Prévia do material em texto
PARTE II Sistemas Sensorial e Motor430 Córtex Somatossensorial Assim como para todos os demais sistemas sensoriais, os níveis mais comple- xos do processamento somatossensorial ocorrem no córtex cerebral. A maior parte do córtex relacionada ao sistema somatossensorial está localizada no lobo parietal (Figura 12.17). A área de Brodmann 3b, reconhecida como o cór- tex somatossensorial primário (S1), é fácil de ser localizada em seres huma- nos, uma vez que está situada no giro pós-central (logo atrás do sulco central). (Ver também Figura 7.28, que ilustra as áreas de Brodmann.) Outras áreas cor- ticais que também processam informação somatossensorial estão ao lado de S1. Estas incluem as áreas 3a, 1 e 2 no giro pós-central, e as áreas 5 e 7 no córtex parietal posterior adjacente (ver Figura 12.17). A área 3b é o córtex somatossensorial primário porque (1) recebe um grande número de aferências do núcleo VP do tálamo; (2) seus neurônios são muito res- ponsivos aos estímulos somatossensoriais (mas não a outros estímulos senso- riais); (3) lesões nessa área prejudicam a sensação somática; e (4) quando essa área recebe estímulos elétricos resulta em experiências somatossensoriais. A área 3a também recebe uma grande aferência do tálamo, mas essa região está, entretanto, mais relacionada às informações sobre a posição do corpo do que sobre o tato. As áreas 1 e 2 recebem densa inervação da área 3b. A projeção da área 3b para a área 1 envia principalmente informação sobre textura, ao passo que a 2 1 2 1 Tálamo (núcleo VP)Núcleo sensorial principal do nervo trigêmeo Axônios mecanorreceptores de grande calibre da face Nervo trigêmeo (nervo craniano V) Córtex somatossensorial primário (S1) FIGURA 12.16 A via do nervo trigêmeo. Córtex Somatossensorial Córtex Somatossensorial processamento somatossensorial córtex cerebral córtex cerebral lobo parietal área de Brodmann 3b córtex somatossensorial primário (S1) giro pós-central Outras áreas informação somatossensorial lado de S1 3a, 1 e 2 no giro pós-central 5 e 7 no córtex parietal posterior posterior adjacente área 3b órtex somatossensorial primário núcleo VP do tálamo núcleo VP grande aferência do tálamo área 3a posição do corpo tato áreas 1 e 2 inervação da área 3b CAPÍTULO 12 O Sistema Somatossensorial 431 projeção para a área 2 enfatiza tamanho e forma. Pequenas lesões restritas às áreas 1 ou 2 produzem deficiências esperadas na discriminação da textura, do tamanho e da forma. O córtex somatossensorial, assim como outras áreas do neocórtex, é uma estrutura organizada em camadas. Assim como para os córtices auditivo e visual, as aferências talâmicas para S1 terminam principalmente na camada IV. Os neu- rônios da camada IV projetam-se, por sua vez, para as células de outras camadas. Outra importante similaridade com as outras regiões corticais é que os neurônios de S1 que possuem aferências e respostas similares ficam dispostos verticalmente em colunas que se estendem perpendiculares às camadas corticais (Figura 12.18). O conceito de coluna vertical, tão brilhantemente elaborado por Hubel e Wiesel para o córtex visual, foi, de fato, descrito pela primeira vez para o córtex soma- tossensorial pelo cientista Vernon Mountcastle, da Universidade John Hopkins. Somatotopia Cortical. A estimulação elétrica da superfície de S1 pode causar sensações somáticas localizadas em uma parte específica do corpo. A movimen- tação de forma sistemática do estimulador ao longo de S1 resultará em sensa- ções que se deslocam ao longo do corpo. O neurocirurgião americano-canadense Wilder Penfield, da Universidade McGill, utilizou esse método de estimulação, entre as décadas de 1930 a 1950, para mapear o córtex de pacientes durante neu- rocirurgias. (É interessante observar que essas operações cerebrais podem ser rea- lizadas em pacientes acordados com anestesia local apenas no escalpo, pois os tecidos neurais em si não possuem receptores para sensações somáticas.) Outra maneira de mapear o córtex somatossensorial é registrar a atividade de um único neurônio e determinar o local de seu campo receptivo somatossensorial no corpo. Os campos receptivos dos neurônios de S1 produzem um mapa ordenado do corpo no córtex. O mapeamento das sensações da superfície corporal em uma área do encéfalo é chamado de somatotopia. Vimos anteriormente que o encéfalo possui mapas de outras superfícies sensoriais, como a retina sensível à luz (retino- topia) e a cóclea sensível à frequên cia sonora (tonotopia). Neurônios de adaptação rápida Neurônios de adaptação lenta Tálamo Núcleos da coluna dorsal D1 D1 D2 D2 D3 D3 FIGURA 12.18 Organização colunar da área 3b de S1. Cada dígito (D1-D3) está represen- tado em uma área adjacente do córtex. Na área da representação de cada dígi- to, existem colunas alternadas de célu- las com respostas sensoriais de adap- tação rápida (em verde) e de adaptação lenta (em vermelho). (Fonte: adaptada de Kaas et al., 1981, Fig. 8.) 3a 3b 1 2 7 5 Sulco central Córtex somatossensorial (áreas 1, 2, 3a, 3b) Córtex parietal superior (áreas 5, 7) Giro pós-central Sulco central FIGURA 12.17 Áreas somatossensoriais do córtex. Todas as áreas ilustra- das localizam-se no lobo parie- tal. A ilustração inferior mostra que o giro pós-central contém S1, área 3b. áreas 1 ou 2 Pequenas lesões discriminação da textura tamanho e da forma córtex somatossensorial neocórtex, córtices auditivo auditivo e visual aferências talâmicas talâmicas para S1 camada IV neurônios da camada IV neurônios de S1 coluna vertical córtex visual Somatotopia Cortical escalpo, mapear o córtex córtex somatossensorial atividade de um único neurônio determinar o local de seu campo receptivo receptivo somatossensorial mapeamento das sensações da superfície corporal somatotopia área do encéfalo ncéfalo PARTE II Sistemas Sensorial e Motor432 Os mapas somatotópicos gerados por métodos de estimulação e de registro são similares. Os mapas lembram um corpo, com suas pernas e pés no topo do giro pós- -central e sua cabeça no lado oposto, na extremidade inferior do giro (Figura 12.19). Um mapa somatotópico é chamado, algumas vezes, de homúnculo (para diminutivo de “homem” em latim; o pequeno homem no cérebro). Várias coisas são óbvias sobre o mapa somatotópico em S1. Primeiro, o mapa não é contínuo, mas fragmentado. Observe, na Figura 12.19, que a representação da mão separa as representações da face e da cabeça. Um aspecto interessante é que os mapas originais de Penfield indicavam que os genitais masculinos estavam mapeados em partes mais ocultas e afastadas de S1, em algum ponto abaixo da representação dos artelhos. Contudo, um estudo recente com o uso de ressonância magnética funcional demonstrou que o pênis está, na verdade, representado em uma área nada surpreen- dente no mapa somatotópico: em uma área entre a representação do abdome e a das pernas. Infelizmente, os pesquisadores contemporâneos, ou mesmo Penfield, não investiram tempo para mapear o mapa somatotópico do corpo de mulher e inves- tigar seus aspectos peculiares (o que alguns teriam chamado de “hermunculus”).* Outro aspecto óbvio do mapa somatotópico é que este não está na mesma escala do corpo humano. Em vez disso, o mapa parece uma caricatura (Figura 12.20): a boca, a língua e os dedos são absurdamente grandes, ao passo que o tronco, os braços e as pernas são pequenos. O tamanho relativo da área do córtex que pro- cessa cada parte do corpo está correlacionado à densidade de aferências sensoriais recebidas daquela determinada parte. O tamanho do mapa também está relacio- nado à importância da aferência sensorial daquela parte do corpo; a informação *N. de T. O autor fez uma brincadeira com o nome homúnculo, trocando a parte “ho” do prefixo hom (de homem) por “her” (“dela”, em inglês). P erna Q uadril G enitais T ronco P escoço C abeça B raçoC otovelo A ntebraçoM ãoD edos Polegar Olho Nariz Face Lábio superior Lábios Lábio inferior Gengivas Mandíbula Língua Farin ge In tra -a bd om ina l Dentes P é D edos dos pés FIGURA 12.19 Um mapa somatotópico da superfície corporal no córtex somatossensorial primário. Este mapa é uma secção transversal do giro pós-central (mostrado acima). Os neurônios de cada área são mais responsivos àquelas partes do corpo ilustradas junto a eles. (Fonte: adap- tada de Penfield e Rasmussen, 1952, e de Kell et al., 2005, Fig. 3.) giro pós-central mapas somatotópicos homúnculo mapa somatotópico fragmentado é contínuo Penfield mapa somatotópico do corpo de mulher orp Penfield mapa somatotópico densidade de aferências caricatura aferências sensoriais importância CAPÍTULO 12 O Sistema Somatossensorial 433 do seu dedo indicador é mais útil do que a de seu cotovelo. A importância da informação tátil de nossas mãos e dedos é óbvia, mas por que dedicar tanto poder de processamento cortical à boca? As duas prováveis razões devem-se às sensa- ções táteis serem importantes na produção da fala e que seus lábios e língua (sen- sações somáticas, além do paladar) são a última linha de defesa na decisão sobre um alimento, se é nutritivo e delicioso ou se é algo que poderia o sufocar, que- brar seu dente ou arranhar sua faringe. Como veremos a seguir, a importância de uma aferência e o tamanho de sua representação cortical também são reflexos da frequên cia com que essa informação é utilizada. A importância de uma parte do corpo pode variar consideravelmente entre as diferentes espécies. Por exemplo, as grandes vibrissas faciais (bigodes) dos roedo- res recebem uma área enorme em S1 para seu processamento, ao passo que os dígi- tos das patas recebem uma área relativamente pequena (Figura 12.21). De forma notável, a sinalização sensorial de cada folículo de vibrissa segue para um agru- pamento bem definido de neurônios em S1; esses grupos são chamados de barris. O mapa somatotópico das vibrissas dos roedores é facilmente visualizado em secções histológicas de S1; as cinco fileiras de barris corticais coincidem pre- cisamente com as cinco fileiras de vibrissas faciais (Quadro 12.3). Estudos dos “barris corticais” dos ratos e camundongos têm revelado muita informação sobre as funções do córtex sensorial. A somatotopia do córtex cerebral não está limitada a um único mapa. Exa- tamente da mesma forma que o sistema visual se constitui de múltiplos mapas retinotópicos, o sistema somatossensorial possui vários mapas corporais. A Figura 12.22 mostra a somatotopia detalhada de S1 em um macaco-da-noite (Aotus sp.). Compare cuidadosamente os mapas das áreas 3b e 1; eles repre- sentam as mesmas partes do corpo, literalmente em paralelo ao longo de faixas FIGURA 12.20 O homúnculo. Vibrissas Folículos Região de S1 para as vibrissas 2 mm (a) (b) (c) Barris em S1 1 mm FIGURA 12.21 Um mapa somatotópico das vibrissas faciais no córtex cerebral do camundongo. (a) As posições das princiapais vibrissas faciais (pontos). (b) Um mapa somatotópico em S1 no cérebro de camundongo. (c) Os barris corticais de S1. Foram feitas secções histológicas do córtex paralelas à superfície e coradas com a técnica de Nissl. O quadro menor mostra o padrão de disposição dos barris em cinco fileiras; compare com as cinco fileiras de vibrissas na fotografia da parte a. (Fonte: adaptada de Woolsey e Van der Loos, 1970.) cortical à boca informação tátil sensações táteis cortical à boca? produção da fala lábios e língua decisão sobre um alimento importância de uma aferência tamanho de sua representação cortical eflexos da frequência reflexos importância de uma parte do corpo diferentes espécies vibrissas faciais faciais (bigodes área enorme em S1 dígitos das patas área relativamente pequena mapa somatotópico vibrissas dos roedores ratos e camundongos sistema visual múltiplos mapas retinotópicos PARTE II Sistemas Sensorial e Motor434 FIGURA 12.22 Mapas somatotópicos múltiplos. Registros obtidos de áreas 3b e 1 de um macaco-da-noite. (a) Os registros mos- tram que cada área possui o seu próprio mapa somatotópico. (b) Um exame de- talhado da área da mão mostra que os dois mapas são como imagens especu- lares. As regiões sombreadas represen- tam a superfície dorsal das mãos e dos pés; as regiões não sombreadas repre- sentam as superfícies ventrais. (Fonte: adaptada de Kaas et al., 1981.) Área Perna Planta do pé Coxa Tronco Braço Pulso Palma Queixo Lábio inferior Vib. m Vib. c Vibrissa caudal 1 mmLábio superior Dentes Eminência hipotenar Dedos 3b 1 Área 3b 1 (a) (b) Barris Corticais por Thomas Woolsey Em meados dos anos 1960, eu completei um estudo fi- siológico sobre o tato, a audição e a visão no cérebro do camundongo para um projeto de pesquisa na graduação da Universidade de Wisconsin. Em Wisconsin, a histologia desses cérebros era feita de forma rotineira. Após meu pri- meiro ano na faculdade de medicina, eu voltei para olhar as secções histológicas. Havia alguma coisa de peculiar na camada cortical IV, exatamente no local onde eu havia registrado as respostas ao movimento das vibrissas: os corpos celulares estavam distribuídos de maneira desigual. Isso não era algo novo. Vários autores diferentes, em artigos quase esquecidos de 50 anos atrás, mostraram esse pa- drãos de neurônios; mas isso foi descrito antes de registros de atividade elétrica serem possíveis, de modo que ninguém conhecia a função cortical. O córtex é geralmente estudado em secções histológi- cas feitas perpendiculares à superfície cortical. Ocorreu-me que secções paralelas à superfície cerebral, as quais foram realizadas apenas raramente, permitiriam uma visão com- pleta da camada IV. O falecido H. Van der Loos, professor de neuroanatomia, conseguiu-me uma vaga para trabalhar na Johns Hopkins durante meu período eletivo. Eu preparei as amostras de modo que pudesse as posicionar de maneira precisa para as secções (eu conhecia o local onde eu obti- nha geralmente as respostas com a estimulação da face) e fiz secções mais finas que o habitual. Eram quase 10 horas da manhã de uma primavera ensolarada, após o esforço de montar as primeiras secções sobre as lâminas, quando eu as levei pelo corredor até o laboratório escuro de histologia dos estudantes, onde havia um microscópio. A primeira observa- ção já revelou um padrão impressionante de distribuição de células na camada IV, que, obviamente, imitavam a disposi- ção das vibrissas. Não restava dúvida sobre o que eu tinha visto; eu imediatamente mostrei as lâminas a Van der Loos, que foi, então, a segunda pessoa no mundo a saber que as vibrissas estão estampadas no cérebro dos camundongos. Nós chamamos estes grupamentos celulares de barris. Pos- teriormente, foi comprovada a hipótese de que cada barril está associado a uma única vibrissa e que cada uma constitui parte de uma coluna funcional cortical. A R O T A D A D E S C O B E R T A QUADRO 12.3 CAPÍTULO 12 O Sistema Somatossensorial 435 adjacentes do córtex. Os dois mapas somatotópicos não são idênticos, porém um é a imagem especular do outro, como fica claro no esquema ampliado das duas regiões da mão (Figura 12.22b). Plasticidade do Mapa Cortical. O que acontece ao mapa somatotópico no córtex quando uma aferência for removida, como, por exemplo, a de um dedo? A “área do dedo” no córtex ficaria simplesmente sem utilidade? Ela atrofiaria? Ou esse tecido passaria a ser utilizado pelas aferências originadas de outras fontes? As respostas a essas questões poderiam ter implicações importantes para a recu- peração de uma função após lesão de um nervo periférico. Na década de 1980, o neurocientista Michael Merzenich e colaboradores, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, iniciaram uma série de experimentos para testar essas hipóteses. Os principais experimentos estão resumidosna Figura 12.23. Primeiro, as regiões de S1 que são sensíveis à estimulação da mão em um macaco-da-noite adulto foram cuidadosamente mapeadas com microeletrodos. Então, um dedo da mão (o dígito 3) foi removido cirurgicamente. Após vários meses, o córtex foi novamente mapeado. Qual foi o resultado? A área do córtex destinada ori- ginalmente ao dígito amputado respondia agora à estimulação dos dígitos adja- centes (Figura 12.23c). Houve uma evidente reorganização da circuitaria subja- cente à somatotopia cortical. D5 D5 D5 D5 D4 D4 D2 D1 D1 D4 D2 D1 Superfície dorsal Superfície dorsal Detalhes do mapa cortical Após reorganização do córtex somatossensorial Dígito 5 Dígito 4 Dígito 3 Dígito 2 Dígito 1 (polegar) Corpo Face AnteriorPosterior D4 D3 D2 D1 (a) Localização do mapa da mão esquerda no hemisfério direito do córtex do macaco (c) Reorganização do mapa cortical após remoção cirúrgica do terceiro dígito (D3) (d) Reorganização do mapa cortical após treino de discriminação das duas pontas dos dedos (b) Mão normal, superfície palmar D5 D4 D3 D2 D1 Disco de estímulo Córtex somatossensorial primário Palma D3 D2 FIGURA 12.23 Plasticidade do mapa somatotópico. (a, b) Os dedos da mão de um maca- co-da-noite estão mapeados na super- fície do córtex em S1. (c) Se o dígito 3 for removido, o córtex, com o passar do tempo, reorganiza-se de modo que as representações dos dígitos 2 e 4 se expandem. (d) Se os dígitos 2 e 3 fo- rem estimulados de forma seletiva, as suas representações corticais também se expandem.