vago das Nebulosas primitivas: depois vinha embrulhado, faísca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: enfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crostaainda mole do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substância, o átomo do Ega entrava na rude estrutura do 2 José Carlos Siqueira Literatura de países de língua portuguesa – 26 – Orango, pai da humanidade – e mais tarde vivia nos lábios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heróis, palpi- tava no coração dos poetas. [...] Achando-se finalmente no bico da pena do Ega, e cansado desta jornada através do Ser, repousava – escrevendo as suas Memórias... Tal era este formidável trabalho – de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito: – É uma Bíblia! (QUEIRÓS, 1997, p. 1.116) A graça desse texto está no fato de que a bíblia da modernidade seria o percurso de um átomo pela história, um átomo como outro qualquer, sem nada de especial, símbolo da materialidade da vida. Deus perde, assim, a prerrogativa de criar e de reger o universo. Essa exclusão da centralidade de Deus que, no século XIX – quando Eça escreveu o seu texto – é tomada de modo debochado e banal, no século XV e XVI foi uma grande revolução em Portugal e em toda a Europa. É o que ficou conhecido como humanismo, com o homem e a racionalidade humana tomando o lugar central na escala de valores do mundo ocidental. Segundo Óscar Lopes e António José Saraiva, quem promoveu o Renascimento em Portugal foram os humanistas: A palavra humanismo com que se designou este movimento, inspirada pelo conceito de humanitas (o de humanidade, ou qualidade humana, como cultura e estrutura moral) de Cícero, exprime a crença num conjunto de valores morais e estéticos universalmente humanos, os quais se achariam definidos tanto nas Escrituras e na Patrística como na cultura profana da Antiguidade. (LOPES; SARAIVA, 1979, p. 175-176) Figura 1 – Esboço dos movimentos de um homem, em desenho de Leonardo da Vinci. – 27 – O Humanismo Do ponto de vista político, os humanistas advogavam a escolha dos governantes segundo o saber e a capacidade, condenando a guerra e pro- pondo soluções pacíficas para os conflitos políticos e religiosos. Da pers- pectiva do ensino, o ideal humanista propunha a realização harmoniosa das faculdades morais e estéticas do indivíduo, por meio da substituição da dialé- tica e da retórica escolástica, que era baseada no aristotelismo, pela leitura e o comentário dos textos de autores clássicos, defendendo assim uma crítica de base filológica e histórica. Seus seguidores retomavam Platão e os filósofos neoplatônicos, como Plotino. Apesar de o humanismo ser uma corrente de pensamento e não um pro- grama estético, ele foi a base de toda arte e cultura renascentistas. Sua origem se deu na Academia Platônica de Florença, na Itália, seu local de origem e um de seus principais mentores foi o filósofo Marsílio Ficino (1433-1499). Ficino foi tradutor de Platão, Plotino, Jâmbico, Proclo e Sinésio, e recebeu na Academia as principais figuras de seu tempo, como o arquiteto Alberti, o filó- sofo Pico della Mirandola, o poeta Poliziano e até Maquiavel. E a Academia Platônica de Florença foi muito além da tradição grega antiga, gerando as bases para o pensamento humanista. Figura 2 – Detalhe da pintura Zacarias no Templo (1490), de Domenico Ghirlandaio, na capela de Santa Maria Novella, em Florença. Aqui aparecem Marsílio Ficino (à esquerda), Cristoforo Landino, Angelo Poliziano e Demetrios Clakondyles. Literatura de países de língua portuguesa – 28 – No âmbito da literatura, esses pensadores reconheceram a superioridade artística e literária das civilizações antigas e, a partir daí, conceberam a noção de homem completo (corpo e espírito), integrado na humanidade e partici- pante do vasto conjunto da natureza. Portanto, tais pensadores superaram a noção de homem individual pela noção mais ampla e complexa de huma- nidade. Isso tudo não negava a existência divina, mas colocava em primeiro plano o estudo do homem e da natureza. 2.2 O Humanismo em Portugal As ideias humanistas chegaram à literatura portuguesa por intermédio do contato de escritores portugueses com o meio literário italiano. Um dos casos clássicos desse intercâmbio foi o do poeta Francisco de Sá de Miranda (1481-1558). De 1521 a 1526, Sá de Miranda frequentou os meios literários italianos. Ao retornar dessa viagem, ele trouxe na bagagem a nova estética humanista, introduzindo na literatura portuguesa o soneto, a canção, a sex- tina, as composições em tercetos e em oitavas, o decassílabo. Além de várias composições poéticas, Sá de Miranda também escreveu comédias e tragédias. Outro importante poeta desse momento foi Garcia de Resende (1470- -1536), que era ainda cronista, músico, desenhista e arquiteto. Sua principal obra é o Cancioneiro Geral, na qual reúne composições de mais de 200 poetas das cortes de D. Afonso V, D. João II e D. Manuel I, além dos próprios tra- balhos. É o maior repositório poético do final do período medieval e início do período clássico. Entre os prosadores marcados pelo pensamento humanista, podemos destacar Fernão Lopes (c. 1380-c. 1460), cronista no reinado de D. Duarte, havendo escrito a história dos reis D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Também podemos nos lembrar de João de Barros (c. 1496-c. 1570), tesou- reiro da Casa da Índia, Mina e Ceuta – o que lhe deu a oportunidade de escrever as Décadas da Ásia (1552-1563), que tratam dos descobrimentos portugueses no Oriente. Além das Décadas, João de Barros escreveu a Crônica do Imperador Clarimundo (1520), Ropicapnefma ou Mercadoria Espiritual (1532) e Gramática da Língua Portuguesa (1540). – 29 – O Humanismo No entanto, o escritor que é considerado o maior humanista português, e mesmo um dos maiores da Europa, chamava-se Damião de Góis (1502- -1574). Na função de embaixador de Portugal, ele viajou por vários lugares da Europa, estabelecendo relações com reis, príncipes e diversas figuras de expres- são no cenário político e cultural daquele momento. Por manter contato com Erasmo, Lutero e outros reformadores protestantes, acabou sendo acusado de heresia pela Inquisição. Foi um dos cronistas reais e escreveu Crônica do Felicíssimo Rei D. Manuel (1566-1567) e a Crônica do Príncipe D. João (1567). Podemos ainda citar Fernão Lopes de Castanheda (1500-1559), que escreveu a História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses (1551-1561), ou Fernão Mendes Pinto (c. 1510-1583), autor de Peregrinação (1614), como outros dois importantes prosadores que produziram à sombra do humanismo português. Figura 3 – A Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, do humanista Damião de Góis. No âmbito da prosa, interessa-nos, no entanto, especialmente Bernardim Ribeiro (c.1480 - c.1540), provavelmente o primeiro escritor português a adotar a língua portuguesa na prosa erudita, já que até esse momento apenas Literatura de países de língua portuguesa – 30 – o latim era considerado digno para tanto. Quase nada se sabe da vida de Bernardim Ribeiro, sendo incertas as datas de nascimento e morte. Acredita-se que tenha visitado a Itália na companhia de Sá de Miranda e frequentado o meio literário da corte portuguesa. De sua autoria, chegou-nos alguns poucos versos, o romance (gênero de poema) Ao Longo de uma Ribeira (1550) e a novela Menina e Moça (1554), havendo esta última se transformado em uma referência obrigatória da origem da prosa portuguesa, pois seria a primeira novela pastoril da península Ibérica. Alguns acreditam que Menina e Moça possa ser um roman à clef, isto é, um romance codificado que retrata a própria vida amorosa do autor, já que há muitos possíveis anagramas1 nos nomes das personagens. Por exem- plo, Binmarder seria um anagrama de Bernardim; Natércia, de Caterina; Arima, de Maria; e assim por diante. Menina e Moça é uma “novela senti- mental”, que funciona como uma “cantiga de amigo” ampliada, resultando na visão feminina de uma “novela de cavalaria”. Menina e moça me levaram de casa de minhamãe para muito longe. Que causa fosse então a daquela minha levada, era ainda pequena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que depois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, coitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aven- tura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha. (RIBEIRO, 2002, p. ii). Assim tem início o relato dos diversos sofrimentos amorosos que a nar- radora ouviu contar ou que, em parte, também experimentou. O tom sen- timental, as diversas tramas amorosas e a exacerbação das sensações fizeram com que essa obra se transformasse em referência fundamental, já no século XIX, para os escritores portugueses ligados à escola romântica. 1 Anagrama: transposição de letras de palavra ou frase para formar outra palavra ou frase diferente. – 31 – O Humanismo 2.3 Gil Vicente (c. 1465-c. 1537): a grande figura literária do Humanismo O dramaturgo Gil Vicente caiu nas graças da corte quando, em 1502, a rainha D. Maria assistiu em seu quarto à apresentação do Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, que saudava o nascimento de seu filho, o príncipe D. João. A partir de então, o rei D. Manuel nomeou Vicente como seu mestre de cerimônias, cargo que ele manteve também no reinado de D. João III – o mesmo D. João que o dramaturgo vira nascer – e de quem chegaria a receber terças (pro- priedades feudais) e prêmios. Gil Vicente conseguiu adquirir tanto prestí- gio na corte que, dentro de seu espírito humanista, chegou a censurar os frades de Santarém por expli- carem o terremoto de 1531 como resultado da ira divina. E, em uma carta ao rei, ainda condenou a perseguição impingida aos judeus. Considerado o fundador do teatro português (e mesmo do teatro ibérico, ao lado de Juan del Encina), Gil Vicente é o expoente máximo do humanismo literário português. Pouco se sabe sobre sua vida. Pode ter sido ourives e autor da famosa custódia2 de Belém, obra-prima da ouri- vesaria portuguesa que se encontra atualmente no Museu de Arte Antiga de Lisboa. Mas certamente foi um grande dramaturgo, havendo trabalhado no mínimo durante 34 anos, de 1502 a 1536, data de sua última encenação, compondo cerca de 50 obras. 2 Custódia ou ostensório: receptáculo em que a hóstia fica exposta à adoração dos fiéis. Figura 4 – Gil Vicente, o inventor do teatro português. Figura 5 – A custódia de Belém. Gil Vicente, 1506. Museu nacional de Arte Antiga, Lisboa. Literatura de países de língua portuguesa – 32 – Também sobre as encenações das peças vicentinas pouco se sabe. Algumas provavelmente necessitariam de certa sofisticação material, como o Auto da Lusitânia, em que há a sugestão de que a ação se passa em dois andares distintos. A maioria, no entanto, exigia pouco aparato teatral para ser encenada. 2.3.1 O teatro vicentino e suas fontes A classificação dos autos de Gil Vicente em formas preestabelecidas apresenta uma série de dificuldades. Na edição de suas obras realizada por seu filho Luís Vicente, em 1562, já depois de sua morte, sob o título de Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, a obra vicentina aparece dividida em cinco livros: 2 obras de devoção; 2 comédias; 2 tragicomédias; 2 farsas; 2 obras miúdas (diversas). Porém, muitos estudiosos discordam de tal distribuição porque o pró- prio Gil Vicente se refere a alguns de seus trabalhos como moralidades, evo- cando assim gêneros dramáticos já em desuso no momento de publicação da Copilaçam e oriundos do teatro medieval. O teatro medieval apresentava uma grande diversidade de gêneros, tais como: 2 mistérios– encenações da vida de Cristo, com muitos atores; 2 moralidades – peças curtas com alegorias dos vícios, das virtudes e de outros atributos, ou com tipos morais; 2 milagres – encenações de vidas de santos ou intervenções milagrosas da Virgem; 2 farsas – cenas satíricas de caráter popular; 2 sotties – espécie de farsa protagonizada por parvos3; 3 Indivíduos tolos, bobos. – 33 – O Humanismo 2 sermões burlescos e monólogos – mais curtos que os anteriores, ence- nados por atores ou jograis mascarados com vestes sacerdotais; 2 autos pastoris – éclogas dramáticas ambientadas no campo; 2 tragicomédias – fantasias alegóricas de comemoração áulica ou política; 2 comédias sentimentais cavaleirescas – tratavam do amor aristocrático e tinham final feliz. Em Portugal, há poucos registros da existência de mistérios, moralidades ou milagres antes de Gil Vicente. Em documentos da Igreja, há apontamen- tos sobre possíveis representações, de modo geral indicando alguns excessos e solicitando sua proibição. Todavia, não se especifica a exata natureza de tais encenações. Assim, é de se supor que o dramaturgo tenha buscado o modelo para tais gêneros entre seus contemporâneos espanhóis, mais especifi- camente no dramaturgo castelhano Juan del Encina, de Salamanca. Segundo os historiadores António José Saraiva e Óscar Lopes, o Auto da Visitação, que introduziu Gil Vicente na corte, teve por modelo obras desse dramaturgo espanhol. Vale lembrar que nessa época a corte portuguesa empregava tanto o português quanto o castelhano, uma vez que durante o século XVI todas as rainhas de Portugal eram castelhanas, isto é, nascidas no reino de Castela, na Espanha. Aliás, o próprio Gil Vicente também escreveu obras em castelhano. Assim, não é de se estranhar que ele tenha optado por começar sua produção teatral tomando um autor castelhano como modelo. No entanto, nos trabalhos posteriores, Gil Vicente incorporou diversos novos elementos, muitos já presentes na tradição portuguesa, como o sermão burlesco, as ladainhas, os despropósitos de parvos. Além disso, integrou ele- mentos da realidade portuguesa, por ele atentamente observada. Do exterior, importou ainda a fantasia alegórica do também castelhano Torres Naharro e as moralidades e os mistérios franceses e ingleses (se é que já não esta- vam integrados às encenações portuguesas da época, das quais se têm poucos registros). Além disso, é muito provável que a obra vicentina tenha sofrido influência de narrativas da tradição oral. A partir de tal quadro de referências estéticas, dificilmente a obra de Gil Vicente poderia ser enquadrada em for- mas estanques. Literatura de países de língua portuguesa – 34 – 2.3.2 Classificando as obras vicentinas Como já indicamos, uma das principais dificuldades para os estudiosos da obra de Gil Vicente está na classificação de seus autos em gêneros. Todavia, Óscar Lopes e António José Saraiva procuraram fazer tal classificação e, assim, identificaram cinco grandes grupos de peças, observando que ainda assim uma mesma peça poderia se encaixar em mais de uma categoria. Figura 6 – Capa original da peça Tragicomédia Alegórica do Paraíso e do Inferno. 2 Autos pastoris – autos ambientados no campo, com os mais diver- sos propósitos (Auto Pastoril Castelhano, 1509; Auto de Fé, 1510; Auto da Sibila Cassandra, 1513; Auto da Mofina Mendes, 1515; Auto Pastoril Português, 1523; Templo de Apolo, 1526; Tragicomédia da Serra da Estrela, 1527). – 35 – O Humanismo 2 Autos de moralidade – subdividido em autos que resumem a teolo- gia da Redenção (Auto da Sibila Cassandra, 1513; Auto dos Quatro Tempos, 1513; Auto da Mofina Mendes ou Mistérios da Virgem, 1515; Breve Sumário da História de Deus, 1527) e autos que, de forma acentuadamente alegórica, oferecem um ensinamento reli- gioso ou moral (Auto da Barca do Inferno, 1517; Auto da Alma, 1518, Auto da Barca do Purgatório, 1518; Auto da Barca da Glória, 1519; Auto da Feira, 1526). 2 Farsas – episódios cômicos flagrados na vida depersonagem típica, sendo que, por vezes, não há unidade de ação mas apenas episódios independentes (Auto da Índia, 1509; Velho da Horta, 1512; Quem tem Farelos?, 1515; Farsa de Inês Pereira, 1523; O Juiz da Beira, 1525 ou 1526; Farsa do Almocreves, 1527; O Clérigo da Beira, 1529 ou 1530). 2 Autos cavaleirescos (Comédia de Rubena, 1521; D. Duardos, 1522; Auto de Amadis de Gaula, 1523; Comédia do Viúvo, 1524). 2 Autos alegóricos de temas profanos – uma alegoria central serve de eixo ou de espaço para o desenvolvimento de episódios, cenas, bai- lados (Exortação da Guerra, 1514; Cortes de Júpiter, 1521; Frágua de Amor, 1524; Templo de Apolo, 1526; Nau de Amores, 1527; Triunfo do Inverno, 1529; Romagem de Agravos, 1533). Mas os próprios historiadores sabem que estão fora de tal classificação algumas peças como o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro (1502) ou o Sermão Perante a Rainha D. Leonor (1506), que seriam respectivamente um monólogo e um sermão. Também a Exortação da Guerra ou a Tragicomédia da Serra da Estrela poderiam ser classificadas simplesmente como tragicomédias, assim como os Mistérios da Virgem ou o Breve Sumário da História de Deus, poderiam ser tomados apenas como mistérios. No fundo, à época do dramaturgo os gêneros eram muitos e não pos- suíam uma definição única e rigorosamente normatizada. Desse modo, con- taminavam-se uns aos outros: um auto de moralidade difere razoavelmente de um sermão burlesco ou de um monólogo, mas nem sempre é fácil distin- guí-lo de um auto pastoril, de um auto de milagre ou mesmo de uma farsa. Literatura de países de língua portuguesa – 36 – 2.3.3 As força dos personagens vicentinos Por muito tempo, a tradição crítica afirmou que Gil Vicente não cons- truiu personagens com densidade psicológica capazes de se individuali- zarem por suas características. Mas o que dizer de personagens como Inês Pereira, por exemplo, que tem vontade e evolução própria dentro da farsa, ou de Constança, a adúltera senhora do Auto da Índia, ou de Oriana, da Tragicomédia de Amadis de Gaula, cujo titubear em crer no amor de Amadis a leva a viver um dos mais belos “dramas psicológicos” do teatro cavaleiresco? Portanto, fica difícil falar em total falta de densidade psicológica. De qualquer modo, a tônica dominante na elaboração dos personagens vicentinos está em caracterizar tipos sociais, ou construir alegorias, quando não se apropria de figuras da história mítica ou religiosa. O interessante é que, com tal procedimento, Gil Vicente acaba por deli- near tipos sociais que ainda hoje têm muita vitalidade, com os quais podemos nos deparar a qualquer momento. De fato, há em seus personagens a univer- salização de certos traços de caráter do homem dito ocidental. Representam, assim, alguns comportamentos morais que se tornaram exemplares, no bom ou no mau sentido – geralmente no mau. Os personagens vicentinos mais comuns são: 2 tipos sociais – o parvo (o bobo), o pastor, a moça da vila, a alcovi- teira, o camponês, o escudeiro, o frade folião etc.; 2 personificações alegóricas – Roma (representando a Igreja) estações do ano etc.; 2 personagens bíblicas e míticas – profetas, deuses greco- -romanos etc.; 2 figuras teológicas – santo Agostinho, são Tomás de Aquino, são Gregório ou são Martinho. Quando o dramaturgo português começou a escrever, os gêneros do tea- tro medieval já se encontravam um tanto mesclados, como vimos. Todavia, pelo que foi exposto, ao menos em linhas gerais, é possível saber o que é uma moralidade ou uma farsa a fim de que possamos analisar duas peças muito famosas: O Velho da Horta e o Auto da Barca do Inferno. A primeira (uma – 37 – O Humanismo farsa) é um episódio cômico flagrado na vida de uma personagem típica. A segunda (uma moralidade) é um auto que, de forma alegórica, oferece um ensinamento religioso ou moral. 2.3.3.1 O Velho da Horta A farsa O Velho da Horta foi representada pela primeira vez em 1512. Trata da súbita paixão do Velho agricultor pela Moça que vem comprar ver- duras em sua horta. Observe-se que ninguém tem nome próprio: são tipos sociais. A já experiente Moça, ao perceber a paixão do Velho, passa a zombar dele, estimulando-o com frases ambíguas. Mesmo censurado pela Mulher, ele mantém sua paixão. Em meio a isso, aparece a Alcoviteira, que passa a fazer a suposta mediação entre o Velho e a jovem. No entanto, a Alcoviteira apenas deseja tomar aos poucos todos os bens do Velho. Ao final, ela acaba sendo presa e o Velho toma conhecimento de que a Moça se casara com um belo rapaz, de modo que termina a peça infeliz e arrependido de ter gastado com uma ilusão amorosa tudo o que acumulara para a família. Figura 7 – O Velho da Horta, montada pelo Grupo Polícromo Alecrim, na Mostra Rio-São Paulo de Teatro de Rua de Paraty em 2005. Fonte: Divulgação. Literatura de países de língua portuguesa – 38 – Aqui a crítica recai sobre a então incipiente classe burguesa, que ainda possuía um estreito vínculo com o campo. Note-se que toda a ação se passa na horta, com poucos personagens em cena, todos eles vestidos sem qualquer ostentação. Isso fazia com que a peça pudesse ser representada em qualquer lugar, sem grande aparato ou dificuldade. É também fácil observar que há um claro distanciamento dos princí- pios dramáticos clássicos, que, em seu conjunto, postulam que uma peça se construa a partir de uma lógica interna: todos os personagens, todas as cenas, todas as ações têm de ser muito bem amarradas, fazendo com que nada fique solto ou sem explicação clara. Em O Velho da Horta a entrada e a saída de alguns personagens não são muito claras. O tempo em que transcorre toda a ação da peça – um dia – é muito pouco para que o Velho se apaixone, seja explorado pela Alcoviteira e ainda se arrependa de perder suas economias. Apenas o espaço respeita a unidade aristotélica. A peça caminha quadro a quadro, sem que a motivação de um para o outro seja devidamente amarrada. Quando os guardas chegam para prender a Alcoviteira, por exemplo, a situa- ção é um tanto inverossímil, pois não ficamos sabendo quem denunciou sua exploração sobre o Velho. Todavia, o efeito surpresa que isso acarreta é mais forte e mais cômico do que se fôssemos preparados para tanto. Os princípios clássicos logo passariam a ser muito valorizados em Portugal, definindo assim uma nova estética renascentista. Mas é importante lembrar que, de modo efetivo, o renascentismo só chegaria a Portugal 14 anos depois da estreia de O Velho da Horta: como vimos, isso ocorreu em 1526, quando o poeta Sá de Miranda retornou a Lisboa, depois de sua viagem de estudos à Itália, trazendo na bagagem todo o ideário estético renascentista. De qualquer modo, Gil Vicente jamais aderiu plenamente a ele, embora seja considerado, como já referido, o principal autor dos primórdios do Renascimento em Portugal, pois o dramaturgo foi sempre fiel ao seu huma- nismo – este sim em sintonia com o mundo mental renascentista, conforme discutiremos adiante – bem como às formas do teatro de tradição medieval. Lembremos ainda, com relação às farsas, que algumas delas não traba- lham só com quadros, mas se prendem a um enredo mais denso. É o caso, por exemplo, da famosa Farsa de Inês Pereira, peça muito conhecida. Ali há toda uma progressão da ação: – 39 – O Humanismo 2 Inês deve se casar; 2 é apresentada, mas rejeita Pero Marques, por ser ele simples e pobre; 2 aceita se casar com um elegante escudeiro; 2 desilude-se com esse escudeiro e sofre muito; 2 fica viúva e acaba por se casar com Pero Marques. Mas se a ação lembra a trama de uma comédia clássica, o tratamento dado ao tempo não traz aquela amarração exigida pela tradição greco-ro- mana. No mesmo momento em que conhece o escudeiro, Inês se casa com ele. No momento seguinte, o marido parte para África. Logo em seguida, já se passaram três anos e chega a notícia de sua morte. Como se vê, tudo com uma amarração bastante frágil, o que demonstra como o teatrovicentino não é nada homogêneo, explorando diversas variações dentro do repertório dos gêneros dramáticos medievais. Vale ainda lembrar que, apesar de se tratar de uma farsa, em O Velho da Horta há momentos de algum lirismo. Mesmo sendo ridicularizado em sua paixão, algumas falas do Velho trazem consigo uma quase renascentista concepção do amor, que é tomado como um sentimento paradoxal, um mal maior do que a morte, mas que todos desejam em vida: “O maior risco da vida e o mais perigoso é amar, que morrer é acabar e amor não tem saída [...].” (VICENTE, 2008). A crítica ao comportamento do Velho que está embutida na peça tem, naturalmente, uma base católica, pois condena o amor de um homem maduro e casado por uma jovem solteira. Mas também há um alerta para nossa fragilidade emocional, revelando como estamos todos sujeitos a trans- gredir as regras em qualquer fase de nossas vidas, isto é, há um alerta de que a paixão humana é algo sempre vivo e imprevisível, precisa ser domado pela razão constantemente, até o último dos nossos dias. O Velho é ridicularizado em seu amor, mas, ainda que fadado ao fracasso, esse amor aparece como profundo e verdadeiro. 2.3.3.2 Auto da Barca do Inferno O Auto da Barca do Inferno foi representado pela primeira vez prova- velmente em 1517, na Semana Santa, no quarto da rainha D. Maria (ela se Literatura de países de língua portuguesa – 40 – encontrava enferma de um mal que a mataria) tal como ocorrera com o Auto da Visitação, 15 anos antes. Figura 8 –Ilustração de cena do Auto da Barca do Inferno. Embora muito provavelmente não tenha sido escrita para compor uma trilogia, o grande sucesso obtido por sua representação inspirou o dramaturgo a redigir duas outras peças, o Auto da “Praia” do Purgatório e o Auto da Barca da Glória. Assim, os três autos contemplam os três lugares em que um cristão, após a morte, pode ter por morada: o inferno, o purgatório e o paraíso. O Auto da Barca do Inferno se passa em uma praia. Dois barcos esperam os que acabaram de morrer para os levar ou para o paraíso ou para o inferno, havendo uma sucessão de cenas envolvendo aqueles que chegam e também o Diabo e o Anjo, que recebem a todos. A condenação e a salvação de cada um é decidida de acordo com sua vida terrena. Os que chegam são o Fidalgo, o Onzeneiro (agiota), o Parvo, o Sapateiro, o Frade, Florença (amante do frade), Brísida Vaz (alcoviteira), o Judeu, o Corregedor, o Enforcado (ladrão) e quatro Cavaleiros. Desse modo, a peça é um conjunto de cenas sobrepostas, ligadas pelas figuras do Diabo e do Anjo. – 41 – O Humanismo No Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente critica as três instâncias sociais do mundo medieval: nobreza, clero e trabalhadores, salvando apenas o Parvo e os Cavaleiros, realmente dignos desse nome. Tal como na farsa O Velho da Horta, os personagens são em sua maioria tipos sociais. Todavia, quem pro- tagoniza a cena são figuras alegóricas do bem e do mal (o Anjo e o Diabo). Assim, diferentemente do que encontramos em uma farsa, temos aqui o recurso da alegoria, com uma fundamentação religiosa explícita, isto é, temos um auto de moralidade. Note-se como cada um dos personagens possui uma forma de lingua- gem própria, que a caracteriza. O Fidalgo fala de forma elegante e arrogante ao Anjo, revelando sua falta de respeito e amor ao próximo: Que me leixeis embarcar: sou fidalgo de solar, é bem que me recolhais. (VICENTE, 2008) Já o Parvo assim diz ao Diabo: Ò inferno?... Era má... Hiu, hiu, barca do cornudo, Pêro Vinagre, beiçudo, rachador d’Alverca, huhá. Sapateiro da Candosa! Antecosto de carrapato! Hiu, hiu! Caga no sapato, filho da grande aleivosa! (VICENTE, 2008) Como se vê, o Parvo emprega muitas interjeições e uma linguagem de baixo calão, demonstrando sua grosseria, mas também uma alma pura, ao reconhecer e atacar fortemente o Diabo. Os trechos dedicados aos nobres e ao clero são mais longos, pois são os dois grupos mais criticados no decorrer da ação. O auto apresenta uma óbvia função moralizadora e os valores morais ali presentes são medievais e cristãos, impregnados por valores humanistas. Literatura de países de língua portuguesa – 42 – É curioso notar que os motivos que os diversos passageiros alegam para sua salvação são justamente aqueles que os condenam, revelando o descom- passo entre a ordem humana e a ordem divina. Também é fácil observar que o papel desempenhado pelo Diabo é o de agente moralizador da fé cristã, sendo até mesmo mais eficiente que o Anjo. Uma sutileza: o Judeu é rejeitado até mesmo pelo Diabo e não pode embarcar (mantém sua condição de errante) – o que de alguma forma o pre- serva, mesmo que duplamente condenado. Retomando aqui a já mencionada defesa que Gil Vicente fez dos judeus junto ao rei, podemos compreender que mantenha essa figura social em um lugar nebuloso e impreciso, fora dos padrões cristãos de julgamento. A salvação dos Cavaleiros (que, por terem morrido nas batalhas das Cruzadas contra os infiéis, são merecedores do Céu) tem fundamentação na ideologia da Igreja, mas também na ética da cavalaria medieval: eles são salvos por serem corajosos, íntegros e, sobretudo, por terem lutado contra os infiéis. Notemos finalmente que há elementos farsescos nas figuras do Diabo e do Parvo, o que aponta para a contaminação de gêneros que já mencionamos várias vezes. 2.3.4 A vertente de crítica social da obra vicentina Para entendermos melhor a crítica social que as obras de Gil Vicente veiculam, primeiramente é necessário entender em que mundo de ideias ele viveu. Se analisarmos a estratificação da sociedade medieval, encontraremos três instâncias sociais: 2 aqueles que oram (oratore) – os clérigos; 2 aqueles que lutam (belatore) – os nobres e cavaleiros; e 2 aqueles que laboram (laboratore) – os camponeses. São três categorias distintas e complementares, e cada uma delas tem necessidade das outras duas. O seu conjunto forma o harmonioso corpo da sociedade, praticamente havendo trânsito entre esses grupos, isto é, há pou- quíssima mobilidade social. – 43 – O Humanismo Todavia, em fins da Idade Média, com o surgimento do capitalismo comercial, tal ordem começou a mudar. O acúmulo de riquezas nos reinos estimulou o crescimento da classe dos comerciantes e da classe de trabalha- dores que prestavam serviços aos nobres. O saber prático e especulativo, sem intenção teológica, começou a ser valorizado e, por conta disso, houve uma reabilitação dos valores clássicos (pagãos) de raiz greco-romana. Muitos homens que se encontravam fora da hierarquia clerical (isto é, fora do grupo daqueles que oravam) passaram a exercer atividades letradas, buscando conhe- cimentos práticos – e passaram a ser chamados de humanistas, isto é, homens que acreditavam em um conjunto de valores morais e estéticos universais para todos os seres humanos, valores que poderiam ser encontrados tanto nas Escrituras quanto na cultura da Antiguidade Clássica. Por tudo isso, a crítica social presente na obra de Gil Vicente tem forte base humanista, mas ainda guarda vínculo com os valores medievais. No aspecto social, ao mesmo tempo em que percebe que o lavrador é a base econômica, o autor deseja que a sociedade se mantenha estática e tradicional, temendo que a mudança do homem do campo para a cidade venha a desca- racterizar tal sociedade – procurando sempre uma mediação entre os valores da Corte e os valores populares. Dessa forma, Gil Vicente representa uma perspectiva crítica, mas con- servadora, acerca da sociedade portuguesa. Para resumir, podemos dizer que ele ridiculariza: 2 os padres porque pregam uma coisa e fazem outra; 2 os escudeiros porque imitam e parasitam a nobreza; 2 os fidalgos, magistrados e administradores porque se consideram acima das leis. Já em relação à Corte, ora a ridiculariza, ora a elogia. Assim também procede com os judeus. Já em relação aos parvos e aos lavradores, tem por eles toda a simpatia. Traçando um retratobastante crítico da sociedade portuguesa do século XVI, no entanto ele não deixa de ter no tripé sacerdotes-nobres/cavaleiros- -camponeses sua referência primordial de sociedade, na qual, no entanto, o Literatura de países de língua portuguesa – 44 – homem letrado poderia substituir o sacerdote, muitas vezes com maior pro- veito. Foi exatamente o que fez Gil Vicente. Dicas de estudo 2 As peças de Gil Vicente são muito reencenadas. Veja se na sua cidade não há nesse momento montagem delas. 2 Há um romance de Fernando Campos intitulado A Sala das Perguntas (1998), publicado pela Difel, que retrata a vida do humanista Damião de Góis. Atividades 1. Qual a maior ruptura promovida pelo humanismo no pensamento dos séculos XV e XVI em Portugal? 2. Por que é difícil classificar a obra de Gil Vicente? 3. Quais os subgêneros que caracterizaram a prosa humanista portuguesa? Classicismo: 1527-1580 Uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo. Marcel Proust 3.1 A Renascença Portuguesa Mar Portuguez (PESSOA, 1986) Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos, quantas mães choraram, Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar Para que fosses nosso, ó mar! Valeu a pena? Tudo vale a pena Se a alma não é pequena! Quem quere passar além do Bojador 3 Stélio Furlan José Carlos Siqueira Literatura de países de língua portuguesa – 46 – Tem que passar além da dor. Deus ao mar o perigo e o abismo deu, Mas nele é que espelhou o céu. “Mar Portuguez”, poema de Fernando Pessoa publicado no livro Mensagem (1934), evoca o espírito de conquista que marcou a época das Grandes Navegações oceânicas. Se em um primeiro momento ques- tiona o valor pago pela ousadia daqueles empreendimentos marítimos, na segunda estrofe ele valida o esforço e adverte que para vencer o medo se faz necessária a coragem de enfrentar o desconhecido, os “perigos e abis- mos”. Ultrapassar o “Bojador” significava ir além daquele limite geográfico (situado na costa ocidental da África) conhecido pelos navegadores euro- peus no final período medieval. Figura 1 – Portugaliae (Portugal) no atlas Theatrum Orbis Terrarum (Teatro do mundo), Abraham Ortelius (1579?). Biblioteca do Congresso. Divisão de Geografia e Mapas. Uma das mais decisivas expedições marítimas foi a capitaneada por Vasco da Gama, ocorrida entre 1497 e 1499 e resultando na descoberta da tão ansiada rota marítima para as Índias. A partir desse momento até meados do século XVI, Portugal alcançou o seu apogeu e tornou-se o “cais do mundo”. Como veremos, Os Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, publicado em Lisboa no ano de 1572, canta essa façanha que “transformou a face do mundo” (Fernando Pessoa), e faz isso em um estilo “grandíloco e corrente”. – 47 – Classicismo: 1527-1580 3.2 Os gêneros clássicos Os Lusíadas é considerado a epopeia universal da era moderna. Mas o que se entende por epopeia? O que a diferencia da poesia lírica? Entre as características principais da poesia lírica, afora a expressão dos sentimentos do poeta sobre assuntos cotidianos (logo, a expressão da “pri- meira pessoa do singular do tempo presente”), menciona-se a brevidade e o poder de concisão. O termo lírico deriva das origens desse tipo de poesia, antigamente entoada ou falada com o acompanhamento de um instrumento de cordas – a lira. Dessa associação nasceu uma de suas marcas registradas: a preocupação com a modulação sonora do texto. Vejamos um poema lírico de Camões: Amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente; é dor que desatina sem doer. É um não querer mais que bem querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder. (CAMÕES, 2008) Com efeito, quando lemos os versos desse soneto a musicalidade do texto se efetiva graças à seleção vocabular que explora os dígrafos nasalados (am, um,em, em, in), ao uso da anáfora (repetição de versos na mesma posição na estrofe – “é um”, “É um”) e da aliteração (repetição de consoantes: “con- tentamento descontente”, “dor que desatina”), e enfim à identidade sonora das últimas palavras nos versos (rimas) e a rigorosa versificação. É o que se pode chamar de uma autêntica partitura lírica. 3.2.1 Conceito de epopeia Embora a preocupação com a qualidade sonora dos versos e a expressão de anseios pessoais não destoe da epopeia camoniana, vale dizer que ela se dis- tancia da poesia lírica por ser uma longa narrativa versificada com significação nacional e universal. O nome épico deriva do grego épos (“palavra, notícia, oráculo”) e poiein (“fazer”). Enquanto gênero literário, toda epopeia deve ser Literatura de países de língua portuguesa – 48 – uma glorificação, no mais alto estilo poético, de fato heroico e maravilhoso. A definição proposta por Hegel (1770-1831) calha à perfeição: A epopeia, quando narra alguma coisa, tem por objeto uma ação que, por todas as circunstâncias que a acompanham e as condições nas quais se realiza, apresenta inumeráveis ramificações pelas quais con- tata com o mundo total de uma nação ou de uma época. É, portanto o conjunto da concepção do mundo e da vida de uma nação que [...] cons- titui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito. (HEGEL, 2004, p. 91, grifos nossos) Então caberia perguntar: qual universalidade de Os Lusíadas? A narra- ção de certa travessia marítima possui tal dimensão? Para além de uma sim- ples navegação, trata-se de uma verdadeira experiência oceânica. No plano horizontal, afora a celebração das glórias portuguesas, canta-se o início das relações marítimas entre Ocidente e Oriente. No plano vertical, há a repre- sentação do sistema total do universo, a engrenagem do mundo. 3.3 Épica: Os Lusíadas, um prodígio arquitetônico A rigor, não se pode discorrer sobre Os Lusíadas em algumas poucas pági- nas, tal a sua complexidade estrutural, a diversidade de segmentos narrativos e de narradores, as diferentes concepções de mundo da época, o diálogo com os textos canônicos, a singular utilização da linguagem poética. Vamos privilegiar alguns aspectos que consideramos relevantes para a compreensão do plano geral da obra. O estudo da obra camoniana e dos poetas representativos do Classicismo implica observar a emulação dos nomes consagrados da tradição, noutras palavras, a necessária imitação dos antigos. Se na poesia lírica Camões toma de empréstimo versos de Petrarca para recriá-los em outras variações, na épica Camões colhe elementos das antigas epopeias. Assim como Homero cele- brou os feitos dos gregos na Ilíada; assim como Virgílio cantou a grandeza de Roma e sua origem na Eneida, Camões enalteceu as glórias lusitanas. Observe as estrofes de abertura no primeiro canto de Os Lusíadas1: 1 As estrofes (ou estâncias) citadas ao longo desta aula foram da edição da Nova Fronteira, 1993, por conta da adaptação ao português contemporâneo, que sem alterar a forma poética resultou em um texto mais fluente para o leitor moderno. – 49 – Classicismo: 1527-1580 As armas e os barões assinalados Que, da Ocidental praia Lusitana, Por mares nunca de antes navegados Passaram ainda além da Taprobana, E em perigos e guerras esforçados Mais do que prometia a força humana, E entre gente remota edificaram Novo Reino, que tanto sublimaram. E também as memórias gloriosas Daqueles Reis que foram dilatando A Fé, o Império, e as terras viciosas De África e de Ásia andaram devastando, E aqueles que por obras valerosas Se vão da lei da Morte libertando: — Cantando espalharei por toda a parte Se a tanto me ajudar o engenho e arte. (CAMÕES, 1993, I, 1-2) Glossário: Ocidental praia lusitana: a cidade de Lisboa. Taprobana: o atual Sri-Lanka, ilha no oceano Índico. Daqueles Reis: Reis de Portugal que serão lembrados nos cantos III e IV. O verso inaugural revela o propósito do poema épico: celebrar as con- quistas heroicas e os nobres guerreirosassinalados ou escolhidos por Deus. Em seguida, justifica a importância da sua escolha: celebrar os varões que partiram do litoral português, ultrapassaram os limites do mundo conhecido e, com bravura e coragem, dominaram e construíram o novo reino tão dese- jado, o império português na Ásia. Na segunda estrofe, o narrador amplia o tema: não só os bravos navega- dores e seus feitos militares, mas também a memória, o passado dos reis por- tugueses que ampliaram os domínios da pátria e contribuíram para a expan- são do cristianismo, portanto merecedores de “entrar para a história”, de ter os seus nomes imortalizados pelo trabalho poético. Literatura de países de língua portuguesa – 50 – Nos dois últimos versos da segunda estrofe, o narrador faz alusão ao “engenho” (a capacidade de criação, o pensamento) e à “arte” (o conheci- mento das técnicas de composição, na esteira da poesia de extração clássica). É o que se percebe logo na primeira estrofe, em oitava rima ou oitava real, pois é formada de oito versos decassílabos, com esquema regular de rimas: 2 a primeira palavra rima com a terceira e com a quinta; 2 a segunda palavra rima com a quarta e com a sexta; 2 e as duas últimas palavras possuem a mesma identidade sonora. Esse é o esquema abababcc. Ao longo dos dez cantos que dividem o plano geral de Os Lusíadas, essa forma fixa de composição se repete 1.102 vezes, somando um total de 8.816 versos. 3.3.1 Partes da epopeia Os dez cantos da epopeia camoniana são estruturados conforme as cinco partes necessárias de uma epopeia: 2 proposição – definição do assunto; 2 invocação – súplica às divindades da poesia para que auxiliem na criação do poema; 2 dedicatória – oferecimento da obra (no caso, em homenagem ao Rei D. Sebastião); 2 narração – sucessão dos episódios que formam a narrativa; 2 epílogo – as considerações finais. Já abordamos a proposição e, assim, vamos aos outros elementos. 3.3.1.1 Invocação No caso da invocação, a exemplo de Homero que invocava Calíope, divindade grega que dirigia a atividade poética, Camões solicita o auxílio das Tágides, as ninfas do rio Tejo, para que elas lhe concedam entusiasmo para que a obra resulte tão elevada quanto o assunto proposto: – 51 – Classicismo: 1527-1580 E vós, Tágides minhas, pois criado Tendes em mim um novo engenho ardente, Se sempre, em verso humilde, celebrado Foi de mim vosso rio alegremente, Dai-me agora um som alto e sublimado, Um estilo grandíloquo e corrente, Por que de vossas águas Febo ordene Que não tenham inveja às de Hipocrene. (CAMÕES, 1993, I, 4) Glossário: Cerso humilde: a poesia lírica. Sublimado: elevado. Grandíloquo: nobre, altissonante. Febo ou Apolo: deus do sol e da poesia. O narrador sugere nos dois últimos versos que os feitos dos novos argo- nautas (o navegador Vasco da Gama e seus companheiros de viagem) rivali- zam com o dos navegadores antigos. Em outras palavras, que o poema auxi- liado pelas Tágides será tão sublime quanto os inspirados pela lendária fonte da Antiguidade (Hipocrene) que concedia o dom da poesia a quem bebesse de suas águas. 3.3.1.2 Dedicatória Na dedicatória, que ocupa 13 estrofes, o narrador se dirige a D. Sebastião, rei de Portugal: E vós, ó bem nascida segurança Da Lusitana antiga liberdade, E não menos certíssima esperança De aumento da pequena Cristandade (CAMÕES, 1993, I, 6) Convém notar, nesses versos da sexta estrofe, a imagem proposta para D. Sebastião justamente como um barão assinalado: a um só tempo, segurança Literatura de países de língua portuguesa – 52 – de autonomia política e esperança de difusão do Cristianismo. Note-se que essa é uma imagem de D. Sebastião no campo da fabulação, uma imagem romanceada, pois seis anos após a publicação de Os Lusíadas, em uma ten- tativa de alargar a Fé e o Império, o rei desapareceu em meio a uma desas- trada campanha militar em Alcácer Quibir, no Marrocos. Em consequência, Portugal perdeu sua autonomia política, sendo governado pela Espanha até 1640, quando ocorreu a chamada Restauração. 3.4 Os Lusíadas: episódios Cumpridas as primeiras etapas da epopeia, Camões solta as asas da imaginação e brinda o leitor com uma história fabulosa. O fascínio da obra decorre menos do relato da história nacional dos portugueses e mais do modo como Camões articula o enredo, no qual contracenam seres humanos e deu- ses olímpicos. A narração da viagem começa já com as naus navegando em alto-mar, com ventos favoráveis. Nesse momento, os deuses do Olimpo reúnem-se em concílio para deliberarem sobre a jornada, uma vez que sobre ela não havia consenso. A viagem despertara a admiração e o afeto de Vênus, a deusa do amor, que identificara nos novos argonautas a mesma ousadia dos antigos navegadores. Ao longo de toda a viagem, ela intervém a favor dos lusita- nos, advertindo-os dos ardis de Baco, acalmando tempestades e por aí afora. Assim, na obra se articulam dois planos: 2 o plano da história de Portugal e da viagem propriamente dita; e 2 o plano do maravilhoso, com a intriga entre deuses pagãos. 3.4.1 Velho do Restelo Convém notar que, se em Os Lusíadas há a celebração do valor de um povo que expande o mundo geograficamente – “No largo do mar fazendo novas vias” (Canto V, 66), “E, se mais mundo houvera, lá chegara” (Canto VII, 14) –, não se pode conceber esse poema como puramente laudatório das armas e dos barões assinalados de Portugal. Ao preservar as vozes dissonantes sobre o propósito das navegações, Camões se revela atento ao vasto rumor – 53 – Classicismo: 1527-1580 discursivo que o circundava. É o caso do Velho do Restelo, que, no episódio da partida das naus (Canto IV), dá voz ao seu descontentamento de modo a ser ouvido claramente pelo povo e pelos nautas. Leia-se: — “Ó glória de mandar! Ó vã cobiça Desta vaidade a quem chamamos Fama! Ó fraudulento gosto, que se atiça C’oa aura popular que honra se chama! Que castigo tamanho e que justiça Fazes no peito vão que muito te ama! Que mortes, que perigos, que tormentas, Que crueldades nele exprimentas! ( CAMÕES, 1993, IV, 95) Glossário: C’oa: com uma. Entre as possibilidades de leitura desse episódio, citamos em segunda mão Afrânio Peixoto, para o qual ele seria [...] representativo do espírito conservador português das populações do Norte – eminentemente afeitas à terra –, em oposição a índole aventureira e comercial das populações do Sul – de vocação para o mar e impelidas por uma inquietação permanente [...] (BECHARA; SPINA, 2001, p. 21) Outros estudiosos afirmam que o Velho do Restelo foi criado para expressar o veio crítico de Camões, dissimulando o seu ponto de vista sobre aquela aventura lusitana. Por certo, afora o Velho do Restelo – que com “um saber só de expe- riências feito” (Canto IV, 94) tece uma alocução condenatória da aventura portuguesa e à política mercantilista –, outro episódio que problematiza o ufanismo acrítico é a história de Inês de Castro. Não se trata de uma história só de feitos militares e marítimos, portanto, mas também de amores frustra- dos ou não. Com os episódios da personagem histórica Inês de Castro e da figura mitológica do gigante Adamastor, Camões canta os mártires do amor. Literatura de países de língua portuguesa – 54 – 3.4.2 Inês de Castro A história de Inês de Castro é um dos temas de maior repercussão na literatura portuguesa, do medievo aos dias atuais. Há muitas variações sobre esse tema. Camões retoma o assunto histórico para adorná-lo com engenho e arte. Figura 2 – PINHEIRO, Columbardo Bordalo. Drama de Inês de Castro. 1901- -1904. 1 óleo sobre tela: color.; 196 x 246 cm. Museu Militar de Lisboa. Em poucas linhas, trata-se de uma paixão proibida entre o príncipe D. Pedro e Inês de Castro, dama de companhia de sua esposa. D. Pedro mandou construir um palácio em Coimbra, onde manteve uma ardente relação secreta com Inês, com quem teve filhos. Após desaprovação geral, o rei Afonso IV, pai do príncipe, ouviu o murmurar da nobreza e,
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