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Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 13 Religião depois da Crítica à Religião* RELIGION AFTER THE CRITICISM OF RELIGION Resumo Sustentado em razões sistemáticas ligadas à história dos conceitos, este artigo defende que, diante do desenvolvimento da filosofia pós-hegeliana, cabe falar da supe- ração da crítica da religião pela reflexão filosófica sobre a religião. O artigo traça re- flexões sobre a história do conceito de religião e de filosofia da religião, chegando, na filosofia da Era Moderna, à crítica da religião. Identifica, porém, que, ao desenvolver uma concepção de razão crítica passível de concordância universal, a filosofia contemporânea prescinde da idéia de filosofia da religião como crítica à religião. Na medida em que o programa de uma crítica da religião filosoficamente fundamentada se torna cada vez mais questionável, faz-se necessária a redefinição da relação entre fi- losofia e religião. Palavras-chave FILOSOFIA – RELIGIÃO – FILOSOFIA DA RELIGIÃO – CRÍTICA À RE- LIGIÃO. Abstract Based on systematic reasons related to the history of concepts, the present article sustains that, in the face of post-Hegelian philosophy, it is necessary to deal with the overcoming of the criticism of religion through the philosophical reflection of religion. The article reflects on the history of religion and philosophy of religion concepts, reaching, in the Modern Era’s philosophy, the criticism of religion. None- theless, it shows that upon developing a concept of critical reason susceptible of uni- versal agreement, the contemporary philosophy renounces the idea of philosophy of religion as the criticism of religion. Since the program of a criticism of religion phi- losophically grounded becomes more and more questionable, it is necessary to rede- fine the relation between philosophy and religion. Keywords PHILOSOPHY – RELIGION – PHILOSOPHY OF RELIGION – CRITICISM OF RELIGION. * Tradução, do alemão para o português, de PAULO ASTOR SOETHE (UFPR). MATTHIAS LUTZ-BACHMANN Universität Frankfurt, Alemanha Lutz-Bachmann@ em.uni-frankfurt.de 001922_Impulso_34.book Page 13 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM 14 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 m face do desenvolvimento da filosofia depois de Hegel, temos de falar, hoje em dia, de um fim da crítica à reli- gião. Essa tese apóia-se em razões sistemáticas ligadas à história dos conceitos. Assim, começo com algumas re- flexões sobre a história dos conceitos de religião (I) e de filosofia da religião, firmada na filosofia da Era Moderna como crítica à religião (II). Com a tarefa de desenvolver uma concepção de razão crítica passível de concordância universal, no en- tanto, tal como esboçado em nos nossos dias, a filosofia prescinde da noção de filosofia da religião como crítica à religião (III). Contudo, sob o pressuposto de que os argumentos em favor de um afastamento da idéia de uma razão pública não se mostram convincentes do ponto de vista filosófico, oferece-se atualmente a possibilidade de redefinir, de maneira sistemática, a relação entre filosofia e religião (IV). I. Cícero deriva o conceito de religião (religio, em latim) do verbo re- legere (reler, observar conscienciosamente).1 Religio significa aqui a virtude do cumprimento cuidadoso de obrigações, em face da esfera dos numina ou do que é divino. Conforme ele afirma, em seu diálogo “De natura de- orum”, pela boca do estóico Balbus, essa virtude inclui a cuidadosa adora- ção dos deuses em ações culturais e em oração. À virtude da religio con- trapõe-se o vício da superstitio. Tal atitude, segundo Cícero, demonstra que as pessoas honram os deuses não por causa deles em si, ou da ordem do que é divino, e sim com a intenção de obter proveito próprio.2 Religio e pietas (piedade) caracterizam, em Cícero, duas virtudes aparentadas en- tre si de pessoas que, com um posicionamento adequado e a devida cons- ciência, participam das atividades de culto, o deorum pius cultus.3 Diferentemente de Cícero, Lactâncio deriva religio do verbo re-ligare (ligar, religar) e a articula com a concepção de que é Deus que se liga aos seres humanos.4 Agostinho vincula-se a essa etimologia de Lactâncio quando afirma, em “De vera religione”, que religio liga-nos com o Deus todo-poderoso.5 Paralelamente, Agostinho atribui também à religio o sig- nificado de uma escolha ou eleição, derivados do verbo religere (escolher, eleger).6 Mesmo que Agostinho fale da fé cristã como um todo, no sen- 1 CÍCERO, De natura Deorum II, p. 72 (Leipzig: Teubner, 1933): “Qui autem omnia, quae ad cultum deorum pertinent, diligenter retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegendo” (“Aqueles, porém, que praticam cuidadosamente tudo o que tem a ver com a louvação dos deuses e que, por assim dizer, sempre lêem por completo/sempre analisam atentamente [re-legere] são chamados ‘religiosi’, por derivação da palavra ‘relegere’ [ler por completo/analisar atentamente]). 2 A “superstitio”, contraposta à “religio”, deriva etimologicamente, para Cícero, do desejo dos seres humanos de que “ut sibi sui liberi supeerstites essent” (“para eles, seus filhos logrem permanecer vivos”). 3 Idem, I, p. 116ss. 4 LACTÂNCIO, 1890, p. 391: “diximus nomen religionis a vinculo pietatis esse deductum, quod hominem sibi deus religaverit et pietate constrinxerit, quia servire nos ei ut domino et obsequi ut patri necesse est” (“Dis- semos que a palavra religião é derivada de liame da piedade religiosa, já que Deus ligou o homem a si e prendeu-o através da piedade, por ser necessário que nós o sirvamos como a um senhor e lhe obedeça- mos como a um pai”). 5 AGOSTINHO, 1961, p. 80: “Religet ergo nos religio uni omnipotenti deo”. 6 Idem, 1902, p. 64. EEEE 001922_Impulso_34.book Page 14 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 15 tido de uma vera religio, atribuindo-lhe a caracte- rística de uma procura por discernimento não apenas comparável à filosofia antiga, mas também incluindo-a, continua central para ele o motivo, já destacado por Lactâncio, de uma ligação do ser humano com Deus, assim como de uma vincula- ção para o ser humano (religatio). Com essa tradição coincide ainda o uso medieval da palavra religio. Na Idade Média ela também designa a ordem religiosa, assim como status religiones indica o estatuto da ordem. Um monge, por exemplo, pode ser nomeado simples- mente como religiosus pelo fato de estar vincula- do a uma forma de vida especial. Tomás de Aqui- no ainda designa de religio a virtude da adoração a Deus, que orienta o ser humano rumo a Deus,7 e, entre outras virtudes naturais, por sua força vinculativa, o faz cumprir aquilo que deve a Deus.8 Com isso, associa a religio à justiça, a mais superior das virtudes naturais. Distintamente da história conceitual antiga e medieval, em nossa linguagem atual referimos o conceito de religião não a uma atitude ou virtude individual, mas à complexa unidade de um todo que integra posicionamentos, convicções e ações teóricas e práticas. Poderíamos designar essa uni- dade, com Wittgenstein, como um jogo de lingua- gem9 que segue suas próprias regras ou, com Ernst Cassirer, como uma forma simbólica.10 À noção moderna de religião, em todo caso, é deci- sivo associar uma generalidade significativa ou uma validação de seus enunciados, símbolos e práticas distinta especificamente da pretensão de validação dos enunciados, símbolos e práticas de outros sistemas sensivos, como a arte, a ciência e o direito. O que perfaz o sentido validativo de enunciados e práticas religiosas em particular é (e deve continuar sendo) polêmico, do ponto de vista do conteúdo entre as diferentes disciplinas que se ocupam da religião.11 Entretanto, a cir- cunstância de poder aqui falar sobre isso de ma- neira controversa já contém em si um consenso de que um significado específico é próprio à reli- gião como sistema social parcial.12 Da perspectiva sociológica, reflete-seno conceito moderno de religião a história de uma autonomização e diferenciação de esferas de va- lidação e sentido, no interior das sociedades oci- dentais, desde o século XI. A elaboração intelec- tual da experiência social de diferença interna e externa surge como constitutiva para essa histó- ria. Assim também é possível entender conflitos característicos da história européia entre Igreja e Estado, ciência universitária e política, economia, arte e moral, todos como expressão de esferas de validação especiais formadas no interior das socie- dades ocidentais. De muitas maneiras, o discerni- mento ainda insuficiente das partes conflituosas quanto à necessidade de tratar diferenciadamente as pretensões de validação dos sistemas sociais parciais correspondeu à veemência desses debates intelectuais históricos. Isso porque, se na socie- dade medieval foram rechaçadas, em primeiro lu- gar, as pretensões exageradas dos representantes da religião – seja pelos representantes do Estado seja pelas ciências nas universidades, inclusive pela própria teologia –, mais tarde foram os pró- prios sistemas da ciência e da religião, da econo- mia e da arte que se puseram em atitude defensiva contra a pretensão de dominação incondicionada do Estado moderno.13 Além disso, deve-se atribuir à autocompre- ensão cientificista das ciências, difundida no sé- culo XIX, o fato de que a autonomização e dife- renciação das esferas culturais de validação e sen- tido, presentes nas sociedades ocidentais, tenham sido interpretadas como secularização da socie- dade e como desautorização da religião. O que se percebeu, nesse processo, nada mais foi do que a troca de um sistema de sentido dominante por um outro, a saber, ao recalcamento da religião pela ciência.14 Mostra-se, então, à luz da tese da diferenciação como um processo complexo de 7 TOMÁS DE AQUINO, 1980, II-II, q. 81: “religio importat ordinem ad deum”. 8 Ibid., q. 60, a 3: “Religio est (virtus), per quam redditur debitum Deo”. 9 WITTGENSTEIN, 1967, p. 42ss. 10 CASSIRER, 1933, segunda parte, p. 281-311. 11 ELSAS, 1975. 12 Cf. LUHMAN, 2000. 13 Cf. KAUFMANN, 1989. 14 Cf., de forma paradigmática sobre a questão: COMTE, 1966, p. 5- 41. 001922_Impulso_34.book Page 15 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM 16 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 perfilamento de sistemas parciais, isso que, se- gundo nos ensina a história mais recente das so- ciedades européias e norte-americana, não con- duz necessariamente a um enfraquecimento da religião como sistema de sentido, nem de seu sig- nificado social. Assim, por exemplo, a separação entre direito secular e religião no Estado moder- no teve diferentes conseqüências para o papel pú- blico da religião, que não pode ser apreendido em uma interpretação cientificista unidimensional. O processo de diferenciação social interna decorre, em todo caso, de maneira mais complexa do que poderia compreender a tese de inspiração cientificista de uma secularização irrefreável ocorrida em detrimento da religião. Em seu estu- do sobre a sociologia da religião, o próprio Max Weber, que por certo não estava totalmente livre de preconceitos cientificistas, pôde reconhecer a participação religiosa no desencantamento do mundo no Ocidente.15 Assim, a diferenciação e autonomização das esferas de validação nas socie- dades ocidentais ligam-se só em parte a um recuo dos modelos religiosos de interpretação da vida. No âmbito da formação de diferentes campos de validação, podem observar-se processos de perfi- lamento de interpretações religiosas de mundo que têm por conseqüência uma intensificação da interpretação religiosa da vida, ocasionando, por essa via, uma elevação do significado social da re- ligião. II. O conceito moderno de religião deve-se à filosofia da Era Moderna.16 Ele reflete o progra- ma epistemológico de uma fundamentação da fi- losofia por meio de uma crítica desenvolvida me- todicamente acerca do conhecimento e da razão. Dessa autocompreensão da filosofia já modifica- da surge também o perfil de uma nova disciplina filosófica, a saber, a filosofia da religião, que, por sua vez, carece ser entendida como crítica da re- ligião. Contudo, esse termo não quer dizer, aqui, uma refutação ou superação da religião – como significará mais tarde no hegelianismo de esquer- da –, mas sobretudo uma submissão geral a pro- vas de concordância com a faculdade natural do conhecimento ou à razão do ser humano.17 Ain- da que não nesse programa, mas em seu cumpri- mento, diferenciem-se, provavelmente, duas im- portantes correntes da filosofia da Era Moderna: o empirismo e o racionalismo. A filosofia da religião – diferentemente da teologia natural ou filosófica, que continuou a ser defendida pela filosofia especulativa e pela meta- física – não tem a ver, como disciplina nova fun- dada pela filosofia moderna, com a questão do princípio primeiro, mas sobretudo com o ser hu- mano e a religião dele. Como problema central da filosofia da religião moderna revela-se, especial- mente, a procura por uma religião natural univer- sal capaz de abranger os limites das comunidades confessionais e religiosas históricas, isto é, uma religião em conformidade com o ser humano ou então à sua faculdade natural da razão. Tal ques- tionamento vincula a filosofia da religião do de- ísmo inglês do século XVII à neologia protestante ou à filosofia do esclarecimento do século XVIII.18 Em “Essay on the concerning human un- derstanding”, de John Locke, publicado em 1689, encontramos um exemplo clássico de fundamen- tação epistemológica da filosofia, e de suas impli- cações sistemáticas, em face da recém-desenvol- vida filosofia da religião. Como já se depreende da “Carta ao leitor”, anexada por Locke a esse en- saio, estão subjacentes à teoria filosófica do co- nhecimento por ele concebida algumas conversas com amigos sobre um “tema muito distante”19 da epistemologia. Um dos participantes desses co- lóquios, um certo James Tyrrell, os descreve como discussões “sobre os princípios da moral e da religião revelada”.20 Como o debate sobre esse conjunto de questões colocou os participantes diante de problemas insolúveis, ocorreu a Locke “a idéia de que teríamos escolhido um caminho errado e que precisaríamos necessariamente, an- 15 Cf. WEBER, 1978. 16 Cf. os estudos de FEIL, 1986 e 1997. 17 Cf. LUTZ-BACHMANN, 1998. 18 Cf. FEIEREIS, 1965. 19 LOCKE, “Sendschreiben an den Leser”, in: ______, 1981, p. 7. 20 RAMSEY, 1996, p. 9. 001922_Impulso_34.book Page 16 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 17 tes de dar início a essas investigações, submeter nossas próprias bases intelectuais à prova e então ter clareza sobre quais são os objetos de que nos- so entendimento estaria em condições de tra- tar”.21 Esse motivo vem novamente à baila no iní- cio de seu ensaio, em que Locke descreve o seu objetivo de “investigar a origem, certeza e abran- gência do conhecimento humano, ao lado dos fundamentos e gradações da fé [belief], da opi- nião [opinion] e do assentimento [assent]”.22 Ao final de suas investigações, e dando con- tinuidade à refutação das idéias inatas23 defendi- das por Descartes, e da remissão das idéias – como objetos do pensamento – à sensation e à re- flection,24 Locke dedica-se, no quarto livro de seu ensaio, à questão do saber humano em sua tota- lidade, sua abrangência e potencial de verdade.25 Nesse contexto, encontram-se finalmente suas famosas considerações sobre a relação entre ra- zão (reason) e fé (faith), que fundamentam o seu posicionamento diante da religião cristã. Aqui ele se faz conduzir por dois princípios. Em primeiro lugar, parte da exigência de que razão e fé não po- dem contradizer-se. Entendida por Locke como uma faculdade finita do ser humano (faculty in man), a razão serve, em segundo lugar, de parâ- metro para o julgamento da fé religiosa. Para ele,só são comprovadamente legítimos os enuncia- dos da fé que correspondam ou ultrapassem o discernimento da razão. São conformes à razão (according to reason) os enunciados cuja verdade pode ser demonstrada ao deduzir as idéias que lhes são subjacentes, com base na sensation e na reflection, e ao comprovar seu conteúdo como verdadeiro, ou ao menos verossímil, por meio da dedução natural. Por outro lado, ultrapassam a razão (above the reason) os enunciados cuja ver- dade ou verossimilhança não podem derivar de princípios como esses. Contrários à razão (con- trary to reason), e portanto repudiáveis, são, no entanto, os enunciados que não podem subsistir com as idéias claras e límpidas da razão ou reve- lam-se incompatíveis com elas.26 Uma vez que essas últimas proposições têm de ser refutadas pela razão, o campo dos enunciados cujo teor ultrapassa a capacidade cog- nitiva natural do ser humano, sem contudo con- trariar a razão, constitui, para Locke, o verdadeiro objeto da fé religiosa. Em questões que não po- dem ser de modo algum julgadas pela razão, ou que o possam, fundadas tão-somente em proba- bilidades, as pessoas são conclamadas, com boas razões, a ouvir a revelação de Deus: a ela cabe prio- ridade nas perguntas “em que foi do agrado de Deus propô-las, mesmo diante de suposições apenas prováveis da razão”.27 A revelação (reve- lation) é tomada por Locke, por conseguinte, como um outro princípio da verdade e uma outra razão para o assentimento, “pois nesse caso espe- cial”, segundo ele, “em que a razão não pode ir além da probabilidade, é a fé quem se mostra de- terminante, porque a razão se comprova como insuficiente. Aqui a revelação desvendou de que lado está a verdade”.28 O texto “Essay concerning human unders- tanding”, de Locke, descreve o programa da filo- sofia da religião da Era Moderna. Em seu núcleo, ele consiste na checagem crítica da conformidade racional dos enunciados da religião,29 mais preci- samente daqueles que, em virtude de uma episte- mologia e crítica do conhecimento gerais, podem ser adequadamente entendidos como tal e, por is- so, não contraditórios à razão. Também em Im- manuel Kant encontramos uma crítica da religião semelhante. No prefácio à primeira edição da Crítica à Razão Pura, de 1781, o autor descreve a tarefa que marcou época na filosofia como “uma conclamação da razão a que volte a assumir o mais oneroso de seus afazeres, a saber, o da au- tocrítica, e que instaure um tribunal que a asse- gure em suas pretensões justas”.30 Para Kant, a ta- refa de uma autocrítica da razão, colocada, desse 21 LOCKE, “Sendschreiben an den Leser”, in: ______, 1981. 22 Ibid., p. 22. 23 Ibid., Livro Segundo, p. 29-105. 24 Ibid., p. 107-158. 25 Ibid., Livro Quarto, v. II, p. 167-256. 26 Ibid., p. 390-392. 27 Ibid., p. 401. 28 Ibid., p. 402. 29 Cf. idem, “The reasonableness of Christianity”, in: ______, 1981. 30 KANT, Kritik der reinen Vernunft (KrV), in: ______, 1974, pref. à 1.ª ed. (1781), A XI. 001922_Impulso_34.book Page 17 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM 18 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 modo, no centro das atribuições da filosofia, é iniludível, pois esta fundamenta-se no destino es- pecial da própria razão humana, qual seja, ocupar- se de perguntas das quais, por um lado, não pode prescindir, mas que, por outro, pode tampouco responder, já que “ultrapassam toda a faculdade da razão humana”.31 Entre elas, incluem-se ques- tões sobre a realidade da liberdade humana, a existência de Deus e a certeza de um mundo vin- douro. O caminho crítico que, segundo Kant, ain- da está aberto,32 após o fracasso do racionalismo dogmático de Christian Wolff e do método céti- co de David Hume, contém a crítica não apenas da faculdade cognitiva e racional humana, mas também das instituições sociais e estruturas polí- ticas. Como já se evidenciou no prefácio à Crítica da Razão Pura, também a religião e o poder po- lítico legislativo não estão excluídos da crítica à razão aí exigida. Escreve Kant: Nossa época é a verdadeira época da crí- tica, à qual tudo deve submeter-se. A re- ligião, por meio de sua sacralidade, e a ati- vidade legislativa, por meio de sua majes- tade, comumente querem eximir-se dela. Mas em vez disso suscitam assim a sus- peita contra si mesmas, e não podem fa- zer exigências de atenção inequívoca, que a razão só concede àquilo que é capaz de suportar sua provação livre e pública.33 A referência temática à pergunta sobre como os enunciados da religião podem ser julga- dos (criticados) de forma filosoficamente adequa- da já perpassa, como fio condutor, a crítica da fa- culdade cognitiva humana em Kant. Em Crítica da Razão Pura estão especialmente presentes as reflexões de Kant sobre o status filosófico do conceito de Deus, tratado na dialética transcen- dental sob a noção de um ideal da razão pura34 e, na metodologia transcendental,35 sob a concepção de um ideal do Bem supremo. Também na Crítica da Razão Prática, encontramos o conceito de Bem supremo. Ele designa a unidade de virtude e bem-aventurança, que, segundo Kant, corres- ponde ao pleno querer de um ser racional36 e, como tal, deve ser considerado um fim último de seu anseio. Nesse ponto, as reflexões moral- filosóficas de Kant transformam-se expressa- mente em filosofia da religião, pois a idéia inilu- dível de um Bem supremo torna necessário, se- gundo Kant, aceitar a existência de Deus37 como a “de um legislador moral que detém poder e ex- terno ao ser humano” e “em cuja vontade está o propósito último [da criação do mundo], o qual pode e deve ser ao mesmo tempo o propósito úl- timo do ser humano”.38 Dessa maneira, a filosofia da religião torna explícitas, para Kant, as implicações necessárias do conceito de Bem supremo, revelado, pela crí- tica da razão teórica, como um ideal da razão pura e, pela crítica da razão prática, como impres- cindível. Ao mesmo tempo, é sua tarefa estabele- cer uma relação entre a realidade do moralmente mau como uma dimensão da liberdade da natu- reza humana e a disposição original do ser huma- no para o Bem. No prefácio de seus escritos so- bre a religião, de 1793, Kant atribui grande valor à constatação de que as reflexões ali apresentadas – como evidencia o próprio título de forma pro- gramática – permanecem estritamente nos limites da simples razão,39 apesar de não se poder negar que elas estejam fortemente orientadas por mo- tivos bíblicos, sobretudo neotestamentários. De sua parte, nessa limitação aos afazeres cognitivo- críticos da filosofia, elas não manifestam preten- são de impor quaisquer preceitos, metódicos ou de conteúdo, à religião cristã ou à sua conforma- ção reflexiva, à teologia como outra faculdade 31 Ibid., KrV, A VII. 32 Ibid. 33 Ibid., KrV, pref. à 1.a ed. (1781), A X, XI. 34 Ibid., KrV, “Die transzendentale Dialektik”, 3. Parte principal: “Das Ideal der reinen Vernunft”, B 595, A 567 - B 670, A 642. 35 Ibid., KrV, “Transzendentale Methodenlehre”, 2. Parte principal: “Der Kanon der reinen Vernunft”, 2.o §: “Von dem Ideal des Guts als einem Bestimmungsgrund des letzten Zwecks der reinen Vernunft”, 1974, B 832, A 804 - B 859, A 831. 36 Idem, Kritik der praktischen Vernunft (KpV), 2. Parte principal: “Vond er Dialektik der reinen Vernunft in Bestimmung des Begriffs vom höchsten Gut”, A 199, in: ______, 1974. 37 Ibid., KpV A 223. 38 Idem, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, BA X, XI, in: ______, 1974. 39 Cf. RICKEN; MARTY, 1992. 001922_Impulso_34.book Page 18 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 19 científica da universidade. Ao contrário, ele tam- bém exige para a filosofia uma liberdade ilimitada da razão em assuntos de religião, pois “uma reli- gião que irrefletidamente declara guerra à razão não poderá sustentá-la ao longo do tempo”.40 Os escritos de Kant sobre a religião contribuem, des- sa maneira, a que se apresentem,de maneira filosófica, não apenas a conformidade racional da religião em geral, mas também os motivos cen- trais da tradição neotestamentária. Com isso, esse autor mostra-se em condições de superar a alternativa formulada pela filosofia deísta da reli- gião, proposta pelo iluminismo da fase inicial, en- tre um conceito geral de uma religião natural, de um lado, e de uma religião revelada, de outro. A essa noção kantiana de filosofia da reli- gião, no sentido de uma crítica da religião orien- tada pela razão, seguem-se pensadores tão distin- tos quanto Schleiermacher e Hegel: o primeiro, ao tentar legitimar a religião na trilha de um ques- tionamento cognitivo-crítico ampliado (em com- paração ao de Kant) como sensibilidade e gosto pelo infinito41 e ao identificar a combinação de intuição e sentimento como faculdade cognitiva da religião;42 o segundo, por sua vez, ao apresen- tar a comprovação da racionalidade da religião no âmbito de seu sistema de um idealismo especula- tivo. Por tal êxito, Hegel paga, no sistema, o pre- ço de atribuir à filosofia da cognição de um filó- sofo conceitualmente operante a força de um dis- cernimento superior quanto ao absoluto, se com- parado ao discernimento da linguagem simbólica da religião, vinculada a representações.43 Com is- so, a filosofia especulativa, pretendendo um co- nhecimento mais adequado do absoluto, toma o lugar da religião, que assume, segundo Hegel, um grau menor de discernimento. “O que é Deus”, escreve Hegel, referindo-se também a si mesmo, é para nós que temos religião algo conhe- cido, um conteúdo que está presente na consciência subjetiva; mas considerado cientificamente, Deus é em primeiro lu- gar um nome geral abstrato, que ainda não pode receber teor verdadeiro algum. Pois somente a filosofia da religião é um desenvolvimento como esse, é conheci- mento do que Deus é, e só por meio dela descobre-se de maneira elucidativa o que Deus é.44 Para a religião, no entanto, diferentemente da filosofia, Deus é “essa noção bem difundida, mas cientificamente ainda não desenvolvida, ain- da não conhecida”.45 A filosofia da religião de Hegel marca, portanto, não apenas o apogeu da concepção de filosofia da religião como crítica filosófica da religião, mas também seu limite in- terno: com ele já tem início a história de uma suprassunção da religião pela filosofia. Eis justa- mente aí a tarefa da filosofia da religião hegeliana. Depois de Hegel, no entanto, e sob a influência de uma crítica radical ao hegelianismo, a filosofia da religião e a crítica da religião trilham caminhos cada vez mais separados. III. A concepção de filosofia defendida pelos re- presentantes do hegelianismo de esquerda volta- se não apenas contra o programa da sua funda- mentação como teoria do conhecimento ou crí- tica da razão; ela também assume uma distância crítica em relação à autocompreensão tradicional da filosofia como um todo. Nesse sentido, o he- gelianismo de esquerda revela-se filho legítimo da compreensão cientificista da ciência no século XIX, pois, mesmo que o plano de uma superação da filosofia vise primeiramente, até então, como em Ludwig Feuerbach, a filosofia hegeliana, que encena a si mesma como ponto alto e perfeição da procura filosófica por discernimento, a crítica de Marx a Feuerbach pretende ir claramente além do programa de conhecimento filosófico, para mudar o mundo46 por meio da práxis social. Na corrente desse desenvolvimento das ciências para além da filosofia, característico do século XIX, 40 KANT, Die Religion innerhalb der Grenzen der bloßen Vernunft, pref. B A XIX, in: ______, 1974. 41 SCHLEIERMACHER, 1970, p. 30. 42 Ibid., p. 41. 43 Cf. HEGEL, 1969, p. 16-54. 44 Ibid., p. 92. 45 Ibid., p. 92. 46 MARX, 1969, p. 7. 001922_Impulso_34.book Page 19 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM 20 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 chega-se também a uma mudança do lugar con- cernente à crítica da religião: ela não é mais feita em nome da filosofia. Porém, uma crítica da re- ligião que já não se entende como um momento da filosofia da religião perde cada vez mais, por razões que ainda veremos, o status de uma crítica que vindica para si pretensões gerais de verdade. Em face da história da filosofia, gostaria de expli- car rapidamente essa tese. Com suas “Teses sobre a reforma da filoso- fia”, de 1842, Ludwig Feuerbach ainda segue o programa de crítica e renovação da filosofia. Ele escreve: “O filósofo precisa acolher no texto filosófico o que há no ser humano e ainda não te- nha sido tratado pela filosofia, o que nele seja até mesmo contrário à filosofia e se oponha ao pen- samento abstrato: tudo isso que, em Hegel, é re- baixado somente a uma nota secundária”.47 A corporeidade do ser humano, recalcada pela filo- sofia especulativa do idealismo alemão em Hegel e Schelling, deve não apenas ser reconduzida para dentro da filosofia; cabe, sim, fundamentar a fi- losofia em geral como antropologia sensualista. A filosofia do futuro deve começar sua atividade cognitiva a partir do não-pensar, da realidade con- creta, da não-filosofia. Feuerbach denomina isso claramente de princípio do sensualismo.48 Sua crí- tica da religião segue esse mesmo princípio – ela é menos uma crítica da religião, já que, para esse autor, a essência sensualista do homem também se articula na religião, e muito mais uma crítica da visão teológica da religião. A nova filosofia anun- ciada por Feuerbach “é portanto, como negação da teologia, que nega a verdade dos afetos religio- sos, o posicionamento da religião”.49 Constatando de forma lapidar que, com a crítica do hegelianismo de esquerda, “a crítica à religião já está essencialmente concluída na Ale- manha”,50 Marx filia-se à tese, defendida por Feuerbach, de que se deve conceber o antropoteísmo como “religião autoconsciente – a religião que se entende a si mesma”.51 No entanto, contra Feuerbach, e na linha de sua crítica tanto ao he- gelianismo de esquerda quanto a Hegel, Marx argumenta que o ser humano identificado por Feuerbach como o teor da religião (cristã) não é “um ser abstrato, situado fora do mundo”, e sim “o mundo do ser humano, Estado, sociedade”. “Esse Estado e essa sociedade produzem a reli- gião, uma consciência de mundo às avessas, por- que eles mesmos são um mundo às avessas.”52 Contudo, religião não se esgota, para o jovem Marx, em ser a expressão da miséria real – ela é também o protesto contra a miséria real e o suspiro da criatura oprimida. Isso nada muda a exigência defendida por Marx de uma suprassunção da reli- gião como condição para o ser humano alcançar sua felicidade efetiva. Assim, a crítica à religião re- vela-se em Marx, em última instância, como “exi- gência de renúncia a um estado que carece de ilu- são”.53 Enquanto a opção de Feuerbach contra uma interpretação teológica da religião ainda per- manece vinculada a seu programa de reformar a filosofia com base em uma antropologia sensua- lista, a crítica marxista da religião já constitui um passo decisivo para além dos limites da filosofia. Não obstante, Marx utiliza-se aqui, inequivoca- mente, de um discernimento filosófico, a saber, a negação do negativo. Continua não se tendo aí uma explicação sistemática sobre a possibilidade do recurso materialista pretendido por Marx ao modelo de crítica fundado na teoria idealista da razão de Hegel, sem que, com isso, se apresen- tem problemas graves de consistência. A própria descrição do mundo social como miséria não pressupõe uma posição refletida e fundada, que, no âmbito exclusivo das premissas admitidas pela concepção marxista do materialismo histórico, e atinentes à sua argumentação, não se poderia ob- ter sem outras assumpções adicionais? Também diante de Feuerbach cabe perguntar se a opção ontológica fundamental, subjacente à sua visão de filosofia e religião, não incorre, por sua vez, no erro de trair sua própria crítica ao status secun-47 FEUERBACH, 1967, p. 91. 48 Ibid. 49 Ibid., p. 93. 50 MARX, 1958, p. 30. 51 Idem, 1969, p. 93. 52 Idem, 1958, p. 30 53 Ibid., p. 31. 001922_Impulso_34.book Page 20 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 21 dário da filosofia em face da vida, e se ela não faz do princípio cognitivo sensualista um dogma metafísico. Entretanto, o debate em torno da consis- tência argumentativa das posições de Feuerbach e Marx tem, para mim, nesse contexto, importân- cia menor. Para a reconstrução que faço do des- tino da crítica à religião após Hegel basta ter pre- sente que Feuerbach e Marx, por razões filosófi- cas internas, formulam contestações fundamen- tais contra a religião ou, então, uma determinada autocompreensão da religião que mutatis mutan- dis também vale para a filosofia, ou, em todo ca- so, para um certo entendimento de filosofia. É justamente isso que contribui para a mudança do posicionamento da crítica à religião: de uma crí- tica à religião ou à filosofia ainda filosoficamente motivada, em Feuerbach ou Marx, faz-se mais abrangente, na corrente de uma história do pen- samento do século XIX, uma crítica à religião que não abdica de um conceito forte de razão, mas que renuncia, sim, da própria filosofia. Em Nietzsche e Freud, já não mais a busca da verda- de filosófica orienta a crítica à religião, pois am- bos logram abdicar radicalmente do programa cognitivo da filosofia – Freud, ao entender-se de uma ótica cientificista (quiçá equivocada) como pesquisador empírico, e Nietzsche, por outro la- do, pela via de seu ataque fundamental à capaci- dade humana do conhecimento da verdade. No- tadamente, Nietzsche vincula sua investida con- tra a crença filosófica na gramática à uma opção contrária à idéia de Deus, escrevendo, por exem- plo, no “Crepúsculo dos deuses”, que “A ‘razão’ na linguagem: ah! que velha senhora cheia de tru- ques! Temo que não nos livremos de Deus por- que ainda cremos na gramática…”.54 A crítica de ambos – Nietzsche e Freud – à religião deixou para trás o discurso de fundamen- tação da filosofia e da crítica filosófica à raciona- lidade ou à razão. Assim, as posições desses dois pensadores não são apenas uma comprovação de minha tese, de que os caminhos da filosofia da re- ligião e da crítica à religião separam-se ao longo da história da filosofia do século XIX. Elas repre- sentam também um tipo de afastamento da filo- sofia, freqüente no debate intelectual do século XX, que contou com um considerável assenti- mento, desde o positivismo lógico até Richard Rorty.55 Ao longo desse desenvolvimento, no en- tanto, a crítica à religião abandona sua pretensão de fazer restrições à religião – as quais mostram- se, em geral, passíveis de aprovação –, pois perde nesse caminho sua base racional e transforma-se naquilo que os críticos da religião costumam nela condenar: uma mera visão de mundo. Essa cons- telação marca o estado da crítica à religião no pre- sente: ela esfacelou-se junto com a pretensão de racionalidade da filosofia e o que resta é a religião depois da crítica à religião. IV. À medida que vai sendo abandonada, no in- terior da filosofia, a tentativa de fundamentar um conceito (publicamente aceito) de crítica e de ra- zão publicamente aceitável, revela-se também sempre mais inexeqüível o programa de uma crí- tica da religião filosoficamente fundamentada, tal como proposto pela filosofia da Era Moderna. Independentemente das pesquisas histórico-em- píricas sobre a religião (feitas, portanto, no interior da filosofia), é concebível, em todo caso, diante de uma premissa como essa, uma situação argumen- tativa relativa ao tema, na qual, por um lado, uma epistemologia de tom cientificista ignore o factum da religião como irrelevante, do ponto de vista da teoria da ciência, e um naturalismo de argumentação reducionista atribua enunciados religiosos às condições socioculturais de seu sur- gimento. Por outro lado, ainda nessa situação ar- gumentativa, adeptos da hermenêutica, da feno- menologia ou de teorias da cultura de abordagem lingüístico-pragmática procurem entender-se, com maior ou menor êxito, sobre teorias da com- preensão de enunciados religiosos, teorias da consistência de práticas religiosas, do ponto de vista do mundo da vida, ou teorias da gramática dos jogos de linguagem religiosos. Se as posições 54 NIETZSCHE, 1969, p. 960. 55 Cf. RORTY, 1987. 001922_Impulso_34.book Page 21 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM 22 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 mencionadas por último podem reclamar para si o título de filosofia da religião, e em que medida podem fazê-lo, é, no mínimo, uma pergunta pro- blemática, em face da história do surgimento da filosofia da religião como crítica à religião – no contexto de minhas reflexões, a propósito, essa pergunta é também secundária. Não é de menor importância, porém, a ca- racterização dessa constelação como uma situa- ção posterior à crítica da religião aplicada, ao me- nos em parte, à filosofia contemporânea. Isso, por sua vez, não traz em si a idéia de que uma for- ma qualquer de crítica à religião seja impensável já de saída. Assim, em razão de diversos critérios, é possível fazer reparos em particular contra religiões ou práticas religiosas, mas uma crítica a religiões, no sentido de uma prova geral da verdade ou da ade- quação racional de seus enunciados e práticas, está fora de cogitação. Se ela quisesse apresentar- se como tal, certamente não poderia fazê-lo com o tom de autoridade de uma concepção filosófica de razão ou de uma pretensão de verdade que, em princípio, os participantes estivessem conclama- dos a aceitar. No que tange às religiões, uma cor- respondência a esse desenrolar das coisas está na atitude retraída de seus representantes, manifes- tada de muitas maneiras e limitada a um tomar por verdadeiro, em âmbito particular. De acordo com essa atitude, o discurso sobre uma verdade subjetiva atribuível aos enunciados da fé religiosa revela-se obsoleto. Em tal visão dos enunciados da religião é problemático que, com ela, tornem-se invisíveis as pretensões de verdade, vinculadas normalmen- te à declaração de fé, por parte da própria pessoa que crê. Mesmo admitindo que uma declaração de fé religiosa não possa ser senão proferida da perspectiva da primeira pessoa e que, portanto, o declarante esteja envolvido no conteúdo e no cumprimento do que declara, ainda assim a de- claração de fé também pleiteia a si uma validação para além da particularidade ou da evidência in- terior do sujeito individual. As profissões de fé religiosas também têm uma referência intersub- jetiva, pois, via de regra, não seguem a estrutura do monólogo, mas dirigem-se a Deus ou a outras pessoas, aludindo explicitamente a um mundo da vida e a experiências aí vividas, repartidas com os demais. A profissão de fé também segue a estru- tura gramatical de um língua partilhada com os outros. Normalmente, ela supõe um mundo ex- terior real, referido para manifestar enunciados sobre Deus, o Santo ou o inteiramente Outro, por contraste ou concordância. Esses enuncia- dos não se eximem por completo de uma com- preensibilidade intersubjetiva, ainda que seja mesmo impossível definir cabalmente os con- ceitos religiosos centrais, como Deus, eternida- de e transcendência. Tal status, no entanto, eles têm em comum com outros conceitos-limite, como ocorrem na filosofia. Um subjetivismo radical da interpreta- ção religiosa da fé precisa negar essa descrição ou, então, admitir que os enunciados religiosos, como as profissões de fé, encontram-se sob pre- missas semióticas que tornam necessário formu- lar também para elas critérios de veracidade sub- jetiva e compreensibilidade intersubjetiva, bem como descrever as condições de cumprimento de seus anseios de verdade. De outro modo, não ha- veria mais como distinguir entre tais enunciados e a autenticidadeda arte, e eles, portanto, estariam situados epistemologicamente num mesmo nível dos eventos biográficos meramente contingen- tes, que podem ser compreendidos apenas da perspectiva do narrador em primeira pessoa, sem a possibilidade de julgá-los ou comunicá-los. As- sim, a interpretação radical de enunciados religio- sos como jogo de linguagem conduz epistemolo- gicamente ao erro. A renúncia da filosofia e das ciências contemporâneas – pressuposta em uma visão radi- calmente subjetivista da religião – aos conceitos de uma linguagem intersubjetivamente compreensí- vel, de uma crítica discursiva e de uma razão pú- blica não ficou sem contestação, nem mesmo no interior da própria filosofia. Em “Dialética do es- clarecimento”,56 os representantes da teoria críti- ca mais antiga, Max Horkheimer e Theodor W. Adorno, já haviam estabelecido um nexo entre a 56 HORKHEIMER; ADORNO, 1969, especialmente p. 1-7 e 9-49. 001922_Impulso_34.book Page 22 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 23 crise da filosofia e as catástrofes políticas do sé- culo XX e começado a reconquistar para a filoso- fia contemporânea um conceito de razão pública filosoficamente reabilitado e isento das restrições de uma racionalidade procedimental cientificista. Como eles tinham boas razões para defender a opinião de que não se poderia chegar a tal con- ceito mediante o recurso às noções de entendi- mento das ciências particulares, e como o cami- nho até as teorias idealistas da razão do idealismo alemão lhes pareceu interditado após a crítica de Marx, optaram por recorrer às tradições da arte e da religião, no sentido de pensar quais os discer- nimentos aproveitáveis para a refundamentação de uma concepção filosófica de crítica racional. Horkheimer e Adorno vêem no motivo da negação determinada uma vinculação entre o pen- sar crítico por eles almejado e as figuras autênti- cas de sentido provindas da arte e da religião. As- sim, na “Dialética do Esclarecimento”, eles afir- mam: “A religião judaica não admite palavra algu- ma que garanta consolo ao desespero de todo e qualquer mortal. Ela só vincula esperança à proi- bição de que se designe algo falso como sendo Deus, o finito como sendo infinito, a mentira como sendo verdade”.57 A religião, a arte abstrata e o pensamento independente e vinculado apenas à questão da verdade representam, para Horkhei- mer e Adorno, o potencial que havia impulsiona- do a corrente do esclarecimento, que já se mos- trava então fracassado – reproduziam esse poten- cial, cuja perda fez adoecer o esclarecimento. Nesse sentido, as análises do tempo e da razão, na “Dialética do Esclarecimento”, não são um docu- mento de desespero, ironia negra e liquidação pa- radoxal do pensamento, como já se declarou in- justamente. Mais do que isso, elas articulam uma esperança tênue de poder elaborar um conceito reabilitado de razão, por meio de um recurso ao projeto crítico do esclarecimento, à religião (ju- daica) e à arte moderna, pois “sem esperança não há a existência, mas sim o saber que, no símbolo gráfico ou matemático, apropria-se da existência como um esquema, para então perpetuar-se a si mesmo”.58 Nesse recurso de ambos, vejo uma virada copernicana na relação entre religião e crítica filosófica à razão, com o despontar de novas pers- pectivas. Se o programa de uma filosofia da religião como crítica racional da religião, favorecido pela fi- losofia da Era Moderna e do esclarecimento, to- mava como ponto de partida um conceito de razão fortalecido, segundo o qual se devia julgar a pre- tensão de validação de enunciados religiosos, Horkheimer e Adorno, de sua parte, procuram al- cançar, sob a palavra de ordem de uma dialética do esclarecimento, e em face da crise da razão, a aber- tura para uma noção sustentável e filosófica de ra- zão, baseada em discernimentos formulados e pre- servados na linguagem da arte e da religião. A vi- rada, de que falamos, na relação entre filosofia e re- ligião consiste justamente no fato de que a filosofia, na nova constelação posterior à crítica da religião, não surge mais com a pretensão de repre- sentar ela mesma o parâmetro segundo o qual se comprova o teor de verdade dos enunciados da re- ligião e, com isso, sua adequação racional. Religião e filosofia, mas também ciência e arte, surgem na constelação da modernidade, es- tabelecendo entre si uma nova relação. Elas estão teoricamente vinculadas uma à outra, quando se trata de fundamentar um novo conceito amplia- do de razão pública, isento das restrições de um positivismo cientificista ou de um naturalismo epistemológico. A particularidade dessa vincula- ção racional entre elas consiste no reconhecimen- to de que os discernimentos e os resultados fun- dadores, alcançados pelos enunciados da religião, da ciência e da filosofia, foram conquistados de maneira própria, em cada um dos casos, e subme- tidos a um julgamento geral. Tal singularidade constitui também o reconhecimento de que eles não apenas podem, mas, de certo modo, devem necessariamente complementar-se uns aos ou- tros, sem ser, no entanto, exaustivamente tradu- zíveis de um sistema parcial a outro. 57 Ibid., p. 30. 58 Ibid., p. 34. 001922_Impulso_34.book Page 23 Wednesday, February 18, 2004 3:38 PM 24 Impulso, Piracicaba, 14(34): 13-25, 2003 Referências Bibliográficas AGOSTINHO. De Vera Religione. Viena: G. Weigel, 1961, v. 77. ______. Retractationes I. Viena/Leipzig: P. Knöll, 1902. CASSIRER, E. Der Symbolische Aufbau der Welt. Hamburg: Felix Meiner,1933. COMTE, A. Rede Über den Geist des Positivismus. Hamburgo: Felix Meiner, 1966. ELSAS, C. (org.). Religion. Ein Jahrhundert theologischer, philosophischer, soziologischer und psychologischer Interpretationsansätze. Munique: Theologische Bücherei, 1975. FEIEREIS, K. Die Umprägung der natürlichen Theologie in Religionsphilosophie. Ein Beitrag zur deutschen Geis- tesgeschichte des 18. 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