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Introdução a Psicanálise Aula 6

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INTRODUÇÃO À PSICANÁLISE 
AULA 6 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Profª Giseli Cipriano Rodacoski 
 
 
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CONVERSA INICIAL 
Olá! Anteriormente, falamos sobre algumas das definições de psicanálise, 
as regras fundamentais do método psicanalítico, a concepção de aparelho 
psíquico e as linhas de progresso em terapia psicanalítica, considerando a 
possibilidade de os pacientes terem autonomia ou fragilidade emocional. A partir 
de então, podemos pensar no limite da psicanálise como método clássico e 
entender algumas de suas interfaces com outros métodos terapêuticos e com as 
linhas assumidas por psicanalistas pós-freudianos. 
Na aula de hoje, vamos analisar alguns exemplos práticos, com situações 
da vida cotidiana e relacionar com a teoria e o método psicanalítico com o 
objetivo de diferenciar e definir limites da psicanálise, ou seja, saber o que 
caracteriza e o que descaracteriza o método psicanalítico e quais são as 
premissas fundamentais da psicanálise. 
TEMA 1 – A EXPERIÊNCIA DO DESAMPARO 
Costumamos perguntar aos outros: com o que você trabalha? Um 
psicanalista poderia responder, entre outras coisas, que trabalha com a questão 
do desamparo das pessoas. São muitos os exemplos que podemos utilizar aqui 
para ilustrar o mal-estar decorrente da vivência, sensação ou do medo do 
desamparo. 
Quando as pessoas se percebem vulneráveis, impotentes diante de uma 
situação que não conseguem controlar, geralmente, se referem a esse mal-estar 
(sensação de desamparo) como ansiedade ou angústia. Há um medo na pessoa 
de ser tão insignificante a ponto de ser descartada, desnecessária e indesejada. 
Situações como essa se apresentam na vida cotidiana em diferentes 
intensidades, tais como: 
• tenho medo de ser traído(a), abandonado(a); 
• as pessoas com quem convivo não são de confiança – na verdade, me 
sinto sozinho(a); 
• posso perder o emprego, pois sinto que não tenho valor nessa empresa; 
• não conseguirei ser aprovado(a) nesse exame; 
• eles não lembraram de me chamar, não sentiram a minha falta; 
• parece que o mundo está indo e eu estou ficando para trás; e 
 
 
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• minha vida acabou, não tenho (ou não sou) mais nada. 
A sensação relatada pelas pessoas é decorrente da experiência de 
insignificância, de não ser capaz, de não ser útil, de não ser preferido ou 
suficientemente amado. 
Para evitar essa sensação de mal-estar, o nosso aparelho psíquico reage 
de forma adaptativa, para manter a sua integridade e recuperar a homeostase – 
dito de outra maneira, são reações psíquicas saudáveis para a sobrevivência 
psíquica e serão mais bem estudadas em temas como constituição do sujeito e 
em mecanismos de defesa. 
No entanto, considerando as sequências de coisas que se sucedem (as 
vicissitudes) ao longo do desenvolvimento, as reações psíquicas podem levar a 
uma estruturação mais saudável ou menos saudável do sujeito, por exemplo, 
uma psicose. 
Todos temos experiência de desamparo, por isso costumamos dizer que 
as personalidades neuróticas são as mais típicas, ou seja, neurotípicas. São 
aquelas personalidades que sofrem a questão do desamparo, se percebem 
vulneráveis, sabem de seus limites, inquietam-se pelas suas inseguranças e 
buscam constantemente a minimização de um mal-estar. Dito de outra maneira, 
anseiam por recuperar aquela sensação deliciosa de amparo. 
 
Crédito: Bowen Clausen Photography/Shutterstock. 
Mas em que momento de vida o amparo foi percebido pelo ser humano 
como algo importante, necessário e desejado? Ao observar os bebês recém-
 
 
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nascidos, podemos constatar que eles só sobrevivem porque são amparados 
por alguém, mas também podemos observar que eles, os bebês, não têm a 
menor noção dessa dependência. 
Ou seja, eles não percebem nada no mundo além do seu próprio corpo e 
das suas próprias sensações. Ainda que os bebês se alimentem no seio materno 
ou sejam segurados no colo por um adulto, que tenham todas as suas 
necessidades atendidas por um outro ser humano, eles não são gratos por isso. 
Pelo contrário, eles consideram que são autossuficientes e nem percebem que 
existe um mundo inteiro além do seu próprio corpo. 
Então, vamos recuperar aquela pergunta: em que momento de vida o 
amparo foi percebido pelo ser humano como algo importante, necessário e 
desejado? 
Com base na teoria psicanalítica, apenas quando o bebê começa a 
perceber que existe um mundo externo (além do seu próprio mundo interno) é 
que essa sensação de desamparo se instala. Há uma desilusão com relação à 
autossuficiência e com o outro, que não é capaz de lhe garantir a condição de 
ausência de tensões. O princípio da realidade se impõe ao princípio do prazer. 
 
 
Crédito: anythings/Shutterstock. 
 
 
 
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Crédito: Daniel Cozma/Shutterstock. 
Esse primeiro período, da ilusão de ser tudo, de ser autossuficiente, 
termina justamente quando o bebê percebe que ele não é total, que existe um 
mundo externo, que ele depende do outro e que ele não consegue controlar esse 
outro. 
Percebam que essa experiência é bem semelhante às queixas dos 
adultos nos exemplos dados: sensação de ser vulnerável, impotente diante de 
uma situação que não consegue controlar. 
TEMA 2 – TRAUMA OU CONDIÇÃO HUMANA? 
As primeiras experiências infantis têm um efeito de trauma ao longo da 
vida, mas a experiência com o desamparo não é vivida apenas uma vez durante 
o período infantil. O desamparo é inicialmente percebido naquele período, mas 
acompanha o ser humano durante toda a vida. 
Pode ser que você já tenha ouvido a expressão "trauma do nascimento". 
Mas que trauma é esse? Podemos considerar o quanto de desprazer está 
envolvido no processo de sair do útero materno, ser exposto à luz, ter oxigênio 
expandindo os pulmões e toda a estranheza da estimulação tátil-cinestésica no 
corpinho do bebê recém-nascido. 
Lacan, em 1949, escreveu sobre o processo que se dá entre a imaturidade 
biológica ao nascimento até a constituição do psiquismo. Esse tema é extenso e 
 
 
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requer dedicação exclusiva para abordagem detalhada no estudo sobre a 
constituição do sujeito. 
Na teoria sobre o Estádio do Espelho (Lacan, 1949; Lacan 1953-1954), 
podemos compreender a concepção lacaniana sobre a metamorfose no mundo 
interno do bebê desde a angústia do despedaçamento ao nascer até a 
integração de sua imagem corporal. E em psicanálise não se está dando ênfase 
à concepção cognitiva de se reconhecer diante de um espelho, e sim de saber 
quem se é diante do outro. 
São muitas as experiências de desamparo que se dão em meio a 
situações de amparo, de modo que, ao longo da vida, a relação é de 
ambivalência, tanto em relação às emoções, amor e ódio, quanto nas relações 
com o outro: autonomia e dependência. 
A condição humana é de vulnerabilidade, considerando as questões de 
finitude e fragilidade, basta ser humano para ser vulnerável. Sanches (2018) 
parte da premissa de que as questões que nos tornam vulneráveis são comuns 
a todos, no entanto, quando há exposição permanente a riscos, em relação aos 
quais a pessoa não pode se defender, ela passa a ser não apenas vulnerável, 
mas também vulnerada. 
Isso é o que acontece com alguns grupos afetados diretamente por 
circunstâncias desfavoráveis, tais como: pobreza, falta de educação, 
dificuldades geográficas, doenças crônicas, violência e outros infortúnios que os 
tornam ainda mais vulneráveis, sendo esse um tema atual de bastante relevância 
social que tem sido muito publicado em bioética: 
Identificar o processo de vulneração que transforma vulneráveis em 
“vulnerados” é o primeiro passo para impedir que passem da condição 
de ser vulnerável para a situação de estar vulnerável, o que exige 
compreensão ampla sobre instâncias e fatores como Estado, 
comunidade, sistemas econômicos e sociais, cultura e a própria 
moralidade vigente no contexto em que se expressa a vulnerabilidade. 
Todos esses fatores podem colocaro indivíduo ou o grupo em situação 
de vulnerabilidade concreta. Portanto, do ponto de vista científico, a 
compreensão sobre o processo de vulneração exige esforço 
interdisciplinar entre diversas áreas, incluindo as ciências da saúde, 
sociais e humanas. (Sanches et al., 2018, p. 40) 
O psicanalista precisa ter habilidade de análise social para compreender 
os determinantes do desamparo, se são estruturantes do psiquismo do sujeito 
ou se são fatores de risco que não levam a emancipação do sujeito, e sim à sua 
aniquilação. 
 
 
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Falando especificamente da vulnerabilidade e do desamparo que na 
constituição do sujeito é estruturante, podemos estudar em Winnicott com mais 
profundidade a relevância do cuidado materno primário, especialmente no 
entendimento do conceito de "mãe suficientemente boa" caracterizada pela 
função da pessoa que oferece oportunamente ao bebê o que ele precisa, mas 
também falha e se corrige continuamente: "comunicação do amor, assentada 
pelo fato de haver ali um ser humano que se preocupa" (Winnicott, 2006, p. 87). 
Não se trata de uma mãe boazinha ao bebê afastando-se de si, mas, sim, 
de se apresentar como mãe sem deixar de ser mulher, na medida em que a mãe 
também é vulnerável, tem falhas, é filha, tem desamparos, emoções 
ambivalentes de amor e ódio, mas que se preocupa e se volta ao bebê tomando-
o como parte do mundo dela e, desta forma, emprestando a esse pequeno ser 
um mundo externo que ele ainda não tem, até que possa ter. 
Por outro lado, falando da vulnerabilidade social como conceito estudado 
pela bioética (Sanches et al., 2018), a díade mãe-bebê pode não ter a proteção 
social necessária para viver esse drama normal da maternagem, que, por si só, 
já é um fator de estresse para o psiquismo do ser humano. Estas são questões 
importantes a considerar quando pensamos nos limites e interfaces da 
psicanálise. 
TEMA 3 – DESAMPARO ESTRUTURAL E SOCIAL 
Se o psicanalista trabalha com a análise do inconsciente, de que maneira 
poderia se ocupar do desamparo e da vulnerabilidade social, da negligência do 
poder público e de outras questões coletivas? 
Quando pensamos que as experiências significativas infantis tendem a 
ser introjetadas e repetidas ao longo da vida, podemos supor que entendam que 
a precariedade do cuidado é uma condição existencial, ou seja, que é assim 
mesmo. É possível que uma pessoa repita no social aquele padrão que viveu na 
sua experiência singular com as figuras parentais e, desta forma, não vai 
estranhar a violência social quando já está identificada com o lugar de ser 
violentada. Muitas vezes, naturalizando ou ainda romantizando essa condição: 
"meu pai me batia e eu não morri, isso só me deixou mais forte". 
É importante pensar a questão do desamparo sob todos os ângulos. O 
desamparo estrutural, vital, processual na constituição do sujeito; e o desamparo 
 
 
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social que é repetido em diversos âmbitos ao longo da vida, muitas vezes como 
forma de elaboração do desamparo estrutural malsucedido. 
Podemos observar exemplos de desamparo social somados a 
desamparos estruturais em que o que resulta como sintoma é a não capacidade 
de escuta, a massificação, negação da subjetividade e da singularidade que 
levam frequentemente à marginalização e segregação social. 
O artigo "Branco sobre o branco: psicanálise, educação especial inclusão 
escolar" (Vasques, 2018) relata um exemplo de situação do cotidiano escolar em 
que a perspectiva psicanalítica ampliou as possibilidades em que antes havia 
limites na ação pedagógica para inclusão e escolarização de crianças com 
autismo e psicose. 
A psicanálise há muito tempo abandonou a busca pela cura, pois essa 
busca atendia muito mais ao desejo de satisfação do analista do que beneficiava 
os pacientes. Tampouco a psicanálise se ocupa de facilitar ou obter 
ajustamentos, adaptações sociais e sensação de bem-estar. 
A essência da psicanálise é ouvir, dar voz, tratar o outro como um sujeito 
de direitos. Vamos a um exemplo prático: 
Um garoto de 8 anos estava em consulta médica ambulatorial no hospital 
pediátrico, com sua mãe, pois iria ser internado nos próximos dias para 
submeter-se a uma cirurgia no aparelho digestivo. 
Muito inteligente, atento, educado, adequado e receptivo, o garoto 
cumprimentou o médico, sentou-se no consultório ao lado de sua mãe e 
participou passivamente da consulta onde foi tratado sobre seu caso, mas 
apenas sua mãe e o médico falaram. A ele foram direcionadas poucas perguntas 
em que a resposta era apenas sim ou não. Você está com frio, quer que desligue 
o ar-condicionado? E mesmo quando lhe explicavam alguma coisa ao final o 
médico perguntava: ficou claro, você entendeu? E ele dizia que sim, pois de fato 
havia entendido, apesar de ter outras perguntas que não eram o tema do 
momento. 
Ao final do atendimento médico, como parte do protocolo, o garoto foi 
encaminhado ao psicoterapeuta que logo depois das apresentações pessoais e 
acolhimento na sala de atendimento, lhe fez as seguintes perguntas: 
• Psic.: O que você veio fazer no hospital? 
• Paciente: Vou fazer uma cirurgia. 
 
 
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• Psic.: E como será? 
• Paciente: Não sei, o médico explicou agora, mas eu estava com a cabeça 
lotada e não consegui guardar. 
Percebam que a atenção hospitalar por muito tempo foi feita dessa 
maneira Iatrogênica, por ser biomédico, ou seja, com foco no corpo biológico 
com comunicações racionais sobre as condutas. 
Atualmente, a atenção à saúde mental tem sido cada vez mais 
considerada e indispensável e tanto nos hospitais, nas escolas, em empresas e 
em outras instituições, a capacidade de escuta da subjetividade tem sido 
garantida. 
Quando pensamos que as pessoas querem saber de coisas, nós 
oferecemos um monte de informações a elas. No exemplo anterior, fica claro que 
em momentos de medo, ansiedade e apreensão, como no caso de um período 
pré-cirurgia, é importante dar vazão ao que a pessoa pensa sobre as coisas, 
para então o médico validar o que está de acordo com o processo e/ou 
apresentar fatos novos para preencher as lacunas que fossem demandas do 
sujeito desejante. 
A formação e atuação interprofissional tem potência para transformar as 
habilidades de comunicação dos profissionais por meio da troca de saberes e 
práticas, e a psicanálise tem muito a contribuir para melhorar a qualidade da 
prestação de serviços especialmente na área jurídica, da saúde e educação. 
Desta maneira, o psicanalista pode contribuir para induzir a formação de 
laços sociais, de ampliar a capacidade de escuta e consideração da 
subjetividade em todos os contextos de atuação. 
TEMA 4 – COERÊNCIA DO ANALISTA 
A preocupação em resolver o problema é uma ansiedade perigosa que 
pode levar o terapeuta a atuações racionais, diretivas e relacionadas com outros 
métodos que não os psicanalíticos. 
Deixa de ser psicanálise quando não se respeita a associação livre, 
quando o "psicanalista" assume o comando e faz orientações, direciona o 
diálogo, dá conselhos e julga condutas, quando dá sentido e significado à 
experiência do paciente sem que tenha sido um processo de elaboração do 
próprio paciente. 
 
 
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Mas por que o "psicanalista" faz isso? Sem dúvida, o faz por um processo 
insuficiente de análise pessoal. Tem muitas coisas que na vida a gente sabe que 
não deve fazer, mas faz mesmo assim. Isso mostra o quanto o saber teórico não 
é suficiente para determinar uma conduta. 
Isso não quer dizer que as terapias diretivas estão erradas, pelo contrário. 
As terapias diretivas são necessárias e relevantes, no entanto, não são 
psicanálise. Os efeitos da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) têm sido 
publicados como evidências científicas e devemos reconhecer com um método 
terapêutico válido e eficaz, mas é diferente da psicanálise. 
Quando o terapeuta se diz psicanalista, é preciso ser fiel ao método 
psicanalítico. Assim como Freud, que era médico neurologistae psicanalista, 
sentiu necessidade de deixar de se apresentar como médico neurologista para 
assumir sua identidade de psicanalista, pois o método de intervenção da 
neurologia e da psicanálise são distintos, assim como o são os métodos da 
psicanálise e das demais psicoterapias. 
• Regras fundamentais da psicanálise: 
o Associação Livre (para o paciente); e 
o Atenção Flutuante (para o psicanalista). 
• Conceitos fundamentais da psicanálise: 
o Inconsciente; 
o Repetição; 
o Transferência; e 
o Pulsão. 
• Formação do Analista: 
o Estudos teóricos; 
o Análise pessoal; e 
o Supervisão da prática clínica. 
TEMA 5 – PSICANÁLISE SELVAGEM 
O principal instrumento de trabalho do psicanalista é o seu próprio 
aparelho psíquico, por isso é indispensável o processo de análise pessoal para 
que o analista não pratique uma psicanálise selvagem. 
Na tradução pela editora Imago no Brasil, a expressão ficou "Psicanálise 
Silvestre", no entanto, não atende ao que se espera expressar no texto original 
 
 
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de Freud, conforme pode ser compreendido pela leitura do artigo na íntegra 
(Freud, 1910/1986, p. 205-213), em que Freud apresenta exemplos de situações 
clínicas em que o psicanalista faz intervenções dizendo coisas à paciente com 
base em sua própria motivação e necessidade e, com isso, comete erros 
técnicos. 
Em um dos exemplos, Freud relata o caso de um jovem médico que disse 
à paciente que a causa da ansiedade era a falta de satisfação sexual e lhe 
recomendou três maneiras de tratamento: "ela devia ou voltar para o marido, ou 
ter um amante, ou obter satisfação consigo mesma". Freud considera que, no 
caso citado, o doutor compreendeu mal as teorias psicanalíticas e ainda 
demonstrou que o sentido que ele tem de "vida sexual" é popular, significa 
necessidade de coito e produção de orgasmo (Freud, 1910/1986, p. 207). 
Freud também adverte ao fato de alguns psicanalistas entenderem que é 
preciso explicar coisas ao paciente: 
É ideia há muito superada, e que se funda em aparências superficiais, 
a de que o paciente sofre de uma espécie de ignorância, e que se 
alguém consegue remover esta ignorância dando a ele a informação 
(acerca da conexão causal de sua doença com sua vida, acerca de 
suas experiências de meninice, e assim por diante) ele deve recuperar-
se. (Freud, 1910/1986, p. 211) 
Apenas no trecho citado anteriormente já podemos identificar algo 
bastante recorrente atualmente e que comprometem o método psicanalítico. 
Alguns terapeutas se sentem tentados a dar palestras ao paciente durante a 
sessão. Caracterizando o fato de situações em que mais o terapeuta fala do que 
o paciente. E o fazem apresentando relações de causa e efeito: “isso acontece 
hoje por causa daquela situação na infância”. 
Situações de certezas, explicações racionais, curas por meio de uma ou 
outra devoção distanciam a terapia do método psicanalítico, pois demonstram a 
intencionalidade de livrar o sujeito do mal-estar, oferecendo algo que complete 
a sua falta, enquanto a intencionalidade da psicanálise é justamente ser capaz 
de suportar a falta. 
A função adaptativa do ser humano leva a buscar algo que complete a 
falta, e essa tentativa de cura pode levar o ser humano a idealizar, se identificar 
com o que considera ideal e entregar-se a uma relação que seja complementar, 
protetiva e poderosa, para compensar a fragilidade do eu. Lacan criou a 
expressão "Nome do Pai" para se referir ao significante ordenador de outros 
significantes em cadeia, desempenha o papel da Lei. 
 
 
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O Nome do pai é um operador psíquico do qual o neurótico pôde se servir 
em sua constituição (Lustoza, 2018, p. 332). Como função estruturante, faz parte 
da constituição do sujeito, no entanto, quando patológico, como sintoma, impõe 
limites à vida do sujeito que se sente preso a uma relação de dependência. 
Idealizar algo, uma história ou alguém, e se identificar à imagem e 
semelhança deste, é muito gostoso. Nos dá uma filiação, um aconchego, uma 
sensação de segurança por ser protegido por algo ou alguém poderoso que não 
tem defeitos nem falhas e, por isso, nunca irá nos faltar. 
Se considerarmos a função de acolhimento, de holding, alinhado ao que 
entendemos por ética do cuidado, é muito bom ter um protetor assim. A máxima 
dessa experiência é entregar teu destino à Deus. É algo reconfortante, 
acolhedor, apaziguador, que nos abranda a dor de uma ferida aberta que dói 
cada vez que nos percebemos incapazes, indefesos, pequenos. Deus é um pai 
que não abandona. 
Outra situação a ser considerada é que nem todas as pessoas têm a 
mesma relação com Deus, com as coisas e pessoas das quais dependem ou 
idealizam. É um erro técnico o psicanalista levar para a sessão que Deus é amor, 
porque aquele paciente pode ter outra história com Deus. Não nos cabe sair em 
defesa de Deus, ou dos pais, mas, sim, analisar o que levou àquelas 
representações na história de vida do paciente. De modo que não faz nenhum 
sentido dar conselhos e nem aulas sobre o que consideramos ser "o mais certo". 
A psicanálise se ocupará de analisar a construção de significantes. O 
curso que você está fazendo, para o qual se matriculou, é um significante. Que 
lugar tem a psicanálise (como significante) na sua história de vida? 
Nossa vida é sempre uma busca, não há mal nenhum em ser assim. Há 
risco! Podemos eleger como cura algo ou alguém nocivo. Mas o que importa 
saber aqui, na condição de futuros psicanalistas, é que tudo isso é apenas a 
parte de nadar contra a maré, ou seja, a luta por encontrar algum modo de vida 
que nos afaste da sensação de desamparo. São defesas, ou nosso modo de 
sobreviver psiquicamente. 
Sugerimos aqui a observação do discurso das pessoas ao relatarem 
sobre as suas motivações para fortalecer a relação com Deus. Geralmente, são 
narcísicas: eu quero me sentir bem, eu quero proteção, eu quero a graça de ... 
E em seguindo esse Ser Ideal, ele nos manda amar o próximo. Ou seja, você 
 
 
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pede que eu te ame, e eu digo que você vai alcançar essa sensação amando o 
próximo. 
Isso nos remete ao que Freud escreveu no texto "Sobre o Narcisismo: 
Uma Introdução" (Freud, 1914/1986, p. 101): "Um egoísmo forte constitui uma 
proteção contra o adoecer, mas, num último recurso, devemos começar a amar 
a fim de não adoecermos, e estamos destinados a cair doentes se, em 
consequência da frustração, formos incapazes de amar". 
Há de se fazer uma leitura crítica e não dogmática da relação entre 
psicanálise e religiões, pois podemos cometer o erro de identificar apenas 
afinidades ou apenas diversidades quando o que há são pontos convergentes e 
outros divergentes. 
Também é preciso contextualizar, se estamos falando do Antigo ou do 
Novo Testamento e se estamos falando da psicanálise de 1900 ou da psicanálise 
contemporânea. Isso porque o Deus do Novo Testamento é muito mais 
acolhedor do que era no Antigo Testamento, e a psicanálise de 1900 se 
destinava apenas a pacientes neuróticos, ao passo que atualmente temos 
psicanalistas atuando com acolhimento em processos de luto, em prevenção do 
suicídio e em atendimentos de casos de perversão e psicoses. 
O que não mudou na psicanálise foi a direção de cura. Tanto quanto 
possível, o sujeito será confrontado com sua condição e deverá assumir sua 
autonomia e emancipação. Ainda que em algumas situações sejam amparadas 
a sua desorganização: Função de holding, na clínica em Winnicott. Função 
continente do analista, na clínica em Bion. 
Mesmo respeitados e acolhidos, como processo psicoterapêutico, o 
desamparo e a dependência não devem ser reforçados. Em algumas situações, 
os pacientes podem falar coisas como: "Se não fosse pelo senhor, doutor, eu 
não sei o que seria de mim de mim. O senhor é tudo para mim"; "Vou entregar 
minha vida a Deus e esperar, pois o meu destino pertence a ele e eu não posso 
nada.". 
Ou pelo narcisismo do analista que poderia fazê-lo atuar nosentido de 
estimular ser idealizado e elogiado pelo paciente, ou pela devoção a um Deus-
Pai que tudo provê aos seus filhos, o psicanalista ao reforçar as afirmações do 
paciente, poderia obter como resultado a diminuição da ansiedade do paciente, 
que sairia feliz do consultório. Mas isso também não é psicanálise! É um erro 
 
 
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técnico do psicanalista a sugestão de defesas, apesar de ser este um método de 
outras psicoterapias. 
A relação entre psicanálise e as religiões só é convergente até um ponto, 
pois se para a religião a cura está na entrega e fidelidade, para a psicanálise a 
cura está em suportar o desamparo para então assumir-se. Identificar-se com 
um Deus superpoderoso é confortável, necessário, estruturante, mas mantém a 
pessoa na zona de conforto de ter a segurança do apego e da proteção. Ou seja, 
faz parte do processo, mas fica no meio do caminho. 
A proposta da psicanálise é ir além. Não é possível curar a angústia, pois 
ela é a própria pulsão que não nos permite a zona de conforto da proteção e nos 
impele ao movimento de busca. Um dito popular sobre esse movimento pulsional 
é: “É na crise que se cresce". 
A religião tem uma função social e cultural de dar sentido à existência e é 
necessária e saudável para a saúde mental das pessoas. No seu sentido mais 
extenso, religião tem a função de religar, de unir, de vincular. 
Podemos compreender que todos estamos vinculados a uma história, 
fazemos parte de um percurso, somos seres sociais, constituímos uma teia de 
acontecimentos e essa condição nos coloca em uma relação de irmandade. 
Temos ancestrais e descendentes. Somos parte disso e por esse ponto de vista 
podemos nos sentir pertencendo a algo maior, que nos deu origem, que nos 
determina e, neste contexto, também somos determinantes do futuro. Essa 
reflexão é inclusiva porque faz sentido para todas as religiões. Quando há 
segregação entre as religiões, o sentido de religar já fica comprometido. 
A todo momento, a ânsia pelo prazer busca voltar ao primordial, ao que é 
igual, comum, ao que não tem conflito, mas tanto na vida cotidiana quanto nas 
religiões e na psicanálise o conflito existe, pois ele constitui a existência humana. 
A psicanálise como método não almeja a homeostase, mas, sim, a 
compreensão do que dói, do que amarra, do que leva à compulsão pela 
repetição, do que compromete, vai analisar o significante, monitorar os 
mecanismos de defesa, enfrentar o medo de encarar o desamparo, pois 
apostamos que o medo impede a travessia e a emancipação se dá apenas pela 
travessia. 
 
 
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NA PRÁTICA 
Para evitar o desprazer decorrente da sensação do desamparo na vida 
diária, costumamos romantizar as experiências difíceis. Ao final de um ano difícil, 
costumamos ver “memes” relacionando o sobrevivente de um ano difícil e 
pandêmico a um herói. 
Ao passar pela experiência de gestação, parto e puerpério, a mulher com 
o filho nos braços que só lhe demanda sem nada reconhecer costuma orgulhar-
se de ser mãe com a clássica frase: "ser mãe é padecer no paraíso". 
Essa romantização ajuda a simbolizar a dura realidade de ter que dar sem 
ter. Realidade esta que pode ser assistida no filme "A Filha Perdida", 
protagonizado pela atriz Olivia Colman, no papel de Leda, mãe de 2 filhas. O 
filme retrata os aspectos agressivos da maternidade habitualmente inibidos por 
ação da repressão cultural, que, no lugar, enaltece a mãe e a maternidade a um 
lugar mágico, romântico e sublime. 
Como estamos em um momento introdutório aos temas psicanalíticos, 
sugerimos uma interpretação do filme sem os termos técnicos da área, apenas 
com a análise crítica do papel social e ambivalente da maternidade na relação 
com os filhos. Disponível em: 
<https://www.youtube.com/watch?v=1hMTU3senks>. Acesso em: 21 jan. 2021. 
Neste exemplo prático, podemos relacionar vários conteúdos desta aula, 
especialmente a questão do desamparo, tanto vivida pelas crianças quanto pelas 
mães. Com isso, podemos compreender que o impulso por sair e não se haver 
com a situação que leva à experiência do desamparo é uma tensão que mobiliza 
a conduta e que só não a ativa por ação repressora do superego e medição do 
ego: culpa, reparação. 
FINALIZANDO 
A psicanálise tem uma intencionalidade e um método. Para ser um 
psicanalista, este método, que não se dissocia da teoria, precisa ser coerente e, 
portanto, é fundamental que se conheça os fundamentos da técnica e os discuta 
criticamente, pois eles só podem ser compreendidos se forem considerados em 
sua construção história. 
Nesta aula, foram apresentadas reflexões críticas sobre desamparo e 
idealizações, como reações psíquicas ao desamparo, e o papel do analista que, 
 
 
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se fiel ao método psicanalítico, faz com o paciente uma travessia que passa pelo 
medo de enfrentar o desamparo até que, passada a zona do desconhecido, 
alcance uma nova condição que o torne capaz de assumir-se mesmo com suas 
falhas. 
E se não, ficará no meio do caminho, reforçando defesas e resistências, 
buscando adaptações para diminuir ansiedade e recuperar o bem-estar, mas, 
neste caso, não exercerá o método psicanalítico. 
E, ainda, algo iatrogênico, ou seja, que na tentativa de fazer o bem pode 
provocar o mal. É o exercício do que Freud chamou de Psicanálise Selvagem, 
que acontece quando o analista não fez seu próprio processo de análise pessoal. 
E a angústia do paciente o angustia, e, em relação transferencial, o analista, em 
total erro técnico, é agressivo com o paciente por meio de intervenções 
preconceituosas, irônicas ou sádicas, que podem causar extremo prejuízo à 
saúde mental das pessoas que nele confiaram. 
A psicanálise tem regras fundamentais, minimamente: associação livre e 
atenção flutuante e, apesar de não ter regulamentação legal no Brasil para o 
exercício da ocupação do analista, há uma tradição ética em respeitar o tripé 
para o processo de formação do analista, sendo indispensável que se tenha 
aprofundamento nos estudos de textos clássicos e contemporâneos, que se 
invista em análise pessoa, pois o aparelho psíquico do analista é o seu principal 
instrumento de trabalho, e que, ao iniciar a prática clínica, submeta seus 
atendimentos à supervisão com um psicanalista mais experiente. 
 
 
 
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