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AULA 4 Prof. Armando Kolbe Júnior GOVERNANÇA E REGULAÇÕES DA INTERNET NO BRASIL E NO MUNDO 2 INTRODUÇÃO 1.1 Meios de regulação indireta Nesta aula, iniciaremos abordando os assuntos de autorregulação (Tema 1), o Direito do Ciberespaço (Tema 2), faremos uma analogia (Tema 3), trataremos de uma abordagem mista (Tema 4) e, ao final, falaremos da Lawrence Lessig (Direito, Normas Sociais, Mercado, Arquitetura) (Tema 5). TEMA 1 – AUTORREGULAÇÃO A Lei n. 12.965/2014, conhecida como Marco Civil da Internet, conteúdo estudado anteriormente, é a Lei que regula o uso da internet no Brasil por meio da “previsão de princípios, garantias, direitos e deveres para quem usa a rede, bem como da determinação de diretrizes para a atuação do Estado” (Brasil, 1988). De acordo com o dicionário Dicio (2019), autorregulação é a “ação ou efeito de se autorregular, regular a si mesmo sem intervenção externa: autorregulação do comportamento” (Dicio, 2019). Em nosso país, alguns serviços possuem competitividade restrita. É o caso da telefonia. Em nossa Constituição Federal, o inciso XI do art. 21 determina que compete à União: explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais. (Brasil, 1988) A portaria Interministerial n. 147, em 31 de maio de 1995, cria o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), que tem os seguintes objetivos: I. acompanhar a disponibilização de serviços Internet no país; II. estabelecer recomendações relativas a: estratégia de implantação e interconexão de redes, análise e seleção de opções tecnológicas, e papéis funcionais de empresas, instituições de educação, pesquisa e desenvolvimento (IEPD); III. emitir parecer sobre a aplicabilidade de tarifa especial de telecomunicações nos circuitos por linha dedicada, solicitados por IEPDs qualificados; IV. recomendar padrões, procedimentos técnicos e operacionais e código de ética de uso, para todos os serviços Internet no Brasil; V. coordenar a atribuição de endereços IP (Internet Protocol) e o registro de nomes de domínios; VI. recomendar procedimentos operacionais de gerência de redes; VII. coletar, organizar e disseminar informações sobre o serviço Internet no Brasil; e VIII. deliberar sobre quaisquer questões a ele encaminhadas (Pires, 2014) Usuário Destacar Usuário Destacar 3 A Anatel foi criada pela lei n. 9.472/1997, autarquia reguladora dos serviços de telefonia, cujo objetivo principal é celebrar contratos de concessão e fiscalizar a atividade da área (Otto, 2017). Prezar pelo interesse público na atividade é tarefa das agências reguladoras, assim como expedir normas que sejam de caráter regulamentar, exigindo o cumprimento obrigatório pelas empresas. De acordo com Otto (2017), essas agências, apesar de serem de interesse público, infelizmente têm se distanciado do consumidor, passando a proteger as empresas. No ano de 2017, a ANATEL estudou a hipótese de habilitar às empresas de telefonia a possibilidade de criar planos de banda larga com banda limitada de dados, como o que ocorria na mesma época com a internet móvel. Um dos argumentos era de que isso ocorria no mundo todo. Essa tentativa de limitar a utilização da banda larga com chancela da ANATEL é o que a doutrina costuma chamar de "Fenômeno da Captura". A Teoria da Captura ressalta que, em determinados casos, as agências reguladoras, que deveriam resguardar o interesse público, por pressão das empresas reguladas, acabam atendendo exclusivamente os interesses dessas, em uma verdadeira irregularidade na atividade regulatória. Tal desvio é passível de controle administrativo e jurisdicional. Afinal, se é para regular o mercado e restringir a competitividade, que o faça, ao menos, para o bem. (Otto, 2017) No ano de 2013, houve a tentativa de trazer uma maior organização à internet brasileira, com a operação de um novo órgão regulador. A Anarnet (Agência Nacional de Autorregulação da Internet) tinha como objetivo “unir as opiniões de empresas, organizações não governamentais, governantes e membros da população em geral para transformar a web nacional em um grande fórum de discussões” (Gugelmin, 2013). Entretanto, de acordo com Pires (2014), a Anarnet não tinha legitimidade para deliberar sobre Internet no Brasil. A criação de uma entidade que tenha o objetivo de ser um fórum de debate entre empresas, organizações não governamentais e sociedade civil precisa ser amplamente discutida com toda a sociedade. (Pires, 2014) Ocorre, então, uma discussão acirrada a respeito desses órgãos de autorregulação, ainda mais sobre um tema sensível como a internet, desde a definição de atividades até discussões políticas que definiam as criações dessas instituições. O que os fundadores da Anarnet propõem que sejam atividades da agência já estão entre as atribuições do CGI.br! Lembrando que, na composição Usuário Destacar Usuário Destacar 4 CGI.br, estão representantes do governo, do setor empresarial, da comunidade científica e tecnológica. No dia 11 de março de 2020, foi veiculado no portal da TeleSíntese uma notícia sobre a autorregulação para melhorar a relação com consumidor, em que sete operadoras de telecomunicações, Algar Telecom, Claro, Oi, Sercomtel, Sky, TIM e Vivo, selavam compromisso, prevendo à época que em até quatro meses a publicação de um “código de conduta para cobrança, atendimento e ofertas de serviços de telecomunicações”. O Sistema é o “SART (Sistema de Autorregulação das Telecomunicações) que pretende apresentar em dois meses o Código de Conduta de Atendimento; em três meses, o Código de Conduta de Cobranças; e em quatro meses, o Código de Conduta de Ofertas” (Aquino, 2020). Algumas autoridades envolvidas no projeto afirmaram que: a autorregulação diminui os custos da assimetria da informação”, afirmou o presidente-executivo do SindiTelebrasil, Marcos Ferrari. Segundo José Alexandre Bicalho, diretor de Regulação e Autorregulação do sindicato, o principal objetivo dessa iniciativa é “melhorar as relações de consumo”. Para a superintendente de Relações com os Consumidores da Anatel, Elisa Leonel, a autorregulação poderá resolver o problema das relações entre os diferentes agentes. “Os serviços de telecomunicações serão sempre muito regulados, resta saber quem vai desenvolver esse papel. Hoje, há uma visão dos órgãos de controle de que a Anatel age de má- fé;por sua vez a Anatel acha que as prestadoras agem de má-fé; e as prestadoras acham que os consumidores agem de má-fé”, sentenciou. Nesse documento estão previstos sete princípios que deverão ser seguidos pelas organizações que quiserem aderir ao SART. A posição de destaque é o consumidor: • Atuação segundo os ditames da ética, honestidade, moralidade e lealdade; • Obediência à legislação vigente e às normas e decisões expedidas no âmbito do SART; • Promoção e proteção à liberdade de iniciativa; • Respeito e promoção da livre concorrência no setor de telecomunicações; • Respeito e valorização dos direitos dos consumidores; • Comunicação correta, eficiente e transparente perante os consumidores, as demais Prestadoras Signatárias e perante as autoridades competentes; e • Melhoria contínua dos padrões de atendimento e qualidade dos serviços por elas ofertados. (Ventura, 2020) Para variar um pouco, essas iniciativas deverão contar com participação de um conselho independente, objetivando com que as demandas entre o consumidor, o setor público e o setor privado possam chegar a um bom termo. Vamos aguardar os acontecimentos... 5 Saiba mais Antes de irmos o próximo tema, veja um pouco mais sobre o CGI.br no vídeo a seguir: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=F38J9R5wuqo>. Acesso em: 15abr. 2020. TEMA 2 – DIREITO DO CIBERESPAÇO Podemos definir como direito do ciberespaço, o conjunto de leis, regulamentações em geral e práticas contratuais de todos os tipos e níveis, que envolvam a utilização e funcionamento de redes de software e computadores. É também chamado ‘direito online’, debatido nos Estados Unidos desde 1985, com o objetivo de se estabelecerem regras para a comunicação, os negócios e o uso em geral das redes de computadores. (Cerqueira, 1999) E Direito Digital é um conjunto de normas jurídicas e tem como finalidade de regulamentar as relações dentro do ambiente digital, coibindo a prática de condutas lesivas. Com o desenvolvimento da tecnologia e da interação online, nasceu a necessidade de editar regras que regulamentem as relações, evitando assim práticas ilícitas. (Azevedo, 2020) Quando entramos nesses assuntos, alguns autores apresentam diversas considerações relacionadas a regulamentação e legislação do ciberespaço e problemas sobre seu entendimento, principalmente porque não é encarado como um lugar à parte, bem diferente do que se conhecia. Cerqueira (1999) afirma que diversas situações vêm à tona nessas discussões, principalmente se adotarmos a hipótese de ser um ambiente à parte, o que resulta, inclusive, em repensarmos o nosso conceito de fronteira entre países, já esse espaço independe de qualquer tipo de fronteira. Logicamente alguns países já criaram suas próprias leis a respeito dessa “fronteira” (Cerqueira, 1999). As controvérsias também vão ao encontro de quem irá ter o poder de regulamentar e aplicar a lei? Devemos lembrar que distribuir poderes e vantagens é uma das prerrogativas de quem vier a regulamentar o funcionamento e utilização da internet. Existe muita discussão entre os países a respeito de estabelecer ou não a regulamentação do ciberespaço. Alguns definem o ciberespaço como um lugar à parte, enquanto outros defendem que não existe nada de novo no ciberespaço, Usuário Destacar Usuário Destacar Usuário Destacar 6 sendo o “meio” a única diferença. A parte que sustenta a segunda corrente é formada por aqueles que acham que os conceitos e a legislação vigente, principalmente a de Direitos Autorais/Copyright, que exerce influência sobre o software, é capaz de resolver os problemas que existem e deveriam ser aplicados também ao espaço cibernético. Não podemos deixar de considerar que a comunicação por redes de computadores é composta por algumas características especiais, tornando-a, em alguns aspectos, diferente do que conhecemos até agora. Fato esse suficiente para chamar a atenção do Direito. Primeiro, as mensagens por computador que vem escritas, automáticas e ricamente registradas, representam fatos de valor econômico e expressam as vontades das pessoas, são sucessivamente copiadas ao longo do seu caminho e ocupam lugar, materialmente considerado, no espaço físico, qual seja o disco ou qualquer outro meio físico. São provas documentais mais fidedignas que escritos em folhas de papel e muito mais fidedignas que escritos em papéis transmitidos por fax. Além disso, redes de computadores já provaram ser um meio eficaz de transmissão de produtos, tais como filmes, publicações escritas e sonoras, imagens e, last but not least (por último, mas não menos importante), programas de computador. (Cerqueira, 1999) Azevedo (2020) afirma que ainda existem poucas normas que tratam exclusivamente sobre a regulamentação do direito digital: • Uma importante norma é a Lei n° 12.965/2014, o Marco Civil da Internet, que regula o uso da Internet no Brasil, trazendo previsão de garantias aos internautas e a responsabilidade civil de usuários e provedores. • A lei dos crimes cibernéticos, conhecida como a Lei Carolina Dieckmann, Lei 12.737/2012, tornou crime a prática de invadir dispositivos eletrônicos portáteis a fim de obter, adulterar ou destruir dados de terceiros. • Temos também a Lei nº 13.709/2018, nomeada como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que regulamenta o acesso a dados pessoais para proteger os titulares e permitir que sejam utilizadas de forma ética e segura. • O decreto 9.854/19 instituiu o Plano Nacional de Internet das Coisas (Internet of Things – IoT), estabelecendo premissas relevantes para setor essencial do desenvolvimento tecnológico e da transformação digital, visando regular e estimular a tecnologia no país. • Internet das Coisas (IoT) é um conceito que se refere à interconexão digital de objetos cotidianos com a internet. Pela escassez de normas específicas, em muitos casos que envolvem o direito digital é necessário utilizar normas de outras áreas do direito, contudo este ramo vem ganhando muita relevância no universo jurídico, pois a era digital já é uma realidade. (Azevedo, 2020) O advento da internet transformou-se em meio comum, local onde ocorre o acesso a dados e informações, tornando-se, inclusive, em um ambiente altamente conveniente e habitual para que pessoas possam realizar suas pesquisas, discutir Usuário Destacar 7 e trocar opiniões sobre qualquer assunto, mostrando-se como ferramenta eficaz para a realização de transações e negócios, em geral, para assumirem compromissos e direitos e, também, infelizmente, cometer atos ilícitos. Os profissionais e instituições que atuam nas esferas jurídicas necessitam manter-se atualizados e preparados, pois, nessa nova Era, ainda existem pessoas físicas e jurídicas que, desatentas, não lerão termos de uso e, consequentemente, serão lesadas por uma diversidade de golpes cibernéticos. Afinal, criminosos que acreditam na impunidade dos crimes praticados também não deixarão de existir, pensando que a internet é um mundo livre e podem passar desapercebidos. Saiba mais Para se inteirar mais sobre os crimes que ocorrem no ciberespaço, acesse: Disponível em: <https://www.jornalcontabil.com.br/ciberespaco-facilidade- para-o-cometimento-de-crimes/>. Acesso em: 15 abr. 2020. TEMA 3 – ANALOGIA A partir da criação da internet, desenvolveram-se sistemas de informações com objetivos bem diferentes de uma Guerra Fria (que era o objetivo inicial) na busca de avanços tecnológicos, obtendo-se mais uma maneira de manter vivas as relações sociais que são favoráveis à economia ou a cultura e política. Utilizada pelo Estado em muitas ocasiões, auspiciando a extensão da sua soberania, advindo disso consequências sociais abrangentes em razão desse avanço tecnológico, influenciando de diversas maneiras o mundo do Direito. De acordo com Silva (2013), É concebível de forma clara, a síntese de que a evolução das formas de comunicação e informação são admitidas como forma de extensão do homem e modificação do meio, sendo praticamente inevitável o encantamento do homem enquanto ser social, pelas invenções, uma vez que o sistema ora criado manifesta nos meios de comunicação a sua própria extensão enquanto ser revestido de capacidade criativa. É o que define-se em filosofia como “o mito de Narcísio” (Silva, 2013) Tanto a globalização como a internacionalização, estão relacionadas em nossa era, direta e indiretamente, com o recorrente fenômeno do mundo virtual. Atualmente é necessário visualizar de modo mais concreto o que é “essa tal” de virtualização e, nesse bojo, entender a sua influência nas relações sociais e o seu processo de exteriorização. 8 Falando de crime virtual ou real, Silva (2013) destaca que uma das problemáticas dos delitos digitais “advém do bem jurídico ao qual o Direito Penal pretende forma resumida, é notória o entendimento que da mesma maneira pela qual são gerados danos aos bens jurídicos comuns, é necessário vislumbrar também bens jurídicos não convencionais”, quando ocorrer de o tema for delitos informáticos, observando seu caráter incomum concernente aos outros tipos de infrações já devidamente codificadas. Trata-se, como visto anteriormente, de bens jurídicosnovatos, ainda imprevisíveis, mas de roupagem nova e descendências semelhantes (Silva, 2013). Dando sequência ao assunto, existe a clara necessidade de prevenção e punição de crimes cibernéticos, em que deva existir proteção igual aos dos crimes já tutelados pelo direito. Principalmente porque são poucos os bens jurídicos tutelados com características cibernéticas como, por exemplo, as formas de armazenamento, a cessão e proteção de dados, já merecedores de atenção para que seja aplicada eventual penalidade. Contudo, há que se registrar, que dentre todos os bens jurídicos peculiares à informática a informação é compreendida como bem supraindividual deve ser protegida em prima facie, visto que as outras violações supramencionadas estão ligadas a informação ora violada”, como é o entender de Freitas Crespo1 (2011, p. 56-58) (citado por Silva, 2013) Dentro do tema analogia, podemos citar os considerados crimes digitais impróprios, diferentes dos crimes digitais próprios2, que não são o foco de nossos estudos. Os delitos digitais impróprios, assim denominados, são a evolução por meio digital daqueles delitos já conhecidos na esfera jurídica. Os mais corriqueiros são crimes contra a honra: a) Ameaça; b) Participação em suicídio. Embora o suicídio não seja crime, a instigação ou auxílio são punidos. Vale lembrar, que o auxílio deve ter pessoa determinada e ser eficaz. Quanto ao meio virtual, este está intimamente ligado com a era do Cyberbullying, caracterizando como instigação a criação de comunidades em sites de relacionamento dirigidas especificamente a ofender uma pessoa determinada; c) Incitação e apologia ao crime; d) Falsa identidade e falsidade ideológica; e) Violação de direitos autorais (pirataria). Esse tipo de delito já é protegido por lei que versa sobre a propriedade intelectual; 1 Crespo, Marcelo Xavier de Freitas. Crimes digitais. São Paulo: Saraiva, 2011. p.56-58. 2 Acesso não autorizado; Obtenção e transferência ilegal de dados; Dano informático; Dos vírus e sua disseminação; Social engineering e Phishing. Usuário Destacar 9 f) Pornografia infantil; g) Crimes contra a honra previstos nos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal (calunia, difamação e injúria) Atualmente, tem-se verificado um grande avanço nos estudos científicos que envolvem o combate ao cibercrime. Podemos vislumbrar a implementação concreta no direito brasileiro. Torcemos para que esses estudos não fiquem ocupando prateleiras, no mundo das ideias, e possam, sim, ser colocados em prática da melhor maneira possível, respeitando os princípios constitucionais que regem o Estado Democrático Brasileiro. Saiba mais Acompanhe a comparação dos dois projetos de Lei para crimes virtuais: Dieckmann x Azeredo em: Disponível em <https://gizmodo.uol.com.br/projeto-leis-dieckmann- azeredo/> Acesso em: 15 abr. 2020. TEMA 4 – ABORDAGEM MISTA Com todas as variáveis que surgem frente a esse novo momento, algumas lacunas devem ser preenchidas e algumas abordagens mistas podem ser a solução. Entre os novos questionamentos, discute-se a aplicação do Direito nas hipóteses de lacunas da lei com técnicas de integração. Frente a esse cenário, vejamos o que a Equipe SAJ ADV (2018) tem a falar sobre o papel do Direito: O Direito existe para regular as condutas humanas e, assim, estabelecer a paz social. Devido à diversidade de comportamentos e a própria dinâmica da sociedade, nem sempre as normas jurídicas se aplicam à todas as situações. Em casos onde o ordenamento jurídico não atende ao caso concreto, o operador está diante das chamadas lacunas da lei. Quando falamos de abordagem mista, estamos nos referindo a uma situação em que o sistema jurídico estará aliado à arquitetura da internet. Algumas correntes doutrinárias, contrárias a sua regulação, por muito tempo supunham que a internet não poderia ser adequadamente regulada. Existia uma ideia de que: os governos não iriam e não conseguiriam regular a Internet. O ciberespaço era, por natureza, inevitavelmente livre. Governos poderiam ameaçar, mas o comportamento no ciberespaço não poderia ser controlado. Leis seriam aprovadas, mas não teriam nenhum efeito. Não havia escolha sobre qual tipo de governo instalar – nenhum poderia reinar. (Leonardi, 2011, p.147) Usuário Destacar Usuário Destacar 10 De acordo com Leonardi (2011), o posicionamento cético adotado seria superado aos poucos com o avançar do tempo, logo após o surgimento das primeiras normas jurídicas e inúmeras decisões judiciais que acabavam envolvendo internet. As discussões começaram a mudar seu rumo e, em vez de questionar se o Direito poderia ou não regulamentar a rede, começaram a discutir qual a melhor maneira de atender essa demanda. Isso porque, tal como identificado pela doutrina tradicional, os defensores da impossibilidade de regulação da Internet cometem três erros básicos: a) Exageram as diferenças existentes entre atos ocorridos no ciberespaço e outros atos transnacionais; b) não se atentam à distinção entre normas sociais, sem sanção, e normas de cumprimento obrigatório, impostas pelo Estado; e c) subestimam o potencial das ferramentas jurídicas tradicionais e da tecnologia para resolver os problemas multijurisdicionais causados pelo ciberespaço. (Leonardi, 2011) Nesse contexto, Leonardi (2011), afirma que os atos ocasionados no ciberespaço não seriam diferentes dos atos transnacionais no mundo real, pois “envolvem pessoas em um determinado lugar, sob determinada jurisdição, comunicando-se com pessoas em outros lugares, sob outras jurisdições” (Leonardi, 2011). Sendo assim, não existiria argumento geral e normativo que apoiasse a imunização das atividades do ciberespaço da regulação territorial. Existiriam, sim, inúmeras razões para acreditar que nações poderiam exercer a autoridade territorial buscando alcançar controle regulatório substancial sobre as transações realizadas no ciberespaço. Percebeu-se, então, que a busca de soluções exclusivas no direito positivo, aguardando o surgimento de “soluções mirabolantes” na área legislativa para a internet, era uma fase ultrapassada e fadada a falhar. Sair em busca de resultados realmente concretos e defender de forma adequada os direitos da rede resultariam da correta compreensão, pelos juristas, de algumas peculiaridades da internet e de quais seriam as implicações para o Direito. Esse cenário abriu portas para uma nova corrente doutrinária, amparando a necessidade de uma abordagem mista, que pudesse regulamentar os conflitos derivados da rede, fazendo uso do sistema jurídico em conjunto com a arquitetura da internet. De acordo com Leonardi (2011), Joel Reidenberg formulou o conceito de uma lex informatica3, “definida como uma existente e complexa fonte de regras de 3 Cf. Joel Reidenber, Lex informatica: the formulation of information policy rules through technology, in Texas Law Review, vol. 76, Number 3, February 1998, p. 584. Usuário Destacar 11 políticas de informação em redes globais, que deveriam ser adotadas em complementação – jamais em substituição – às normas jurídicas tradicionais”. A ideia, baseada na lex mercatoria4, “refere-se às regras impostas aos usuários de uma rede, oriundas de sua capacidade e limitação tecnológicas e de escolhas a respeito de seu design”. O maior expoente dessa corrente é Lawrence Lessig, próximo tema de nossos estudos. Seguindo em frente com essas ideias, Yochai Benkler, citado por Silva (2011), explicitou a importância de realmente se compreender a questão de regulagem da internet, relacionando as três camadas que os sistemas de comunicação são construídos: física, lógica e de conteúdo, também demonstrando de que maneiras as redes de computador, a internet, mudaram o modo de se entender o mundo. No Brasil, Ronaldo Lemos5, citado por Leonardi (2011, p. 149), julga ser necessário entender“como a tecnologia se normatiza por meio do seu ‘código’”, usando as estruturas normativas criadas em sua arquitetura, alertando que de nada adianta o jurista debruçar-se sobre o problema da privacidade na internet se ele desconhece o significado normativo da criação de um protocolo como o P3P, que permite inserir, na própria infraestrutura das comunicações online, comandos normativos de filtragem que bloqueiam ou permitem a passagem de conteúdo, sendo autoexecutáveis e, muitas vezes, imperceptíveis para o usuário (Leonardi, 2011, p.149) A ideologia de uso do sistema jurídico para deliberar os destinos da tecnologia, imprimindo alterações na arquitetura de redes informáticas, que em sua origem foram estruturadas e projetadas sem quaisquer mecanismos de controle, tornou-se imensamente influente, porque representa o caminho mais efetivo para o apoio de direitos. No Brasil e no mundo, as decisões judiciais especificam a implementação de medidas técnicas destinadas às pessoas físicas e jurídicas, principalmente provedores de serviços de internet, buscando a resolução dos problemas jurídicos inerentes à rede. De encontro a relevância para a internet, analisaremos a seguir a teoria das modalidades de regulação, proposta por Lawrence Lessig. 4 Sobre o conceito de Lex Mercatoria, cf., por todos, Berthold Goldman, Frontières du droit et lex mercatoria, in Archives de la Philosophie du Droit, Paris: Sirey, 1964, p. 177-192, “que a define como um “conjunto de princípios gerais e de regras costumeiras, aplicadas espontaneamente ou elaboradas para o comércio internacional, sem relação com o sistema jurídico de um país específico, representando um direito supranacional” (Leonardi, 2011). 5 Cf. Ronaldo Lemos, Direito, tecnologia e cultura, Rio de Janeiro: FGV, 2005, p. 9 Usuário Destacar Usuário Destacar 12 Saiba mais Acesse o link para compreender como a tecnologia pode ajudar o governo a prestar melhores serviços, por Ronaldo Lemos. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=d73iO_smyo4>. Acesso em: 15 abr. 2020. TEMA 5 – LAWRENCE LESSIG (DIREITO, NORMAS SOCIAIS, MERCADO, ARQUITETURA) A expressão direito é empregada por Lawrence Lessig, conceituado professor de direito da Universidade de Harvard, na representação do ordenamento jurídico, ou seja, todo o “conjunto normativo estatal, embasado constitucionalmente, em suas mais diversas naturezas e categorias hierárquicas” (Leonardi, 2011). Para o autor, o direito inibe alguns comportamentos utilizando regras estabelecidas ex ante6 e ex post7. Habitualmente, saber da existência e ter certeza da punição já seria o suficiente para desmotivar o descumprimento da norma jurídica. Ainda de acordo com Lessig, se, ao compararmos com o sistema jurídico, as normas sociais inibem comportamentos de modo diferente: elas são entraves normativos que membros de uma mesma comunidade impõem-se mutuamente, cujo descumprimento acarreta sanções por vezes pequenas, mas com efeitos poderosos, sem que haja quaisquer ações organizadas ou centralizadas por parte do Estado. (Leonardi, 2011, p.158) Lessig afirma ainda que as normas sociais ratificam condutas discordantes, ou seja, “desvios que tornam alguém socialmente anormal”. Nossa vida, principalmente em sociedade, dispõe de inúmeras normas sociais, mesmo que nem todas consideremos justas ou mesmo valiosas. Um exemplo é se ignorarmos a festa de aniversário ou casamento de um colega e não apresentarmos uma justificativa, podemos perder uma amizade, ou mesmo que compareçamos, mas em trajes inadequados, isso pode desvalorizar a pessoa. Se formos analisar esses atos, pode-se dizer que nenhum deles é ilegal, entretanto pode vir a causar punições sociais gravíssimas, como crítica, gozação, 6 Com sanções impostas 7 O indivíduo pode desrespeitá-las, mas arcará com as consequências jurídicas de sua desobediência, as quais serão impostas pelo Estado (Leonardi, 2011, p.158) Usuário Destacar 13 vergonha, preconceito, entre inúmeras outras. Para aquelas pessoas que são socialmente integradas, essas normas sociais estabelecem parcela significativa dos embaraços cobrados do seu comportamento. Da mesma forma que no Direito, essas normas sociais são eficientes, diferenciando unicamente seu mecanismo e sua fonte de sanção, por serem colocadas pela comunidade e não pelo Estado, e suas sanções e punições são impostas depois de ocorrida a violação. O mercado, onde ocorrem as relações econômicas que envolvem a compra e venda, sendo também o sistema principal de acesso aos bens econômicos, simboliza outra maneira de regulação, pois tende a inibir os comportamentos sociais usando o preço como artífice. Simplificando, para termos algum benefício, é necessário arcar com seu custo. Mesmo que consiga obter bens e serviços a crédito, fica contraída a obrigação, dependendo da situação econômico-financeira do consumidor. Assim sendo, os obstáculos colocados pelo mercado são simultâneos à ação, e não ex post. Emprega-se a palavra arquitetura de maneira ampla, objetivando algum jeito de representar o mundo como ele é, ou, em outras palavras, a maneira estruturada de como as coisas existem na natureza, como também a maneira como elas são projetadas e posteriormente construídas pelas pessoas. “A arquitetura é uma modalidade de regulação, na medida em que as características de determinadas coisas restringem comportamentos, ou forçam determinadas condutas” (Leonardi, 2011). Contrariamente as outras três modalidades, a regulação utilizando a arquitetura é autoexecutável, ou seja, não dependerá da cooperação de ninguém e nem de ações organizadas, muito menos de um mecanismo estatal, social ou de mercado para ser executada, inclusive não permitindo ao indivíduo desprezá- la e sofrer futuras consequências. Leonardi (2011, p. 159), afirma que a ideia de regulação por meio da arquitetura é óbvia em alguns contextos: para evitar que carros trafeguem em alta velocidade nas proximidades de escolas, lombadas são construídas nas ruas que as circundam; obstáculos são colocados junto a escadas rolantes em aeroportos, para evitar que passageiros levem carrinhos de bagagem a certos locais; e filas são organizadas, por meio de barreiras físicas. Do ponto de vista da privacidade, essa constatação é ainda mais evidente (Leonardi, 2011, p.159) A influência da arquitetura urbana influi sobremaneira no grau de tranquilidade experimentada pelas pessoas, influenciando diretamente na decisão de morar em uma casa, em apartamento ou em um sobrado, decidir sobre morar Usuário Destacar 14 em bairros próximos ou em áreas afastadas, em metrópoles ou cidades pequenas, deixando de fora as limitações econômicas que venham a impedir essas escolhas. Saiba mais Assista o vídeo de “Lessig: é possível ter uma internet livre”, no link a seguir: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=_6YIH3f-nSc/>. Acesso em: 15 abr. 2020. FINALIZANDO Na aula de hoje, vimos diversos conceitos oriundos da LGPD, alguns fundamentos da proteção de dados pessoais, mostrando a consonância com o que já consta na Constituição Federal. Os direitos, deveres e sanções aos agentes responsáveis pelo tratamento de dados também foi tema de nossas conversas. A importância de questões internacionais no que tange às comparações com a RGPD, bem como o papel da Administração Pública nesse cenário foram igualmente contemplados. A LGPD, é alvo de inúmeras discussões. Era inicialmente prevista a sua vigência para agosto de 2020, tendo nova data sugerida para 2022 pelo Projeto de Lei 5762/19, da vigência da maior parte da Lei. Na próxima aula, veremos alguns meios de regulação indireta. Até logo! 15 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acessoem: 31 mar 2020.
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