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Manual de Farmacologia D�. R����� E����� Nota da Editora: A área da saúde é um campo em constante mudança. As normas de segurança padronizadas precisam de ser obdecidas; contudo, à medida que as novas pesquisas ampliam nossos conhecimentos, tornam-se necessárias e modificações adequadas. O autor desta obra verificou cuidadosamente os nomes genéricos das peças mencionadas, bem como conferiu os dados, de modo que as informações fossem precisas e de acordo com os padrões aceitos por ocasião da publicação. Todavia, os leitores devem prestar atenção às novas informações , a fim de se certificarem de que o padrão não sofreu alterações. Isso é importante, sobretudo em relação a informações novas ou que aparecem com pouca frequência. O autor e a editora não podem ser responsabilizados pelo uso impróprio ou pela aplicação incorreta do produto apresentado nesta obra. O autor e a editora empenharam-se para citar adequadamente e dar o devido crédito a todos os detentores dos direitos autorais de qualquer material utilizado neste livro, dispondo-se a possíveis acertos cado, inadvertidamente a identificação de algum deles tenha sido omitida. Nome do livro: Manual de Farmacologia Autor: Rafael Escada Ano: 2020 Direitos exclusivos para a língua portuguesa Copyright© 2020 por Carpe Noctem Reservado todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo eletrónico, mecânico, fotocópia, digitalização, gravação, sistema de armazenamento e disponibilização de informação, sítio web, blogue ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora. Índice Princípios gerais de farmacologia Farmacodinamia Farmacocinética Fármacos com acção no sistema nervoso autónomo e central Introdução ao estudo dos fármacos colinérgicos Fármacos de acção colinérgica: parassimpaticomiméticos Fármacos de acção colinérgica: antagonistas dos receptores muscarínicos Fármacos de acção colinérgica: antagonistas dos receptores nicotínicos Introdução ao estudo do sistema adrenérgico Fármacos de acção adrenérgica: simpaticomiméticos Fármacos de acção adrenérgica: bloqueadores adrenérgicos Fármacos que interferem com a transmissão 5- hidroxitriptaminérgica Sistema opiáceo endógeno Fármacos com acção nos receptores opiáceos Cannabis e canabinóides Etanol Fármacos com acção no sistema endócrino Estrogénios, progestagénios e androgénios Hormonas tiroideias Retinóides Vitamina D Anti-diabéticos Anti-bacterianos Introdução ao estudo dos antibióticos β -lactâmicos Penicilinas Cefalosporinas Outros β -lactâmicos Inibidores das β -lactamases Tetraciclinas Aminoglicosídeos Quinolonas Macrólidos Inibidores da síntese de folatos Cloranfenicol Estreptograminas Oxazolidinonas Lincosamidas Nitroimidazoles Antibióticos peptídicos Outros anti-bacterianos Anti-tuberculosos Tabelas-síntese de anti-bacterianos por microorganismo Fármacos com acção no sistema nervoso central Anti-depressores e ansiolíticos Tranquilizantes Farmacoterapia da epilepsia Anti-parkinsonianos Anti-psicóticos Terapia da doença bipolar Histamina e anti-histamínicos Sistema purinérgico Fármacos com acção no sistema cardiovascular e renal Anti-arrítmicos Farmacoterapia da doença cardíaca isquémica Terapia da insuficiência cardíaca congestiva Terapia da hipertensão Sistema da endotelina Sistema das cininas Sistema renina-angiotensina-aldosterona Diuréticos Fármacos que interferem com a hemóstase Anti-inflamatórios e imunomoduladores Corticosteróides Anti-inflamatórios não-esteróides Análogos das prostaglandinas e antagonistas dos leucotrienos Farmacoterapia da gota Imunomoduladores Anticorpos anti-neoplásicos Anti-víricos Agentes anti-víricos Agentes anti-retrovíricos Farmacodinamia Em termos muito genéricos, a farmacodinamia pode ser entendida como a ciência que estuda o modo como um determinado fármaco actua num organismo vivo. Ora, na maior parte dos casos, os fármacos dever-se-ão ligar a um receptor, de modo a exercerem os seus efeitos. Após ocuparem um receptor, os fármacos podem activar, inactivar, ou não induzir qualquer alteração no receptor em questão – mediante essas três possibilidades (ocupação e activação do receptor, ocupação e inactivação do receptor, e apenas ocupação do receptor), os fármacos podem ser classificados em três grandes grupos - agonistas, antagonistas e agonistas inversos. Classes de fármacos de acordo com as suas propriedades farmacodinâmicas Agonistas Os agonistas são fármacos que ocupam e activam receptores aos quais se ligam. De facto, ao ligarem-se aos seus receptores, os agonistas alteram a conformação destes, o que induz o receptor a desempenhar um efeito (tal como activar uma cascata de sinalização celular, ou abrir um canal iónico). A título de exemplo, é comum administrar adrenalina a indivíduos com asma, uma vez que esta catecolamina ocupa e activa os adrenorreceptores brônquicos, promovendo a broncodilatação. Antagonistas Por seu turno, os antagonistas são fármacos que ocupam os receptores, mas não induzem nestes qualquer alteração de conformação. Assim, os antagonistas não estimulam os receptores, apenas impedem que outras substâncias se liguem a estes. A título de exemplo, a atropina ocupa os receptores da acetilcolina, impedindo, por isso, que a acetilcolina se ligue aos seus receptores. Os antagonistas podem ser do tipo competitivo ou não-competitivo. Um antagonista competitivo, como o próprio nome indica, actua no mesmo receptor (e no mesmo local de ligação) do agonista, competindo com este pelo mesmo local de ligação do receptor. Ou seja, a atropina (referida no exemplo do parágrafo anterior) é considerada um antagonista competitivo da acetilcolina, uma vez que ocupa os mesmos receptores (e locais de ligação) da acetilcolina. Todavia, a acção da atropina cessa, caso seja administrada uma elevada dose suplementar de acetilcolina. Estes antagonistas, cuja acção cessa aquando da administração de concentrações muito elevadas do agonista, designam-se por antagonistas competitivos em equilíbrio e estabelecem ligações fracas com os seus receptores (o que explica a reversibilidade da acção destes fármacos – os agonistas podem remover os antagonistas dos receptores por competição, desde que a sua dose seja suficiente). Por outro lado, existem antagonistas que se ligam aos respectivos receptores de forma irreversível ou pseudo-irreversível. Deste modo, a acção destes fármacos, que se designam por antagonistas competitivos em não-equilíbrio, não cessa aquando da administração de uma dose aumentada do agonista. Por oposição, os antagonistas não-competitivos não actuam nos mesmos locais de ligação dos receptores dos agonistas. Os antagonistas não-competitivos químicos actuam nos agonistas, sequestrando-os e impedindo-os de interagir com os seus receptores. A título de exemplo, a protamina é um antagonista químico da heparina, uma vez que se liga à heparina, impedindo esta última molécula de exercer os seus efeitos. Já o antagonismo não-competitivo fisiológico caracteriza-se pela presença de dois agonistas para receptores diferentes, e de cuja activação resultam efeitos opostos. A título de exemplo, a adrenalina e o captopril são antagonistas fisiológicos, uma vez que a adrenalina actua em receptores adrenérgicos, promovendo um aumento da pressão arterial, enquanto o captopril é um IECA, que promove uma redução da pressão arterial. De referir que, existem fármacos que actuam no centro alostérico dos receptores dos agonistas (ou seja nos mesmos receptores que os agonistas, mas em locais diferentes daqueles aos quaisos agonistas se ligam). Ao actuarem alostericamente, estes moduladores alostéricos induzem alterações conformacionais no centro activo dos receptores, aumentando ou diminuindo a capacidade de ligação dos agonistas aos receptores. Antagonistas inversos Os agonistas inversos são fármacos que se ligam a receptores que se encontram constitucionalmente activos, diminuindo a sua actividade. Assim, enquanto os agonistas ocupam e activam receptores que se encontram inactivos, os agonistas inversos promovem o término da resposta dos receptores que se encontram activos. Actualmente, pensa-se que muitos fármacos que tinham vindo a ser classificados como antagonistas serão, na verdade, agonistas inversos. Propriedades farmacodinâmicas Afinidade Nem todos os fármacos, sejam eles agonistas ou antagonistas, apresentam a mesma capacidade de ocupação dos seus receptores. Para avaliar essa capacidade, determina-se a afinidade do fármaco. Para tal, calcula-se a constante de dissociação em equilíbrio (K) do fármaco em questão, que representa a concentração de fármaco (expressa em moles por litro) necessária para que este seja capaz de ocupar 50% dos seus receptores. Em suma, o valor de K exprime a afinidade do fármaco, permitindo conhecer qual a capacidade apresentada pelos fármacos de ocupação dos seus receptores. Utilizando um exemplo prático: Imaginemos que os fármacos A e B têm respectivamente um K de 1nM e 10nM. Ora, isto significa que A tem maior afinidade do que B, uma vez que apenas 1nM de A é suficiente para ocupar metade dos seus receptores (algo que apenas é conseguido com 10 nM de B). Por vezes, para exprimir a afinidade de um fármaco, é calculado o logaritmo negativo de K (pK). Assim, utilizando o exemplo anterior: KA= 1nM = 1 x 10-9 M pKA = -log (10-9) = 9 KA= 10nM = 10 x 10-9 M pKB = -log (10-8) = 8 Deste modo, o pK de A é 9, enquanto o pK de B é 8. Ou seja, como o pK de A é superior ao pK de B, A tem maior afinidade que B (esta relação é inversa à verificada para o K, uma vez que, quanto maior o K, menor a afinidade de um fármaco). Através do estudo das funções “concentração de fármaco-ocupação de receptores” é ainda possível estudar outras constantes para além de K. Todavia, estas constantes, das quais é exemplo a constante de equilíbrio de associação, não são tão utilizadas no meio científico, uma vez que a afinidade deve ser expressa através dos valores de K ou pK. Eficácia A eficácia diz respeito à capacidade de um fármaco induzir uma alteração no seu receptor (e, como tal, uma resposta). Ilustrando com um exemplo, sabe-se que, ao ocupar 5% dos receptores, o fármaco A induz resposta máxima, enquanto o fármaco B despoleta apenas 50% da resposta máxima. Ora, neste caso, o fármaco A é mais eficaz que o fármaco B, uma vez que, para a mesma percentagem de receptores ocupados, A induz uma maior resposta que B. Existem vários agonistas que, quando administrados em concentrações suficientes para saturar o seu pool de receptores, conseguem activar os seus receptores de tal modo que passa a ser obtida uma resposta máxima (ou seja, a resposta mais “forte” capaz de ser gerada pelo sistema receptor-efector). Estes agonistas designam- se por agonistas totais. Por oposição, os agonistas parciais conseguem activar os seus receptores, mas não conseguem gerar nunca uma resposta máxima, por muito elevada que seja a sua concentração. Assim, os agonistas parciais apresentam menor eficácia que os agonistas totais, enquanto os antagonistas apresentam uma eficácia nula, uma vez que estes fármacos se limitam a ocupar os receptores, não despoletando alterações nestes. De referir que, de acordo com a teoria dos receptores poupados, a obtenção de resposta máxima não requer, normalmente, a ocupação de todos os receptores por parte de um agonista total. A evidência experimental para esta teoria surgiu a partir de estudos em que eram dadas doses progressivamente maiores de um antagonista irreversível, na presença de um agonista. Ora, mesmo perante doses consideráveis (mas não muito grandes) de antagonista, os agonistas conseguiam induzir uma resposta máxima, uma vez que ainda restava uma quantidade suficiente de receptores livres aos quais estes fármacos se pudessem ligar. A eficácia e a afinidade são propriedades distintas e independentes, de tal modo que um fármaco com elevada eficácia não apresenta necessariamente elevada afinidade, e vice-versa. A título de exemplo, a morfina e a buprenorfina são dois analgésicos com eficácia e afinidade distintas: enquanto a morfina é um agonista total que apresenta baixa afinidade e elevada eficácia, a buprenorfina é um agonista parcial que apresenta maior afinidade mas menor eficácia. Assim, em situações mais graves é preferível administrar uma grande dose de morfina, uma vez que a buprenorfina, apesar de se ligar facilmente a uma grande quantidade de receptores, apresenta baixa eficácia. Por outro lado, quando se pretende administrar morfina, esta não deve ser administrada em conjunto com a buprenorfina, uma vez que a buprenorfina ocupa os receptores dos opiáceos com mais facilidade, impedindo a acção, mais eficaz, da morfina. Assim, os agonistas parciais actuam como antagonistas parciais, quando se encontram na presença concomitante de agonistas totais. Potência A potência consiste na concentração (EC50) ou dose (ED50) de um fármaco necessária para a obtenção de 50% da resposta máxima desse fármaco. O conceito de potência é diferente do conceito de afinidade, embora a potência dependa parcialmente da afinidade do fármaco. De referir que, no caso particular dos agonistas totais que para despoletarem resposta máxima necessitam de ocupar todos os receptores, o valor da afinidade é igual ao valor da potência. O conceito de potência é igualmente distinto do conceito de eficácia, de tal modo que nem sempre um agonista mais eficaz é mais potente que um agonista menos eficaz (tal como nem sempre um agonista total é mais potente que um agonista parcial). De facto, existem casos em que é necessária menor concentração de um agonista parcial para atingir 50% da resposta máxima. Em termos clínicos, a efectividade de um fármaco não depende da sua potência, mas sim da sua eficácia máxima e das suas propriedades farmacocinéticas. Assim, quando os terapeutas são forçados a escolher que fármaco deverão prescrever, normalmente têm preferencialmente em consideração a eficácia do fármaco, e não a sua potência. Todavia, a potência é importante para determinar a dose que deverá ser administrada do fármaco em questão. Para além disso, ao analisar uma curva concentração-efeito de um fármaco, o terapeuta deve ter em conta a inclinação das curvas – quanto mais vertical for a curva de um fármaco, mais rápido é o aumento do seu efeito. A título de exemplo, a curva para os barbitúricos é muito vertical, o que significa que rapidamente a sua acção passa de sedativa a indutora de coma. pA2 Para estudar a actividade dos antagonistas competitivos, é frequente determinar a concentração de antagonista na presença da qual é necessário duplicar a concentração do agonista, de modo a que se obtenha a mesma resposta a esse agonista na ausência do antagonista (ou seja, qual a concentração de antagonista, para a qual, caso dupliquemos a concentração do agonista, seja obtida uma resposta similar à verificada na ausência do antagonista). Essa concentração é expressa em notação logarítmica e designa-se por “pA2”, o qual em termos matemáticos se determina a partir da equação de Schild. Ora, de acordo com a definição, quanto maior o valor de pA2, mais potente o antagonista em questão. Regulação da actividade dos receptores A exposição continuada a um determinado fármaco leva a que o “organismo responda”, através da regulação da actividade dos receptores nos quais o fármaco em questão actua. A exposição continuada a um determinado agonista, em termos agudos (num período de horas ou dias), leva a queeste induza progressivamente uma resposta de menor intensidade. Este fenómeno é reversível e designa-se por dessensibilização. A título de exemplo, a β-arrestina é responsável pela dessensibilização nos receptores β-adrenérgicos, uma vez que, ao impedir que ocorra uma grande activação na maquinaria a jusante destes receptores, induz uma diminuição da intensidade da resposta associada à activação destes receptores. Por outro lado, a exposição crónica a um determinado agonista induz um fenómeno de down-regulation, que está associado à diminuição progressiva do número de receptores presentes na célula (sendo, por isso, de reversibilidade mais lenta). Este fenómeno explica porque é que os toxicodependentes têm de aumentar a sua dose de estupefacientes para obter os mesmos efeitos. Já a exposição crónica a um determinado antagonista induz um fenómeno de up-regulation, que consiste no aumento do número de receptores presentes na célula – este fenómeno verifica-se, por exemplo, em indivíduos aos quais sejam cronicamente administrados β- bloqueadores e, como tal, a supressão brusca destes fármacos é deveras perigosa. Outros alvos moleculares dos fármacos Canais iónicos Alguns fármacos podem actuar como bloqueadores ou abridores dos canais iónicos. A título de exemplo, os fármacos empregues em anestesias locais actuam como bloqueadores dos canais de sódio dependentes da voltagem dos neurónios que serão anestesiados. Por outro lado, em situações de epilepsia (perturbação caracterizada por um excesso de actividade dos neurónios do sistema nervoso central), é possível administrar fármacos abridores dos canais de potássio (de forma a contrariar os efeitos de despolarização em massa registados nesta patologia) ou bloqueadores dos canais de sódio. Em suma, perante um fármaco que actue num canal iónico, é essencial saber em que canal este exerce o seu efeito e se actua num sentido de abrir ou de bloquear o canal iónico em questão. Enzimas Existem fármacos que interferem com a actividade enzimática, podendo inibi-la ou estimulá-la. Ilustrando com um exemplo: A acetilcolina libertada pelos neurónios exerce os seus efeitos e é imediatamente degradada pela enzima colinesterase, de modo a impedir a acumulação deste neurotransmissor. Ora, os indivíduos com miastenia gravis (perturbação caracterizada por falta de força muscular) apresentam um defeito na placa motora, de tal modo que a administração de um fármaco que iniba a colinesterase se revela benéfica, no sentido em que permite que se acumule maior quantidade de acetilcolina e, como tal, que se desenvolva maior força muscular. No que concerne aos estimuladores enzimáticos, destaque para os fármacos que estimulam a guanil cíclase, permitindo a génese de uma maior quantidade de cGMP e, por conseguinte, maior dilatação do tecido peniano. Transportadores Alguns fármacos podem actuar nas moléculas transportadoras, estimulando-as ou inibindo-as. A título de exemplo, a insulina é um estimulador do transportador da glicose GLUT4, sendo, como tal, administrada a indivíduos em coma diabético. Por oposição, a fluoxetina é um inibidor do transportador de serotonina, sendo utilizada em situações de depressão. De facto, a falta de serotonina na fenda sináptica está associada ao desenvolvimento de depressão. Ora, ao bloquear o transportador que opera a recaptação da serotonina lançada na fenda sináptica para o neurónio pré-sináptico, a fluoxetina permite que uma maior quantidade de serotonina se mantenha na fenda sináptica. Farmacocinética Enquanto a farmacodinamia estuda, de grosso modo, as acções que os fármacos exercem no organismo; a farmacocinética estuda o modo como o organismo interage e modifica os fármacos. De facto, para que um fármaco possa actuar, este deverá chegar aos tecidos onde actua (biofase) em concentrações apreciáveis. Existem situações em que é possível colocar o fármaco em contacto directo com os tecidos-alvo, nomeadamente quando estes correspondem às mucosas ou à pele. Todavia, na maior parte dos casos, a biofase não pode ser colocada em contacto directo com o fármaco, e este terá de sofrer uma série de processos bioquímicos até chegar aos tecidos-alvo e exercer os seus efeitos. Os fármacos cuja aplicação envolve o contacto directo com a biofase designam-se por fármacos de administração tópica. Por oposição, diz- se que os restantes fármacos apresentam administração sistémica, pois deverão atingir a corrente sanguínea para atingirem os tecidos- alvo. De modo a exercerem os seus efeitos, os fármacos de administração sistémica cumprem, em regra, quatro etapas sobreponíveis (ou seja, que não ocorrem sequencialmente, mas sim com alguma simultaneidade) que constituem o ciclo dos medicamentos: absorção, distribuição, biotransformação e excreção. Estes processos podem interferir com as características e/ou concentração dos fármacos, de tal modo que o seu estudo (que é assegurado pela farmacocinética) é fundamental para assegurar uma correcta administração farmacológica. Os processos farmacocinéticos estão sujeitos a uma grande variabilidade inter-individual, visto serem influenciados por factores como a idade, o peso, as patologias, e outros fármacos que estejam a ser tomados pelos pacientes. O processo de biotransformação é aquele que mais variabilidade apresenta, seguido ordenadamente pelos processos de excreção (que está dependente, sobretudo, da função renal do indivíduo), distribuição e absorção. Assim, tendo em conta que um mesmo regime posológico não origina os mesmos efeitos em indivíduos distintos, torna-se essencial optar por uma via de personalização posológica. De referir que essa personalização deverá ter sempre em conta o factor “idade”, uma vez que o envelhecimento está associado à diminuição das funções fisiológicas. Conhecer o modo como os fármacos são “processados” no organismo, bem como os factores fisiopatológicos individuais que afectam as etapas do ciclo dos medicamentos revela-se particularmente importante para a determinação da janela terapêutica de cada fármaco. A janela terapêutica de um fármaco compreende o intervalo de concentrações em que esse fármaco apresenta acção terapêutica efectiva, sem que esta gere uma toxicidade inaceitável. Processos de travessia das membranas biológicas Em qualquer processo integrante do ciclo dos medicamentos, verifica-se a necessidade de travessia das membranas biológicas por parte do fármaco em questão. Essa travessia poderá ser feita por difusão passiva, transporte mediado, ou pinocitose, dependendo das características do fármaco em questão. Difusão passiva A difusão passiva é um processo de transporte não-mediado e que ocorre a favor do gradiente de concentração, sem concomitantes gastos energéticos. Excluindo os casos de passagem por poros aquosos, a difusão passiva requer a dissolução de moléculas pela bicamada fosfolipídica membranar. Ora, a velocidade de difusão depende, não tanto das dimensões da molécula em questão, mas sobretudo de outras propriedades, tais como a sua lipofilia e o seu grau de ionização. Essas relações encontram-se expressas na Lei de Fick, que permite determinar a velocidade de difusão para uma dada partícula: O grau de ionização de uma determinada molécula é igualmente importante para determinar como se processará a difusão passiva. De facto, a difusão ocorre mais facilmente caso as moléculas se encontrem na forma não- ionizada (mais lipossolúvel). Assim, de acordo com a equação de Henderson- Hasselbach, na presença de diferenças de pH entre os dois lados da membrana, passa a ocorrer difusão num sentido, até que as concentrações da forma não ionizada existentes nos dos lados da membrana atinjam o equilíbrio. De referir que a equação de Henderson- Hasselbach assume formas diferentes na presença de um ácido fraco ou de uma base fraca. Assim, de acordo com estas equações, é possível deduzir que um ácido fraco se tende a acumular no lado alcalino da membrana, enquanto umabase fraca se tende a acumular no lado ácido da membrana. Transporte mediado O transporte mediado é utilizado para fazer deslocar moléculas que, por serem excessivamente polares ou demasiado grandes, são incapazes de atravessar as membranas lipídicas por difusão simples. Este transporte é operado por proteínas transportadoras, podendo ocorrer a favor do gradiente de concentração e sem concomitantes gastos energéticos (difusão facilitada), ou contra o gradiente de concentração e com simultâneos gastos energéticos (transporte activo). Em qualquer um dos casos, o transporte mediado caracteriza- se por duas propriedades – selectividade (um dado transportador apenas transporta determinados fármacos específicos) e saturabilidade (visto que o número de transportadores é finito). Em termos matemáticos, a velocidade de transporte mediado é passível de ser calculada através da equação de Michaelis-Menten: Pinocitose A pinocitose é um processo de transporte de fluidos e macromoléculas, que ocorre, sobretudo, ao nível dos capilares e na parede intestinal. Este processo de transporte activo, apesar de quantitativamente menos importante, revela-se particularmente importante para o transporte de várias moléculas de grande importância farmacológica. Vias de administração sistémica de fármacos Via oral A via oral (administração per os) é a via de administração sistémica clinicamente mais utilizada para a administração de fármacos. Esta via apresenta uma considerável vantagem, que diz respeito ao facto de a maior parte dos fármacos administrados oralmente ser absorvida no intestino delgado que, como mencionado anteriormente, apresenta várias características favoráveis à absorção de substâncias. A absorção por via oral per se não apresenta grande variabilidade inter- individual. Todavia, o processo de absorção é influenciado por algumas propriedades gastrointestinais, as quais já poderão apresentar forte variabilidade. Uma dessas propriedades é o tempo de trânsito intestinal que, como já foi referido, interfere com o tempo de contacto de um fármaco. Por outro lado, o tempo de esvaziamento gástrico também poderá influenciar a absorção por via oral, na medida em que esse factor determina o tempo durante o qual o fármaco será exposto ao pH ácido do estômago (sendo que existem moléculas que poderão ser alteradas ou destruídas por um baixo pH). Ora, o tempo de esvaziamento gástrico caracteriza-se por ampla variabilidade inter-individual, dependendo das características fisiológicas dos pacientes, das suas patologias e de outros fármacos que estes possam estar a tomar. O pH do tubo digestivo, não apresentando grande variabilidade inter- individual, também actua como um condicionante da absorção por via oral. Ao nível do lúmen gástrico, regista-se um pH ácido, motivo pelo qual os ácidos fracos se encontram maioritariamente na forma não- ionizada, enquanto as bases fracas se encontram maioritariamente na forma ionizada. Assim, ao nível do estômago, a absorção dos ácidos encontra-se favorecida, enquanto a absorção das bases se encontra pouco favorecida. Por oposição, o pH do intestino delgado é alcalino, de tal modo que as bases fracas se encontram maioritariamente na forma não-ionizada, enquanto os ácidos fracos se encontram maioritariamente na forma ionizada. Assim, ao nível do intestino delgado, tendo em consideração apenas o pH, a absorção das bases encontra-se favorecida, enquanto a absorção dos ácidos se encontra pouco favorecida. Apesar disso, a maior parte dos fármacos ácidos continua a ser absorvida ao nível do intestino delgado, uma vez que este apresenta maior área de absorção, irrigação mais rica, e menor espessura, comparativamente ao estômago. A administração de um fármaco por via oral deverá ainda ter em conta a presença ou ausência de alimentos – a presença de alimentos pode modificar a velocidade e extensão da absorção de um fármaco (ou seja, a sua biodisponibilidade). De facto, a presença de alimentos está associada à diminuição da velocidade de esvaziamento gástrico, e ao aumento da motilidade intestinal (o que leva a uma diminuição do tempo de contacto entre o fármaco e a superfície intestinal). Por outro lado, as substâncias secretadas aquando da digestão podem se ligar aos fármacos, formando complexos que impeçam a absorção destes últimos. Por fim, caso os fármacos sejam absorvidos por processos de transporte mediado, é possível existir competição entre o fármaco e os nutrientes pelos mesmos transportadores. Todavia, apesar destas desvantagens, a administração de fármacos na presença de alimentos pode ser benéfica em algumas situações – a título de exemplo, os fármacos irritantes ou lesivos para a mucosa gástrica devem ser administrados na presença de alimentos, uma vez que estes últimos actuam como protectores da mucosa. Após serem absorvidos no intestino, os fármacos administra dos por via oral chegam ao sistema porta, sendo encaminha dos para o fígado. Assim, os fármacos contactam com o fígado antes de serem distribuído s para os restantes tecidos (incluindo para os seus tecidos- alvo). Ora, ao nível do fígado, estes fármacos poderão sofrer alterações que poderão condiciona r a sua biodisponi bilidade – efeito de primeira passagem . Este fenómeno não ocorre de forma homogéne a para todos os fármacos: existem fármacos que não sofrem qualquer tipo de biotransfor mação hepática e, por isso, a sua passagem pelo fígado não afecta a sua biodisponi bilidade. Por oposição, existem fármacos que são amplament e metaboliza dos e inactivados pelos hepatócito s, de tal modo que a sua primeira passagem induz uma diminuição da sua biodisponi bilidade. De referir que, os fármacos que apresente m um efeito de primeira passagem muito intenso não deverão ser administra dos por via oral, pois caso contrário a sua eficácia será a priori muito mais reduzida. Apesar disso, existem, actualmente, medicamentos que tiram partido do efeito de primeira passagem. Os pró-fármacos são substâncias químicas desprovidas de actividade terapêutica per se. Todavia, aquando da sua passagem pelo fígado, estas substâncias são metabolizadas pelos hepatócitos e convertidas em fármacos com actividade terapêutica. A título de exemplo, o ácido acetilsalicílico (que não tem actividade terapêutica) é desacetilado no fígado, sendo convertido em ácido salicílico (que apresenta actividade terapêutica). Assim, o ácido acetilsalicílico é o pró-fármaco do ácido salicílico. Via sublingual A aplicação de fármacos por via sublingual possibilita que estes sejam rapidamente absorvidos, uma vez que o epitélio da mucosa bucal apresenta reduzida espessura e elevada vascularização. Para além disso, os fármacos absorvidos por via sublingual são transportados directamente para o sistema cava, escapando ao efeito de primeira passagem e, como tal, à metabolização hepática. Todavia, a aplicação de fármacos por via sublingual é desvantajosa, caso os fármacos em questão sejam demasiado irritantes ou apresentem um sabor desagradável. Via rectal Em comparação com o intestino delgado, o recto apresenta menor vascularização e menor superfície de absorção. Para além disso, o contacto do fármaco com a superfície absorvente é quase sempre prejudicado pela presença de fezes, o que leva a que a absorção por via rectal apresente eficácia inconstante. Acresce ainda o facto da acção irritante de muitos fármacos (que é tolerável por via oral) ser intolerável por via rectal. Todavia, apesar destas desvantagens, a aplicação de fármacos por via rectal pode ser utilizada em situações em que a administração oral esteja impossibilitada (por exemplo, num indivíduo com vómitos). Para além disso, cerca de metade da dose administrada por via rectal escapa ao efeito de primeira passagem, não sofrendo alterações da biodisponibilidade. Via intra-venosa A via intra-venosa comporta vários riscos e limitações, motivo pelo qual a aplicação de fármacos por esta via apenas deverá ocorrer quandonão é possível optar por outras vias de administração. Entre os riscos que podem decorrer da administração intra-venosa de medicamentos destaque para: 1. Desenvolvimento de infecções (sobretudo em doentes imunodeprimidos) 2. Desenvolvimento de reacções do tipo anafilático grave 3. Desenvolvimento de embolismo 4. Aparecimento de efeitos cardiovasculares e respiratórios graves 5. Contaminação por uso de material não-esterilizado Para além disso, apenas se podem aplicar soluções aquosas por via endovenosa, as quais deverão ser aplicadas lentamente, uma vez que uma aplicação vagarosa permite observar se estão a ser desenvolvidos efeitos inesperados no decurso da injecção (caso esses efeitos sejam observados, a administração do fármaco deve parar). Todavia, apesar das desvantagens referidas, a aplicação de fármacos por via intra-venosa também apresenta várias vantagens, nomeadamente: 1. Inexistência da etapa de absorção – A concentração do fármaco atinge valores máximos na corrente sanguínea, logo após a sua aplicação. Isto revela-se particularmente importante em situações de emergência. 2. Possibilita a administração de medicamentos que, quando aplicados por outras vias, apresentam fraca absorção, ou sofrem inactivação. 3. Permite a administração de grandes quantidades de líquidos por perfusão contínua. O processo de perfusão contínua permite ainda que as quantidades administradas sejam rigorosamente controladas, o que se revela particularmente importante quando os fármacos apresentam uma estreita janela terapêutica (isto é, quando as concentrações terapêuticas são muito próximas das concentrações tóxicas). 4. Possibilita a administração de fármacos que, por terem acção irritante local, não podem ser administrados por via intra-muscular ou subcutânea. Via intra-muscular A via intra-muscular é uma alternativa consistente à via oral, uma vez que todos os fármacos capazes de atravessar a parede capilar, e sem efeito irritante considerável, poderão, a priori, ser administrados por via intra-muscular. Todavia, os medicamentos que se encontram sob a forma de solução aquosa são mais facilmente absorvidos que aqueles que se encontram sob a forma de solução oleosa ou suspensão. A aplicação de fármacos por via intra-muscular está ainda associada a outras vantagens, nomeadamente, à rápida velocidade de absorção e à existência de regiões de elevada área de contacto (a aplicação de um medicamento deve ocorrer em músculos de grandes dimensões, como o glúteo máximo ou o deltóide) e rica irrigação (para aumentar a irrigação local, deverá ser feita uma massagem na região de aplicação da injecção). Contudo, a injecção de medicamentos por via intra-muscular também apresenta algumas desvantagens, nomeadamente, o risco de lesão de feixes nervosos, a dificuldade de auto-administração, a impossibilidade de administração de grandes volumes de líquidos, e o desenvolvimento de irritação e dor local. Via subcutânea Embora seja muito semelhante à via intra-muscular, a via subcutânea é mais dolorosa, mais susceptível de despoletar fenómenos de irritação local, e está associada a maior lentidão de absorção. Todavia, contrariamente ao que ocorre com a via intra-muscular, é possível auto- administrar medicamentos por via subcutânea. Em alguns casos é possível implantar cirurgicamente um comprimido no tecido celular subcutâneo. A presença desse comprimido permite que o fármaco presente seja absorvido de forma lenta e controlada, o que leva a que o seu efeito terapêutico se prolongue no tempo. De referir que este processo é utilizado, por exemplo, em programas de terapêutica hormonal de substituição. Via dérmica A via dérmica (percutânea) não é amplamente utilizada para administração sistémica. De facto, apesar de os fármacos administrados por via dérmica poderem atingir a corrente sanguínea (caso sejam suficientemente lipofílicos e pequenos), a passagem destes para o sangue ocorre a uma taxa irregular e difícil de quantificar. Assim, os fármacos aplicados por via dérmica apenas podem ser absorvidos de forma algo regular caso sejam “especificamente desenhados” para aplicação sistémica, e caso as áreas de absorção sejam cuidadosamente escolhidas – de facto, estes medicamentos deverão ser aplicados em zonas de pele fina e glabra, tais como as áreas esternal, subclavicular ou abdominal. Via inalatória A absorção de fármacos por via inalatória é deveras rápida, devido à pequena espessura dos alvéolos pulmonares e à elevada irrigação e extensa área do tecido pulmonar. Todavia, na maior parte dos casos, a via inalatória não é utilizada com fins sistémicos. Ora, dadas as características (já referidas) do tecido pulmonar, vários fármacos inalatórios para administração tópica podem ser involuntariamente absorvidos, gerando efeitos sistémicos potencialmente indesejáveis. Deste modo, os aerossóis indicados para administração tópica deverão conter apenas partículas cujas dimensões apenas lhes permitam chegar até aos bronquíolos (deste modo a passagem para os alvéolos pulmonares fica impedida). Caso isto se verifique, a administração tópica de um fármaco torna-se possível e o risco de absorção diminui. Via intra-óssea Esta via é, normalmente, praticada por punção do esterno e utilizada em situações de administração de grandes quantidades de líquido (sendo utilizada como alternativa à via intra-venosa). Via intra-tecal Esta via consiste na deposição directa de substâncias no sistema nervoso central, sendo utilizada aquando da presença de moléculas que, devido à sua dificuldade em atravessar a barreira hemato- encefálica, nunca poderiam atingir concentrações terapêuticas caso fossem aplicadas de outra forma. Ciclo dos medicamentos Absorção O processo de absorção de um fármaco define-se como a passagem de um fármaco desde o seu local de deposição até à circulação sanguínea. Qualquer fármaco que seja aplicado por via sistémica terá que sofrer absorção, com excepção dos fármacos que são administrados por via intra-venosa (que são directamente introduzidos na corrente sanguínea). Por seu turno, os fármacos que são administrados por via tópica poderão sofrer absorção, embora esta seja, na maior parte dos casos, considerada indesejável, uma vez que, quando se aplica um fármaco por via tópica, deseja-se normalmente que este apenas apresente efeitos locais na zona de aplicação. A absorção ocorre maioritariamente por difusão passiva, de tal modo que é passível de ser influenciada por diversos factores: 1. Área de absorção – Quanto mais extensa for a área de absorção, maior a velocidade com que decorre o processo de absorção. Assim, o intestino delgado revela-se um órgão particularmente dotado para a absorção de substâncias, uma vez que as suas pregas e vilosidades lhe conferem uma grande área de superfície. A área das membranas dos alvéolos pulmonares também é bastante extensa, o que facilita a absorção de certos fármacos inalados. 2. Tempo de contacto – O tempo de contacto entre um fármaco e a região absorvente revela-se particularmente importante no tubo digestivo: Existem porções do tubo digestivo (tais como o esófago) em que o fármaco se desloca tão rapidamente que não poderá ser absorvido. Por outro lado, as alterações do trânsito intestinal poderão condicionar o processo de absorção farmacológica – a diarreia (maior velocidade do trânsito intestinal) está associada a menor absorção por diminuição do tempo de contacto, enquanto a obstipação (menor velocidade do trânsito intestinal) está associada maior absorção. Neste sentido, o tempo de contacto entre o fármaco e a área absorvente está sujeito a alguma variabilidade inter-individual, uma vez que o trânsito intestinal é diferente consoante os indivíduos. 3. Intimidade do contacto – Quanto mais íntimo o contacto entre o fármaco e as membranas biológicas, mais eficaz será o processo de absorção. Assim, no caso do tubo digestivo, os medicamentos em solução ou suspensão são mais facilmenteabsorvidos que os medicamentos sólidos, devido ao facto de os primeiros estabelecerem um contacto mais íntimo com as mucosas. 4. Intensidade da irrigação – Quanto mais intensa for a irrigação de uma dada região, maior será a diferença de concentrações entre o local de deposição do fármaco e o sangue para o qual o fármaco se dirige. Por esse motivo, o intestino delgado, cuja irrigação é muito rica, é um órgão privilegiado para a absorção de substâncias. Por oposição, quando se procede à aplicação tópica de um fármaco, poderá ser administrado um vasoconstritor, de modo a reduzir a irrigação local e, consequentemente, a quantidade do medicamento que é absorvida. 5. Espessura da estrutura absorvente – Quanto menor for a espessura do tecido absorvente, maior será a velocidade de absorção. Isto ajuda a explicar porque é que a absorção dos fármacos ocorre predominantemente no intestino delgado, e não no estômago. Seguindo o mesmo raciocínio, dado serem muito finas, as mucosas nasal e bucal apresentam uma elevada velocidade de absorção, motivo pelo qual a aplicação tópica de fármacos nessas regiões poderá ser potencialmente perigosa. Distribuição A distribuição de um fármaco consiste na transferência reversível das moléculas farmacológicas desde o espaço intra-vascular até ao espaço extra-vascular (nomeadamente para os diferentes órgãos, tecidos, e fluidos corporais). O perfil de distribuição de um fármaco é particularmente influenciado pelos factores fisiológicos (idade, sexo, e peso corporal) e patológicos do indivíduo, bem como pela capacidade apresentada pelo fármaco em atravessar as membranas biológicas. A título de exemplo, a idade e o sexo do paciente condicionam a percentagem de água corporal, que, por sua vez, determina o volume de distribuição de um fármaco. O volume de distribuição (Vd) reflecte a quantidade de água presente nos compartimentos que o fármaco é capaz de atravessar – a título de exemplo, o plasma sanguíneo é constituído por três litros de água, motivo pelo qual, um fármaco que seja incapaz de atravessar a parede capilar (e que, portanto, apenas se possa deslocar no meio intra- vascular) apresenta um volume de distribuição de três litros. Por seu turno, um fármaco capaz de se deslocar por mais compartimentos terá um maior volume de distribuição. O estudo da distribuição de um fármaco deverá igualmente ter em conta as diferentes intensidades de irrigação registadas pelos vários órgãos. Assim, no início do processo de distribuição, a maior parte do fármaco é encaminhada pelos tecidos mais ricamente irrigados, nomeadamente o cérebro e algumas vísceras como os rins. Passado algum tempo, o fármaco passa a ser encaminhado para tecidos de irrigação intermédia, tais como o músculo esquelético e algumas vísceras menos irrigadas. Por fim, o fármaco é distribuído para os tecidos menos irrigados, nos quais se destaca o tecido adiposo (que, apesar da sua grande massa, é muito pobremente irrigado). Interacções entre os fármacos e as proteínas plasmáticas e tecidulares Ao estudar a distribuição dos fármacos, devemos ainda ter em consideração que estes interagem com as estruturas plasmáticas e tecidulares. De facto, verifica-se que tanto no meio intra-vascular como extra-vascular, existe sempre uma fracção de fármacos que circula ligada a proteínas. Todavia, apenas a fracção de fármacos que circula livremente (sem estar ligada a proteínas) é capaz de atravessar as membranas biológicas. Assim, deverá existir um equilíbrio dinâmico e reversível entre as formas livre e ligada dos fármacos, o que não implica que a percentagem de fármaco livre tenha que ser igual à percentagem de fármaco ligado. Como já foi referido, apenas a fracção livre é capaz de atravessar a membrana capilar (e as restantes membranas biológicas), sendo por isso a única fracção capaz de ter acção terapêutica e de sofrer eliminação. Por oposição, a fracção ligada é considerada farmacologicamente inactiva, actuando como um “depósito de fármaco”. Ou seja, como existe sempre um equilíbrio entre a fracção livre e a fracção ligada, à medida que a fracção livre vai sendo consumida, a fracção ligada vai se “desligando” das proteínas, assegurando a permanência de fármaco livre em circulação. Alguns fármacos apresentam mais afinidade para as proteínas plasmáticas, motivo pelo qual tendem a permanecer no compartimento intra-vascular. Por oposição, os fármacos que apresentam mais afinidade para as proteínas tecidulares tendem a deslocar-se para o espaço extra-vascular e, por conseguinte, a apresentar baixas concentrações plasmáticas. Quando os fármacos se ligam fortemente às estruturas extra-vasculares (tecidulares), o seu volume de distribuição atinge valores de milhares de litros. Ora, isto revela-se fisiologicamente impossível, uma vez que o volume de água corporal total ronda os 41 litros. Assim, devido aos valores anormalmente elevados que pode apresentar, passa a ser mais correcto designar o volume de distribuição por volume aparente de distribuição. Este parâmetro não tem qualquer significado fisiológico, servindo apenas para relacionar as doses administradas de um fármaco com as concentrações plasmáticas obtidas. Em suma, Vd apresenta valores muito elevados para os fármacos que se distribuem preferencialmente para o meio extra-vascular, e valores muito reduzidos para os fármacos que se mantêm tendencialmente no meio intra- vascular (no caso extremo de um fármaco que seja incapaz de passar para o espaço extra-vascular, Vd=3 litros, dado o plasma sanguíneo ser constituído por três litros de água). Interacção entre fármacos no processo de distribuição O perfil de interacção entre os fármacos e as proteínas plasmáticas adquire particular relevância aquando da administração concomitante de vários fármacos. De facto, caso sejam simultaneamente administrados dois fármacos com elevada afinidade para as proteínas plasmáticas, pode acontecer que um dos fármacos “desligue” o outro, que se encontrava previamente ligado (isto é perfeitamente plausível, uma vez que a ligação entre os fármacos e as proteínas plasmáticas é inespecífica). Ora, este fenómeno leva a um aumento da concentração plasmática da fracção livre (e, como tal, activa) desse último fármaco, o que acarreta consequências indesejáveis. Assim, este fenómeno de interacção farmacológica revela-se extremamente importante na prática clínica, sobretudo para fármacos que apresentam estreita janela terapêutica (ou seja, em que pequenas alterações da fracção livre podem comprometer a segurança do tratamento). A título de exemplo, caso seja administrado um anti- inflamatório não-esteróide a um doente medicado com varfarina (um anti-coagulante), o anti-inflamatório vai “desligar” a varfarina das proteínas plasmáticas, algo que faz aumentar a sua fracção-livre e, como tal, o risco de desenvolvimento de acidentes hemorrágicos. Convém ainda não esquecer que existem situações patológicas que cursam com uma diminuição da quantidade de proteínas plasmáticas. Nestas condições, um fármaco com uma elevada taxa de ligação às proteínas plasmáticas apresentará uma fracção livre muito superior, comparativamente ao que seria expectável numa situação normal. De referir apenas, que todos os tipos de proteínas plasmáticas podem se ligar aos fármacos, embora existam duas que assumam particular relevância, nomeadamente, a albumina (que apresenta grande afinidade para os fármacos ácidos) e a glicoproteína-α1 (que, devido à sua natureza ácida, liga-se facilmente a fármacos alcalinos). Redistribuição Como foi referido, a distribuição de uma substância depende do estabelecimento de um equilíbrio entre as fracções livres existentes nos diferentes compartimentos corporais, de tal modo que, passado algum tempo após administração de um fármaco, os processos de eliminação passam a favorecer a passagem do espaço extra-vascular para o espaço intra-vascular. Ou seja, no início da fase de distribuição, o fármaco tende a abandonar o espaço intra-vasculare a passar para o espaço extra-vascular. Todavia, com o passar do tempo, a quantidade de fármaco livre no meio intra-vascular vai caindo consideravelmente, motivo pelo qual passa a ser favorecido o transporte de fármaco no sentido inverso (desde o espaço extra-vascular para o espaço intra- vascular). Isto explica porque é que os fármacos não chegam simultaneamente a todos os órgãos. Assim, inicialmente, os fármacos deslocam-se preferencialmente para o cérebro e vísceras altamente irrigadas. Todavia, passado algum tempo, o gradiente de concentrações inverte- se, passando a ser favorecida a passagem dos fármacos (desde o cérebro e vísceras) novamente para o sangue. Posto isto, os fármacos passam a ser redistribuídos para tecidos de irrigação menos intensa, tais como o músculo esquelético. Posteriormente, os fármacos acabam também por abandonar esses tecidos (pelos mesmos motivos), acumulando-se progressivamente, no tecido adiposo. Este fenómeno de redistribuição tem importantes implicações clínicas, nomeadamente: 1. Os órgãos mais irrigados são aqueles que apresentam concentrações mais elevadas do fármaco em questão, numa fase mais precoce. Todavia, nessas regiões, os fármacos deixam de exercer a sua acção farmacológica, sobretudo, devido ao fenómeno de redistribuição (e não tanto por excreção ou eliminação). 2. A acumulação do fármaco em locais onde a sua actividade não se faz sentir leva a que os tecidos em questão passem a actuar como “reservatórios”, que vão libertando o fármaco a velocidade variável. Isto permite prolongar o tempo de permanência do fármaco no organismo. De entre os tecidos que actuam como reservatório, destaque para o tecido adiposo, que é particularmente importante para o armazenamento de fármacos lipossolúveis. 3. Na sequência de uma técnica de eliminação forçada (como sendo a hemodiálise), é removida uma grande quantidade de fármaco do sangue. Todavia, após a realização destas técnicas, a concentração plasmática dos fármacos tende a aumentar, devido à ocorrência de fenómenos de redistribuição, os quais respondem à necessidade de se passar a estabelecer um novo equilíbrio entre os diferentes compartimentos. Distribuição para o sistema nervoso central Apesar de o sistema nervoso central ser ricamente irrigado, a maior parte dos fármacos atinge os órgãos centrais de forma lenta e quantitativamente pouco extensa, devido à presença da barreira hemato-encefálica. De facto, existem inclusive fármacos incapazes de atingir o sistema nervoso central. Todavia, apesar da presença da barreira hemato-encefálica, a distribuição dos fármacos para o sistema nervoso central continua a ocorrer preferencialmente por difusão passiva. De referir que, existem situações patológicas (tais como a meningite) que se caracterizam pela disrupção da barreira hemato-encefálica, o que facilita a distribuição de fármacos para o sistema nervoso central. Distribuição através da placenta Actualmente, considera-se que a barreira placentária é muito pouco selectiva, de tal modo que os fármacos presentes na circulação materna passam facilmente para a circulação fetal. A maior parte dos fármacos sitos no sangue materno passam para o feto por difusão passiva, embora uma fracção menor passe por transporte activo e, provavelmente, por pinocitose. Assim, a administração de um fármaco a uma grávida deverá ser bastante ponderada, de modo a evitar que o feto seja desnecessariamente exposto a substâncias potencialmente nocivas. Biotransformação (metabolismo) O processo de biotransformação diz respeito a qualquer alteração que a estrutura química dos fármacos poderá sofrer no organismo. De facto, o organismo considera os fármacos como substâncias estranhas, procurando eliminá-los o mais rapidamente possível. Para tal, o organismo opera uma série de reacções com o objectivo de converter os fármacos em moléculas mais facilmente excretáveis (daí considerar- se que a biotransformação é um processo de eliminação), as quais se designam por metabolitos. Na maior parte das vezes, quando comparados com os fármacos que lhes deram origem, os metabolitos são mais hidrossolúveis, mais polares (logo, com mais grupos hidrofílicos), e de maiores dimensões. Desta forma, os metabolitos têm maior dificuldade em atravessar as membranas biológicas (ou seja, a sua distribuição encontra-se dificultada), mas são mais facilmente excretados. A biotransformação dos fármacos pode ocorrer em vários órgãos, embora o fígado assuma particular importância, devido às suas dimensões e à diversidade enzimática presente nos hepatócitos. De qualquer forma, as reacções de biotransformação podem ser divididas em duas fases: 1. Reacções de fase I (reacções pré-sintéticas): Estas reações têm como objectivo tornar o fármaco mais polar, envolvendo, por isso, processos de oxidação, redução, ou hidrólise (estes dois últimos apresentam pouca importância quantitativa). As reacções de oxidação são as mais importantes e, tal como as reacções de redução, são maioritariamente mediadas pelo sistema microssómico hepático – este sistema conta com a presença de enzimas da família do citocromo P450 (CYP) e da família do NADPH-citocromo P450 redútase. 2. Reacções de fase II: Estas reacções induzem um aumento das dimensões moleculares, uma vez que consistem maioritariamente em reacções de conjugação do fármaco com outros substratos (de entre os quais se destaca o ácido glicurónico). As reacções desta fase são mediadas por uma enorme variedade de transferases, de tal modo que a fase II é a menos afectada em situações de patologia hepática. Devido ao facto de dependerem da acção enzimática, os processos de biotransformação são saturáveis. Em condições normais, a saturação não chega a ser atingida. Todavia, é perfeitamente possível que se passe a verificar saturação enzimática, aquando da administração simultânea de diferentes fármacos cuja eliminação seja assegurada pelo mesmo sistema enzimático. Ora, nestas situações, em que ocorre saturação das enzimas envolvidas nos processos de biotransformação, os fármacos podem atingir concentrações plasmáticas muito superiores às expectáveis. Como referido anteriormente, a biotransformação é o processo do ciclo dos medicamentos que mais variabilidade inter-individual comporta. Isto deve-se, sobretudo, à existência de um polimorfismo genético que interfere com a biotransformação e que, por esse motivo, é um dos principais responsáveis pelas respostas atípicas à administração de fármacos. Também a idade influencia o processo de biotransformação, de modo determinante – os recém-nascidos apresentam sistemas enzimáticos biotransformadores imaturos e que, muitas vezes, originam metabolitos distintos daqueles originados pelos adultos. Por outro lado, a biotransformação encontra-se comprometida nos idosos, sobretudo devido à diminuição da massa e fluxo hepáticos, associada à degeneração dos sistemas hepáticos. Por fim, a patologia hepática pode condicionar o processo de biotransformação dos fármacos, sendo as patologias crónicas mais deletérias que as transitórias. Como seria expectável, a presença de patologia hepática afecta de forma mais marcada a metabolização dos fármacos que estão sujeitos a extensa biotransformação ou a um importante efeito de primeira passagem. Interacção entre fármacos no processo de biotransformação Tal como se verifica com o processo de distribuição, a biotransformação é passível de ser afectada pela ocorrência de interacções entre fármacos. De facto, alguns fármacos apresentam capacidade de indução enzimática (capacidade de aumentar a actividade metabólica enzimática), enquanto outros apresentam capacidade de inibição enzimática (capacidade de diminuir a actividade metabólica enzimática). Para compreender quais as possíveis consequências deste facto, imaginemos uma situação hipotética: Os fármacos com capacidade de inibição enzimática podem actuar por mecanismos competitivos ou não- competitivos. A inibição diz-se competitiva,quando o agente inibidor ocupa o centro activo da enzima (podendo, ou não, servir de substrato enzimático) – este tipo de inibição pode ser superado através do aumento da concentração de substrato. Por oposição, a inibição diz-se não-competitiva quando o agente inibidor forma um complexo (reversível ou irreversível) com a enzima, impossibilitando a interacção entre esta e o seu substrato – este tipo de inibição não pode ser superado através do aumento da concentração de substrato. Existem ainda processos de inibição indirecta, os quais resultam de alterações fisiopatológicas ou da diminuição da síntese de proteínas enzimáticas. Na maior parte das vezes, os fenómenos de inibição são do tipo competitivo, interferindo maioritariamente com as enzimas da família do citocromo P450. Como é óbvio, quanto menor a especificidade de substrato de um sistema enzimático, mais vastas serão a priori as implicações resultantes da sua inibição. De qualquer forma, em termos clínicos, os fenómenos de inibição estão frequentemente associados com o desenvolvimento de efeitos tóxicos, resultantes do aumento da concentração plasmática dos fármacos cuja metabolização está diminuída. Existem situações em que as reacções de biotransformação originam metabolitos com igual ou maior actividade que os fármacos que lhes deram origem (ou seja em pró-fármacos, tais como as benzodiazepinas). Nesse caso, a existência de inibição enzimática está associada a uma perda de eficácia dos fármacos cuja metabolização está diminuída. Já no que concerne ao fenómeno de indução, convém referir que existem fármacos capazes de induzir o seu próprio metabolismo (auto- indução). De entres fármacos, destaque para a carbamazepina (anti- epiléptico). Excreção A excreção de um fármaco define-se como o conjunto de processos através dos quais se dá a saída do fármaco (ou dos metabolitos resultantes da sua biotransformação) para o exterior do organismo. Conhecer a via de excreção preferencial de um determinado fármaco é importante, na medida em que esta poderá estar associada ao desenvolvimento de efeitos terapêuticos ou indesejados. Excreção por via urinária Em termos quantitativos e fisiológicos, a via urinária constitui a mais importante via de excreção. Isto deve-se ao elevado fluxo sanguíneo renal, bem como ao facto de as reacções de biotransformação convertem os fármacos em metabolitos polares, os quais são mais facilmente excretados por via renal. De qualquer forma, apenas a fracção livre dos fármacos (ou dos seus metabolitos) é passível de sofrer filtração glomerular, o que mais uma vez reforça o papel de “reservatório de fármaco” assumido pelos complexos fármaco-proteínas. Parte dos fármacos filtrados sofre reabsorção tubular, que ocorre preferencialmente, por difusão passiva. Ora, a difusão passiva de uma substância é influenciada pelo seu grau de ionização, de tal modo que alterações do pH do filtrado glomerular interferem com a reabsorção tubular dos fármacos e seus metabolitos. Assim, a alcalinização do filtrado promove a ionização dos ácidos fracos, inibindo a sua reabsorção e favorecendo a sua excreção. Por oposição, acidificação do filtrado favorece a reabsorção dos ácidos fracos e inibe a sua excreção (verifica-se o contrário para as bases fracas). Assim, aquando de uma intoxicação, é possível recorrer ao controlo do pH do filtrado (tornando-o mais ácido ou mais alcalino), de modo a promover a excreção renal de substâncias indesejadas. A título de exemplo, aquando de uma intoxicação por um barbitúrico (ácido fraco), é costume induzir alcalinização do filtrado para favorecer a excreção daquela substância. Existem ainda fármacos que são secretados para o lúmen tubular, nomeadamente, através de processos de transporte activo. Ora, por vezes, vários fármacos competem pelo mesmo transportador, o que poderá levar a uma diminuição da velocidade de excreção destes fármacos activamente secretados. A título de exemplo, o probenecid e a penicilina G competem pelo mesmo transportador para serem secretados – isto permite aumentar o tempo de semi-vida plasmática da penicilina G, uma vez que a sua taxa de secreção (e, consequentemente, de excreção) diminui, devido ao facto de os seus transportadores estarem em parte ocupados com probenecid. A excreção é ainda afectada por vários factores fisiológicos, de entre os quais se destaca a idade – a capacidade excretora é menor nos recém- nascidos (que não dispõem ainda de uma função renal completamente desenvolvida) e nos mais idosos. Por outro lado, qualquer patologia renal, ou que interfira com o fluxo plasmático renal, interfere negativamente com o processo de excreção. Outras vias de excreção Para além da via urinária, existem muitas outras vias de excreção, nomeadamente a via biliar, pulmonar, e intestinal. Os fármacos excretados pela via biliar, onde predominam os processos de transporte activo, podem ser parcialmente ou totalmente reabsorvidos, através do ciclo entero-hepático. Como é óbvio, isto permite prolongar significativamente o tempo de presença do fármaco e/ou metabolitos no organismo. Já a via de excreção pulmonar inclui a excreção de gases e substâncias voláteis por via alveolar. Por fim, a excreção a partir de glândulas exócrinas pode adquirir relevância em situações muito particulares – a título de exemplo, a excreção de fármacos/metabolitos por via das secreções mamárias poderá acarretar consequências indesejáveis para o lactente. Volume de distribuição A fórmula supracitada (que deriva da fórmula clássica de cálculo de uma concentração) permite calcular o volume aparente de distribuição, o qual pode exceder amplamente qualquer volume do organismo, dado corresponder ao volume aparentemente necessário para acomodar todo o fármaco presente num dado compartimento (tal como o plasma) caso o organismo fosse homogéneo. Um fármaco com elevado volume de distribuição tende preferencialmente a apresentar concentrações extra-vasculares superiores às intra-vasculares. Clearance Em termos matemáticos, a taxa de eliminação (clearance) pode ser determinada através das seguintes fórmulas: ; sendo que: Para a maior parte dos fármacos, a clearance não atinge a saturação nos valores clínicos. Ora, quando assim é, diz-se que a taxa de eliminação é de primeira ordem, podendo ser calculada através da seguinte fórmula: Contudo, quando as concentrações de fármaco presentes no organismo são muito elevadas, a clearance pode passar a ser limitada por saturação. Ora nestas situações, em que a eliminação é limitada pela capacidade de excreção, o conceito de clearance não faz sentido, tal como o uso da área sob a curva. Nesses casos, aplica-se a seguinte fórmula para se proceder ao cálculo da taxa de eliminação de um fármaco: Tempo de semi-vida A semi-vida de um fármaco (t1/2) corresponde ao tempo necessário para que uma determinada quantidade de fármaco reduza o seu valor para metade, quer no decurso de um processo de eliminação, quer após infusão contínua. O tempo de semi-vida pode ser matematicamente determinado pela seguinte fórmula: ; sendo que: ; daqui se deduz que: Assim, esta fórmula permite-nos obter o tempo necessário para atingir 50% das concentrações do fármaco em estado estacionário. Todavia, algumas considerações devem ser tidas em conta, nomeadamente: • Uma alteração no tempo de semi-vida não implica, necessariamente, a ocorrência de mudanças na eliminação do fármaco. • No caso de fármaco que se distribuam por vários compartimentos, o verdadeiro tempo de semi-vida é superior ao estimado pelas fórmulas supracitadas. Acumulação Ocorre acumulação de um fármaco sempre que o intervalo das doses administradas é inferior a quatro semi-vidas. Como expectável, a acumulação é inversamente proporcional à fracção de dose de fármaco perdida em cada intervalo. As concentrações máximas de um fármaco atingidas no estado estacionário(após administração de doses intermitentes deste fármaco) calculam-se através do produto entre a concentração máxima atingida após a administração da primeira dose e o factor de acumulação. Ou seja: ; sendo que: Biodisponibilidade e fenómeno de primeira passagem Apenas a administração de um fármaco por via intra-venosa assegura uma biodisponibilidade de 100% - em todas as restantes vias a biodisponibilidade é inferior. No caso de algumas vias (nomeadamente a via oral e, em parte, a via rectal), o fenómeno de primeira passagem contribui para a diminuição da biodisponibilidade farmacológica. Ora, em termos matemáticos, este fenómeno pode ser estimado pela seguinte fórmula: Deste modo, a biodisponibilidade é passível de ser calculada pela seguinte fórmula: Como expectável, os fármacos com taxas de extracção hepática mais elevadas comportam maior variabilidade inter-individual, as quais resultam de diferenças inter-individuais na função hepática e fluxo sanguíneo. Nesses fármacos, existem grandes diferenças entre as concentrações obtidas por via oral e por uma via que não sofra efeito de primeira passagem (tal como a via sublingual). Note-se que não o efeito de primeira passagem não é o único responsável pelo facto de a biodisponibilidade dos fármacos administrados por via oral não ser total. A título de exemplo, a p- glicoproteína (p-gp) é um transportador que impede a absorção de alguns fármacos, expulsando-os activamente do interior das células intestinais, de novo para o lúmen intestinal. Note-se que esta proteína é inibida pelo sumo de toranja. Administração de um fármaco Com base nos parâmetros estudados, é possível proceder ao cálculo da dose que deverá ser administrada de um determinado fármaco: No estado estacionário sabe-se que a taxa de administração equivale à taxa de eliminação, de tal modo que: Ora, isto possibilita o cálculo da dose de manutenção (quantidade de fármaco necessária para que ocorra manutenção da sua concentração no estado estacionário): A concentração no estado estacionário atingida por infusão contínua apenas depende da clearance, tal como se verifica com a concentração média atingida após administração intermitente. Assim, não é necessário conhecer a semi-vida ou o volume de distribuição de um fármaco para determinar a concentração plasmática média expectável para uma determinada taxa de absorção. Aquando da administração de uma nova quantidade de fármaco por via intra-venosa, deve-se ter em conta a relação taxa de absorção/taxa de distribuição – se a absorção for muito rápida em comparação com a distribuição, as concentrações plasmáticas do fármaco serão inicialmente mais elevadas, o que poderá despoletar toxicidade transitória. Efeitos de um fármaco Os efeitos de um fármaco podem ser classificados como imediatos, tardios ou cumulativos: • Efeitos imediatos: Estes efeitos relacionam-se directamente com as concentrações plasmáticas do fármaco em questão, embora nem sempre reflictam a variação de concentrações que se faz sentir ao longo do dia. De facto, alguns fármacos com um curto período de semi-vida podem ser administrados apenas uma vez por dia (mantendo os seus efeitos ao longo do dia), pois atingem uma concentração inicial muito superior às EC50. Note-se que, quando as concentrações de um fármaco encontram-se no intervalo entre [0,25xEC50; 4xEC50], a sua relação tempo-efeito expressa-se por uma função linear. • Efeitos tardios: Estes efeitos ocorrem apenas ao fim de algumas horas ou dias, devido ao lento turn-over dos produtos resultantes do metabolismo dos fármacos. • Cumulativos: Estes efeitos resultam da progressiva acumulação de um fármaco no organismo (ou seja, na maioria das vezes, apenas se verificam após administração deste fármaco em doses sucessivas). A título de exemplo, ao acumularem-se no córtex renal, os aminoglicosídeos induzem necrose tubular aguda. Por outro lado, os efeitos terapêuticos de vários anti-neoplásicos também são de cariz cumulativo. Introdução ao estudo dos fármacos colinérgicos A acetilcolina é um neurotransmissor extremamente importante, tanto ao nível do sistema nervoso central como ao nível do sistema nervoso periférico. Em termos centrais, existem vários neurónios colinérgicos (por exemplo, ao nível da formação reticular), havendo relação entre a diminuição da quantidade central de acetilcolina e a doença de Alzheimer. Já em termos periféricos, a acetilcolina é o neurotransmissor utilizado nos nervos motores, encarregues da inervação muscular – assim, ao nível da placa motora, é libertada acetilcolina, que actua em receptores nicotínicos, induzindo contracção muscular. O papel da acetilcolina no sistema nervoso autónomo é mais complexo. De facto, tanto os neurónios pré-ganglionares simpáticos, como os neurónios pré- ganglionares parassimpáticos, libertam acetilcolina para os respectivos neurónios pós- ganglionares. Todavia, enquanto os neurónios pós- ganglionares simpáticos libertam noradrenalina, os neurónios pós- ganglionares parassimpáticos libertam também acetilcolina. Assim, a acetilcolina promove a contracção do músculo liso visceral, desempenhando efeitos característicos de uma resposta parassimpática (tais como a estimulação da broncoconstrição e do peristaltismo). Para além disso, os neurónios simpáticos responsáveis pela inervação das glândulas exócrinas libertam acetilcolina, que estimula a secreção glandular. No que concerne aos efeitos da acetilcolina, destaque ainda para o facto de esta substância ser vasodilatadora. A acção vasodilatadora da acetilcolina parece um contra-senso, tendo em conta que este mediador promove contracção do músculo liso visceral. Todavia, os efeitos vasodilatadores da acetilcolina são indirectos – a acetilcolina actua em receptores endoteliais, estimulando a síntese endotelial de NO. Por seu turno, o NO actua nas células musculares lisas vasculares, onde apresenta um efeito vasodilatador. A acetilcolina exerce os seus efeitos, através da ligação a duas classes distintas de receptores – os receptores muscarínicos (receptores M) devem o seu nome ao facto de também poderem ser activados pela muscarina, enquanto os receptores nicotínicos (receptores N) são assim designados por também poderem ser activados pela nicotina. O nome destes receptores baseia-se meramente em estudos históricos (até porque não existe muscarina ou nicotina endógena), pois a acetilcolina constitui o principal ligando endógeno de ambos os tipos de receptores. Os receptores muscarínicos são exclusivamente expressos ao nível das estruturas viscerais, nomeadamente, ao nível das glândulas exócrinas, músculo liso, e endotélio (as respostas ditas “parassimpáticas” são despoletadas na sequência da activação de receptores muscarínicos). Em termos moleculares, estes receptores apresentam sete domínios transmembranares e são do tipo metabotrópico, estando acoplados a proteína G (a activação destes receptores activa cascatas de sinalização intracelulares, ou interfere com canais iónicos membranares). Existem cinco classes de receptores muscarínicos – M1, M2, M3, M4 e M5. Os receptores M1, M3, e M5 estão acoplados à proteína Gq, induzindo um aumento dos níveis intracelulares de cálcio. Por seu turno, os receptores M2 e M4 estão acoplados à proteína Gi, inibindo a actividade da adenil cíclase. Para além disso, o receptor M2 está acoplado a uma proteína Gi que, quando activada, se liga directamente a um canal iónico de K+. Já os receptores nicotínicos são exclusivamente expressos ao nível do músculo esquelético (na placa motora) e nas células cromafins da medula supra-renal. Estes receptores são do tipo ionotrópico (ou seja, são constituídos por canais iónicos), apresentando uma estrutura pentamérica (ou seja, são constituídos por cinco subunidades). Existem várias subunidades, de cuja interacção resultam múltiplas combinações – estas combinações de subunidades determinama estrutura e as propriedades funcionais dos receptores nicotínicos (como, por exemplo, a permeabilidade ao cálcio). De referir que, em termos moleculares, a abertura dos canais iónicos associados aos receptores nicotínicos está dependente da ligação de duas moléculas de acetilcolina às subunidades α de cada receptor. A exposição prolongada dos receptores nicotínicos aos seus agonistas abole a resposta efectora. Isto é, caso um receptor nicotínico neuronal seja excessivamente activado, o neurónio pós sináptico deixa de responder; enquanto, a estimulação excessiva de um receptor muscular leva ao relaxamento do músculo esquelético. Isto acontece porque a presença continuada de um agonista nicotínico evita a recuperação eléctrica da membrana pós-juncional. Assim, este efeito de “bloqueio despolarizante” pode ser utilizado para produzir paralisia muscular. Ao nível do sistema nervoso central e dos gânglios autonómicos, ocorre expressão conjunta de receptores muscarínicos e nicotínicos. Assim, tendo em conta a enorme diversidade de locais onde são expressos receptores colinérgicos, a administração de fármacos colinérgicos não- selectivos poderá causar alterações difusas e muito marcadas na função de vários sistemas orgânicos. Deste modo, devem ser escolhidos fármacos com alguma selectividade funcional, a qual pode ser de vários tipos: 1. Existem fármacos que activam selectivamente receptores nicotínicos ou muscarínicos. 2. Existem fármacos que activam preferencialmente um subtipo de receptores nicotínicos (a título de exemplo, existem fármacos que activam preferencialmente os receptores nicotínicos musculares, em detrimento dos ganglionares). 3. Devido às suas diferentes propriedades farmacocinéticas, através da correcta escolha da via de absorção dos fármacos, e possível obter selectividade farmacocinética. A título de exemplo, quando se procura obter efeitos centrais, procede-se à administração de um fármaco com capacidade de atravessar a barreira hemato-encefálica. Síntese e degradação da acetilcolina A acetilcolina é sintetizada a partir de acetil-CoA e colina, sendo esta reacção catalisada pela acetiltransférase da colina (ChAT). Esta enzima encontra-se presente, sobretudo, no citoplasma dos neurónios colinérgicos, embora a placenta também expresse uma grande quantidade de ChAT. De referir que, a síntese de acetilcolina é um processo rápido, mas que pode ser acelerado durante a actividade nervosa. Existem alguns inibidores da ChAT (tais como o bromoacetil- CoA), embora estes sejam deveras pouco eficazes, uma vez que o passo limitante da síntese de acetilcolina se prende com o transporte de colina a partir do meio extracelular. De facto, devido ao facto de ser uma base quaternária, a colina difunde-se muito lentamente através das membranas celulares. Assim, a maior parte da colina é captada para o meio intracelular, através de um transportador membranar com elevada afinidade para esta substância. Ora, esse transportador pode ser inibido por compostos estruturalmente similares à colina, tais como o hemicolíneo-3. De referir que a capacidade de concentrar colina no interior do terminal nervoso revela-se particularmente importante em situações de maior actividade nervosa, nas quais se torna necessária uma aceleração da síntese de acetilcolina. Para além de poder ser captada a partir do meio extracelular, a colina pode ser obtida por hidrólise dos fosfolipídeos das membranas celulares. Já o acetil-CoA, é sintetizado nas mitocôndrias, podendo ser sintetizado a partir do piruvato ou do acetato. Após ter sido sintetizada, a acetilcolina é armazenada em vesículas sinápticas. A entrada de acetilcolina para essas vesículas é mediada por um trocador, o qual é inibido pelo vesamicol. Existem vários tipos de vesículas de acetilcolina, sendo que algumas constituem vesículas de reserva – a existência deste tipo de vesículas previne a ocorrência de depleção de acetilcolina. A libertação de acetilcolina requer a fusão entre a membrana das vesículas sinápticas e a membrana celular do terminal pré-sináptico. A ocorrência deste processo está dependente da interacção entre proteínas vesiculares (tais como a sinaptobrevina) e proteínas da membrana do terminal (tais como a SNAP-25) – ora, esta interacção é inibida pela toxina botulínica, que actua através da remoção enzimática de um ou dois aminoácidos das proteínas do aparelho exocítico. Após ter sido libertada (e após se ter ligado aos seus receptores pós- sinápticos), a acetilcolina deverá ser rapidamente removida da fenda sináptica. Assim, existem três mecanismos envolvidos na remoção deste neurotransmissor: 1. Inactivação enzimática: Ao nível das fendas sinápticas, existe uma grande quantidade de acetilcolinesterase (ACh-E), que é a enzima responsável pela hidrólise de acetilcolina em acetato e colina (a qual pode ser depois captada pelo neurónio pré- sináptico). A Ach-E é maioritariamente sintetizada ao nível dos neurónios e dos miócitos, embora também seja expressa por outras células, tais como os eritrócitos. Para além disso, ao nível do plasma, fígado, glia, e músculo liso gastro-intestinal, existe uma colinesterase com menor especificidade para a acetilcolina – a butirilcolinesterase (BCh-E). O nome da BCh-E advém do facto de esta enzima conseguir hidrolisar mais rapidamente a butirilcolina que a acetilcolina. De qualquer modo, o papel fisiológico da BCh-E permanece ainda amplamente desconhecido, pensando-se que esta enzima seja importante na biotransformação plasmática de fármacos. A Ach-E apresenta uma grande eficácia, motivo pelo qual o processo de inactivação enzimática é o mais importante para remoção da acetilcolina da fenda sináptica. Assim, os restantes mecanismos de remoção apenas adquirem maior relevância aquando da administração de inibidores da ACh-E. 2. Recaptação de acetilcolina pelos terminais nervosos: Nas terminações colinérgicas em repouso, a reciclagem da acetilcolina libertada ocorre a baixa velocidade. Todavia, na presença de actividade sináptica, passa se a verificar um aumento da velocidade de recaptação deste neurotransmissor. 3. Difusão de acetilcolina da fenda sináptica. Fármacos de acção colinérgica: parassimpaticomiméticos Designam-se por parassimpaticomiméticos (ou acetilcolinomiméticos), todos os agentes capazes de activar os receptores da acetilcolina ou de inibir as colinesterases. Os fármacos que se ligam directamente (e activam) aos receptores da acetilcolina designam-se por parassimpaticomiméticos de acção directa, enquanto os fármacos que inibem as colinesterases designam-se por parassimpaticomiméticos de acção indirecta. Parassimpaticomiméticos de acção directa Como foi referido anteriormente, os fármacos parassimpaticomiméticos de acção directa ligam-se e activam receptores nicotínicos e muscarínicos. Existem duas classes de parassimpaticomiméticos de acção directa, de acordo com a sua estrutura química: 1. Ésteres de colina: Acetilcolina, metacolina, betanecol, carbacol 2. Alcalóides: Muscarina, pilocarpina, nicotina, lobelina (os dois primeiros fármacos apresentam acção predominantemente muscarínica, enquanto os dois últimos apresentam acção predominantemente nicotínica). A maior parte dos parassimpaticomiméticos de acção directa é capaz de se ligar a ambos os tipos de receptores colinérgicos (muscarínicos e nicotínicos), tal como acontece com a acetilcolina. Todavia, designam- se por agonistas muscarínicos todos os parassimpaticomiméticos de acção directa que actuam em receptores muscarínicos, enquanto a classe dos agonistas nicotínicos inclui todos os parassimpaticomiméticos de acção directa que actuam em receptores nicotínicos. De entre os agonistas muscarínicos, a maior parte possui fraca selectividade para os vários subtipos de receptores muscarínicos. Todavia, os compostos de amónio quaternário têm alguma afinidade para o receptor M1, a arecaidina possui afinidade para o receptor M2, e o betanecol
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