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Quando Pedro Álvares Cabral desembarcou no Brasil, a maior parte do litoral, do Nordeste até o rio da Prata, entre o Uruguai e a Argentina, era ocupada por populações indígenas que falavam línguas tupi (desde a área onde se situa hoje o estado de São Paulo até o atual Maranhão) e guarani (do atual Paraná até o norte da Argentina). Essas línguas eram aparentadas (como o são entre si o espanhol e o português) e as culturas dos seus falantes bas- tante parecidas. Os primeiros cronistas – particularmente os pro- tagonistas das lutas entre franceses e portugueses pelo controle da baía de Guanabara – fornecem preciosas informações sobre essas numerosas tri- bos. Mencionam, entre outras coisas, que as mu- lheres produziam e decoravam os potes de barro. Essas tribos foram logo dizimadas pelas doenças trazidas pelos europeus e pelas guerras coloniais, e no século 17 tinham desaparecido quase que por completo do litoral central e nordestino. No final do século 19, os amadores de antiguida- des brasileiros e os organizadores dos primeiros grandes museus, como Ladislau de Souza Mello Netto (1828-1894), já tinham identificado como tupi os potes pintados encontrados no litoral de Rio de Figura 1. Localização dos sítios arqueológicos de povos Tupi e Guarani conhecidos nos territórios de Brasil, Uruguai e Argentina – a cerâmica (tradição Tupiguarani) produzida por esses povos pode ser dividida em dois domínios, proto-tupi (do Sudeste até o Nordeste) e proto-guarani (ao Sul) A cultura dos povos indígenas falantes das línguas tupi e guarani é conhecida principalmente pelos relatos de cronistas da época do Descobrimento e dos primeiros tempos da colonização do Brasil. Dos prováveis ancestrais desses grupos, porém, os únicos vestígios arqueológicos são vasilhas e fragmentos de cerâmica, muitas vezes pintados com motivos variados. Um novo e amplo estudo sobre as pinturas aplicadas a essa cerâmica – reunida sob o nome ‘Tradição Tupiguarani’ – revela que não eram apenas simples decoração: na verdade, os desenhos parecem expressar os valores coletivos desses primeiros habitantes do litoral brasileiro. André Prous Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e Museu de História Natural, Universidade Federal de Minas Gerais 22 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 3 A R Q U E O L O G I A Sítios Tupiguarani Limite entre os dois domínios “proto-tupi” e “proto-guarani” 22 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 3 � Janeiro. Mas essas vasilhas estavam mal preserva- das, e as cerâmicas então recém-descobertas na ilha de Marajó, no Pará, que se supunha influenciadas por imigrantes europeus supostamente chegados durante a Antiguidade, atraíram toda a atenção dos pesquisadores. Até o final do segundo terço do sé- culo 20, apenas o historiador e folclorista Carlos Ott publicou o desenho simplificado de algumas va- silhas encontradas na Bahia. No final dos anos 60, os pesquisadores do Progra- ma Nacional de Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), dirigido pelos arqueólogos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans (1920-1981), encontraram numerosos sítios onde apareciam restos de cerâmi- ca decorada, alguns com traços vermelhos ou pretos pintados sobre fundo branco. Tais manifestações foram reunidas sob o nome ‘Tradição Tupiguarani’ (figura 1) – Tupiguarani em uma só palavra, indi- cando tratar-se de um conceito arqueológico que não corresponde obrigatoriamente aos povos falan- tes das línguas tupi-guarani (com hífen), embora se supusesse que os autores das peças fossem, ao me- nos em parte, ancestrais desses povos. As data- ções radiocarbônicas apontavam que os artefatos teriam entre 1.500 e 500 anos. Como os sítios estavam em geral muito des- truídos, os cacos eram pequenos e os desenhos pouco legíveis. Além disso, o Pronapa, por visar apenas a levantamentos extensivos, não previa análise inten- siva de sítios nem grandes escavações, que talvez tivessem permitido encontrar locais ainda intactos e materiais bem conservados. Arqueólogos influen- ciados por perspectivas francesas, como Maria Beltrão, Luciana Pallestrini, Lina Kneip (....-2002), Sílvia Maranca e José Luiz de Morais, chegaram a escavar estruturas de habitações, mas não se inte- ressaram especialmente pela cerâmica. Dessa forma, e apesar de um artigo seminal do etnólogo Desidério Aytai (1905-1998) que não chegou ao conhecimento da maioria dos arqueólo- gos, não se tentou um estudo sistemático das for- mas decorativas, embora importantes trabalhos de síntese tenham sido realizados pelos arqueólogos José P. Brochado e Maria Cristina M. Scatamacchia sobre a difusão da cultura Tupiguarani e as formas das vasilhas, assim como uma nota da arqueóloga Fernanda B. Tocchetto sobre uma possível relação entre motivos geométricos e mitologias guarani. Em 2000, a Missão Arqueológica Francesa e o Setor de Arqueologia da Universidade Federal de A pintura em cerâmica Tupiguarani � março de 2005 • C I Ê N C I A H O J E • 23 A R Q U E O L O G I A Minas Gerais decidiram iniciar um programa de estudo da cultura Tupiguarani no estado, em cola- boração com a equipe que iniciava um programa de resgate arqueológico no vale do rio Doce, entre os municípios de Resplendor e Aimorés, onde um consórcio encabeçado pela Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) construía uma represa. A reunião de recursos de origem privada com um projeto científico tornava possível realizar um pro- grama que unisse interesses econômicos e culturais (resgate do patrimônio cultural imposto pela lei) e acadêmicos (os trabalhos não visariam apenas a simples recuperação do material, mas seriam tam- bém direcionados por questões inerentes à pesqui- sa científica, como organização interna dos sítios, interpretações sociológicas, análises funcionais e estilísticas dos vestígios materiais e outras. Estávamos inicialmente interessados em estudar as modalidades de ocupação do espaço pelas popu- lações tupi-guarani em áreas-teste (em algumas microrregiões de Minas Gerais) e a organização interna das aldeias (cuja estrutura estivesse mais bem preservada). No entanto, o salvamento – pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Ar- tístico de Minas Gerais, em Conceição dos Ouros (MG) – de uma vasilha intacta com extraordinária decoração nos levou a abrir uma nova linha de estudo sobre as decorações pintadas sobre cerâmica e a visitar os museus e coleções antigas espalhados entre Natal (RN) e Porto Alegre (RS), onde abun- dam cacos pintados e vasilhas com traços quase apagados. Aos poucos, envolvemos um grande nú- mero de arqueólogos em uma pesquisa sistemática sobre a cultura Tupiguarani no Brasil inteiro. Ar- queólogos, químicos, físicos, etnólogos e até técni- cos da polícia científica – ligados a 20 instituições brasileiras, argentinas e uruguaias – aceitaram co- laborar, de forma inédita, na preparação de uma obra coletiva, que deve fazer um balanço dos co- nhecimentos e abrir novas perspectivas. Este artigo apresenta um dos pontos da cultura Tupiguarani cujo estudo ficou sob nossa respon- sabilidade. A cerâmica Tupiguarani As vasilhas Tupiguarani apresentam geralmente borda reforçada típica e – a não ser no caso de bacias pouco profundas – têm fundo redondo. Quando pintadas, recebem decoração linear e pon- tilhada de cor escura (vermelha, marrom ou preta) aplicada com ‘pincel’ (qualquer tipo de objeto com essa função) sobre fundo branco. Figura 2. Principais formas de vasilhas dos domínios proto-tupi (A) e proto-guarani (B) da cerâmica Tupiguarani Figura 3. Elementos de decoração alinhados (A), em vasilha do Espírito Santo (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN), e espiralados (B), em vasilha do Rio de Janeiro (Instituto de Arqueologia Brasileira) D ES EN H O S D E M A R C U S E. B R ITO FO TO C ED ID A P O R C H R IS TI A N E L. M A C H A D O FO TO A . P R O U S A B A B 24 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 3 A R Q U E O L OG I A É possível, apesar do parentesco formal entre todas as ocorrências Tupiguarani, distinguir dois grandes conjuntos geográficos, um que denomina- mos ‘proto-tupi’, que se estende do litoral norte de São Paulo até o Ceará, e outro, ‘proto-guarani’, situado entre o sul do litoral de São Paulo e o norte da Argentina. Esses grupos distinguem-se tanto por formas específicas dos artefatos de cerâmica (figu- ra 2) quanto pelo estilo e pelos motivos de deco- ração plástica ou pintada. Em cada conjunto seria possível estabelecer subdivisões estilísticas que acreditamos refletirem a extensão de ‘parcialida- des’ de cunho político ou étnico. A cerâmica proto-tupi e sua decoração pintada A decoração pintada está restrita, no domínio pro- to-tupi, quase exclusivamente à parte interna de grandes vasos (entre 30 e 75 cm de diâmetro) aber- tos, de formato circular, oval ou quadrangular. São espécies de bacias, pratos e tinas que parecem ter sido destinadas principalmente ao preparo da mandioca amarga na vida cotidiana (figura 3). Pe- las ilustrações deixadas pelos cronistas do contato com os tupinambá, no século 16, recebiam o mi- lho mastigado pelas mulheres e cuspido para pre- parar o cauim (bebida fermentada que acompa- nhava festas e rituais) ou os intestinos de guerrei- ros sacrificados em rituais antropofágicos. A ar- queologia mostra que tais recipientes também acompanhavam os mortos no ‘Além’. A forma dessas bacias nem sempre é regular, traduzindo muitas vezes certo desleixo com a si- metria dos volumes. Em compensação, a decora- ção, exclusivamente pintada, obedece a normas estritas e foi realizada com esmero. A borda da vasilha é reforçada do lado de fora, apresentando uma estrita faixa plana, decorada por um friso de bastonetes verticais ou oblíquos compondo triân- gulos. Outro friso semelhante acompanha o lado interno da borda. Bandas vermelhas de 1 a 2 cm de largura separam os dois frisos, isolando-os tam- bém do campo decorativo principal. Tal campo ocupa o fundo do recipiente, subindo até meia altura das paredes laterais, e é ricamente decorado com linhas curvas e divagantes verme- lhas e/ou pretas muito finas (muitas vezes com cerca de 0,2 mm de largura apenas) e com pontos escuros destinados a reforçar linhas mestras ou contrastar as superfícies por elas delimitadas. Diante das pinturas mais delicadas do sul de Minas Gerais ou do Rio de Janeiro, o olhar se perde à primeira vista, exigindo esforço para descobrir a lógica da ‘teia de aranha’ que cobre a superfície de fundo branco. Trata-se de um jogo intencional, que nos lembra a frase do antropólogo Claude Lévi- Strauss a respeito das pinturas corporais kadìweu: “arabescos de uma sutilidade perversa”. Os mo- tivos parecem ser elementos exclusivamente de- corativos – mas veremos que se trata, muitas ve- zes, de representações figurativas extremamente geometrizadas. Os elementos decorativos organizam-se segun- do uma de cinco fórmulas clássicas, que sugerem regras conscientes e explícitas: • alinhamento ao longo de eixos paralelos ao maior diâmetro; • disposição espiralada ou concêntrica; • campo ocupado por feixes de linhas paralelas do- brados sobre si, formando circunvoluções que lem- bram o córtex cerebral ou um intestino (figura 4); • motivos preenchendo os espaços delimitados por uma grande figura central, estruturante e única, que forma o ‘esqueleto’ da decoração e apresenta muitas vezes forma de cruz ou de ampulheta (tra- ta-se de uma disposição típica do litoral do Espí- rito Santo, Rio de Janeiro e sul de Minas Gerais); • campo decorativo dividido em setores, cada qual com um preenchimento específico de linhas para- lelas entre si, retas ou quebradas ortogonalmente (essa fórmula parece exclusiva do litoral mais se- tentrional – Rio Grande do Norte e Pernambuco); é tratado com linhas mais espessas e de maneira menos delicada que os demais. Nota-se que as grandes talhas (igaçaba, em tupi) e as panelas eram decoradas sobretudo com moti- vos plásticos (corrugado, ungulado, espatulado...) geralmente pouco elaborados. Figura 4. Decoração com linhas que formam circunvoluções, sugerindo imagens estilizadas de intestinos ou cérebros (Museu Nacional, no Rio de Janeiro) FO TO A . P R O U S � março de 2005 • C I Ê N C I A H O J E • 25 A R Q U E O L O G I A 26 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 3 A R Q U E O L O G I A A cerâmica proto-guarani As ceramistas do sul brasileiro expressavam sua virtuosidade muito mais através das formas e dos jogos de volumes que da decoração pintada, que pode ser bonita mas nunca tão cuidada nem deli- cada quanto a do norte – já se nota a diferença na espessura dos traços, sempre acima de meio milí- metro. Fabricavam enormes urnas de ombros escalonados e morfologia complexa com até 1 m de diâmetro (figura 5), e a maioria dos potes apre- senta uma cuidadosa decoração plástica que pro- voca jogos de sombra e de luz. Um exemplo é a popular decoração corrugada, conseguida beliscan- do-se a pasta ainda fresca, que cria uma textura semelhante à do couro de jacaré (figura 6). A pintura era reservada a dois tipos de vasilha: grandes talhas (cambuchi, em guarani), destinadas a armazenar o cauim e a conter os mortos da tribo, e pequenas vasilhas com fundo hemisférico e pes- coço vertical largo e curto (caguâba, em guarani), destinadas a beber o cauim (figura 7). Em ambos os casos, a parte superior do bojo (o ombro) e o pescoço é que recebem decoração; a base da vasi- lha, menos visível, é deixada lisa ou coberta por uma camada de vermelho, no caso de algumas grandes urnas. Figura 5. Grande urna proto-guarani, encontrada no sul do país (Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, em Taquara) Figura 6. Fragmentos com decoração plástica (feita com as mãos ou com objetos, diretamente no barro) encontrados no sítio Florestal, em Itueta (MG) Figura 7. Caguâbas, vasilhas em que os índios bebiam o cauim, bebida produzida para festas e rituais (Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, em Taquara) FO TO A . P R O U S FO TO A . P R O U S F O TO S L . P A N A C H U K Figura 8. Vasilha decorada com elementos retangulares, motivos ‘casinha’ (Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, em Taquara) Figura 9. Rostos humanos estilizados em duas cerâmicas encontradas no Rio Grande do Norte (Museu Câmara Cascudo e Laboratório de Arqueologia da UFRN, em Natal) FO TO S A . P R O U S A R Q U E O L O G I A 26 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 3 março de 2005 • C I Ê N C I A H O J E • 27 A R Q U E O L O G I A O friso perto da borda (mais estreita que nas vasilhas proto-tupi) reaparece, mas quase sempre formado por linhas onduladas ou triângulos. A banda que o separa do bojo é bem mais estreita que nas vasilhas do norte e se repete nas linhas de inflexão (pequenas interrupções de curvatura), quando a vasilha tem ‘ombros’ escalonados. Os campos assim definidos são, portanto, faixas hori- zontais paralelas, decoradas por frisos geométricos executados por linhas paralelas, sem pontos de reforço. Os motivos incluem ondas, retângulos e cruzes, e apresentam uma regularidade monótona que contrasta com a criatividade de seus parentes do norte (figura 8). Algumas vasilhas exibem, em partes pouco visíveis (interior dos caguâba e base dos cambuchi), marcas complementares pintadas de maneira bastante grosseira com os dedos. Ritos de morte e mitos de criação Apesar da aparente ausência de motivos figurati- vos, nossa pesquisa mostrou que a geometrização dos traços escondia representações precisas. As pinturas eram aplicadas a vasilhas que acredi- tamos terem sido particular- mente relacionadas às ceri- mônias da morte – elas mes- mas ligadas a preparação do cauim (caguâba) e do corpo dos sacrificados nas festas antro- pofágicas (bacias cariocas), ou destinadas a receber os corpos dos guerreiros mortos (cambu- chi ou igaçaba). Sabemos, pelos cronistas, que o orgulho das mulheres tupinambá era sua capacida- de de preparar a cerâmica, sua decoraçãoe o cauim. Nessas tarefas não apenas realiza- vam-se como produtoras, mas pensamos que, ao pintar as va- silhas rituais, elas participavam do grande evento constitutivo da sua sociedade: a guerra pa- ra capturar vivos guerreiros destinados ao sacrifício, em uma dialética com os ‘contrá- rios’, que eram assim assimi- lados pela comunidade – pro- cesso descrito pelo antropólo- go Eduardo Viveiros de Castro. Portanto, esperávamos que os temas pintados fossem relacionados com esse ritual. De fato, no Rio Grande do Norte, verificamos que rostos hu- manos se escondiam atrás dos triângulos e retân- gulos que preenchem o fundo dos pratos (figura 9); mais ao sul (no litoral central), pelo menos algu- mas das grandes figuras ‘estruturantes’ representa- vam corpos humanos (figura 10). Uma vasilha cujas pinturas quase apagadas exigiram vários dias de trabalho das hoje arqueólogas Lilian Panachuck e Camila Jácome para serem decifradas representa um corpo aberto, com a coluna vertebral e os in- testinos à mostra (figura 11). Embora com menos certeza, acreditamos ter identificado em outros pratos ossos dos membros e, talvez, cérebros. Figura 10. Vasilha com evocação de vários corpos quadrangulares, com membros curtos (Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA, em Salvador) Figura 11. Corpo aberto, mostrando uma coluna vertebral, e com preenchimento que evoca intestinos (Museu de História Natural, da UFMG, em Belo Horizonte) FO TO A . P R O U S B A S EA D O E M C A LQ U E D E L. P A N A C H U K E C . J Á C O M E � 28 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 3 A R Q U E O L O G I A Na região proto-guarani, onde, segundo al- guns autores, a guerra antropofágica não era um pilar da sociedade (embora essa visão seja con- testada por certos especialistas), esperávamos encontrar temas ligados à mitologia, embora os desenhos fossem demasiadamente geometri- zados para que se pudesse interpretar com cer- teza. Alguns desenhos associando uma cruz e uma cobra parecem, no entanto, ligados aos mitos da origem da Terra (figura 12). Com efei- to, o herói civilizador Nhanderuvuçu estabe- leceu uma cruz de madeira para sustentar a Terra, que as cobras poluíram. Embora lem- brem o mito cristão da Criação, essas histórias parecem ter raízes pré-históricas, cujas marcas seriam os frágeis desenhos deixados pelas an- cestrais das mulheres guarani. A presença das mulheres Dos tupi e dos guarani históricos, guardamos informações escritas por cronistas e jesuítas, que tinham informantes masculinos e se interessa- vam essencialmente pelas atividades masculi- nas. Os vestígios materiais desses índios, valo- rizados como corajosos guerreiros na época da independência do Brasil e do nativismo, são bem poucos: quase tudo (armas de madeira, grandes malocas, adornos de pena) desapareceu. Parado- xalmente, o que subsistiu foi a cerâmica – certa- mente feita pelas mulheres – e a partir desse material temos hoje a difícil tarefa de reconstituir algo da vida cotidiana e das crenças dos prováveis ancestrais desses povos, bem como limites terri- toriais e estilos, ambos submetidos a mudanças temporais. As pintoras tinham consciência da importância da sua tarefa: ao criar e pintar seus potes dentro das normas, expressavam os valores coletivos que distinguiam sua tribo das outras. Por isso cuida- vam de guiar os passos das aprendizes. Encontra- mos vários potes nos quais se verifica a presença de várias mãos: uma habilidosa, que traçava um esboço, e outra(s) ainda hesitante(s), que trei- nava(m) a realização dos pingos, dos bastonetes, das linhas paralelas (figura 13). Assim, o estudioso dos tupi-guarani acaba en- trando em contato com o cotidiano, com a educa- ção da mão e da sensibilidade. Entra em sintonia com as mulheres do passado – um gênero muitas vezes esquecido pelos pesquisadores. ■ SUGESTÕES PARA LEITURA BUARQUE, A. ‘A cultura Tupinambá no estado de Rio de Janeiro’, in Tenório (org.), Pré-História da Terra Brasilis, Rio de Janeiro, UFRJ, 1999. ETCHEVARNE, C. ‘Acerca das primeiras manifestações ceramistas na Bahia’, in Cerâmica popular (Instituto Mauá - Secretaria de Trabalho e Ação Social Governo do Estado da Bahia), p.28, 1994. LA SALVIA, F. & BROCHADO, J.J. Cerâmica Guarani. Porto Alegre, Posanatao, 1989. PROUS, A. Arqueologia Brasileira. Brasília, Editora da UnB, 2003. SCATAMACCHIA, M-C. Arqueologia (catálogo da Mostra do Redescobrimento), São Paulo, 2000. Figura 12. Associação dos motivos da ‘cruz guarani’ e da cobra em uma urna (A) e no fundo de uma caguâba (B) (Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul, em Taquara) Figura 13. Vasilha para treinamento, onde três pessoas trabalharam na decoração da borda (sítio arqueológico de Vila Flor, IPHAN – Rio Grande do Norte, em Natal) FO TO S A . P R O U S A B