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1. Significado, Objeto E Âmbito Da Sociologia Neste tópico, a proposta é compreender do que trata a Sociologia Geral, qual o seu objeto de estudo e o que ela aborda. Além disso, veremos sua origem histórica, com enfoque na figura de Augusto Comte e no Positivismo. Veremos que a Sociologia tem uma enorme relevância para os estudos sobre a sociedade, o que fortalece a pertinência da Sociologia do Direito para qualquer aprofundamento no campo jurídico. 1.1 Concepção e objeto da Sociologia A Sociologia pode ser considerada uma ciência que tem por objetivo analisar os processos e as estruturas sociais, ou seja, como se dá a vida humana em sociedade. A partir de diferentes perspectivas, o que os principais teóricos da Sociologia fizeram foi oferecer explicações para se compreender a sociedade como um todo, em análises sobre alguns aspectos da estrutura social e das relações que se estabelecem no seu interior. Ao estudar as formações sociais e suas causas, a Sociologia se insere em uma análise acerca do desenvolvimento histórico de tais formações, na medida em que tenta compreender os fatores que levaram a uma dada situação social vivida em determinados contextos. Assim, pode-se dizer que a Sociologia está comprometida com os processos de transformação social, desvendando mistérios da vida social do passado e, através desse conhecimento, intervindo na realidade e contribuindo para a compreensão e construção do futuro. Dito de maneira simplificada, o objeto de estudo da Sociologia seria, então, as formações sociais passadas, presentes e uma espécie de projeção sobre as futuras (ROCHA, 2019. p. 10). O sociólogo José Manuel de Sacadura Rocha destaca também necessidade de que a Sociologia, para ser ciência, seja pensada em um contexto de liberdade. Isso porque, para o autor, como a Sociologia está comprometida com a reflexão sobre as transformações sociais, seria difícil defender esse papel de agente de mudanças em um contexto de autoritarismo e estados de exceção (ROCHA, 2019. p. 10). Além disso, é importante pontuar a extrema relevância da Sociologia para a compreensão do ser humano acerca de si mesmo. Historicamente, o ser humano constitui-se de maneira social, isto é, em relação com outros seres humanos e com o ambiente que os cerca. Essas relações ajudam a moldar, condicionar e até determinar a forma como agimos, vivemos e somos. Mesmo que nós possamos agir de maneira isolada e individual, o comportamento continua sendo social, na medida em que sobre ele "recai o peso da orientação coletiva de determinado grupo" (ROCHA, 2019. p. 11). Evidentemente, há sempre certo espaço para a ação individualizada e nem tudo é absolutamente determinado e condicionado socialmente. Mas não se pode negar a influência dos fatores sociais na constituição dos comportamentos humanos. Como exemplo, podemos pensar na forma de utilização do tempo pelas pessoas. Por que tantas pessoas habitualmente acordam em uma faixa de horário similar, se locomovem ao trabalho e retornam em horários semelhantes? A influência dos modos de produção de trabalho estabelecidos é perceptível, na medida em que somos condicionados a utilizar nosso tempo dessa forma. Assim, quando se diz que a Sociologia estuda processos e estruturas sociais, concretamente seu objeto está presente em comportamentos sociais variados, como os modos de produção, a utilização do tempo, as hierarquias sociais, as estruturas de raça e gênero, por exemplo, que implicam na vivência de determinadas experiências, as regras sociais tácitas e explícitas que ditam nossa forma de viver, dentre tantos outros exemplos possíveis. Todas essas condições da vida humana são construções realizadas ao longo do tempo pelo próprio ser humano, influenciado também pelas contingências contextuais. Isso traz à tona o papel constituinte do ser humano em geral, já que os grupos acabam por ter a capacidade de construir seu conjunto de regras, normas e comportamentos, que vão se modificando ao longo do tempo. Mesmo que seja possível entender o papel do ser humano nessas transformações de maneira muito distinta conforme a perspectiva sociológica adotada, o fato é que as sociedades são diferentes e sofrem modificações constantes (ROCHA, 2019. p. 12). Como essas transformações são absolutamente pertinentes ao estudo sociológico, não há como negar a importância crescente da Sociologia no contexto atual, tão marcado por mudanças e pelo dinamismo, através, sobretudo, das transformações tecnológicas. É nesse sentido que F. A. de Miranda Rosa (2004, p. 23) destaca a crise profunda em que se encontram as sociedades humanas, mas também o potencial transformador nelas existente: As contradições internas se manifestam em forma de explosões reveladoras de forças sociais imensas, represas ou em curso; as populações aumentam aceleradamente e com isso as tensões internas dos grupos sociais, ou as tensões entre grupos diferentes; a ideologia se apresenta com enorme capacidade de polarização do pensamento e da ação; o sentido, mesmo, que deve ter a vida humana, é posto em questão; mas em meio aos problemas e aos conflitos, há uma vitalidade imensa, cheia de espírito criador, da solidariedade, em que um novo eclodir do humanismo se mostra, e quando a procura de unidade no essencial rivaliza com a afirmação das diferenças inerentes à personalidade. É notável, portanto, a importância que se deve dar à Sociologia no mundo atual. Ao vivermos tantas mudanças sociais, a tentativa de compreendê-las e sobre elas refletir é um imperativo. 1.2 Origem da Sociologia: Augusto Comte e o Positivismo Para entender a origem da Sociologia, é preciso primeiramente esclarecer o contexto em que ela surgiu, na França do século XIX. Aquela época, sentindo os efeitos da Revolução Industrial, a França se tornava pouco a pouco uma sociedade industrial, marcada pela exploração de mão de obra barata, sobretudo de mulheres e crianças, em condições nítidas de precarização, além de um fluxo desordenado de pessoas que saíam do campo para as cidades, o que gerava problemas de habitação, higiene, alta mortalidade infantil, etc. (ROCHA, 2019. p. 14). Nesse contexto repleto de transformações e dificuldades sociais, surge a Sociologia, com o intuito de compreender, por exemplo, os motivos pelos quais a sociedade é estruturada assim e como e por que as sociedades mudam (GIDDENS, 2005. p. 28), questões pertinentes até hoje nos estudos sociológicos. Embora não seja possível atribuir a criação desse campo de estudo exclusivamente a uma pessoa, certamente o francês Augusto Comte (1798-1857) possui grande destaque na origem da disciplina, já que ele foi o primeiro teórico a usar o termo "Sociologia". A perspectiva adotada por Comte é a da ciência positiva. Para o teórico, a Sociologia deveria adotar os mesmos métodos científicos que a Física ou a Química para o estudo do mundo físico. Assim, para o Positivismo, a ciência deve se preocupar apenas com aquilo que pode ser observável e conhecido através da experiência. Tendo por base as observações sensoriais, seria possível inferir as leis que regem as relações entre os fenômenos observados (GIDDENS, 2005. p. 28). Nas palavras do próprio Augusto Comte, " (...) todos os bons espíritos repetem (...) que somente são reais os conhecimentos que repousam sobre fatos observados" (COMTE, 1978. p. 4). Segundo Comte, o pensamento humano teria passado por três estágios na tentativa de compreensão do mundo: teológico, metafísico e positivo. No plano teológico, os esforços eram guiados pelas ideias religiosas e crença segundo a qual a sociedade era a expressão da vontade divina. Já no estágio metafísico, ocorrido mais ou menos na época da Renascença, a sociedade passa a ser vista da perspectiva natural, e não sobrenatural. Por fim, no estágio positivo, influenciado pelas descobertas de Copérnico, Newton e Galileu, tem-se a aplicação detécnicas científicas (das ciências naturais) ao mundo social (GIDDENS, 2005. p. 28). Além disso, ainda no que diz respeito à primazia da experiência, preconizada por Comte, o autor considera importantes dois principais fatores: a observação em si, ou seja, "o exame direto do fenômeno tal como ele se apresenta naturalmente", e a observação do fenômeno já "modificado em circunstâncias artificialmente construídas" (SOUZA, 2008. p. 139). Diante da influência decisiva das ditas "leis naturais", a concepção positivista de Comte aduz que a evolução social está, na verdade sujeita, a essas leis naturais, que não podem ser modificadas pela natureza humana. Isso leva à inutilidade, do ponto de vista comteano, da resistência ao desenvolvimento inevitável da sociedade. Assim, como consequência lógica da teoria de Comte, chega-se a um dos pontos mais importantes e também mais polêmicos de sua teoria, que considera haver um determinismo no mundo social, em que os fatos estão "(...) rigorosamente encadeados uns aos outros, segundo leis naturais, que a observação filosófica do passado pode descobrir, e determinam, para cada época, de maneira inteiramente positiva, os aperfeiçoamentos que o estado social deve experimentar" (SOUZA, 2008. pp. 139-140). De todo modo, a teoria positivista teve e ainda tem uma forte influência na concepção de diferentes conceitos e teorias nas mais diversas áreas do conhecimento, incluindo o Direito. Embora haja um grande determinismo na explicação do mundo social, que deixa as análises herméticas em alguma medida, sem dúvida Augusto Comte possibilitou importantes formas de análise da sociedade e dos processos e estruturas sociais inerentes à vida humana. 2. SIGNIFICADO E OBJETO DA SOCIOLOGIA E DA ANTROPOLOGIA DO DIREITO Agora, é importante nos determos mais sobre a Sociologia já no contexto do Direito. Como veremos, há uma enorme pertinência não só da Sociologia no campo jurídico, como também da Antropologia. Por isso, veremos o que cada um desses ramos tem por objeto e sua relevância para o Direito, além de diferenciarmos a Antropologia e a Sociologia do Direito. 2.1 Concepção e objeto da Sociologia do Direito Após tratarmos da Sociologia geral compreendendo seu escopo, seu objeto e sua origem, cabe agora melhor analisar sua pertinência no estudo jurídico propriamente dito. Como já vimos, a Sociologia se debruça sobre os comportamentos, as estruturas e os processos sociais, buscando entender o funcionamento da sociedade como um todo. Nas sociedades contemporâneas, o Direito é entendido também como o conjunto de normas que regulam a vida social, servindo para dirimir conflitos e estabelecer parâmetros de conduta (CAVALIERI FILHO, 2007. p. 7). Segundo José Manuel de Sacadura Rocha, a Sociologia aplicada ao Direito interessa-se pelo estudo do Direito com base nos fenômenos sociais. Isso porque as sociedades instituem regras e leis que orientam e obrigam os indivíduos em sua sobrevivência conjunta. Para o autor, "o objeto da Sociologia Jurídica é a contribuição que o determinado grupo humano empresta para a consagração e formalização dessas regras, ou seja, entender a norma, escrita (aparelho jurídico formal), ou não escrita (extrajurídico)", a partir de da relação dos fenômenos sociais com formações sociais específicas de cada sociedade (ROCHA, 2019. p. 23). Rocha (2019, p. 23) aponta algumas perguntas sobre as quais a Sociologia Jurídica busca refletir, tais como: qual a magnitude do Direito na sociedade?; o que existe no Direito além de códigos e dos conceitos meramente legislativos?; como e por que se cria um conjunto de normas? O que tem se observado já há bastante tempo é a insuficiência em relação à compreensão dos fenômenos sociais pelo Direito, o que frequentemente implica em erros de julgamento e falhas sérias na efetivação da justiça. Isso se dá também com a efetividade das normas jurídicas, por vezes produzida e interpretada com certo distanciamento da realidade fática vivida pelas pessoas. Assim, é nítido que o Direito positivado - estabelecido em normas, leis e códigos - não contempla toda a complexidade da vida em sociedade. Os fenômenos sociais estão acima e antes dos códigos legislativos e da formalização no sistema jurídico (ROCHA, 2019. p. 23). Rocha chama atenção, ainda, às confusões comumente feitas em relação à Sociologia Jurídica. Segundo o autor, por vezes juristas tendem a subordinar a Sociologia ao Direito, o que implica em um privilégio equivocado da norma em detrimento da formação social. Para ele, "não é um erro simples; é, simplesmente, a supressão da ordem das coisas como estas são", que pode resultar em um Direito desprovimento de movimento e flexibilidade para adequação à vida concreta (ROCHA, 2019. pp. 23-24). Erro semelhante é cometido, também, pelos cientistas sociais que retiram do Direito seu papel ativo na sociedade e submete-o integralmente aos fenômenos sociais, tratando-o de como um mero conjunto de normas para resolução de conflitos específicos (ROCHA, 2019. p. 24). Trata-se, igualmente, de uma visão reducionista e empobrecedora em relação ao Direito. A relação entre os objetos da Sociologia e o Direito é dialética e dialógica, de constituição mútua: da mesma forma que os fenômenos sociais constituem o Direito, tais fenômenos são por ele constituídos. O Direito faz parte da realidade social; não pode ser visto como letra fria e sem vida, como se sua existência não repercutisse diretamente na vida das pessoas: O Direito tem de observar de perto essa dinâmica, a interação entre sociedade e norma, encarar a mudança na medida exata da mudança das estruturas sociais e de seu aparato jurídico, diante das expectativas e tensões pertinentes na vida prática dos agentes sociais inseridos em um contexto de modernidade. E, de forma igual, a Sociologia há de reconhecer a penetração do Direito na vida social (ROSA, 2004. p. 25). Nesse sentido, apesar dessa relação indissociável entre a Sociologia e o Direito, é possível dizer que a Sociologia Jurídica goza de certa autonomia, já que seu objeto é mais específico em relação a outros campos do conhecimento. Segundo Cavalieri Filho, a Sociologia Jurídica tem por finalidade o estabelecimento de "(...) uma relação funcional entre a realidade social e as diferentes manifestações jurídicas, sob forma de regulamentação da vida social, fornecendo subsídios para suas transformações, no tempo e no espaço" (CAVALIERI FILHO, 2007. p. 58). É importante ter em mente, ainda, que a norma jurídica é resultado da realidade social. Conforme Rosa: "Ela emana da sociedade, por seus instrumentos e instituições destinados a formular o Direito, refletindo o que a sociedade tem como objetivos, bem como suas crenças e valorações". Aliás, o próprio estudo histórico das sociedades comprova isso, na medida em que é facilmente observável a existência de estruturas jurídicas bem distintas no tempo e no espaço, conforme a realidade e o contexto do momento (ROSA, 2004. p. 44). Sem nos determos sobre este ponto, basta pensarmos nas mudanças que o divórcio sofreu ao longo do tempo no sistema jurídico brasileiro, com uma aceitação muito maior em relação às décadas passadas, acompanhando também transformações sociais. Além disso, de Acordo com Rocha (2019), a Sociologia Jurídica tem algumas premissas que merecem ser destacadas brevemente: Premissas da Sociologia Jurídica • Pluralismo Jurídico, ou se, a diversidade de concepções do que vem a ser o Direito, das fontes do Direito e das formas de se sistematizar a juridicidade em uma sociedade. • Compreensão da função das normas • Eficácia normativa, ou seja, os efeitos produzidos pela norma. Assim, o que se percebe com essas premissas é uma relação mais concreta que a Sociologia Jurídica estabelece com os fenômenos jurídicos, já que se referem às formas de estruturação do Direito e às normas em sua realidadeprática e os seus efeitos possíveis, A Sociologia Jurídica, mesmo que através de diferentes perspectivas teóricas, explora os fenômenos jurídicos em seus efeitos, causas, processos e estruturas sociais, focando o olhar para o funcionamento da normatividade (em sentido lato) na vida social. 2.2 Concepção e objeto da Antropologia Jurídica Além da Sociologia do Direito, há um outro campo de estudo social no Direito, a chamada Antropologia Jurídica. Da mesma forma que ocorre com a Sociologia, o objeto de estudo antropológico é abrangente e de difícil definição, já que se concentra também por aspectos da vida em sociedade. Olney Queiroz Assis e Vitor Frederico Kümpel destacam esse caráter diversificado da Antropologia, que aborda diferentes aspectos da realidade humana. No seu surgimento, em meados do Século XIX, a Antropologia debruça-se sobre as sociedades primitivas (ASSIS et al., 2010. p. 17), a fim de entender suas formas de organização, costumes, evolução no tempo e no espaço etc. Posteriormente, já no século XX, a Antropologia amplia seu objeto e passa a analisar não apenas as sociedades primitivas, mas qualquer sociedade em qualquer tempo, de modo que seu objeto passaria a ser "o estudo do homem inteiro". Assim, ela visaria o conhecimento por completo do ser humano, implicando no estudo do homem e da cultura em todas as suas dimensões (ASSIS et al.,2010. p. 17). Diante da complexidade da vida humana, a Antropologia se divide em alguns ramos, com enfoques diferentes. O primeiro ramo é o da Antropologia cultural, que consiste segundo Assis et al. (2010, pp. 17-18): " (...) no estudo de tudo que constitui as sociedades humanas: seus modos de produção econômica, suas descobertas e invenções, suas técnicas, sua organização política e jurídica, (...) suas crenças religiosas, sua língua, sua psicologia (..."'. Temos, ainda, a Antropologia biológica. Nesse caso, o enfoque de estudo está voltado para a evolução do homem, sua distribuição em grupos étnicos, além da análise de relações entre patrimônio genético e espaços geográficos. Já a Antropologia pré-histórica, por sua vez, envereda-se pelo estudo dos vestígios materiais deixados nos ambientes ocupados pelo ser humano, na busca da reconstituição de sociedades e grupos desaparecidos. Por fim, a Antropologia linguística ocupa-se da linguagem enquanto patrimônio cultural de sociedade, considerando a relevância dos processos comunicacionais para a expressão de pensamentos, crenças e valores (ASSIS et al., 2010). Evidentemente, todos esses ramos se entrelaçam de alguma maneira e possuem uma relação de complementaridade. Contudo, certamente os estudos da Antropologia cultural possuem maior repercussão no campo jurídico, já que seu objeto relaciona-se mais com o Direito e com as estruturas e formações políticas, normativas e sociais tão pertinentes ao Direito. Nesse sentido, a Antropologia cultural é dividida entre a Etnografia e a Etnologia, consideradas métodos da pesquisa antropológica. Segundo Assis et al. (2010), podemos defini-las como: • Etnografia diz respeito ao trabalho de campo de observação, descrição e análise de grupos humanos, considerando suas particularidades. • Etnologia busca utilizar comparativamente os documentos apresentados pelo etnógrafo, integrando conhecimentos de grupos, reconstituindo o passado de determinadas socie-dades. As conexões do Direito com a Antropologia são evidentes, visto que o ser humano constitui objeto central dessas duas áreas do conhecimento, motivo pelo qual temas como igualdade e diferença são, ao mesmo tempo, jurídicos e antropológicos. Além disso, o direito constitui um dos aspectos da cultura, e esta constitui objeto específico da antropologia cultural. A antropologia, tal como o direito, também se interessa pelos conflitos sociais, principalmente no que diz respeito à intervenção normativa na decisão jurídica desses conflitos, bem como pelo desdobramento da ordem jurídica diante das transformações culturais, sociais, políticas e econômicas. Quando inserida especificamente no estudo jurídico, então, a Antropologia tem por objeto o estudo do ser humano enquanto "ser normativo", isto é, "(...) a utilidade e eficiência das regras de conduta a partir do conjunto de mecanismos culturais que cada grupo estabelece para sobreviver" (ROCHA, 2018. p. 36). Além disso, a Antropologia jurídica permite descobrir e compreender o Direito encoberto pela legislação, pela normatividade formal. Isso é importante também para que a sociedade acompanhe as evoluções jurídicas para um Direito mais flexível e maleável, por exemplo. Nesse sentido, o Pluralismo jurídico (sobretudo do ponto de vista normativo) ocupa igualmente um espaço de relevância para a Antropologia, na medida em que se aceita com mais clareza a existência de normatividades diferentes daquelas legislativas e estatais (ASSIS, KÜMPEL, 2010. pp. 49-50). Como exemplo, Assis e Kümpel destacam a normatividade existente em favelas do Rio de Janeiro, onde há uma legalidade alternativa para resolução de conflitos e solução de outros problemas comunitários, o que representa o exercício de um poder político alternativo, mesmo que de forma incipiente. Segundo os autores, a preponderância de procedimentos com maior oralidade e informalidade tem inspirado mudanças no direito estatal, sobretudo em tribunais de pequenas causas e na aplicação das penas ditas alternativas (ASSIS, KÜMPEL, 2010. pp. 50-51). Assim sendo, embora a Antropologia pareça ser complexa, seu estudo é pertinente para o Direito justamente nas formas mais simples e cotidianas de normatividades e legalidades, que mostram formas de organização de condutas, bem como possibilitam a análise dos efeitos das normas estatais em grupos e comunidades, avaliando a recepção da legislação na sociedade. 3. PARADIGMAS DO PENSAMENTO SOCIAL Ao refletirmos sobre os paradigmas do pensamento social, vamos focar em dois paradigmas principais: a Modernidade e a Pós-modernidade. Embora a princípio possa parecer uma tarefa complexa, veremos que se trata de entender os modelos e padrões de pensamento social em determinadas épocas, ou seja, compreender basicamente como se estruturam os pensamentos sociais a partir desses paradigmas tão importantes historicamente e na atualidade. 3.1 Paradigmas do pensamento social: a Modernidade Historicamente, podemos afirmar que a Modernidade tem início com a Revolução Francesa, ocorrida no fim do século XVIII. Esse contexto foi marcado pela tomada do poder pela burguesia, e pelo surgimento de novas concepções filosóficas de mundo, como o Iluminismo, com a defesa da "(...) crença na razão como promotora de progresso e da felicidade, a rejeição ao governo absolutista e aos privilégios da nobreza e do clero, e também a crítica à interferência da igreja nas questões de Estado" (ESCOBAR, 2010. p. 72). Com a influência das ideias iluministas, cresceu também a defesa de um governo regido por leis, que protegeria os cidadãos contra abusos de poder por parte dos governantes e consagraria a igualdade formal entre os cidadãos. Além disso, o Racionalismo igualmente passou a ganhar importância, de modo a propugnar a razão como instrumento de solução dos problemas vividos. Paralelamente a esses fatos, inovações tecnológicas foram pouco a pouco implementadas na sociedade e o modo de produção capitalista substituiu as formas econômicas feudais (ESCOBAR, 2010. pp. 72-73). A Modernidade trouxe, portanto, uma orientação para o futuro, havendo um sentido de continuidade e descontinuidade, ordem e caos, estabilidade e instabilidade (BEZERRA, 2011. p. 180). A potencialidade de transformação da Modernidade veio não só das mudanças tecnológicas, mas também de aspectos epistemológicos, isto é, em relação àquilo que passou a ser considerado válido como conhecimento e saber. Antes, o ser humano estava de certa forma preso às certezasdas perspectivas míticas e religiosas que predominavam na maneira de se entender o mundo e o próprio ser humano. Além da importância do Iluminismo na Modernidade, o Universalismo também apareceu como a dimensão generalizadora do projeto civilizatório pensado nessa época, de modo que se levava em conta postulados com a pretensão universalista acerca da natureza humana para se compreender o ser humano de maneira homogênea. Assim, quaisquer conflitos poderiam ser resolvidos a partir dessas noções aplicáveis a todos em qualquer contexto (BEZERRA, 2011. pp. 182-183). É preciso ressaltar, ainda, que essa mudança na maneira de enxergar o mundo e o ser humano, com uma valorização do papel da razão em detrimento do pensamento mítico- religioso, não era homogênea. Diferentes perspectivas situadas na tradição moderna chocaram com abordagens diversas e até críticas a alguns aspectos da própria Modernidade, como é o caso de Karl Marx e Max Weber, que veremos melhor nessa disciplina. De todo modo, a Modernidade ficou caracterizada pelo surgimento de um sujeito autônomo, com pretensões mais claras de liberdade e que passou a enxergar na sua existência com um potencial de transformação da realidade posta, sobretudo através da racionalidade agora colocada em destaque. 3.2 Paradigmas do pensamento social: a Pós-Modernidade Diante dos sérios problemas vividos na Modernidade, como as duas grandes Guerras Mundiais, a ascensão de regimes Totalitários e as crises econômicas no mundo afora, os fundamentos do pensamento moderno começaram a ser questionados e dar lugar a outras ideias e lutas até então relativamente silenciadas nos pelos paradigmas dominantes. Assim, nas décadas de 1960 e 1970, apareceu o que se convencionou chamar de pensamento pós- moderno. Tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, surgiram outras categorias de sujeitos e de entendimento em relação à própria vivência humana. "Emergem novas categorias sociais: o colonizado, a raça, a marginalidade, o gênero e similares", além de uma crescente contestação por parte das populações de países tidos como "periféricos" (BEZERRA, 2011. p. 191). Assim, a Pós-Modernidade fundou-se na crítica à crença moderna na razão como instrumento para emancipação universal do ser humano, como se a história fosse um processo unitário que, por meio de formas universais, pudesse levar a humanidade ao progresso. Porém, "(...) pensar a história como processo unitário só era possível porque tal pensamento se ancorava na existência de um centro a partir de onde se recolhiam e ordenavam os acontecimentos" (BEZERRA, 2011. p. 195). Na Pós-Modernidade, há um entendimento de que existem diversas narrativas nas sociedades e na humanidade em geral, de modo que considerar a história como tal um processo unitário seria ignorar essas tantas e variadas formas de vivências. Nesse sentido, alguns teóricos (como Vattimo) entendem que as mídias de massa contribuíram para esse processo ao dar voz a essas novas narrativas, mesmo que essas mesmas mídias tenham contribuído também para a massificação e hegemonia de determinadas estruturas culturais (BEZERRA, 2011. p. 196). Para Jean-François Lyotard, a Pós-Modernidade é caracterizada pela incredulidade em relação aos "metarrelatos", ou seja, a uma grande narrativa que explica o ser humano e o mundo, como a da Modernidade a respeito da razão como instrumento para o progresso histórico. Assim, a função narrativa "(...) se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., cada um veiculando validades pragmáticas sui generis" (LYOTARD, 2009. p. xvi). Como consequência dessas alterações que decompuseram os "grandes relatos", Lyotard acredita que houve a dissolução do vínculo social e a passagem de coletividades sociais a uma massa composta por átomos individuais. Nesse processo, a comunicação e os jogos de linguagem ganham cada vez mais centralidade (LYOTARD, 2009. p. 30), como foi dito a respeito das mídias de massa, por exemplo. Segundo Bauman, há um amontoamento das diferenças, que se tornam objeto de disputa, com estilos e padrões concorrentes. Trata-se de um suposto amor à diferença, em que todos devem se mostrar seduzidos pela "(...) infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações" (BAUMAN, 1998. p. 23). Dessa forma, é importante pensar a Pós-Modernidade como a época da relativização das grandes narrativas e de certos valores que eram tidos como pretensamente universais, como a crença no progresso natural da humanidade e na razão como instrumento para tal. E, nesse contexto, surgem novas identidades sociais, novos comportamentos que brigam por espaço, sendo que o. O caráter cibernético e informatizado da sociedade é um traço marcante das novas formas de comunicação e entendimento da realidade, tornando essa nova realidade fluida e mais mutável. 1 INDIVÍDUO, CULTURA E SOCIEDADE Neste tópico, analisaremos com maior detalhe algumas nuances importantes para o estudo da Sociologia e Antropologia do Direito: a cultura por uma perspectiva antropológica; cultura e sociedade; crime e desvio social. São aspectos de grande relevância para o estudo do Direito, uma vez que dizem respeito a fenômenos sociais abarcados pelo âmbito jurídico em geral. 1.1 Abordagem antropológica da cultura O entendimento da Ciência Social a respeito do que significa o termo "cultura" e que fenômenos ele compreende se modificou sensivelmente ao longo dos últimos séculos. Antes do surgimento e consolidação da Antropologia como disciplina - ocorrida a partir do século XIX -, a visão predominante entre filósofos e historiadores europeus apresentava uma concepção acerca do fenômeno cultural que John Thompson (2000) denominou como concepção clássica de cultura, por vezes também denominada como normativa. O termo era frequentemente associado a um processo de desenvolvimento e enobrecimento das faculdades humanas, o qual seria facilitado pela assimilação de trabalhos artísticos e acadêmicos e estaria ligado ao caráter progressista da Modernidade e da racionalidade do período Iluminista. Este último elemento, ligado à perspectiva clássica, foi alvo de fortes críticas e é uma das principais razões para que esta perspectiva tenha sido superada na produção acadêmica: ela indicava uma superioridade de certos valores e ofícios em relação a outros e apresentava conotação fortemente eurocêntrica, dando centralidade excessiva ao legado Iluminista (LOPES, 2014). O desenvolvimento do campo antropológico na segunda metade do século XIX, associado à proliferação dos trabalhos etnográficos na disciplina voltados a comunidades fora da Europa, impulsionou mudanças na concepção predominante sobre o conceito "cultura", abrindo espaço, inicialmente, para a chamada concepção descritiva. O primeiro conceito propriamente antropológico de cultura, elaborado por Edward Taylor, considera o fenômeno como "(...) todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade" (TAYLOR LARAIA, 1997, p. 25). Historiadores culturais e antropólogos da época, ainda que adotando inovações e particularidades a partir da ideia apresentada - como, por exemplo, o particularismo e o relativismo da abordagem de Franz Boas, e o funcionalismo de Bronislaw Malinowski - partilhavam a perspectiva de que a cultura de um grupo se refere às ideias, valores, crenças e costumes, assim como os instrumentos materiais e objetos tangíveis que os indivíduos adquirem enquanto membros de determinada sociedade. Ao mesmo tempo, se verificavam divergências entre os pesquisadores da época acerca do referencial deaplicação deste conceito - se a partir de uma ótica evolucionista, ou objeto de uma análise funcional (LOPES. 2014). Dentre as ressalvas feitas por antropólogos à perspectiva descritiva, estariam a excessiva amplitude e vagueza do conceito de cultura, que poderia se tornar redundante, confundindo- se com o próprio termo "Antropologia", quando não associado a uma maior especificação do método de análise. Para contrapor-se a este problema, desenvolveu-se a concepção simbólica de cultura, inicialmente esboçada por L. A. White. O autor considerou que o ser humano e a cultura são inseparáveis e interdependentes. A atribuição de símbolos e dos significados seria uma capacidade inerente à humanidade, e a cultura seria realizada por meio destes atos de simbolização (WHITE, 2009). Esta conceituação influenciou a construção da perspectiva semiótica de Clifford Geertz, que colocou o tema da cultura em posição de centralidade nos debates da disciplina. Na conhecida obra A interpretação das culturas, Geertz (1989) avalia que, ainda que em seu sentido mais amplo a cultura diga respeito à toda produção humana material e imaterial, esta é uma teia de significados tecida pelo homem, que orienta sua existência. Trata-se de um padrão de significados, representados na forma de símbolos, que interage em meio às relações comunicacionais dos indivíduos de forma recíproca. O autor define símbolo como qualquer ato, objeto, acontecimento ou relação que represente um significado. As diferenças entre estas duas concepções possuem implicações profundas na pesquisa antropológica. Enquanto a análise simbólica visa elucidar padrões de significado e interpretar os mesmos de forma incorporada às formas simbólicas, a pesquisa orientada pela abordagem descritiva se volta à classificação e à análise científica, interdependência funcional e mudanças evolutivas (LOPES, 2014). Os opositores da concepção simbólica, como Thompson (2000), alegam a debilidade da mesma para considerar questões relativas ao poder e ao conflito, a negligência aos contextos sociais onde se produzem e transmitem os fenômenos culturais. Este antropólogo buscou formular a chamada concepção estrutural da cultura, a qual buscaria investigar os contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados nos quais formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas (THOMPSON, 2000). Em tal ótica, os fenômenos culturais são percebidos como formas simbólicas socialmente contextualizadas; enquanto que a análise cultural trata do estudo da constituição significativa e da contextualização social das mesmas (LOPES, 2014). A abordagem estrutural se difere da simbólica e apresenta uma vantagem analítica em relação à mesma, portanto, ao enfatizar, ao mesmo tempo, o caráter simbólico dos fenômenos culturais e o fato de que esses fenômenos estão sempre inseridos em contextos socialmente estruturados - que envolvem conflitos, relações de dominação (muitas vezes cristalizadas no direito) e desigualdades na distribuição de recursos (LOPES, 2014). A construção das abordagens simbólica, semiótica e estrutural da cultura foram responsáveis diretamente pela ascensão do status elevado atribuído ao tema da cultura a partir da década de 1960. Um marco neste sentido é a criação da área interdisciplinar dos Estudos Culturais, cujos principais colaboradores foram Raymond Williams e Stuart Hall. Com isto, a cultura passa a exercer um papel de destaque nas discussões acadêmicas e sociais envolvendo a estrutura e a organização da vida cotidiana das pessoas, a partir da compreensão de que toda a prática social, sendo prática discursiva, possui uma dimensão cultural (GODOY; SANTOS, 2014). Na Sociologia, o conceito de cultura diz respeito aos aspectos aprendidos e partilhados pelos membros da sociedade e que permitem a comunicação e cooperação entre indivíduos e grupos. Ele se refere ao contexto em que os eles vivem suas vidas e envolve tanto aspectos tangíveis (tecnologia, objetos, símbolos) como intangíveis (valores, ideias e crenças) (GIDDENS, 2008). Embora haja distinções conceituais entre os termos "cultura" e "sociedade", há fortes conexões entre eles. Sociedades são, nas palavras de Anthony Giddens (2008), sistemas de interrelações que envolvem coletivamente um conjunto de indivíduos. Uma sociedade pode englobar milhões de pessoas ou apenas algumas dezenas delas, mas o elemento que faz tanto uma gigantesca nação, quanto uma pequena tribo indígena ser conceituada com o mesmo termo, é a organização destes dois conjuntos em relações sociais estruturadas a partir de uma cultura comum. Desse modo, culturas não podem existir sem sociedades e vice-versa. Consequentemente, variações culturais identificadas entre seres humanos se relacionam fortemente com as diferenças entre tipos de sociedade diversos. Todas as culturas se orientam por um conjunto de ideias abstratas ou valores, os quais atribuem significados e orientam os indivíduos na interação com o mundo social, e que definem o que é importante, desejável ou útil (GIDDENS, 2008). Os valores de uma determinada cultura usualmente são refletidos ou incorporados nas regras de comportamento (normas) da sociedade, reforçando em mão dupla o comportamento das pessoas. Muitas vezes, hábitos culturais estão de tal forma enraizados e naturalizados que sequer são percebidos como tais, e podem persistir ainda que setores da sociedade em questão atuem ativamente para modificá-los. A pesquisa sociológica tem como pressuposto de que uma cultura precisa ser estudada considerando os seus próprios valores e significados. Este relativismo cultural é necessário para que se evite uma conduta oposta e que pode ser danosa para a disciplina: o etnocentrismo, ou seja, realizar juízos de valor acerca de culturas diferentes tendo como medida de comportamento a cultura de origem do pesquisador. Tal procedimento envolve desafios, especialmente em casos limítrofes que coloquem em questão comportamentos que atentem a princípios centrais e fundamentais para outras culturas. Como a cultura se refere a elementos que são aprendidos e não inatos, também interessa o processo pelo qual os membros da sociedade aprendem e apreendem os modos de vida da comunidade em que se inseriram. A socialização é o principal canal de transmissão cultural ao longo do tempo, e se trata de um processo vitalício e contínuo de configuração do comportamento humano através das interações sociais (GIDDENS, 2008) - aspecto temporal este que também é decisivo na modificação gradual de hábitos e valores adotados comunitariamente. A socialização, embora seja processo fundamental de molde e influência do comportamento dos indivíduos, não anula a individualidade ou o livre arbítrio dos mesmos. Ela é vista como condição e origem da formação da identidade dos seres humanos, que organiza o sentido e a experiência de suas vidas - quem eles são, o que é importante para os mesmos e quais atributos eles reivindicam para si. Em sociedades modernas de grande porte, também é comum que existam valores e ideias contraditórias e em disputa, conflitos estes que não raro alcançam o terreno da política e do direito. Nesse aspecto, o elemento demográfico contribui de forma decisiva: há uma tendência de que sociedades de grande porte apresentem maior nível de diversidade cultural e, inversamente, que sociedades de pequena dimensão apresentem maior uniformidade cultural. Neste caso, elas são chamadas de monoculturais (GIDDENS, 2008). É importante ressaltar, contudo, que isso não é uma regra geral: sociedades com dezenas de milhões de habitantes (como o Japão) podem apresentar menor diversificação que nações de menor porte, sobre as quais incidiram fortes influências externas, imigração e integração econômica, bem como aquelas com grande diversidade étnica interna (como diversos países ocidentais, a exemplo dos EstadosUnidos). Estes processos se intensificaram nas últimas décadas, fazendo emergir o que o sociólogo Anthony Giddens denominou como culturas mistas, ou contribuindo para a proliferação de subculturas. Estas não se resumem a grupos linguísticos ou étnicos minoritários em uma comunidade, mas se referem a "qualquer segmento da população que se distinga do resto da sociedade em virtude dos seus padrões culturais" (GIDDENS, 2008, p. 25). Ao mesmo tempo, também se verificam setores sociais que optam por rejeitar e/ou questionar parte das normas e valores hegemônicos em uma determinada sociedade, valorizando condutas alternativas, o que se denominou contracultura. Diversos autores e correntes teóricas abordaram, sob óticas específicas, fenômenos relacionados à cultura nas sociedades contemporâneas. Sem a pretensão de esgotar todas as abordagens relevantes no campo da Sociologia a partir de meados do século XX, indicamos aqui algumas outras perspectivas influentes: Desenvolvida pelos intelectuais da chamada Escola de Frankfurt. No que se refere aos estudos sobre a cultura, formulou o conceito da cultura de massa, e uma crítica de longo alcance da indústria cultural - espaço que promove a padronização e comercialização de expressões artísticas, transformadas em mais uma mercadoria -, ambos fenômenos típicos das sociedades capitalistas contemporâneas A noção desenvolvida pelo sociólogo francês se refere aos ativos sociais e conhecimentos culturais específicos dos indivíduos aptos a conferir status social e poder aos mesmos numa sociedade estratificada. Perspectiva de que os direitos culturais são exprimidos na defesa de atributos particulares, mas cuja defesa possui um sentido universal. Nestes estariam inseridos, segundo o autor, diversas das chamadas lutas "identitárias" modernas, de minorias étnicas, sociais, religiosas ou sexuais. 2 CRIME E DESVIO SOCIAL Como indicado anteriormente, a vida humana em comunidade envolve a adoção de uma série de valores e ideias, que acabam por nortear o desenvolvimento de normas e regras de conduta nestas sociedades. Em certa medida, trata-se de elemento essencial para a própria existência e sustentabilidade das sociedades. A depender do arranjo e da complexidade dessas regras, elas podem assumir formas escritas ou não escritas, positivadas num sistema legal ou seguidas pelo mero uso ou costume. De qualquer forma, elas delimitam quais condutas são consideradas corretas ou não na vida social. A adoção de determinadas regras implica, necessariamente, duas possibilidades aos indivíduos que a elas se sujeitam: respeitá-las ou não. No segundo caso, caracteriza-se o comportamento desviante; tema de importância central para o sistema jurídico e político estatal, e que historicamente atraiu o interesse do estudo sociológico por conta de suas definições, características e de suas diversas implicações. O desvio pode ser definido, portanto, como ações ou omissões (praticadas individualmente ou em grupo) que não estão de acordo com um certo conjunto de normas aceito por um número significativo de pessoas de uma sociedade. A não conformidade às normas sociais tende a ser acompanhada por uma sanção, que corresponde a qualquer reação de terceiros ao comportamento de um indivíduo ou grupo com o objetivo de assegurar o cumprimento de uma norma (GIDDENS, 2008). Assim como é virtualmente impossível que um indivíduo apresente um comportamento desviante total, desrespeitando em sua integralidade as normas de sua comunidade, certamente também é extremamente comum que pessoas rompam, parcial e ocasionalmente, com as regras de seu entorno. De qualquer forma, este conceito tem grande amplitude e corresponde a um fenômeno que abarca uma quantidade maior de condutas do que, por exemplo, o que é regulado pelo direito, espaço no qual se insere as violações à lei e conceitos como o ato ilícito e o crime. Nesse sentido, existem duas disciplinas que se voltam, de forma mais estrita, ao estudo do desvio social. A Sociologia do desvio procura compreender a razão de certos comportamentos serem vistos como desviantes, variações das noções relativas ao desvio numa comunidade, dentre outros temas, sem se resumir aos desvios considerados ilícitos ou crimes pelo direito. Quando o objeto e o espaço da reflexão científica é o espaço dos comportamentos sancionados pela lei, e mais especificamente abarcados pelo Direito Penal e o sistema de justiça criminal, estamos no espaço da Criminologia. Esta, assim como o Direito Penal, possui em seu interior teorias e abordagens metodológicas relevantes com pouco contato com a Sociologia do desvio, como as de fundo psicológico ou psicanalítico; o estudo da microfísica das relações sociais, a genealogia do poder e a análise da metamorfose dos métodos punitivos de Michel Foucault em Vigiar e punir (FOUCAULT, 1987), dentre outras. Nessa unidade, nos centraremos nas perspectivas teóricas que influenciaram historicamente as três disciplinas. 2.1 Teorias e abordagens históricas sobre o desvio e o crime: a Escola Positivista A primeira perspectiva de destaque que tangencia a Sociologia do desvio, a Criminologia e o Direito Penal é a chamada Escola Positivista. Esta se contrapôs à teoria clássica do Direito Penal ancorada na obra de Cesare Beccaria e no Iluminismo, passando a abordar como objeto de estudo o criminoso e o seu comportamento. Logo, o delito e o delinquente são considerados patologias sociais, devendo a pena ter um propósito utilitarista (BITTENCOURT, 2013). Seus principais nomes - os italianos Enrico Ferri, Raffaele Garófalo e, especialmente, Cesare Lombroso -, defenderam a possibilidade de se identificar a existência de uma determinação biológica, inata, sobre o fenômeno da delinquência. Ainda que a socialização pudesse influenciar na manifestação do comportamento criminoso, certos indivíduos teriam traços físicos e anatômicos que poderiam ser identificáveis e associados à criminalidade, associáveis a um estágio menos desenvolvido de evolução humana (BARATTA, 1999). O conteúdo racista e evolucionista, de impacto político e social danoso até os dias atuais foi rechaçado pelas perspectivas sociológicas posteriores. Ainda que a escola Positivista tenha contribuído para o fomento do olhar científico para o fenômeno da criminalidade, este era concebido como um fenômeno ontológico, um dado da realidade anterior à realidade social e que não se constituía a partir das definições desta. 2.2 Teorias do consenso: o funcionalismo A partir da obra de Émile Durkheim desenvolveram-se as Teorias funcionalistas sobre o crime e o desvio, também chamadas de Teorias do Consenso. Para ele, as razões do desvio não envolvem fatores biológicos e naturais. Este fenômeno é visto como algo inerente à toda estrutura social, e passa a ser negativo apenas quando se segue a este uma desorganização social de tal modo que provoque uma situação anômica (conceito que será retomado na sequência da unidade). Dentro de limites funcionais, este tipo de comportamento é necessário para o equilíbrio e o desenvolvimento social e cultural, ao impulsionar novos desafios no seio da comunidade e ao contribuir para a manutenção de limites claros entre comportamentos saudáveis e danosos à mesma, provocando respostas que reforcem a solidariedade do grupo (BARATTA, 1999; GIDDENS, 2008). Esta visão foi parcialmente modificada por outros nomes célebres do campo das Teorias do consenso: as teorias dos grupos subculturais e as de Robert Merton (referência da chamada Escola de Chicago). Este agregou a influência da desigualdade econômica e de oportunidades no fenômeno criminal, alterando o conceito de anomia, aqui considerada como uma tensão sobre o comportamento dos indivíduos frente ao conflito entre a realidade social concreta, as normas aceitas e as práticas culturais valorizadas na sociedade. A partir disto, formulou-se ummodelo teórico com cinco modelos de adequação dos indivíduos no meio social, variando da conformidade à rebelião. 2.3 Interacionismo e Teoria do etiquetamento Outra tradição sociológica despontou a partir de meados do século XX, denominada interacionista. Esta foi a primeira a romper de forma marcada com a concepção ontológica do crime, rejeitando a noção de que há condutas desviantes ou criminosas por natureza e passando a percebê-los como fenômenos socialmente construídos (GIDDENS, 2008). Dentro desta perspectiva, destacam-se duas teorias. Primeiro, a da associação diferencial, formulada por Edwin Sutherland, que sugeria que o desvio poderia ser aprendido por meio da interação com outros em determinados ambientes, utilizando como fenômeno específico de análise os chamados crimes de colarinho branco, cometido por indivíduos de classes sociais mais abastadas. O interacionismo contribuiu para o desenvolvimento de outra perspectiva dotada de maior criticidade com o seu objeto de análise: a Teoria do etiquetamento, ou "labeling approach". A "desnaturalização" do crime e do criminoso levou a questionamentos de implicações mais profundas relativas ao sistema de justiça criminal. O foco desta abordagem passou a ser as instâncias legais e institucionais que definem o que é o delito; os mecanismos de reação social a ele e ao criminoso; e quem são os indivíduos "rotulados" como delinquentes, portanto, o estudo da criminalidade foi substituído pelos estudos da criminalização (ANITUA, 2007). Referência de estudo que parte de tal perspectiva é o livro Outsiders, de Howard Becker, escrito entre os anos 1950 e 1960 (BECKER, 2008 [1963]). Ainda que possua caráter notadamente contestatório e com pontos de contato com as teorias do conflito, a abordagem do etiquetamento tinha um enfoque em processos microssociológicos, em detrimento de análises de caráter estrutural e sistêmico. Logo, não tinha como objeto de análise os processos sociais de fundo que condicionavam o fenômeno da violência e a organização da política criminal nas sociedades capitalistas contemporâneas. 2.4 Teorias do conflito e a Crimnologia crítica Com estes aspectos em mente, e partindo de premissas e marcos teóricos distintos dos funcionalistas e interacionistas, surgiram a partir dos anos 1970 perspectivas teóricas voltadas à criminologia denominadas Teorias do conflito. Esta teoria partia geralmente. do pensamento marxista, e tinha como referências a relação direito, marxismo e sociologia. Dessa forma, após a publicação do livro The New Criminology, de Taylor et al (TAYLOR et al., 2013 [1973]), fomentou-se um campo que sustentava que o desvio é uma opção deliberada e não raro de natureza política; inserida numa sociedade em estado de constante tensão e luta pelo poder; e estruturada de acordo com os interesses da classe dominante, sendo, assim, o sistema de justiça um dos meios de controle da classe dominada. Junto com outras perspectivas filosóficas, sociológicas e jurídicas também de alcance radical - associadas ao existencialismo, ao pós-estruturalismo e ao pensamento anarquista -, elas o grupo associado à chamada Criminologia crítica, cujas propostas oscilam entre a ampliação e estruturação de limites rígidos e especificados à pretensão punitiva estatal; tendo ainda contatos com o positivismo jurídico (garantismo penal); passando pela orientação jurídico- política de redução do direito penal; por uma política criminal afeita a meios não encarceradores de responsabilização de condutas desviantes (minimalismo penal); até os postulados pela abolição total da pena privativa de liberdade, da instituição prisão e, em sua instância mais radical, à abolição de toda intenção punitiva - o abolicionismo penal (ANITUA, 2007). 2.5 Teorias atuariais e do controle social Por fim, nas últimas décadas também se desenvolveram de modo mais destacado perspectivas radicalmente distintas à Criminologia crítica e às Teorias do conflito: as Teorias do controle social. Estas usualmente ignoram os processos sociais que fornecem o contexto das atividades criminosas, partindo da premissa de que os indivíduos agem racionalmente, atentos às oportunidades e ao custo-benefício da atividade criminosa. Ao formular propostas de prevenção e repressão à criminalidade, o foco não é a reabilitação dos indivíduos, direcionando-se a técnicas e dispositivos de dissuasão. A sua versão mais radicalizada é a chamada "política de tolerância zero", sendo uma de suas variações mais conhecidas a chamada "Teoria das Janelas Quebradas", implementada de forma controversa em Nova lorque nos anos 1990. Outras perspectivas similares envolvem o chamado "atuarialismo" - voltado à gerência do sistema penal efetivamente existente e ao controle de "grupos de risco" -, o Direito Penal do inimigo, dentre outras. As diversas perspectivas apresentadas acima permanecem em discussão e embate, seja no âmbito acadêmico, no social ou no político - sendo que o direito, e, mais especificamente, o Direito Penal e a política criminal dos Estados contemporâneos possuem dispositivos orientados pelas premissas de diversas teorias, em intensidades distintas. 3 SOCIOLOGIA FUNCIONALISTA DE ÉMILE DURKHEIM Agora, nos deteremos sobre as principais correntes da Sociologia clássica, abordando sua relação com o Direito. Para tanto, veremos resumidamente como se fundaram os pensamentos de Émile Durkheim, Max Weber e Karl Marx. Estes três teóricos podem ser considerados os mais importantes da Sociologia moderna e influenciam até hoje outras tantas correntes teóricas em diversas áreas, tendo especial importância também para o estudo do Direito. O francês Émile Durkheim (1858-1917) produziu obra de vasto e permanente impacto no campo da Sociologia, tendo contribuição central para a consolidação da disciplina e do caráter científico da mesma. O sociólogo buscou analisar fenômenos da vida social com maior rigor e objetividade em relação a outros pioneiros da área, como Auguste Comte, e implementou procedimentos científicos ancorados no empirismo, que conferiram à Sociologia uma discussão metodológica mais adequada e aprofundada. A Sociologia, na visão durkheimiana, é definida como a ciência da gênese e do funcionamento das instituições, sendo estas todas as crenças e comportamentos instituídos pela coletividade, as quais exercem funções que permitem a estabilidade e manutenção no tempo da coesão social (QUINTANEIRO et. al., 2003). 3.2 Durkheim e fato social Na obra de Durkheim, o conceito de fato social é primordial para compreendermos o arcabouço teórico produzido pelo autor. Para ele, fatos sociais são formas de agir e pensar externas aos indivíduos, aspectos da vida social que determinam ou condicionam a ação dos mesmos por diversas formas (DURKHEIM, 1999; GIDDENS, 2008). Isto se dá devido ao fato dos fatos sociais exercerem um poder coercitivo sobre os indivíduos, ainda que isso por muitas vezes ocorra de modo imperceptível ou naturalizado. O autor parte da perspectiva de que a sociedade não é resultado da soma ou da justaposição dos indivíduos que a compõem, mas uma síntese de ações e sentimentos particulares que criam um fenômeno específico e novo. Por esta razão, as explicações para os fatos sociais devem ser buscadas na coletividade. Os exemplos de fatos sociais envolvem desde fenômenos consolidados e de grande dimensão, como a economia e a religião, até aqueles fluidos e efêmeros, como movimentos sociais, correntes de pensamento e formas de expressão. Dentre as expressões do conjunto de fatos sociais, estão as representações coletivas e os valores. Um dos elementos a comprovar o fato de que aqueles tem caráter coercitivo e são externos aos indivíduos, Durkheim lembra que o não atendimento a estas convenções pode implicar diversos obstáculos, como a violação a uma lei. Entretanto, instituições são passíveis de mudança desdeque um grupo de indivíduos, em ação combinada, apresentem comportamentos inovadores e produzam um produto novo que se constitua como um fato social (QUINTANEIRO et. al., 2003). Uma das formas de cristalização e reconhecimento desta mudança pode ser a alteração de normas jurídicas. Ainda que nas palavras do próprio autor "a primeira regra e a mais fundamental é considerar os fatos sociais como coisas" (DURKHEIM, 2003, p. 15), estes são intangíveis e não observáveis diretamente. A pesquisa e a análise dos mesmos se dão por meio de uma investigação indireta, dos seus efeitos e de outras formas de representação dos mesmos, como, por exemplo, a Constituição e as leis (no Direito) e os textos sagrados (no caso das religiões). 3.2 Solidariedade mecânica e orgânica Dentre os maiores interesses de pesquisa do sociólogo francês estava a compreensão de quais elementos eram responsáveis pela manutenção (ou pela quebra) da solidariedade e da ordem nas sociedades. Em sua visão, a primeira se mantém "quando os indivíduos se integram com sucesso em grupos sociais e se regem por um conjunto de valores e costumes partilhados" (GIDDENS, 2008, p. 9). Durkheim (1999) destacou, em sua conhecida obra Da Divisão Social do Trabalho, a existência de dois tipos de solidariedade, as quais estariam diretamente relacionadas com a forma de divisão do trabalho em uma determinada sociedade: a solidariedade mecânica e a solidariedade orgânica. A primeira, característica de culturas mais tradicionais (ou primitivas) e de menor especialização e divisão do trabalho - onde os indivíduos possuem ocupações laborais semelhantes -, estaria sustentada na homogeneidade e no consenso em relação a crenças e costumes. A dissidência no interior destas sociedades seria reprimida pela comunidade por meio da força e do castigo aos indivíduos que não se adequam. A solidariedade orgânica, por sua vez, teria se desenvolvido em meio à rápida e profunda transformação social e econômica nas sociedades ocidentais, em meio aos processos de industrialização, complexificação econômica e urbanização. O desenvolvimento da sociedade capitalista implica na intensificação da interdependência econômica entre os indivíduos, ampliando relações de reciprocidade e reduzindo a importância de se partilhar crenças e costumes específicos. Um dos principais meios de se observar a predominância de um ou outro tipo de solidariedade nas sociedades contemporâneas seria, para Durkheim, o Direito. Segundo Quintaneiro et al. (2003, pp. 74-75): Durkheim utiliza-se da predominância de certas normas do Direito como indicador da presença de um ou do outro tipo de solidariedade, já que esta, por ser um fenômeno moral, não pode ser diretamente observada. Não obstante se sustente nos costumes difusos, o Direito é uma forma estável e precisa, e serve, portanto, de fator externo e objetivo que simboliza os elementos mais essenciais da solidariedade social. Por outro lado, as sanções que são aplicadas aos preceitos do Direito mudam de acordo com a gravidade destes, sendo assim possível estudar suas variações. O papel do Direito seria, nas sociedades complexas, análogo ao do sistema nervoso: regular as funções do corpo. Por isso expressa também o grau de concentração da sociedade devido à divisão do trabalho social, tanto quanto o sistema nervoso exprime o estado de concentração do organismo gerado pela divisão do trabalho fisiológico, isto é, sua complexidade e desenvolvimento. Enquanto as sanções impostas pelo costume são difusas, as que se impõem através do Direito são organizadas. Elas constituem duas classes: as repressivas - que infligem ao culpado uma dor, uma diminuição, uma privação; e as restitutivas - que fazem com que as coisas e relações perturbadas sejam restabelecidas à sua situação anterior, levando o culpado a reparar o dano causado. A maior ou menor presença de regras repressivas pode ser atestada através da fração ocupada pelo Direito Penal ou Repressivo no sistema jurídico da sociedade A velocidade e intensidade destes processos na modernidade, porém, tem o poder de abalar costumes, valores e padrões de conduta (religiosos, morais etc.), sem que um outro arranjo ocupe estes espaços de forma decisiva, inclusive para direcionar ou circunscrever a conduta dos indivíduos. Este vazio de sentidos e objetivos em meio à vida social moderna é o que caracterizaria a anomia para o sociólogo francês. 3.3 Anomia e normas morais: o suicídio e a religião Esta perspectiva orientou o conceituado estudo do autor a respeito do fenômeno do suicídio na obra O Suicídio, publicada pela primeira vez em 1897. Mais do que um ato pessoal e orientado pela angústia ou pelo desequilíbrio mental estrito dos indivíduos que o cometem, Durkheim optou por analisar esse ato como um fato social, passível de possuir padrões gerais observáveis e influenciado por fatores sociais. Em sua pesquisa, ele confirmou sua expectativa: verificou que determinados segmentos estavam mais vulneráveis ao suicídio do que outros: protestantes mais do que católicos, ricos mais do que pobres, homens mais do que mulheres. Além disso, guerras e mudanças econômicas também afetavam sensivelmente as estatísticas (DURKHEIM, 2000). Estes aspectos reforçaram a posição do autor sobre a condição anômica em relação à perda de pontos de referência e de fontes de regulação social, bem como a importância do enfraquecimento de laços sociais no caso dos chamados suicídios egoístas. Reforçou, portanto, a perspectiva de que fatores sociais externos ao indivíduo interferem de forma significativa em condutas antes vistas como atos estritamente pessoais. E que esta influência podia ser investigada por meio da análise sociológica. Também interessava ao autor a análise das normas morais das sociedades, que prescreveriam o modo como o sujeito deve se portar em determinadas circunstâncias e tem uma finalidade desejável e desejada por parte daqueles que se sujeitam a elas. Em sociedades menos complexas, a moral cívica teria maior nível de associação com a religião pública, levando, portanto, a um nível maior de controle e disciplina de seus indivíduos. As sociedades modernas, por sua vez, apresentam maior nível de complexidade, nas quais o Estado possui grande variedade de funções, mas convive com outros grupos (família, corporações, instituições religiosas). Nesta associação tendente ao equilíbrio, desenvolvem-se as liberdades individuais. A partir desta análise e reflexões, Durkheim empreende o estudo das religiões. O autor analisou especialmente aquelas praticadas em sociedades menos complexas, compreendidas como um sistema de crenças e práticas relativas às coisas sagradas que é comum a todos aqueles que se unem numa comunidade moral, chamada por ele de igreja (DURKHEIM, 1996). Durkheim erigiu, portanto, um pensamento ancorado no método positivista e confiante na capacidade de convivência de indivíduos e grupos distintos nas sociedades modernas. Sua teoria do consenso e o funcionalismo foram especialmente influentes na antropologia e na sociologia norte-americana, aspecto que fora brevemente exemplificado na seção anterior. 4 SOCIOLOGIA COMPREENSIVA DE MAX WEBER A obra do alemão Max Weber (1864-1920) abarcou diversas áreas do conhecimento, como Direito, Filosofia e História, sendo influente também em disciplinas que se desenvolveriam de forma mais nítida apenas posteriormente, como a Ciência Política. Entretanto, o autor refletiu acerca do papel e do objeto do estudo sociológico, buscando estabelecer a Sociologia como uma disciplina preocupada com a diferença e a particularidades culturais e sociais. Em seu texto A Ciência como Vocação, Weber discorre sobre o significado da ciência - vista como procedimento racional empreendido para explicar as consequências de determinados fenômenos -, e a respeito da postura do cientista frente ao seu ofício (WEBER, 2011).Este deve, em sua visão, selecionar e sugerir medidas com finalidade de solucioná-las, buscando respostas por meio do uso dos instrumentos metodológicos mais adequados (QUINTANEIRO et. al., 2003). O sociólogo alemão também discorreu sobre a relação entre valores que orientam o pesquisador e a pretensão de objetividade nas Ciências Sociais, ao considerar que os "valores devem ser incorporados conscientemente à pesquisa e controlados através de procedimentos rigorosos de análise" (QUINTANEIRO et. al., 2003, p. 99). Uma atividade científica social que seja racional quanto às suas finalidades e valores não pode reduzir a realidade empírica a leis; a explicação de um determinado acontecimento envolve o agrupamento, por parte do cientista, do agrupamento da constelação de fatores que deem sentido ao mesmo. 4.1 Tipo ideal, ação social e relação social Para tornar compreensível a natureza das conexões que se estabelecem na observação científica empírica, Weber parte de um modelo de interpretação e investigação chamado tipo ideal, caracterizado pela unilateralidade, racionalidade e caráter utópico. Como resumido por Quintaneiro et al. (2003, p. 103), na concepção weberiana "um conceito típico-ideal é um modelo simplificado do real, elaborado com base em traços considerados essenciais para a determinação da causalidade, segundo os critérios de quem pretende explicar um fenômeno". De forma resumida, Weber vê o tipo ideal como um "recurso técnico que facilita uma disposição e terminologia mais lúcidas" (WEBER, 1979, p. 372), instrumento útil para conduzir o autor na investigação de uma realidade complexa e multifacetada. Em Economia e Sociedade, Weber (2004a) desenvolve em maior profundidade o conceito de ação social, central em sua obra. A ação - conduta humana dotada de significado pelo indivíduo que a executa -, passa a ser definida como uma ação social quando esta se orienta para a ação de outros (seja um indivíduo, grupo específico ou a coletividade), de modo que tal conduta social tenha seu sentido partilhado. Esta noção é tão importante para a Sociologia weberiana que, na perspectiva do autor, a função do sociólogo é precisamente compreender e interpretar as ações sociais, observando suas características, efeitos, e verificando nexos causais que as determinam. Como desdobramento da lógica dos tipos ideais, o sociólogo desenvolveu quatro elaborações conceituais para classificar as ações sociais. Classificação das ações sociais Ação social afetiva: a conduta é movida por sentimentos, emoções e instintos. Ação social tradicional: tem como fontes motivadoras costumes ou hábitos arraigados - ligados à cultura consuetudinária -, ou a reação a estímulos usuais e naturalizados. Ação social racional com relação a valores, o agente se orienta conscientemente por crenças, convicções e princípios próprios. Ação social racional sem relação a fins: tomada com o mínimo de interferência de tradições e afetos, com alto grau de reflexão da adequação entre meios e fins. Weber ressalta, contudo, que estes são modelos conceituais ideais/puros, e que as ações humanas geralmente se encaixam em mais de uma das categorias acima mencionadas. Ressalta ainda que elas não se confundem com ações reativas, instintivas, de imitação ou outras onde não há relação de sentido. Quando uma conduta social é plural e tem seu sentido ou significado partilhado e compreendido por diversos atores em uma sociedade, passa a se constituir uma relação social. Esta pode se estabelecer independentemente da correspondência por uma das partes ou da duração desta relação, desde que haja compatibilidade entre as expectativas dos indivíduos sobre o significado da mesma. Instituições como o Estado ou a família, para Weber, se caracterizam por ser desenvolvimentos específicos da ação social de indivíduos. A regularidade de certas condutas e relações pode ocorrer devido simplesmente a um hábito - que é classificado como uso -, que, quando duradouro, torna-se um costume. FIQUE DE OLHO Em consonância com esta posição, a unidade fundamental da análise sociológica weberiana é o agente individual - concepção também denominada de individualismo metodológico. Esse conceito parte do pressuposto de que as consciências sociais são entidades capazes de conferir significado às próprias ações, e que estes sentidos podem ser compartilhados por um grupo de indivíduos (QUINTANEIRO et. al., 2003). É por meio das ações e sentidos que os agentes conferem às esferas da vida social que estas podem ter sua lógica modificada. 4.2 Direito, poder, dominação e autoridade na Sociologia Weberiana Por outro lado, um modelo de conduta pode adquirir legitimidade quando é considerado válido para um ou mais agentes, seja por receio de reprovação da comunidade pela discordância a outro, caso no qual este modelo é denominado convenção. Ou por receio de se tornar uma ordem pela ameaça de coação ou sanção pelo descumprimento do que é visto como obrigação. Neste caso, a ordem é o direito. Aqui se inserem as questões do poder, da dominação e da autoridade no pensamento weberiano, chaves para o estudo sociológico. O poder para Weber significa a probabilidade, em uma relação social, de impor a vontade própria ao comportamento de terceiros, ainda que em face de resistência, e independente do fundamento de tal probabilidade (WEBER, 2004a). Os meios utilizados para alcança-lo são variados, abarcando desde a violência até procedimentos organizados. Há três formas de justificação da dominação legitimada: racional (dependente dos interesses, avaliações de vantagens e desvantagens no ato de obedecer); tradicional (orientada pelo costume. hábito): e afetiva (fundada em afetos ou inclinações pessoais em relação à liderança). A elas correspondem os três tipos de dominação legítima: legal, tradicional e carismática. A primeira, relacionada à estrutura de dominação pela forma burocrática, é o domínio exercido pela administração moderna e racionalmente organizada do Estado. Nela a legitimidade se estabelece através da crença na legalidade das normas estatuídas e dos direitos de mando dos que exercem a autoridade (WEBER, 2004a). A luta pelo estabelecimento de uma forma de dominação legítima - de conteúdos considerados válidos pelos participantes das relações sociais -, marca a evolução de cada uma das esferas da vida coletiva em particular e define o conteúdo das relações sociais no seu interior (QUINTANEIRO et. al. 2003). A dominação não é um fenômeno exclusivo da esfera política, mas engloba e envolve a organização de regras para a mesma. O autor acresce, ainda, que nas relações entre dominantes e dominados a dominação costuma apoiar-se e fundar sua legitimidade interna em bases jurídicas. O abalo da crença nesta legitimidade pode acarretar consequências de grande alcance. 4.3 Classes, estamentos e partidos Segundo a concepção weberiana de sociedade, as diversas esferas da vida coletiva - econômica, política, jurídica, religiosa, cultural e social -, possuem lógicas particulares de funcionamento. Em diferentes momentos históricos, alguma (s) dessa (s) esfera (s) possuía dominância na definição das diferenças sociais. Nas sociedades capitalistas modernas o econômico (propriedade, riqueza) é o fundamento da posição especial, o principal elemento de classificação dos indivíduos. Classes, estamentos e partidos são conceitos estabelecidos pelo sociólogo alemão no plano coletivo para entender mecanismos diversos de distribuição de poder. Uma classe é um grupo de indivíduos que se encontram numa situação comum referente à propriedade de bens ou de trabalho. As ações de tais agentes têm um sentido definido, de forma comum, pela posição deles no mercado (WEBER, 2004a). Quando as ações individuais são condicionadas por critérios da ordem social, na aderência a modos de vida específicos e definidos, aí se estabelecea relação estamental. Estes estamentos podem ser fechados - quando sua posição se define por laços familiares, por exemplo -; ou abertos, sustentados por sentimentos comunitários ou de honra. Classes e estamentos tendem a se superpor, mas isto não ocorre em todas as ocasiões: tensões nesse sentido podiam ser verificadas tanto na época de Weber, entre a nobreza europeia tradicional, legada do período feudal, e a nova burguesia enriquecida; como hoje, nos atritos entre burguesia tradicional e os novos ricos. Membros de uma mesma classe, entretanto, geralmente empreendem ações sociais enquanto grupo baseados em interesses racionais em respeito a fins. Os conflitos e diferenças gerados na ordem econômica entre classes e na ordem social entre os estamentos produzem, na esfera do poder social, os partidos. Estes são organizações que têm ação tipicamente racional e lutam pelo domínio da direção em uma associação ou comunidade (WEBER, 2004a; QUINTANEIRO et. al., 2003). Se dirigem a fins estabelecidos e à realização de programas de propósitos ideais ou materiais definidos. Classes, estamentos e partidos são, portanto, fenômenos de distribuição de poder no seio das sociedades e manifestações organizadas da luta cotidiana travada no interior destas pela imposição dos interesses e vontades de algumas das partes contra outras. Na visão weberiana, esta é a essência da política, da vida social e da lógica do mercado. 4.4 Desencantamento do mundo, religião e resignação A obra de Max Weber, por outro lado, também é marcada com um tom pessimista e resignado com o que ele via como consequências inevitáveis do processo de racionalização progressiva e burocratização modernas. A rotinização e racionalização ocorrem com tal força que mesmo lideranças carismáticas de cunho político ou religioso acabam sendo assimiladas pela "lógica férrea das instituições" (QUINTANEIRO et. al., 2003). Este processo de migração de sociedades marcadas pela ideia do sagrado, mágico e da espiritualidade para aquelas marcadas pela técnica e a ciência e orientada à materialidade é chamado de desencantamento do mundo. O autor se interessou pela Sociologia da religião ao perceber a relevância e o impacto das doutrinas religiosas em outras áreas da vida coletiva, especialmente por conta das consequências práticas da religiosidade no tecido social. Ao estudar religiões não-cristãs, como o confucionismo e o budismo, Weber se interessou especialmente pela capacidade de algumas religiões de, a partir de seu conteúdo, fomentar o racionalismo prático e metódico na conduta cotidiana dos indivíduos. Essas religiões seriam marcadas pelo ascetismo mundano à participação nos processos da vida, orientando seus impulsos naturais à doutrina religiosa. Nesta lógica se insere a famosa obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, escrita pelo autor em edições de 1905 e 1920. Se o desenvolvimento do Capitalismo estava vinculado à racionalização na vida prática, Weber identificou uma afinidade entre as disposições práticas dos indivíduos que se orientavam pela doutrina protestante calvinista. Esta rejeitava a contemplação, os instintos e prazeres instintivos, valorizando a atividade incessante e o trabalho como valor em si mesmo. Tal disposição implicava, na ordem econômica, na profunda dedicação de empresários orientados por essas doutrinas à produção de riqueza e de trabalhadores disciplinados (WEBER, 2004b). A valorização espiritual da prosperidade na vida terrena, associada com a restrição do consumo em paixões mundanas, teria provocado como consequência concreta a acumulação capitalista e a poupança privada (WEBER, 2004b). Esse "espírito religioso" que favoreceu o desenvolvimento capitalista tornou-se desnecessário com o posterior desenvolvimento do sistema, também admitindo a busca de riquezas para a saciedade de interesses materiais "mundanos". A concepção "liberal desencantada" weberiana permanece fortemente influente nas Ciências Sociais, contribuindo para a compreensão dos contínuos processos de burocratização e racionalização na vida social, inclusive com a ampliação, complexificação e variedade dos aspectos abarcados pelo Direito, a regulação e a normatividade na Contemporaneidade. 5 SOCIOLOGIA CRÍTICA DE KARL MARX Karl Marx (1818-1883) é um autor cuja obra não pode ser ligada a apenas uma área do conhecimento ou disciplina específica. O alemão, cujas referências teóricas e de pesquisa principais podem ser identificadas na filosofia hegeliana, na economia clássica inglesa (especialmente Adam Smith e David Ricardo) e no socialismo utópico francês - para divergir, em pontos distintos, de todos estes -, produziu extensos escritos nos ramos da Filosofia, da Economia e, no que interessa em especial para este tópico, produziu importantes reflexões sociológicas. A militância política e social e os interesses de pesquisa de Marx o levaram a refletir e teorizar acerca do surgimento e do desenvolvimento do Capitalismo na Modernidade. 5.1 Materialismo histórico: forças produtivas, relações sociais de produção e superestrutura jurídico-política O filósofo e sociólogo desenvolveu a concepção materialista e dialética da História, por meio da qual orientou seu olhar para a sociedade burguesa moderna, sem deixar de fazer a análise histórica de sistemas sociais anteriores. A tese que orienta o materialismo histórico, nas palavras de Friedrich Engels, grande amigo e colaborador em vida de Marx, é a de que "a produção, e com ela a troca dos produtos, é a base de toda a ordem social" (ENGELS, 2011, p. 55). Neste esquema teórico, três conceitos são centrais: as forças produtivas, as relações sociais de produção, e a superestrutura jurídico-política. O conceito de forças produtivas em Marx, como abordado na Contribuição à crítica da economia política, envolve os recursos produtivos físicos para o trabalho humano - instrumentos, matérias primas, espaço físico (os meios de produção), e a força de trabalho -, o que inclui não apenas a força física dos indivíduos, mas também habilidades e conhecimento técnico aplicados no trabalho (COHEN, 2010). Envolve, portanto, o modo como os indivíduos obtém, num contexto específico, os bens de que necessitam. As relações sociais de produção, por sua vez, dizem respeito às formas estabelecidas de distribuição dos meios de produção e do produto e o tipo de divisão social do trabalho numa sociedade, em um período histórico determinado. Expressa as relações sociais que os indivíduos precisam se inserir para sobreviver e produzir. Apesar da sociedade ser o produto da ação recíproca dos homens, esta não opera de acordo com seus desejos particulares. Desse modo, a estrutura de uma sociedade dependeria do estado de desenvolvimento de suas forças produtivas, em primeiro lugar; e das relações sociais de produção que lhes são correspondentes (QUINTANEIRO et. al., 2003). Este arranjo material é a base que orienta e sustenta a superestrutura jurídica e política dessas sociedades, bem como as expressões ideológicas e culturais das mesmas. A transformação dos sistemas sociais, em tal configuração, ocorre quando se modificam as condições das forças produtivas e, em seguida, das relações de produção de uma determinada sociedade, gerando tensionamentos com a superestrutura jurídico-política da mesma. Conflito este que pode se desdobrar de forma gradual ou por meio de uma mudança abrupta: as revoluções. Marx verificou este quadro ao analisar historicamente a passagem das sociedades de caçadores-coletores para os sistemas escravagistas arcaicos, seguida da transição para o Feudalismo e, por fim, da substituição deste pelo Capitalismo. O desenvolvimento da burguesia com a ampliação e a complexificação das relações comerciais, associadas ao impulso tecnológico essencial representado pela Revolução Industrial iniciada na Inglaterra no século XVIII, seguida por
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