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Profª. Cristiane Literatura Página 1 de 23 Modernismo no Brasil 1. Semana de 22 e os manifestos posteriores Que importa que o homem amarelo ou a paisagem louca, ou o Gênio angustiado não sejam o que se chama convencionalmente reais? O que nos interessa é a emoção que nos vem daquelas cores intensas e surpreendentes, daquelas formas estranhas, inspiradoras de imagens e que nos traduzem o sentimento patético ou satírico do artista. Excerto da Conferência com que Graça Aranha inaugurou a Semana de Arte Moderna, no Teatro Municipal de São Paulo, em 13 de fevereiro de 1922. 1.1 - Antecedentes da Semana O homem amarelo, óleo s/ tela (61x51). 1915-16. Coleção Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros, USP, SP. O Modernismo no Brasil se polarizaria em torno de artistas que propunham uma nova expressão. Em 1917, Anita Malfatti protagonizou uma exposição de quadros já influenciados pelas novas tendências estéticas que se proliferavam na Europa e foi injustamente criticada por Monteiro Lobato, num artigo intitulado “Paranoia ou mistificação?”. O espírito conservador de Lobato não alcançou a novidade dos elementos estéticos pós- impressionistas, especialmente cubistas e expressionistas, utilizados por Malfatti em suas obras. Oswald de Andrade e Menotti del Picchia defenderam-na prontamente. Entre 1917 e 1922, os futuros organizadores da Semana de Arte Moderna se constituíram como um grupo jovem e atuante no meio literário paulista: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo. Com o apoio de intelectuais cariocas como Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho e Villa-Lobos. A partir da adesão do já prestigiado Graça Aranha, o grupo se lançou como movimento. 1.2 - A Semana de Arte Moderna Teatro Municipal de São Paulo Entre 11 e 18 e fevereiro de 1922, realizou-se no Teatro Municipal de São Paulo a Semana de Arte Moderna. Nesse período, o Teatro permaneceu aberto para uma grande exposição, e, nos dias 13, 15 e 17, houve também espetáculos. 13.02.1922 Graça Aranha abriu a Semana com um discurso intitulado “A emoção estética na Arte Moderna”. Leia o excerto inicial. Para muitos de vós, a curiosa e sugestiva exposição que gloriosamente inauguramos hoje é uma “aglomeração de horrores”. Aquele Gênio supliciado, aquele homem amarelo, aquele carnaval alucinante, aquela paisagem invertida, se não são jogos da fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente desvairadas interpretações da natureza e da vida. Não está terminado o vosso espanto. Outros “horrores” vos esperam. Daqui a pouco, juntando-se a esta coleção de disparates, uma poesia liberta, uma música extravagante, mas transcendente, virão revoltar aqueles que reagem movidos pelas forças do Passado. Para estes retardatários, a arte ainda é o Belo. Nenhum preconceito é mais perturbador à concepção da arte que o da Beleza. Os que imaginam o belo abstrato são sugestionados por convenções forjadoras de entidades e conceitos estéticos sobre os quais não pode haver uma noção exata e definitiva. Cada um que se interrogue a si mesmo e responda que é a beleza? Onde repousa o critério infalível do belo? A arte é independente deste preconceito. É outra maravilha que não é a beleza. É a realização da nossa integração no Cosmos pelas emoções derivadas dos nossos sentidos, vagos e indefiníveis sentimentos que nos vêm das formas, dos sons, das cores, dos tatos, dos sabores e nos levam à unidade suprema com o Todo Universal. Por ela sentimos o universo, que a ciência decompõe e nos faz somente conhecer pelos seus fenômenos. Por que uma forma, uma linha, um som, uma cor nos comovem, nos exaltam e transportam ao universal? Eis o mistério da arte, insolúvel em todos os tempos, porque a arte é eterna e o homem é por excelência o animal artista. O sentimento religioso pode ser transmudado, mas o senso estético permanece inextinguível, como o Amor, seu irmão imortal. O Universo e os seus fragmentos são sempre designados por metáforas e analogias, que fazem imagens. Ora, esta função intrínseca do espírito humano mostra como Profª. Cristiane Literatura Página 2 de 23 a função estética, que é a de idear ou imaginar, é essencial à nossa natureza. Graça Aranha. In: Gilberto Mendonça Teles, op. cit., p. 280. Seguiram-se ao discurso apresentações musicais e declamatórias e, num segundo momento, houve uma conferência de Ronald de Carvalho. 15.02.1922 Esta foi a grande noite da Semana. Como já era previsto, houve algazarra e a balbúrdia derrubou o sarau que ocorreria após discurso de Menotti del Picchia. Vinte anos depois, Mário de Andrade confessa que não sabe como teve coragem de declamar seus versos “diante de uma vaia tão bulhenta que não escutava, no palco, o que Paulo Prado lhe gritava da primeira fila das poltronas”1. Apesar de Manuel Bandeira não ter participado ativamente da Semana, seu poema “Os sapos” foi declamado por Ronald de Carvalho nas escadarias no Teatro, sob os assobios e a gritaria do público. Conheça o poema na íntegra, crítica ao perfeccionismo formal dos parnasianos: Os sapos Enfunando os papos, Saem da penumbra Aos pulos, os sapos. A luz os deslumbra. Em ronco que aterra, Berra o sapo-boi: – “Meu pai foi à guerra!” – “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”. O sapo-tanoeiro, Parnasiano aguado, Diz: – “Meu cancioneiro É bem martelado. Vede como primo Em comer os hiatos! Que arte! E nunca rimo Os termos cognatos. O meu verso é bom Frumento sem joio Faço rimas com Consoantes de apoio. Vai por cinquenta anos Que lhes dei a norma: Reduzi sem danos A formas a forma. Clame a saparia Em críticas céticas: Não há mais poesia Mas há artes poéticas..” Urra o sapo-boi: – “Meu pai foi rei” – “Foi!” – “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!” Brada em um assomo O sapo-tanoeiro: 1 Mário de Andrade. O movimento modernista. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1942, p. 15. – "A grande arte é como Lavor de joalheiro. Ou bem de estatuário. Tudo quanto é belo, Tudo quanto é vário, Canta no martelo.” Outros, sapos-pipas (Um mal em si cabe), Falam pelas tripas: – “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”. Longe dessa grita, Lá onde mais densa A noite infinita Verte a sombra imensa; Lá, fugindo ao mundo, Sem glória, sem fé, No perau profundo E solitário, é Que soluças tu, Transido de frio, Sapo cururu Da beira do rio... Manuel Bandeira, Estrela da vida inteira. 25 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 80-81. 17.02.1922 No último dia, houve a apresentação musical de Villa-Lobos, com um público já bastante reduzido. O maestro estreou como “modernista” entre vaias e urros de uma plateia, como já se viu, atrelada aos modelos tradicionais. Sobre o evento, comenta Alfredo Bosi: A grande noite da Semana foi a segunda. A conferência de Graça Aranha, que abriu os festivais, confusa e declamatória, foi ouvida respeitosamente pelo público, que provavelmente não a entendeu, e o espetáculo de Villa- Lobos, no dia 17, foi perturbado, principalmente porque se supôs fosse “futurismo” o artista se apresentar de casaca e chinelo, quando o compositor assim se calçava por estar com um calo arruinado... Mas não era contra a música que os passadistas se revoltavam. A exaltação dirigia-se especialmente à nova literatura e às novas manifestações da arte plástica. Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 382. Não surpreendentemente, os jornais da época, também atrelados ao passado, criticaram o evento: Ao público chocado diante da nova música tocada na Semana, como diante dos quadros expostos e dos poemas sem rima [...] sons sucessivos sem nexo estão fora da artemusical: são ruídos, são estrondos, palavras sem nexo estão fora do discurso: são disparates e tão cabeludos que nesta semana conseguiram desopilar os nervos do público paulista, que raramente ri a bandeiras despregadas. A Gazeta, 22 fev. 1922. Profª. Cristiane Literatura Página 3 de 23 De qualquer forma, apesar da reação geral, tinha acontecido a Semana de Arte Moderna, que renovava a mentalidade nacional e punha o Brasil na atualidade do mundo. Para Gilberto Mendonça Teles: Toda a grande contribuição da revolução literária de 1922 pode-se [...] resumir nestes dois aspectos: abertura e dinamização dos elementos culturais, incentivando a pesquisa formal, vale dizer, a linguagem; ampliação do ângulo ótico para os macro e microtemas da realidade nacional, embora essa ampliação se tenha dado mais exatamente na linguagem, elevando-se o nível coloquial da fala brasileira à categoria de valor literário, fato que não havia sido possível na poética parnasiano-simbolista, quer pela sua concepção formal, quer pela concepção linguística da época, impregnada de exagerado vernaculismo. Gilberto Mendonça Teles, op. cit., p. 277. 1.3 - Manifestos posteriores A Semana de Arte Moderna agitou de tal forma os intelectuais da época que, depois dela, surgiram manifestos importantes. O imenso grupo que formava os integrantes da Semana de 22 se dividiu, e muitos artistas e intelectuais seguiram diversas outras linhas de pensamento. Vamos conhecer um pouco mais sobre esses movimentos. Poesia Pau-Brasil Escrito por Oswald de Andrade e publicado no jornal O Correio da Manhã em março de 1924, esse manifesto, em versão reduzida e modificada, abriria o livro de poemas Pau- Brasil, ilustrado por Tarsila do Amaral. O poeta propõe a redescoberta do Brasil a partir de uma releitura crítica (e satírica) da nossa história. Para Paulo Prado, o livro realiza o primeiro esforço organizado para a libertação do verso brasileiro. Leia um excerto do Manifesto. Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias. A língua sem arcaísmos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos. Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta – a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação. Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o naturalismo. Copiar. Quadros de carneiros que não fossem lã mesmo, não prestavam. A interpretação no dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho… Veio a pirogravura. As meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E, com todas as prerrogativas do cabelo grande, da caspa e da misteriosa genialidade de olho virado – o artista fotógrafo. Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A pleyela. E a ironia eslava compôs para a pleyela. Stravinski. A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas. Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano. Ora, a revolução indicou apenas que a arte voltava para as elites. E as elites começaram desmanchando. Duas fases: 1) a deformação através do impressionismo, a fragmentação, o caos voluntário. De Cézanne e Malarmé, Rodin e Debussy até agora. 2) o lirismo, a apresentação no templo, os materiais, a inocência construtiva. O Brasil profiteur. O Brasil doutor. E a coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau-Brasil. Como a época é miraculosa, as leis nasceram do próprio rotamento dinâmico dos fatores destrutivos. A síntese O equilíbrio O acabamento de carrosserie A invenção A surpresa Uma nova perspectiva Uma nova escala. Qualquer esforço natural nesse sentido será bom. Poesia Pau-Brasil O trabalho contra o detalhe naturalista – pela síntese; contra a morbidez romântica – pelo equilíbrio geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa. Uma nova perspectiva. Verde-Amarelismo – Escola da Anta Como resposta ao Pau-Brasil, surgiu o grupo Verde- Amarelismo, do qual eram membros os modernistas Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo. Esses intelectuais criticavam o “nacionalismo afrancesado” de Oswald de Andrade e propunham um nacionalismo primitivista e ufanista – contraparte do movimento integralista do início da década de 1930, liderado por Plínio Salgado. Elegeram a Anta como símbolo nacional e exaltavam o Tupi, o primitivismo e a ingenuidade da mãe-pátria. Em maio de 1929, o grupo publicou um manifesto no jornal Correio Paulistano intitulado “Nhengaçu Verde-Amarelo – Manifesto do Verde-Amarelismo ou da Escola da Anta”. Acompanhe um excerto desse texto. A Nação é uma resultante de agentes históricos. O índio, o negro, o espadachim, o jesuíta, o tropeiro, o poeta, o fazendeiro, o político, o holandês, o português, o índio, o francês, os rios, as montanhas, a mineração, a pecuária, a agricultura, o sol, as léguas imensas, o Cruzeiro do Sul, o café, a literatura francesa, as políticas inglesa e americana, os oito milhões de quilômetros quadrados... Temos de aceitar todos esses fatores, ou destruir a Nacionalidade, pelo estabelecimento de distinções, pelo desmembramento nuclear da ideia que dela formamos. x x x Como aceitar todos esses fatores? Não concedendo predominância a nenhum. x x x A filosofia tupi tem de ser forçosamente a “não filosofia”. O movimento da Anta baseava-se nesse princípio. Tomava-se o índio como símbolo nacional, justamente porque ele Profª. Cristiane Literatura Página 4 de 23 significa a ausência de preconceito. Entre todas as raças que formaram o Brasil, a autóctone foi a única que desapareceu objetivamente. Em uma população de 34 milhões, não contamos meio milhão de selvagens. Entretanto, é a única das raças que exerce subjetivamente sobre todas as outras a ação destruidora de traços caracterizantes; é a única que evita o florescimento de nacionalismos exóticos; é a raça transformadora das raças, e isso porque não declara guerra, porque não oferece a nenhuma das outras o elemento vitalizante da resistência. [...] Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Bem ou mal, mas produzir. Há sete anos que a literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias, sejam elas quais forem, mas com o único intuito de nos revelarmos, livres de todos os prejuízos. A vida, eis o que nos interessa, eis o que interessa à grande massa do povo brasileiro. Em sete anos, a geração nova tem sido o público de si mesma. O grosso da população ignora a sua existência e se ouve falar em movimento moderno é pelo prestígio de meia dúzia de nomes que se impuseram pela força pessoal de seus próprios talentos. x x x O grupo “verdamarelo”, cuja regra é a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder; cuja condição é cada um interpretar o seu país e o seu povo através de si mesmo, da própria determinação instintiva; – o grupo “verdamarelo”, à tirania das sistematizações ideológicas, responde com a sua alforria e a amplitude sem obstáculo de sua ação brasileira. Nosso nacionalismo é de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação do Brasilna humanidade, de fé em nosso valor de construção nacional. Aceitamos todas as instituições conservadoras, pois é dentro delas mesmo que faremos a inevitável renovação do Brasil, como o fez, através de quatro séculos, a alma da nossa gente, através de todas as expressões históricas. Nosso nacionalismo é “verdamarelo” e tupi. O objetivismo das instituições e o subjetivismo da gente sob a atuação dos fatores geográfico e histórico. Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Alfredo Élis, Cassiano Ricardo, Cândido Mota Filho. In: Gilberto Mendonça Teles, op. cit., p. 361-167. Antropofagia Tarsila do Amaral, Abaporu, óleo sobre tela, 85 X 73 cm. 1928. O “Manifesto Antropófago” foi publicado primeiramente em maio de 1928, na Revista de Antropofagia, como programa ou filosofia do grupo da qual essa revista seria veículo. O movimento surgiu como uma renovação do Pau-Brasil de 1924 e como resposta à Escola da Anta. Inspirada numa pintura de Tarsila do Amaral, Abaporu (em Tupi, “aquele que come”), a ideia de comer carne humana foi tomada como símbolo da “devoração crítica” na assimilação das influências estrangeiras, desde a colonização até as vanguardas, e sua digestão, cujo produto seria algo genuinamente brasileiro. Assim, seria possível recriar a própria história da cultura nacional sem copiar modelos estrangeiros. Vejamos o comentário de José Aderaldo Castello sobre a Revista de Antropofagia: Apresenta-se apoiada em Freud, para explicar o sentido progressivo do comportamento humano, desde o egoísmo ao egocentrismo, tabus e totens, amor cotidiano, instinto sexual, carnal, amizade, especulação científica e o aviltamento do homem. Reduz tudo ao instinto antropofágico. Voltando-se para o Brasil, proclamava a verdade das nossas origens caraíbas, donde a proposta de retorno ao estado selvagem, ingênuo e puro, como arma de defesa e reafirmação. Seria uma forma de superarmos pressões externas que, provenientes do processo da nossa formação, mas estranhas ao estado selvagem do índio americano, continuavam a nos desfigurar. A linguagem – estilo antropofágico, é exemplificado pela obra de Oswald de Andrade, Antônio de Alcântara Machado e Raul Bopp – era pautada pela frase curta, pelo ritmo sincopado, pela irreverência e pelo senso de humor. Com grande poder de síntese, sugere abstrações rápidas, aproximações e referências imprevistas no tempo e no espaço à história e às tradições populares, rebatendo na psicologia nacional. José Aderaldo Castello, op. cit., p. 87. Tarsila do Amaral, Antropofagia, óleo sobre tela, 126 X 142 cm. 1929. Manifesto antropófago Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Profª. Cristiane Literatura Página 5 de 23 Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psicologia impressa. O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes. No país da cobra grande. Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa- múndi do Brasil. Uma consciência participante, uma rítmica religiosa. Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a mentalidade pré-lógica para o Sr. Lévy-Bruhl estudar. Queremos a Revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós, a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem. A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ori Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Keyserling. Caminhamos. Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei-analfabeto dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia. O espírito recusa-se a conceber o espírito sem o corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. Só podemos atender ao mundo orecular. Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. Contra o mundo reversível e as ideias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é dinâmico. O indivíduo vitima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o esquecimento das conquistas interiores. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto Caraíba. Morte e vida das hipóteses. Da equação eu parte do Cosmos ao axioma Cosmos parte do eu. Subsistência. Conhecimento. Antropofagia. Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo. Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro. Catiti Catiti Imara Notiá Notiá Imara Ipeju A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais. Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comia. Só não há determinismo onde há mistério. Mas que temos nós com isso? Contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César. A fixação do progresso por meio de catálogos e aparelhos de televisão. Só a maquinaria. E os transfusores de sangue. Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas. Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde de Cairu: – É mentira muitas vezes repetida. Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti. Se Deus é a consciência do Universo Incriado, Guaraci é a mãe dos viventes. Jaci é a mãe dos vegetais. Não tivemos especulação. Mas tínhamos adivinhação. Tínhamos Política que é a ciência da distribuição. E um sistema social-planetário. As migrações. A fuga dos estados tediosos. Contra as escleroses urbanas. Contra os Conservatórios e o tédio especulativo. De William James e Voronoff. A transfiguração do Tabu em totem. Antropofagia. O pater famílias e a criação da Moral da Cegonha: Ignorância real das coisas + fala de imaginação + sentimento de autoridade ante a prole curiosa. É preciso partir de um profundo ateísmopara se chegar à ideia de Deus. Mas a caraíba não precisava. Porque tinha Guaraci. O objetivo criado reage com os Anjos da Queda. Depois Moisés divaga. Que temos nós com isso? Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade. Profª. Cristiane Literatura Página 6 de 23 Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antônio de Mariz. A alegria é a prova dos nove. No matriarcado de Pindorama. Contra a Memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada. Somos concretistas. As ideias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas. Suprimamos as ideias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos instrumentos e nas estrelas. Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI. A alegria é a prova dos nove. A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos. Contra Anchieta cantando as onze mil virgens do céu, na terra de Iracema –, o patriarca João Ramalho fundador de São Paulo. A nossa independência ainda não foi proclamada. Frape típica de D. João VI: – Meu filho, põe essa coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte. Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. Oswald de Andrade. In: Gilberto Mendonça Teles, op. cit., p. 253-267. 2. A primeira geração modernista brasileira 2.1 - Modernismo no Brasil: fase heroica A primeira fase do Modernismo brasileiro (1922-1930) é um período de implementação de novas ideias que culminaram na Semana de 22. O centenário de independência do Brasil deu a impressão de que se fazia, na época, uma reavaliação das condições da nossa “pátria mãe gentil”. Algumas transformações mundiais decorrentes da I Grande Guerra (1914-1918), a aceleração do processo brasileiro de industrialização, especialmente em São Paulo, e o breve período de prosperidade que alcançaria o café como produto 2 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 389. 3 Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Humanitas, 1999, p. 69. 4 Grande obra modernista de Cassiano Ricardo publicada em 1928. de exportação também concorreram para essa revisão que o Brasil faria de si mesmo no início do século XX. Influenciados por ideários desenvolvidos na Europa – pela Rússia revolucionária e cubofuturista, por exemplo – e por movimentos de vanguarda como o Expressionismo alemão e, especialmente, o Futurismo italiano (que ofereceria modelos adequados para a percepção do ritmo e do mecanicismo das grandes cidades, além da valorização do primitivo, elemento aqui, no Brasil, que fazia parte da realidade), os modernistas encontraram na cidade de São Paulo um terreno fértil para a realização da Semana de Arte Moderna, que mais parecia ser a abolição da República Velha das Letras. Na introdução de Serafim Ponte Grande, afirma Oswald de Andrade: O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque industrial. Quem sabe se a alta do café não ia colocar a literatura nova-rica da semicolônia ao lado dos custosos surrealismos imperialistas? [...] A valorização do café foi uma operação imperialista. A poesia Pau-Brasil também. Isso tinha que ruir com as cornetas da crise. Oswald de Andrade apud Alfredo Bosi. Moderno e modernista na literatura brasileira. Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 210. Depois da ruptura estética, vieram a reflexão, a consciência crítica e a laboriosa metalinguagem com as revistas paulistas Klaxon, Terra Roxa e Outras Terras e os manifestos que estudamos na última aula, que formariam o legado teórico de 1922. Ainda assim, para diversos críticos literários, os modernistas protagonizaram um movimento complexo e contraditório. Segundo Alfredo Bosi, os grandes escritores dessa primeira geração não tinham condições de analisar e compreender os processos de base que então agitavam o mundo ocidental e especialmente o Brasil2. “Éramos uns inconscientes”, afirmou Mário de Andrade a respeito da própria geração de artistas, num balanço autocrítico que fez em 1942, em conferência intitulada “O Movimento Modernista”. Não há dúvida, porém, de que é o marco de uma era de transformações essenciais e abriu a fase mais fecunda da literatura brasileira “porque [esta] já então havia adquirido maturidade suficiente para assimilar com originalidade as sugestões dos matizes culturais, produzindo em larga escala uma literatura própria”3. Nessa fase de afirmação da literatura nacional, os inovadores não viam um Brasil que não fosse a “São Paulo arlequinal”, espaço da modernidade, ou “o território mítico de Macunaíma e da Antropofagia, de Martim Cererê4 e de Cobra Norato5; um Brasil cujas contradições se resolviam magicamente no reino das palavras poéticas”6. O Modernismo não foi só uma escola literária, mas também um movimento social e cultural. Mas não é especialmente a partir do plano temático que devemos analisar as inovações que ele trouxe à literatura brasileira, já que algumas das mensagens de 22 já prefiguradas em pré-modernistas como 5 Obra-prima de Raul Bopp, publicada em 1931, que, juntamente com Martim Cererê e Macunaíma, pode ser considerada um ícone do Modernismo brasileiro. 6 Alfredo Bosi. Moderno e modernista na literatura brasileira. Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 215. Profª. Cristiane Literatura Página 7 de 23 Lima Barreto, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. O que realmente provocou grandes rupturas em relação à literatura produzida antes de 22 foram os códigos literários. 2.2 - Características da literatura modernista Poética Estou farto do lirismo comedido do lirismo comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo Abaixo os puristas Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis Estou farto do lirismo namorador Político Raquítico Sifilítico De todo o lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo. De resto não é lirismo Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc. Quero antes o lirismo dos loucos O lirismodos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare – Não quero mais saber do lirismo que não é libertação. Manuel Bandeira. Libertinagem. Estrela da vida inteira. 25 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 129. Ao ler um poema como esse, percebemos a grande transformação que propunham os modernistas em relação à poética tradicional. Reagindo contra os ideais da “arte pela arte” dos parnasianos, eram antiacademicistas, antitradicionalistas e antinaturalistas e buscavam a estabilização da consciência criadora nacional. Essa primeira fase modernista, que alguns críticos consideram que vai até 1928, com a publicação de Macunaíma, é destruidora, caracterizada pela irreverência iconoclasta7, pelos “poemas-piadas” de diversos escritores, especialmente Oswald de Andrade, pelo nacionalismo desenfreado, pelo primitivismo e por uma releitura crítica de nosso passado histórico. Mais preocupados com a ruptura da tradição do que com o engajamento político, os modernistas usavam uma linguagem libertária, que desarticula a sintaxe, transmuta o vocabulário da literatura pós-naturalista e descobre o folclore nacional e a cultura popular brasileira, o verso livre e instantâneo, a oralidade e a paródia. Na prosa, é notória a influência da linguagem cinematográfica e, especificamente em São Paulo, da cultura italiana, devido à imigração pós-guerra. 7 Diz-se de pessoa que não respeita as tradições, a quem nada parece digno de culto ou reverência (Novo Aurélio). Sobre o Modernismo brasileiro, diz Antonio Candido: Sua contribuição fundamental foi a defesa da liberdade de criação e experimentação, começando por bater em brecha a estética acadêmica, encarnada sobretudo na poesia e na prosa oratória, mecanizadas nas formas endurecidas que serviam para petrificar a expressão a serviço das ideias mais convencionais. Para isso, os modernistas valorizaram na poesia os temas cotidianos tratados com prosaísmo e quebraram a hierarquia dos vocábulos, adotando as expressões coloquiais mais singelas, mesmo vulgares, para desqualificar a solenidade ou a elegância afetada. Nesse sentido, combateram a mania gramatical e pregaram o uso da língua segundo as características diferenciais do Brasil, incorporando o vocabulário e a sintaxe irregular de um país onde as raças e as culturas se misturaram. Além disso, passaram por cima das distinções entre os gêneros, injetando poesia e insólito na narrativa em prosa, abandonando as formas poéticas regulares, misturando documento e fantasia, lógica e absurdo, recorrendo ao primitivismo do folclore e ao português deformado dos imigrantes, chegando a usar como exemplo extremo contra a linguagem oficial certas ordenações sintáticas tomadas a línguas indígenas. Os românticos haviam “civilizado” a imagem do índio, injetando neles os padrões do cavalheirismo convencional. Os modernistas, ao contrário, procuraram nele e no negro o primitivismo, que injetaram nos padrões da civilização dominante como renovação e quebra das convenções acadêmicas. Mas nesse jogo muitos acabaram num artificialismo equivalente ao dos românticos, sobretudo os que foram buscar na tradição indígena alimento para um patriotismo ornamental. Assim foi que alguns modernistas secundários de São Paulo denunciaram as tendências cosmopolitas e demolidoras, criando o grupo Verde-Amarelo, patriótico e sentimental, que terminou politicamente em atitudes conservadoras. Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Humanitas, 1999, p. 70. O marco inicial do novo foi a publicação das obras Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade, e Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, ambas em 1922. 2.3 - Mário de Andrade: a figura central do Modernismo brasileiro Me sinto só branco agora, sem ar neste ar-livre da América! Me sinto só branco, só branco em minha alma crivada de raças! Mário de Andrade. Improviso do mal da América. Remate dos males, 1930. Mário de Andrade (1893-1945) foi quem concebeu a plataforma da nova poética modernista em obras como A escrava que não é Isaura (ensaio publicado em 1925), em que discursa sobre o que acredita ser a tendência da poesia modernista, e “Prefácio interessantíssimo”, que abre o livro de poemas Pauliceia desvairada (1922), em que declara ter fundado o “desvairismo”8, escola com a qual encerra no fim do mesmo prefácio. Aí, considera-se “passadista” por não 8 Todos os excertos ente aspas ou em itálico nesta explicação do “Prefácio interessantíssimo” são da edição comemorativa: Mário de Profª. Cristiane Literatura Página 8 de 23 conseguir se libertar das “teorias avós que bebeu” e reitera a importância do passado como “lição para meditar, não para reproduzir”: “destruir um edifício não significa abandonar o terreno – o que equivale a dizer que o essencial permanece”. Apesar de Oswald de Andrade tê-lo classificado como futurista, Mário não concordava com essa afirmação e chegou a fazer restrições ao Futurismo de Marinetti: Marinetti foi grande quando redescobriu o poder sugestivo, associativo, simbólico, universal, musical da palavra em liberdade. Aliás: velha como Adão. Marinetti errou: fez dela sistema. É apenas auxiliar poderosíssimo. Uso palavras em liberdade. Sinto que o meu copo é grande demais para mim, e inda bebo no copo dos outros (p. 23). Escrever arte moderna não significa jamais para mim representar a vida atual no que tem de exterior: automóveis, cinema, asfalto. Si [sic] estas palavras frequentam-me o livro não é porque pense com elas escrever moderno, mas porque sendo meu livro moderno, elas têm nele sua razão de ser (p. 34). Ressaltou o subconsciente, em atitude claramente antinaturalista, em que considera o papel da escrita automática que os surrealistas pregavam como única forma de liberar as zonas profundas do psiquismo, fonte autêntica da poesia: Quando sinto a impulsão lírica, escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio interessantíssimo (p. 8). Ou: Um pouco de teoria? Acredito que o lirismo, nascido no subconsciente, acrisolado num pensamento claro ou confuso, cria frases que são versos inteiros, sem prejuízo de medir tantas sílabas, com acentuação determinada. Entroncamento é sueto para os condenados da prisão alexandrina. Há porém raro exemplo dele neste livro9. Uso de cachimbo [...] (p. 15). E ainda: A gramática apareceu depois de organizadas as línguas. Acontece que o meu inconsciente não sabe da existência de gramáticas, nem de línguas organizadas. E como Dom Lirismo é contrabandista [...] (p. 33). E refletiu sobre o belo artístico rompendo com os moldes pseudo-clássicos de arte acadêmica: Belo da arte: arbitrário, convencional, transitório – questão de moda. Belo da natureza: imutável, objetivo, natural – tem a eternidade que a natureza tiver. Arte não consegue reproduzir natureza nem este é o seu fim. Todos os grandes artistas, ora consciente (Rafael das Madonas, Rodin do Balzac, Beethoven da Pastoral, Machado de Assis do Brás Cubas), ora inconscientemente (a grande maioria) foram deformadores da natureza. Donde infiro que o belo artístico será tanto mais artístico, tanto mais subjetivo quanto mais se afastar do belo natural. Outros infiram o que quiserem. Pouco me importa [...] (p. 18). Andrade. Pauliceia desvairada. Caixa modernista. São Paulo: Edusp/Editora da UFMG/Imprensa Oficial, 2003. 9 Um pouco antes, no mesmo prefácio, o autor afirma que, perto dos 10 anos, metrificou e rimou e, como exemplo, mostra um poema intitulado “Artista”, soneto alexandrino (com 12 sílabas poéticaspor verso). José Aderaldo Castello10 percebe na figura de Mário de Andrade aquele que apontou leis proclamadas pela estética da nova poesia. Tecnicamente, o verso livre, a rima livre e a vitória do dicionário (“a palavra solta, independente, mas motivando associações e resultando na superexposição de ideias e imagens, sem perspectiva nem lógica intelectual”). Esteticamente, a substituição da ordem intelectual pela ordem subconsciente, rapidez e síntese, simultaneidade11 e polifonismo12. Mário de Andrade foi poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo e compositor. Esforçou-se para escrever numa língua inspirada pela fala corrente e pelos modismos populares e não hesitou em usar formas coloquiais, tradicionalmente consideradas “incorretas”, se legitimadas pelo uso brasileiro. Uniu num mesmo corpo expressivo a manifestação do eu e a manifestação do país, ao buscar a identidade de ambos num movimento de consciência, de um lado, e civilização, de outro. Entre suas obras mais importantes, destacam-se o já citado Pauliceia desvairada e a rapsódia Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, sua obra-prima. Pauliceia desvairada e outros poemas Paisagem N.° 3 Chove? Sorri uma garoa de cinza, muito triste, como um tristemente longo... A Casa Kosmos não tem impermeáveis em liquidação... Mas neste Largo do Arouche posso abrir o meu guarda-chuva paradoxal, este lírico plátano de rendas mar... Ali em frente... – Mário, põe a máscara! – Tens razão, minha Loucura, tens razão. O rei de Tule jogou a taça ao mar... Os homens passam encharcados... Os reflexos dos vultos curtos mancham o petit-pavé... As rolas da Normal esvoaçam entre os dedos da garoa... (E si pusesse um verso de Crisfal No De Profundis?...) De repente um raio de Sol arisco risca o chuvisco ao meio. Mário de Andrade. Pauliceia desvairada. Caixa modernista. São Paulo: Edusp/Editora da UFMG/Imprensa Oficial, 2003, p. 105. Nossa primeira obra modernista nasceu de um ímpeto de raiva do autor. Em 1942, na conferência crítica em que fazia um balanço do que fora o Modernismo de 22, Mário de Andrade contou como criou sua Pauliceia desvairada: A isso se ajuntavam dificuldades morais e vitais de vária espécie, foi ano de sofrimento muito. Já ganhava para viver folgado, mas, na fúria de saber as coisas que me 10 José Aderaldo Castello. A literatura brasileira: origens e unidade. V. II. São Paulo: Edusp, 1999, p. 113. 11 Coexistência de coisas e fatos num momento dado. 12 União artística simultânea de duas ou mais melodias cujo efeito momentâneo de embate de sons concorre para um efeito total final. Profª. Cristiane Literatura Página 9 de 23 tomara, o ganho fugia em livros e eu me estrepava em cambalachos financeiros terríveis. Em família, o clima era torvo. Si [sic] Mãe e irmãos não se amolavam com as minhas “loucuras”, o resto da família me retalhava sem piedade. E com certo prazer, até: esse doce prazer familiar de ter, num sobrinho ou num primo um “perdido” que nos valoriza virtuosamente. Eu tinha discussões brutais, em que os desaforos mútuos não raro chegavam àquele ponto de arrebentação que... por que será que a arte provoca! A briga era braba, e si não me abatia nada, me deixava em ódio, mesmo ódio. Foi quando Brecheret13 me concedeu passar em bronze um gesso dele que eu gostava, uma “Cabeça de Cristo”, mas com que roupa! Eu devia os olhos da cara! Andava às vezes a pé por não ter duzentos réis pra bonde, no mesmo dia em que gastara seiscentos mil-réis em livros... E seiscentos mil-réis era dinheiro, então. Não hesitei: fiz mais conchavos financeiros com o mano, e afinal pude desembrulhar em casa a minha “Cabeça de Cristo”, sensualissimamente feliz. Isso a notícia correu num átimo, e a parentela, que morava pegado, invadiu a casa pra ver. E pra brigar. Berravam, berravam. Aquilo era até pecado mortal! Estrilava a senhora minha tia velha, matriarca da família. Onde se viu, Cristo de trancinha! era feio! medonho! Maria Luísa, vosso filho é um perdido, mesmo. Fiquei alucinado, palavra de honra. Minha vontade era bater. Jantei por dentro, num estado inimaginável de estralhaço. Depois subi para o meu quarto, era noitinha, na intenção de me arranjar, sair, espairecer um bocado, botar uma bomba no centro do mundo. Me lembro que cheguei à sacada, olhando sem ver o meu largo. Eu estava aparentemente calmo, como que indestinado. Não sei o que me deu. Fui até a escrivaninha, abri um caderno, escrevi o título em que jamais pensara, Pauliceia desvairada. O estouro chegara afinal, depois de quase um ano de angústias interrogativas. Mário de Andrade apud Alfredo Bosi. Mário de Andrade crítico do Modernismo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 230. Victor Brecheret, Cabeça de Cristo (Cristo de trancinhas), 1920, coleção IEB-USP. É um excerto extremamente esclarecedor. A ira dos familiares de Mário aqueceu-o e exasperou a tal ponto, que lhe deu o título de seu (e do nosso) primeiro livro de poesia modernista. Nele, o autor defende que “o defeito é uma circunstância de beleza”. Mesmo admitindo os defeitos do 13 Victor Brecheret (1894-1955), escultor ítalo-brasileiro responsável pela introdução do Modernismo na escultura deste país. livro, consegue ver neles qualidades. Em 1924, dois anos depois de sua publicação, declarava: Foi nesse delírio de profunda raiva que Pauliceia desvairada se escreveu, no final de 1920. Pauliceia manifesta um estado de espírito eminentemente transitório: cólera cega que se vinga, revolta que não se esconde, confiança infantil no senso comum dos homens. Estes sentimentos duram pouco. A cólera esfria. A revolta perde sua razão de ser. A confiança desilude-se num segundo. Comigo, duraram pouco mais que um defluxo. Passaram. Deveria corrigir o livro e apagar-lhe estes aspectos? Não. Os poemas foram muito corrigidos. Muita coisa deles se tirou. Alguma se ajuntou, mas os exageros, tudo quanto era representativo do estado da alma, e não desfalecimentos naturais em toda criação artística, aí se conservou. Uma obra de arte não é expressiva só pelas belezas que contém. Ou o Sr. Alberto de Oliveira seria superior a Castro Alves. Muitas vezes os defeitos são mais interessantes e comoventes que as belezas. Direi mais: muitas vezes o defeito é uma circunstância da beleza. Mário de Andrade apud João Luiz Lafetá. A representação do sujeito lírico na Pauliceia desvairada. Alfredo Bosi (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2007, p. 57-58. O trovador Sentimentos em mim do asperamente dos homens das primeiras eras... As primaveras de sarcasmo intermitentemente no meu coração arlequinal... Intermitentemente... Outras vezes é um doente, um frio na minha alma doente como um longo som redondo Cantabona! Cantabona! Dlorom... Sou um tupi tangendo um alaúde! Mário de Andrade, op. cit., p. 45. Muitos dos poemas de Pauliceia desvairada captam o paradoxo sentido por Mário de Andrade em relação à cidade de São Paulo. De “comoção da minha vida” e “minha Londres das neblinas finas” a “grande boca de mil dentes”, a cidade que cresce desorganizadamente e é capaz também de agrupar todas as etnias e classes sociais não é mero cenário para o eu lírico. A linguagem dos poemas tende a uma linha destrutiva, mas há também na obra um esforço de caráter construtivo, uma tendência “pronunciadamente intelectualista” a que o poeta se refere no Prefácio interessantíssimo. Perpassa o livro uma tensão significativa entre a representação do eu e a da cidade, e nota-se uma objetividade de um eu artificial e uno do século XIX que dá lugar a um eu múltiplo e desagregado, de um “subjetivismo exagerado”. Essa tensão, identificação entre o espaçoexterno e a interioridade, que muitos consideram o problema de Pauliceia desvairada (porque desequilibra a forma dos poemas se os pensarmos a partir de uma estética clássica), talvez seja sua principal marca estética: a tentativa de equilibrar as notações objetivas da cidade grande com o tumulto de sensações de um homem moderno, perdido em meio à multidão. “A vida moderna desvaira o poeta, e este Profª. Cristiane Literatura Página 10 de 23 transfere o seu desvairismo para a vida moderna. [...] Assim como não se compreende a cidade sem as deformações do eu, também não se compreende o eu sem as deformações provocadas pela cidade”14. Observe, no poema anterior, como a cidade e o trovador se identificam. “São Paulo é, simultaneamente, ‘Galicismo a berrar nos desertos da América’, isto é, civilização e barbárie, enquanto o trovador é ‘um tupi tangendo um alaúde’, isto é, primitivo e civilizado”15. Nos poemas a seguir, note como a paisagem nostálgica pode se integrar emocionalmente com o eu lírico, da mesma maneira que pode desencadear um sentimento de raiva impulsiva: Inspiração Onde até na força do verão havia tempestades de ventos e frios de crudelíssimo inverno. Frei Luís de Souza São Paulo! Comoção de minha vida... Os meus amores são flores feitas de original... Arlequinal!... Traje de losangos... Cinza e ouro... Luz e bruma... Forno e inverno morno... Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes... Perfumes de Paris... Anys! Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!... São Paulo! Comoção de minha vida... Galicismo a berrar nos desertos da América! Mário de Andrade, op. cit., p. 43. Ode ao burguês Eu insulto o burguês! O burguês-níquel, o burguês-burguês! A digestão bem-feita de São Paulo! O homem-curva! o homem-nádegas! O homem que sendo francês, brasileiro, italiano, é sempre um cauteloso pouco-a-pouco! Eu insulto as aristocracias cautelosas! Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros! que vivem dentro de muros sem pulos; e gemem sangues de alguns mil-réis fracos para dizerem que as filhas da senhora falam o francês e tocam os "Printemps" com as unhas! Eu insulto o burguês-funesto! O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições! Fora os que algarismam os amanhãs! Olha a vida dos nossos setembros! Fará Sol? Choverá? Arlequinal! Mas à chuva dos rosais o êxtase fará sempre Sol! 14 João Luiz Lafetá. A representação do sujeito lírico na Pauliceia desvairada. Alfredo Bosi (Org.). Leitura de poesia. São Paulo: Ática, 2007, p. 66. 15 Idem, ibidem, p. 67. Morte à gordura! Morte às adiposidades cerebrais! Morte ao burguês-mensal! ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi! Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano! "– Ai, filha, que te darei pelos teus anos? – Um colar... – Conto e quinhentos!!! Mas nós morremos de fome!" Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma! Oh! purée de batatas morais! Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas! Ódio aos temperamentos regulares! Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia! Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados! Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos, sempiternamente as mesmices convencionais! De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia! Dois a dois! Primeira posição! Marcha! Todos para a Central do meu rancor inebriante Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio! Morte ao burguês de giolhos, cheirando religião e que não crê em Deus! Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico! Ódio fundamento, sem perdão! Fora! Fu! Fora o bom burguês!... Mário de Andrade, op. cit., p. 67-69. A ruptura com a poesia parnasiana é notória em Pauliceia desvairada. Para o crítico literário João Luís Lafetá: O verso livre, sem métrica nem rima, a simultaneidade de sentimentos e o uso constante da ambiguidade poética, todos esses recursos contrastavam de maneira radical com a poesia parnasiana, que era medida, repetitiva, linear, nítida. Tal subversão das regras tradicionais entusiasmou o bando inicial do Modernismo. E, num instante, a Pauliceia desvairada transformou-se na bandeira do movimento. João Luís Lafetá. Mário de Andrade, o arlequim estudioso. Antonio Arnoni Prado (Org.). A dimensão da noite. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004, p. 220. Mário de Andrade publicou ainda livros de poesia como Losango cáqui (1922), Clã do Jabuti e Remate dos males (poemas escritos entre 1923 e 1930 que já incorporam a dimensão da pesquisa folclórica), e, nos últimos anos de sua vida, Lira paulistana, em que a cidade é “apreendida e ressentida nas andanças do poeta maduro que se despojou do pitoresco e sabe dizer com a mesma contenção os cansaços do homem afetuoso e solitário e a miséria do pobre esquecido do bairro fabril”16. Leia um excerto de “Meditação sobre o Tietê” e note o lirismo e o ritmo espraiado, expressão da entrega do poeta ao destino comum que o rio simboliza. Nesse poema, de caráter premonitório, segundo João Luiz Lafetá17 (o poema foi concluído treze dias antes da morte de Mário), o eu lírico fala do limiar da morte, contemplando nas águas noturnas do rio Tietê o reflexo do que foi sua própria vida, levada pela corrente que contradiz o curso normal dos rios, afasta-se do mar e adentra a “terra dos homens”. O crítico afirma que “a visão exaltada da cidade da garoa, 16 Alfredo Bosi. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1995, p. 401. 17 João Luiz Lafetá. Meditação sobre o Tietê. A dimensão da noite e outros ensaios. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2004, p. 539. Profª. Cristiane Literatura Página 11 de 23 ‘Londres das neblinas finas’, que o arlequim vanguardista cantava em berros dissonantes, dá lugar a uma ótica desconfiada, que expõe em versos medidos (frequentemente inspirados no cancioneiro popular) a suspeita de que a neblina sirva, antes de mais nada, para encobrir a injustiça das diferenças sociais. O canto entusiástico da juventude é contrastado pelo travo hesitante da madureza que vê a chegada da noite”18. A meditação sobre o Tietê [excerto] Água do meu Tietê, Onde me queres levar? – Rio que entras pela terra E que me afastas do mar... É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirável Da Ponte das Bandeiras o rio Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa. É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras, Soturnas sombras, enchem de noite de tão vasta O peito do rio, que é como si a noite fosse água, Água noturna, noite líquida, afogando de apreensões As altas torres do meu coração exausto. De repente O ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas, É um susto. E num momento o rio Esplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas, Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam Agora, arranha-céus valentes donde saltam Os bichos blau e os punidores gatos verdes, Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas, Luzes e glória. É a cidade... É a emaranhada forma Humana corrupta da vida que muge e se aplaude. E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra. Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo, Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam Num gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho de morte. É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado É um rumor de germes insalubres pela noite insone e humana. Meu rio, meu Tietê, onde me levas? Sarcástico rio que contradizes o curso das águas E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens, Onde me queres levar?... Por que me proíbes assim praias e mar, por que Me impedes a fama das tempestades do Atlântico E os lindos versos que falam em partir e nunca mais voltar? Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra, Me induzindocom a tua insistência turrona paulista Para as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!... [...] Rio, meu rio... mas porém há-de haver com certeza Outra vida melhor do outro lado de lá Da serra! E hei-de guardar silêncio Deste amor mais perfeito do que os homens?... Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado. No entanto eu sou maior... Eu sinto uma grandeza infatigável! Eu sou maior que os vermes e todos os animais. 18 Idem, ibidem, p. 541. 19 Tribo lendária de índios brasileiros. 20 Espantar. E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos, Maior... Maior que a multidão do rio acorrentado, Maior que a estrela, maior que os adjetivos, Sou homem! vencedor das mortes, bem nascido além dos dias, Transfigurado além das profecias! Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança. Eu me acho tão cansado em meu furor. As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas Para o peito dos sofrimentos dos homens. ... e tudo é noite. Sob o arco admirável Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca, Uma lágrima apenas, uma lágrima, Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê. Mário de Andrade. Melhores poemas. Seleção de Gilda de Mello e Souza. 4 ed. São Paulo: Global, 1997, p. 69-80. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter No fundo do mato virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo da Uraricoera, que a índia tapanhumas19 pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar20. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: — Ai! que preguiça!... e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba21, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Manaape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho e as mulheres soltavam gritos gozados por causa dos guaimuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mucambo si alguma cunhatã22 se aproxima dele pra fazer festinha, Macunaíma punha as mãos nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicoque, todas essas danças religiosas da tribo. Quando era pra dormir trepava no macuru23 pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por baixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar. Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pajelança24 Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente. 21 Esteira de tecido com fibras de palmeira. 22 Moça. 23 Balanço feito de pano e cipó, usado como berço. 24 Feitiçaria promovida pelos pajés. Profª. Cristiane Literatura Página 12 de 23 Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma choramingou dia inteiro. De noite continuou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guaruma-membeca e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê, que levasse o menino. A companheira de Jigue era bem moca e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porem desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e foi ate o pé de aninga na beira do rio. A água parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na entrada do furo. A moca botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato. A moca fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajas e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito. Quando voltaram pra maloca a moca parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado muito com ela... Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já chegava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizilou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará aguentou a sova sem falar um isto. Mário de Andrade. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 20 ed. Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1984, p. 9-10. Depois de muitos anos dedicados à pesquisa sobre cultura popular brasileira, Mário de Andrade escreve sua obra-prima em seis dias. Segundo o próprio autor, Macunaíma é não um romance, mas uma rapsódia25 e tem a aparência de uma colcha de retalhos. Construída a partir de textos preexistentes, elaborados pela tradição oral ou escrita, popular ou erudita, europeia ou brasileira, o autor não se valeu de processos literários correntes, mas, segundo Gilda de Mello e Souza, transpôs formas básicas da música ocidental – comuns à erudita e à popular: a suíte26, cujo exemplo brasileiro mais relevante seria o bailado nordestino do Bumba-meu-boi27 e a variação28, presente no improviso do cantador nordestino. A esse material, em si híbrido, se juntariam: [...] anedotas tradicionais da história do Brasil; incidentes pitorescos presenciados pelo autor; episódios de sua biografia pessoal; transcrições textuais de etnógrafos, dos cronistas coloniais; frases célebres de personalidades históricas ou eminentes; fatos da língua, como modismos, 25 Maneira de cantar dos velhos rapsodos gregos, que usavam letras e solfas populares fundindo-as e reunindo a obra de vários autores que versam sobre temas afins, pertencentes ao mesmo ciclo. 26 Um dos processos mais antigos de composição que, sem ser patrimônio de povo nenhum, reúne várias peças de estrutura e caráter distintos, todas de tipo coreográfico, para formar obras complexas e maiores. 27 “Num país sem unidade e de grande extensão territorial, de povo desleixado onde conceito de pátria é quase uma quimera, o boi – ou a dança que o consagra – funcionava como um poderoso elemento ‘unamizador’ dos indivíduos, como uma metáfora de nacionalidade” (Gilda de Mello e Souza, op. cit., p. 17). locuções, fórmulas sintáticas; processos mnemônicos populares, como associação de ideias e de imagens; ou processos retóricos, como as enumerações exaustivas. Gilda de Mello e Souza. O tupi e o alaúde. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 15. Em carta a Sousa da Silveira, Mário de Andrade define Macunaíma como: [...] um poema herói-cômico, caçoando do ser psicológico brasileiro, fixado numa página de lenda, à maneira mística dos poemas tradicionais. O real e o fantástico fundidos num plano. O símbolo, a sátira e a fantasia livre fundidos. Ausência de regionalismo pela fusão de características regionais. Um Brasil só e um herói só. Mário de Andrade apud Alfredo Bosi. Situação de Macunaíma.Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 188. O protagonista, mais um anti-herói nos moldes de Leonardo, das Memórias de um sargento de milícias, é ambiguamente qualificado como “um herói sem nenhum caráter”. Não que seja um mau-caráter – ele não tem nenhuma característica determinante: encarna uma variedade de personagens, ora boas, ora más, ora ingênuas, ora maliciosas. Macunaíma é ambíguo, do ponto de vista físico (é adulto e criança, homem e mulher, ser humano e animal, branco, negro e índio), psicológico (moral e amoral)29 e cultural (indeciso entre duas ordens de valores, não consegue harmonizar a cultura do Uraricoera, de onde proveio, à do progresso, onde ocasionalmente foi parar). No excerto a seguir, note a ambiguidade física: Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá. Mário de Andrade, op. cit., p. 16. É também “o herói de nossa gente”, figura lendária com os atributos do herói – um ser entre o humano e o mítico –, que enfrenta perigos e sofre mudanças extraordinárias. A partir do desejo de pensar o povo brasileiro, Mário de Andrade procura uma identidade “que, de tão plural [...], beira a surpresa e a indeterminação, daí ser o ‘herói sem nenhum caráter’”30. A fonte principal em que bebeu Mário de Andrade para escrever Macunaíma é Vom Roraima zum Orinoco, do etnógrafo alemão Theodor Koch-Grünberg, publicada em 28 Consiste em repetir uma melodia dada, mudando a cada repetição um ou mais elementos constitutivos dela de forma que, apresentando uma fisionomia nova, ela permanece sempre reconhecível na sua variedade. 29 Segundo Cavalcanti Proença, o que há em Macunaíma é uma sátira à imoralidade: “Macunaíma não é imoral nem amoral. Pertence, antes, à categoria de ‘seres nem culpados, nem inocentes, nem alegres, nem tristes, mas dotados daquela soberba indiferença que Platão ligava à sabedoria” (Roteiro de Macunaíma, 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, p. 15). 30 Alfredo Bosi. Situação de Macunaíma. Céu, inferno. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003, p. 188. Profª. Cristiane Literatura Página 13 de 23 cinco volumes, entre 1916 e 1924, de onde possivelmente extraiu o nome do herói: O próprio Koch-Grünberg, em sua “Introdução” ao volume, ressalta a ambiguidade do herói, dotado de poderes de criação e transformação, nutridor por excelência, ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido. Segundo o etnógrafo alemão, o nome do supremo herói tribal parece conter como parte essencial a palavra “maku”, que significa “mau” e o sufixo “ima”, “grande”. Assim, Macunaíma significaria “O Grande Mau”, nome – observa Grünberg – “que calha perfeitamente com o caráter do herói”. Por outro lado, os poderes criativos de Macunaíma levaram os missionários ingleses, em suas traduções da Bíblia para a língua indígena, a denominar o Deus cristão pelo nome do contraditório herói tribal, decisão que Koch-Grünberg comenta criticamente. Haroldo de Campos. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1972. Na primeira parte do livro, o herói vive nas margens do Uraricoera, na floresta amazônica, passando seu tempo na rede, entregue à sua preguiça, junto com seus irmãos ou “brincando”. Na segunda parte, sua procura pelo inimigo Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã comedor de gente, ladrão da Muiraquitã (talismã que Ci, a mãe do Mato, amante do herói, lhe dera antes de morrer), o leva à selva-de-pedra da megalópole industrial brasileira, São Paulo. Lá, consegue recuperar a muiraquitã e matar o Gigante Piaimã. Ao retornar à selva, quase é comido por piranhas, e seu talismã é engolido para sempre por um caimão. Inconsolável de seu destino, Macunaíma decide subir ao céu e virar ursa-maior. A narrativa se desenrola em tempo e espaço mágicos, numa atmosfera fantástica e maravilhosa. Numa dicção complexa – em que se pode notar pesquisa de palavras, termos e expressões características dos mais diversos recantos brasileiros –, Mário retoma processos de composição e de linguagem da narrativa oral-indígena ou arcaico-popular e alcança uma fusão entre a linguagem erudita e a popular jamais vista na literatura brasileira. Para Gilda de Mello e Souza, Macunaíma é a carnavalização do herói do romance de cavalaria: soberano e preguiçoso, vitorioso e escorraçado, esperto e ludibriado, retalhado e recomposto. É ainda medroso, mentiroso e curioso, uma verdadeira paródia do herói nobre medieval, guiado pelos sentimentos de coragem, lealdade, verdade, justiça e desprendimento. É uma leitura imprescindível para conhecer melhor a própria cultura brasileira. 31 Originalmente, é o nome que se dá à pintura de origem popular que ignora valores acadêmicos e qualquer forma de erudição. Na França, o primitivismo ressurge em 1886, ressuscitado por artistas e intelectuais que deram ao movimento um caráter moderno. Influenciou especialmente os fauvistas, pintores renomados como Henri Matisse e a literatura modernista brasileira. 32 “Sobre o poema-piada, frequente na fase heroica do Modernismo, cultivado por vários poetas, principalmente por Oswald de Andrade, Manuel Bandeira observa o seguinte: ‘Piadas... piadas como mais tarde as faria Murilo Mendes a propósito do rio Paraibuna e da Batalha de Itararé. Por essas e outras brincadeiras, estamos agora pagando 2.4 - Oswald de Andrade: o grande agitador do Modernismo Canto de regresso à pátria Minha terra tem palmares Onde gorjeia o mar Os passarinhos daqui Não cantam como os de lá Minha terra tem mais rosas E quase que mais amores Minha terra tem mais ouro Minha terra tem mais terra Ouro terra amor e rosas Eu quero tudo de lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte para lá Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo Oswald de Andrade citado por Massaud Moisés. A literatura brasileira através dos textos. 21 ed. São Paulo: Cultrix, 1998, p. 403. É a partir da figura de Oswald de Andrade (1890-1954) que podemos analisar criticamente o legado do Modernismo paulista, já que foi ele que fez, do ponto de vista formal, a experiência vanguardista com ênfase no primitivismo31. Juntamente com Mário de Andrade, representou a ala inovadora e combativa do Modernismo. Apregoado na Poesia Pau-Brasil e no Manifesto Antropófago, o primitivismo de Oswald levou-o a uma interpretação fecunda da cultura brasileira a partir da destruição e recriação da cultura europeia. As influências que recebeu das vanguardas europeias (foi ele o responsável por trazer para o Brasil os movimentos de vanguarda, especialmente o Futurismo, de Marinetti) foram transpostas para a nossa literatura com inventividade original. De forma simples e sarcástica, capta o “primitivo” das primeiras fontes escritas da literatura nacional através de uma espontânea ingenuidade ou de um reverso malicioso, que mais tarde comporiam o perfil do brasileiro. Tem uma faceta polemizante e sarcástica que parece identificá-lo, expressa principalmente nos poemas, quase sempre prosaicos. De influência cubo-futurista, os poemas- piada32 são característicos de um primeiro momento do autor e refletem a combatividade polêmica, a paródia e o vanguardismo de seu temperamento. O primeiro agrupamento destacado aqui da obra poética Pau-Brasil, caro, porque o ‘espírito da piada’, o ‘poema piada’ são tidos hoje por característico precípuo do Modernismo, como se toda a obra de MuriloMendes, de Mário de Andrade, de Carlos Drummond de Andrade e outros, inclusive eu, não passasse de um chocarrilho de piadas. Houve um poeta na geração de 22 que se exprimiu quase exclusivamente pela piada: Oswald de Andrade. Mas isso nele não era ‘modernismo’: era, e continua sendo, o seu modo peculiar de expressão [...]. Mas quem negará a carga de poesia que há nas piadas de ‘Pau-Brasil’? E por que essa condenação da piada, como se a vida só fosse feita de momentos grandes ou se só neste houvesse teor poético?” (Manuel Bandeira apud José Aderaldo Castello, op. cit., p. 147). Profª. Cristiane Literatura Página 14 de 23 “História do Brasil”, contém, inicialmente, um releitura bem- humorada da carta de Pero Vaz de Caminha. Depois, seguem alguns dos “Poemas da colonização”. Pero Vaz de Caminha A descoberta Seguimos nosso caminho por este mar de longo Até a oitava da Páscoa Topamos aves E houvemos vista de terra Os selvagens Mostraram-lhes uma galinha Quase haviam medo dela E não queriam pôr a mão E depois a tomaram como espantados As meninas da gare Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis Com cabelos mui pretos pelas espáduas E suas vergonhas tão altas e tão saradinhas Que de nós as muito bem olharmos Não tínhamos nenhuma vergonha Poemas da colonização O recruta O noivo da moça Foi para a guerra E prometeu se morresse Vir escutar ela tocar piano Mas ficou para sempre no Paraguai O gramático Os negros discutiam Que o cavalo sipantou Mas o que mais sabia Disse que era Sipantarrou. O capoeira – Qué apanhá sordado? – O quê? – Qué apanhá? Pernas e cabeças na calçada. Medo da senhora A escrava pegou a filhinha nascida Nas costas E se atirou no Paraíba Para que a criança não fosse judiada Senhor feudal Se Pedro Segundo Vier aqui Com história Eu boto ele na cadeia Seguem-se a esses conjuntos diversos outros que passam a ser o produto pessoal de observações diretas de um Brasil contemporâneo ao autor. Reproduzimos aqui alguns dos mais significativos. Vício na fala Para dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados Pronominais Dê-me um cigarro Diz a gramática Do professor e do aluno E do mulato sabido Mas o bom negro e o bom branco Da Nação Brasileira Dizem todos os dias Deixa disso camarada Me dá um cigarro Erro de português Quando o português chegou Debaixo de uma bruta chuva Vestiu o índio Que pena! Fosse uma manhã de sol O índio tinha despido O português. Leia agora a “falação” com que abre seu notável livro de poemas, uma espécie de “introdução à obra”: O Cabralismo. A civilização dos donatários. A Querência e a Exportação. O Carnaval. O Sertão e a Favela. Pau Brasil. Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. A riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dança. Toda a história da Penetração e a história comercial da América. Pau Brasil. Contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dominando diplomaticamente as selvas selvagens. Citando Virgílio para os tupiniquins. O bacharel. País de dores anônimas. De doutores anônimos. Sociedade de náufragos eruditos. Donde a nunca exportação de poesia. A poesia emaranhada na cultura. Nos cipós das metrificações. Século vinte. Um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como babéis de borracha. Rebentaram de enciclopedismo. A poesia para os poetas. Alegria da ignorância que descobre. Pedr’Álvares. Uma sugestão de Blaise Cendrars: – Tendes as locomotivas cheias, ides partir. Um negro gira a manivela do desvio rotativo em que estais. O menor descuido vos fará partir na direção oposta ao vosso destino. Contra o gabinetismo, a palmilhação dos climas. A língua sem arcaísmos. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Passara-se do naturalismo à pirogravura doméstica e à Kodak excursionista. Todas as meninas prendadas. Virtuoses de piano de manivela. As procissões saíram do bojo das fábricas. Foi preciso Profª. Cristiane Literatura Página 15 de 23 desmanchar. A deformação através do impressionismo e do símbolo. O lirismo em folha. A apresentação dos materiais. A coincidência da primeira construção brasileira no movimento de reconstrução geral. Poesia Pau Brasil. Contra a argúcia naturalista, a síntese. Contra a cópia, a invenção e a surpresa. Uma perspectiva de outra ordem que a visual. O correspondente ao milagre físico em arte. Estrelas fechadas nos negativos fotográficos. E a sábia preguiça solar. A reza. A energia silenciosa. A hospitalidade. Bárbaros, pitorescos e crédulos. Pau Brasil. A floresta e a escola. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau Brasil.33 José Aderaldo Castello comenta esse excerto: A “falação” com que se abre o livro propõe enunciados sintéticos, telegráficos, como se fosse um despacho-aviso de urgência, revelador do Brasil, numa perspectiva abrangente das surpresas desde o descobrimento ao contemporâneo. O “primitivismo” não é simples postura vanguardista, e sim fundamento da compreensão e contribuição pessoal, em correspondência com o denominador comum – a brasilidade – do que então se discutia e se propunha literalmente. Em Oswald de Andrade, a proposta “Pau-Brasil” – brasilidade – individualiza-se à medida que ele subordina a inspiração criadora e a crítica ao reconhecimento implícito da ambição- atração aventureira como um dos objetivos dos primórdios da nossa colonização, e em que reage pela ironia, irreverência, senso de humor, contra o sentimentalismo bovarista do século XIX. José Aderaldo Castello, op. cit., p. 142-143. Oswald chega a afirmar que “o primitivismo que na França aparecia como exotismo era para nós, no Brasil, primitivismo mesmo”34. Na opinião de Alfredo Bosi, sua obra em prosa carrega “o melhor e o pior do Modernismo”35. A experiência do romance informal seria o ponto alto de sua obra. Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte- Grande (1933) que, segundo Haroldo de Campos, é um grande “não livro”, são romances que correm paralelos às poéticas do “Pau-Brasil” e do “Manifesto Antropófago” no sentido de “satirizar [de forma corrosiva] o Brasil da ‘aristocracia’ cafeeira aburguesada nas grandes capitais [...] mas nem uma nem outra deixa de ser o reflexo literário da mesma ‘modernidade’ mundana a que o escritor pertencia como filho (pródigo) da classe que ironiza”36. O estilo das Memórias sentimentais tem sido aclamado pela crítica estruturalista como uma revolução formal que pode ser comparada à da Pauliceia desvairada, de Mário de Andrade. Formado por “capítulos-instantes”, “capítulos- relâmpagos”, em que se nota claramente a influência do 33 Todos os poemas de Oswald de Andrade e a “Falação” foram extraídos do livro Pau-Brasil, edição comemorativa in: Caixa Modernista. São Paulo: Edusp / Editora UFMG / Imprensa Oficial, 2003. cinema (devido à colagem rápida dos signos), é uma prosa caracterizada pelo uso das “palavras em liberdade” da Poesia Pau-Brasil, ou seja, na qual se confina a condensação poética. Vale-se do verso livre e do cubofuturismo para alcançar a total desarticulação da frase e uma nova maneira de dispor o texto ao se utilizar do espaço proporcionado pelo papel de forma inovadora. Nesse sentido, Oswald de Andrade pode ser considerado o precursor da poesia concreta, tema que estudaremos no último caderno. Leia dois capítulos das Memórias sentimentais e note o estilo telegráfico e o uso de neologismos, a influência das vanguardas europeias, a ruptura com a sintaxe tradicional
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