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Organizadores Alexandre Torres Petry Andréa Fontoura André Estéfani Luise Fernandes Teixeira Evânia Romanovsky Jarbas Paula de Souza Junior Lucas Lazzaretti Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthaller Kelly Paties Pereira de Andrade Bioética e Direito Porto Alegre, 2023 Copyright © 2023 by Ordem dos Advogados do Brasil Todos os direitos reservados Organizadores Alexandre Torres Petry Andréa Fontoura André Estéfani Luise Fernandes Teixeira Evânia Romanovsky Jarbas Paula de Souza Junior Lucas Lazzaretti Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthäller Kelly Paties Pereira de Andrade Projeto Gráfico e Capa Victor Baldez Silva Revisora Dieniffer de Souza Silva Lemes A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos em trabalhos assinados, são de responsabilidade dos seus autores. Escola Superior de Advocacia da OAB/RS Rua Manoelito de Ornellas, 55 – Praia de Belas CEP 91110-230 – Porto Alegre/RS B512 Bioética e Direito [recurso eletrônico]. / Alexandre Torres Petry, Andréa Fontoura André, Mariana Polydoro de Albuquerque Diefenthäller (Orgs). Porto Alegre: OABRS, 2023. 521p. ISBN: 978-65-88371-31-2 1. Bioética. 2. Direito. I. Petry, Alexandre Torres. II. André, Andréa Fontoura. III. Título CDU SUMÁRIO PREFÁCIO - Mariana Diefenthäler ............................................................................................ 7 APRESENTAÇÃO - Eduardo Neubarth Trindade e Estéfani Luise Fernandes Teixeira ............................................................................................................................................. 8 O “NOVO” MAL DO SÉCULO XXI: SÍNDROME DE BURNOUT E SUA CONFIGURAÇÃO COMO DOENÇA DO TRABALHO – Aline Barth Paixão ................. 9 DILEMAS ÉTICOS E JURÍDICOS NO ATENDIMENTO DE URGÊNCIA: PRIORIDADES E CONFLITOS NA PRÁTICA MÉDICA – Anderson Fernandes de Borba e José Antônio Carrazzoni dos Reis Júnior ............................................................... 30 REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SUA REPERCUSSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO – Bianca Krombauer Antunes, Mariana Silva Goulart e Jair Pereira Coitinho ................................................................................................................... 50 FEMINICÍDIO PRATICADO CONTRA MULHER TRANS: A BIOÉTICA DE INTERVENÇÃO E A REINTERPRETAÇÃO DA QUALIFICADORA CONTIDA NO INCISO VI DO § 2º DO ARTIGO 121 DO CÓDIGO PENAL – Bruno de Andrade Martins, Eder Neves Leal e Jair Pereira Coitinho ............................................................... 67 EUTANÁSIA, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA: A ÉTICA DO RESPEITO À DIGNIDADE E O TESTAMENTO VITAL – Camila Maria Maciel, Estéfani Luise Fernandes Teixeira e Mariana Assis ........................................................................................ 87 A PROBLEMÁTICA DO USO DO CRITÉRIO DE AUTORIDADE CIENTÍFICA PARA IMPOR MEDIDAS RESTRITIVAS E LIMITAR LIBERDADES INDIVIDUAIS DURANTE A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS: UMA REFLEXÃO – Cesar Augusto Cavazzola Junior e Cidney Antônio Surdi Junior ................................................................ 97 BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: INTERFACES NA CONTEMPORANEIDADE – Cristiane Avancini Alves ........................................................................................................... 108 A MORTE COMO DIREITO: UMA ANÁLISE DO DIREITO À MORTE SOB O PONTO DE VISTA MÉDICO-LEGAL – Daniel Oliver Franco, Viviane Teixeira Dotto Coitinho e Thais Campos Olea ................................................................................................................. 129 DIREITO E BIOÉTICA POR INTERMÉDIO DA CIÊNCIA: CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS. – Edgar de Medeiros Pinto ............................................................................... 149 PROPOSTA DE REGISTRO ELETRÔNICO EM SAÚDE NACIONAL UNIFICADO (RESNU) COMO INSTRUMENTO DE QUALIDADE ASSISTENCIAL E OTIMIZAÇÃO DE CUSTOS – Edmilson de Almeida Barros Júnior .......................................................... 172 TEORIA DAS CAPACIDADES DE MARTHA NUSSBAUM E SUA RELEVÂNCIA NA PROMOÇÃO DA JUSTIÇA SOCIAL PARA PESSOAS COM DEFICIÊNCIA – Erika Neder dos Santos e Gabriel Maçalai ...................................................................................... 191 A NATUREZA JURÍDICA DO EMBRIÃO, FRUTO DA TÉCNICA DE FERTILIZAÇÃO IN VITRO: A PARTIR DA ANÁLISE DA LEI 11.105, DE 2005 E DAS RESOLUÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA – Estela Franco e Letícia Alvarez Ucha ...... 203 SAÚDE E ENCARCERAMENTO NO BRASIL: UMA REFLEXÃO ÉTICA SOB A ÓTICA DA LEI E DA PRÁTICA – Fábio Luis Brack e Vanessa Louise dos Santos .. 222 O DIREITO GUIANDO OS PASSOS DA CIÊNCIA – Gabriel Silva e Luciane Bittencourt Fagundes ....................................................................................................................................... 240 COVID-19 E O DIREITO: UMA VISÃO SOBRE OS IMPACTOS DA PANDEMIA SOB O OLHAR DA BIOÉTICA E DO DIREITO – João Tailor da Luz Saraiva, Alan Pereira Ferreira e Viviane Teixeira Dotto Coitinho ......................................................................... 264 EXPORTAÇÃO DE ANIMAIS IN NATURA: DESAFIOS E IMPLICAÇÕES NO CAMPO DA BIOÉTICA, DO SISTEMA JURÍDICO INTERNACIONAL DE COOPERAÇÃO E DA PROTEÇÃO DE ANIMAIS NÃO HUMANOS – José Alberto Antunes de Miranda, Liziane Menezes de Souza e Nicolle Bittencourt Rocha .................................................... 276 O INTERSEXO À LUZ DA BIOÉTICA: MULTILAR OU CONSCIENTIZAR? – Karina Salort Larruscaim e Sheila Salort Larruscaim ................................................................... 297 A EXPERIÊNCIA DE IMPLANTAÇÃO DE UM COMITÊ DE BIOÉTICA EM UM COMPLEXO HOSPITALAR –Kelly Paties Pereira de Andrade...................................... 313 IMPACTOS DA REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA POST MORTEM NO DIREITO SUCESSÓRIO – Larissa Schifelbein da Rosa, Nathálie Debus Borges e Jair Pereira Coitinho......................................................................................................................................... 323 A AUTONOMIA DO ATLETA DE ALTA PERFORMANCE: UMA ANÁLISE BIOÉTICA- Laura Affonso da Costa Levy ........................................................................... 338 BIOÉTICA E O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO CENÁRIO DO ACESSO AO TRANSPLANTE: A DIFICULDADE EM TORNO DO TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – Lise Schomaker Maurell, José Walter Benetti Júnior e Laíni Neves Xavier. ............................................................................................................................... 348 ROL DE PROCEDIMENTOS E EVENTOS EM SAÚDE DA ANS: A (DES)OBRIGATORIEDADE DE FORNECIMENTO DE FÁRMACOS À BASE DE CANABIDIOL AO CONSUMIDOR DA SAÚDE SUPLEMENTAR E ASPECTOS ATUAIS NA LEGISLAÇÃO, JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA – Lucas de Oliveira Tavares .......................................................................................................................................... 362 O DIREITO NA ERA DA ENGENHARIA GENÉTICA: APROXIMAÇÕES (NECESSÁRIAS) À ÉTICA APLICADA – Marcio Renan Hamel ................................... 382 DEPENDÊNCIA QUÍMICA E SAÚDE MENTAL: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL- Marcos Paulo Garcia de Andrade ......................................................... 396 A EXIGÊNCIA DE DECISÃO JUDICIAL PARA O MÉDICO RELIZAR O ABORTO LEGAL COMO OBSTÁCULO PARA O DIREITO DAS MULHERES – Maria Dulce Rosso Góes e Lívia Haygert Pithan ........................................................................................ 406 SAÚDE MENTAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: REFLEXÕES SOBRE DIREITOS FUNDAMENTAIS, TECNOLOGIA E BIOÉTICA – Mariana Diefenthäler, Estéfani Teixeirae Evânia Romanovski ................................................................................................ 427 OS IMPACTOS DA TECNOLOGIA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE – Melissa Daandels ........................................................................................................................................ 437 ENGENHARIA GENÉTICA NA REPRODUÇÃO HUMANA MEDICAMENTE ASSISTIDA NO BRASIL: ASPECTOS BIOÉTICOS E JURÍDICOS – Natan da Silva Lemes ............................................................................................................................................. 445 BIOÉTICA E A MEDICINA INTEGRATIVA – Pâmela Ely Bonette e Michele Bertoncello Spader ..................................................................................................................... 465 ESG NO SETOR DA SAÚDE – Roberto Vinícius Silva Saraiva, Elisandra Rosa Cunha e Hélio Gustavo Alves ................................................................................................................ 476 A EVOLUÇÃO DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE: UM ESTUDO DAS ABORDAGENS EUROPEIA E BRASILEIRA – Suelem da Costa Silva ........................ 494 TESTES DE ANCESTRALIDADE GENÉTICA E A (RE)DEFINIÇÃO DA IDENTIDADE ÉTNICO-RACIAL NO BRASIL: MEMÓRIAS E DESAFIOS JURÍDICOS E BIOÉTICOS – Ulisses Soares Passos .............................................................................................................. 508 7 PREFÁCIO Nos 38 anos da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS (ESA/RS), nos orgulhamos em termos a oportunidade de prefaciar o livro em formato E-book, composto de inovadores artigos científicos, intitulado como “Bioética e Direito”, sendo a terceira obra eletrônica organizada pela Comissão Especial do Direito à Saúde da OAB/RS com o Grupo de Estudo de Direito e Saúde da ESA/RS com o propósito evolutivo individual e coletivo de tratar a Bioética de forma transversal e multidisciplinar contextualizada no Direito. Por isso, agradecemos o apoio e confiança incondicionais do Presidente da OAB/RS, Dr. Leonardo Lamachia, e também da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS, na pessoa do seu Diretor-Geral, Rolf Madaleno, aos quais parabenizamos pelo estímulo e inspiração para o aprimoramento do conhecimento científico do Direito da Saúde com iniciativas como esta, que contribui sobremaneira para o aperfeiçoamento profissional da Advocacia nacional quiçá, internacional. Em 2023, ressaltamos a presença feminina na Advocacia e homenageamos a Vice- Presidente da OAB/RS, Dra. Neusa Bastos, pelos préstimos inquestionáveis e liderança sensível da representatividade feminina na política institucional de mulher de ordem com todos os atributos indispensáveis à paridade e equidade de gênero saudáveis nas organizações. Por fim, parabenizamos todos os autores e coorganizadores desta valorosa obra e convidamos os leitores a adentrarem na interlocução entre Bioética e Direito através da leitura dos artigos a seguir apresentados. Desejamos ótima leitura! Mariana Diefenthäler, Presidente da CEDS. 8 APRESENTAÇÃO As transformações pelas quais a sociedade passa, o uso de novas tecnologias, as revoluções científicas, as mais recentes técnicas médicas, os novos medicamentos e procedimentos, as mudanças de comportamentos e suas implicações jurídicas são movimentos sociais que levam a reflexões e questionamentos éticos e morais tanto nas áreas da Medicina quanto do Direito. A Bioética é um tema complexo, inter, multi e transdisciplinar. A Bioética está intimamente ligada à Medicina, seguindo uma visão de proteção à vida. Assim como a Bioética deve estar ao lado do Direito, buscando a elaboração de leis que visem à proteção da vida. Dessa forma, apresentar esta obra é um privilégio. Trata-se de oportuna coletânea de estudos, idealizada por organizadores e articulistas da Comissão Especial da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil - Rio Grande do Sul (OAB/RS). Os autores são estudiosos que se dedicam à reflexão sobre o direito à saúde, debruçando-se sobre temas relevantes e inquietantes, no que concerne à Bioética e ao Direito, a requerer muitas pesquisas e estudos dos autores. O presente e-book foi idealizado com a finalidade de celebrar os 38 anos da Escola Superior de Advocacia (ESA/RS) e, ainda, homenagear a Dra. Neusa Maria Rolim Bastos, Vice-presidente da OAB/RS. A trajetória da homenageada compreende grande experiência, sendo renomada profissional. A ESA/RS foi fundada em 1985, por inciativa da OAB/RS, sendo a primeira no Brasil, por força da Resolução 24/1985. O Presidente da OAB/RS à época, em reunião do Egrégio Conselho Seccional, em 3 de setembro de 1985, aprovou a criação da Escola Superior de Advocacia, destinada a centralizar e a coordenar atividades culturais, por meio de cursos, estudos, seminários, congressos, publicações e demais programações. Esta obra contempla estudos que atendem a profissionais de diversas áreas, fomenta dúvidas, provoca inquietações e reflexões e, sobretudo, aponta caminhos. A Bioética é um campo multidisciplinar de estudo, fundamentado na influência de princípios morais e éticos que regem a vida norteando a prática médica e a pesquisa científica. Com isso, é imperioso analisar a Bioética a partir de uma perspectiva jurídica, a fim de buscar critérios éticos para a solução de questões jurídicas relacionadas à vida. Nesse sentido, trata-se de preciosa contribuição para a comunidade, auxiliando na compreensão de temáticas atuais e por vir. Portanto, os organizadores, os articulistas e a Comissão Especial da Saúde homenageiam a Escola Superior de Advocacia pelos seus 38 anos e a Dra. Neusa Maria Rolim Bastos por sua dedicação, sua trajetória, sua contribuição e seus ensinamentos à Ciência Jurídica brasileira, com votos de sucesso e agradecimento. Eduardo Neubarth Trindade Médico, presidente do Conselho Regional de Medicina do estado do Rio Grande do Sul (Cremers) Estéfani Luise Fernandes Teixeira Membro e coordenadora do GT pesquisa da Comissão Especial de Direito a Saúde da OAB/RS 9 O “NOVO” MAL DO SÉCULO XXI: SÍNDROME DE BURNOUT E SUA CONFIGURAÇÃO COMO DOENÇA DO TRABALHO THE “NEW” DISEASE OF THE 21ST CENTURY: BURNOUT SYNDROME AND ITS CONFIGURATION AS AN OCCUPATIONAL DISEASE Aline Barth Paixão1 RESUMO A humanidade se encontra em plena transformação tecnologia. A quarta Revolução Industrial, também conhecida como “era digital”, está sendo marcada pelos inúmeros avanços tecnológicos e digitais, de maneira a auxiliar e proliferar os sistemas de produção em massa. O estado pandêmico mundial potencializou a realização destas mudanças no Brasil e no restante do mundo, com sua ocorrência de forma unida e linear, representando uma verdadeira metamorfose nas relações sociais, em especial, nas relações de trabalho e na saúde mental dos trabalhadores. As formas de trabalho se encontram em plena transformação, o que reflete diretamente na adaptação de todos aqueles que, de alguma forma, prestam serviços. Dessa forma, indaga-se os efeitos destas mudanças na saúde psíquica dos trabalhadores; a maneira que estes lidam com as questões relacionadas ao “novo” ambiente de trabalho lhe imposto e; ainda, como se enquadrar em uma sociedade que se modifica a todo instante. Para tanto, temos como objetivo analisar uma das principais patologias psíquicas em evidência atualmente e cujo crescimento espanta nos últimos anos, qual seja: a “Síndrome de Burnout”. Recentemente classificada como doença do trabalho pela OMS, a Síndrome de Burnout leva o trabalhador ao esgotamento e ao cansaço demasiado mental, contudo, resta nós observamos que estamos ultrapassando período social em que o esgotamento e o cansaço estão sendo levados para uma sociedade por completo, atingindo e transformando todauma geração. Palavras-chave: Síndrome de Burnout; Saúde mental; Doença do trabalho; Revoluções industriais; Era digital. ABSTRACT Humanity is in the midst of technological transformation. The fourth Industrial Revolution, also known as the “digital era”, is being marked by numerous technological and digital advances, in order to assist and proliferate mass production systems. The global pandemic state enhanced the realization of these changes in Brazil and the rest of the world, with their occurrence in a united and linear way, representing a true metamorphosis in social relations, in particular, in work relations and workers' mental health. The ways of working are undergoing complete transformation, which directly reflects on the adaptation of all those who, in some way, provide 1 Discente no curso de LLM em Direito e Processo do Trabalho: O Mundo do Trabalho e suas Novas Relações, pela FMP. Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho, pela PUC/RS. Graduada em Direito pela Faculdade CNEC Gravataí. Membro da Comissão Especial dos Advogados Trabalhistas e da Comissão Especial de Diversidade Sexual e Gênero pela gestão 2022/2024, ambas da OAB/RS – Subseção de Gravataí. Advogada Trabalhista – OAB/RS 103.534, Controller Jurídico. E-mail: aline_bpaixao@hotmail.com. 10 services. In this way, the effects of these changes on the mental health of workers are questioned; the way they deal with issues related to the “new” work environment imposed on them and; Furthermore, how to fit into a society that changes all the time. To this end, we aim to analyze one of the main psychic pathologies currently in evidence and whose growth has been astonishing in recent years, namely: “Burnout Syndrome”. Recently classified as an occupational disease by the WHO, Burnout Syndrome leads workers to exhaustion and excessive mental fatigue, however, we can see that we are overcoming a social period in which exhaustion and tiredness are being brought to society as a whole, reaching and transforming an entire generation. Keywords: Burnout syndrome; Mental health; Illness at work; Industrial revolutions; Digital age. INTRODUÇÃO Atualmente, a humanidade enfrenta uma gama de desafios, dentre estes, um dos mais importantes e intensos é a nova moldagem trazida pela revolução tecnológica, que modificará a estrutura de todas as formas de relações sociais que conhecemos, inclusive, as de cunho laborais. Estamos ultrapassando pela chamada “Quarta Revolução Industrial” ou “Indústria 4.0”, marcada pelas conexões à distância e acesso integral e imediato a todos os tipos de informações, onde o ser humano é interligado através da rede online e off-line, em um espaço sem marcas para o físico ou relações interpessoais. Sem sombra de dúvidas, o Brasil e o mundo sofreram inúmeros reflexos em decorrência da pandemia da Covid-19, ocorrida entre os anos de 2019 e 2021, aderindo inúmeras medidas obrigatórias de proteção e prevenção em prol da contenção das fatalidades, em especial nas áreas da saúde e economia, as quais foram as principais afetadas. No mesmo sentido e tempo que as transformações sociais percorrem seu caminho, as relações laborais e as formas de prestações de serviços se ajuntam para adaptação e ingresso de novas técnicas, essas que, de sorte, foram alavancadas em tempos pandêmicos por razões de necessidade da mantença dos empregos e giro econômico do país. Todas estas transformações se acumulam a um sistema prejudicial e profundo no sentido psicopatológico das relações laborais, ao passo que se exige o rápido ajustamento dos trabalhadores a conceitos, técnicas e procedimentos que se modificam e inovam a todo instante. Tudo se resulta no descontrole psicológico, na sobrecarga mental e no excesso de trabalho, reflexo de uma sociedade que impulsiona o dever e a crença do poder. 11 O objetivo do presente estudo, é refletir sobre a “Síndrome de Burnout”, também conhecida como síndrome do “esgotamento” ou do “cansaço”, classificada como uma doença ocupacional – a CID 11 –, em 1º de janeiro de 2022, pela Organização Mundial de Saúde (OMS) mediante seu enquadramento na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. Voltada para as relações de trabalho, os casos envolvendo esta doença psíquica em nossa sociedade tiveram um aumento exponencial nos últimos anos, o que provoca inúmeros questionamentos e dúvidas envolvendo a saúde mental de nossos trabalhadores. As razões deste aumento e a preocupação da sociedade em tratar esta psicopatologia como uma doença do trabalho, tudo colacionando a rápida metamorfose de nossos sistemas tecnológicos, é o que será aqui analisado, pensado e comparado. 1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA EVOLUÇÃO INDUSTRIAL ATÉ A ERA DIGITAL A construção da força de trabalho como fonte de renda e vitaliciedade de uma sociedade sobreveio a um verdadeiro encadeamento de valores adquiridos ao longo da história mundial, mediante acontecimentos de suma importância para o desenvolvimento e reconhecimento do trabalho humano como uma garantia constitucional fundamental em torno de todos os países desenvolvidos ou em pleno desenvolvimento. A questão do reconhecimento quanto a vitaliciedade do trabalho para a construção de uma sociedade íntegra, tanto em valores e princípios quanto em infraestruturas e desenvolvimento, deve ser superada positivamente, ao passo que, atualmente, o trabalho e sua presença enraizada deixaram de possuir o estigma de dor, sofrimento e outros adjetivos negativos. Pelo contrário, o trabalho, corretamente, remete a ideia de dignificação do homem e de impulsionamento de uma sociedade. Para tanto, necessária a realização de uma modesta digressão de maneira a compreendermos o caminho percorrido até a chegada neste momento atual. Para isso, analisemos as conhecidas “revoluções industriais” – isto é, a evolução das indústrias –, até então, segmentadas em quatro grandes momentos históricos. Alguns doutrinadores compreendem que, atualmente, já ingressamos na quinta dimensão industrial, ou seja, naquela chamada de “indústria 5.0”, contudo, a doutrina clássica ainda majora na conservação da “indústria 4.0” para o momento contemporâneo conhecido como a “era digital” – a qual será mais falada a frente –, posicionamento este que será seguido pelo presente artigo. 12 A primeira Revolução Industrial – ou Indústria 1.0 – teve início na Inglaterra a partir da segunda metade do século XVIII, aproximadamente em 1704. Posteriormente, se espalhou pelo mundo, sendo conhecida como um período de grande desenvolvimento e de grandes transformações. Foi nessa época que houve o surgimento da indústria e que o processo de formação do capitalismo foi consolidado. Dentre as características da Indústria 1.0, sucedeu-se uma emigração dos trabalhadores da área rural na Europa para o labor em fábricas e indústrias. A mercê de uma produção, à época, totalmente artesanal e manufatureira, tal motivação adveio do aspecto mecanizado de produção trazido pela primeira Revolução Industrial, com o consequente aumento da indústria têxtil com o tear, máquina de produção de fios, e uma grande força a vapor. Isto é, os grandes avanços e movimentos da época acarretaram, em síntese, na passagem do trabalho rural e de agricultura à indústria e fábricas com a utilização de tecnologia a vapor, mecanismos na época inéditos, que faziam com que aumentasse a produtividade e não se desperdiçasse tanta matéria- prima. Em seguimento, indo para o século XIX, em torno do ano de 1870, nós tivemos a segunda Revolução Industrial – ou Indústria 2.0. A segunda Revolução Industrial é marcada fortemente pelo invento da eletricidade e da combustão, bem como por sua aplicação nos meios de produção, em especial, pela introduçãodestas novas técnicas e fontes de energia na indústria química. Esses aprimoramentos tecnológicos possibilitaram o aumento da capacidade industrial e da produção em escala, além de ter proporcionado o desenvolvimento acelerado da economia, com o consequente aumento significativo das indústrias e das fábricas. Além disso, foi na época da Indústria 2.0 que foram inventados o telefone, a lâmpada, o fonógrafo e o motor de combustão interna, que passaram a ser utilizados nos veículos. A terceira Revolução Industrial – ou Indústria 3.0 – iniciou-se no século XX, na década de 1950, no contexto da Segunda Guerra Mundial, marcando o início da “era da informação”. Esta época foi marcada pelo alcance de um novo patamar, tanto econômico quanto social, em razão do grande aumento da automação e a utilização inédita da informática, robótica, genética, telecomunicações, eletrônica, dentre outros. As indústrias que desenvolveram alta tecnologia começaram a se sobressair em relação às indústrias que se destacavam nas fases anteriores da Revolução Industrial, como a metalurgia, siderurgia e a indústria de automóveis. A alta tecnologia trazida pela Indústria 3.0 foi um propulsor no acesso a novas informações e na facilidade de comunicações e relações sociais, diminuindo a distância e o tempo entre as pessoas e as informações. Com o aprimoramento de satélites, telefones, 13 computadores, o advento da internet e outras tecnologias, sem dúvidas, esta época assinala a propulsão econômica capitalista, com o aumento de multinacionais e a utilização de diversos meios eletrônicos, inclusive, com a utilização dessas tecnologias nos meios de produção. Trilhando os caminhos dos três primeiros momentos da Revolução Industrial, adentrando em tais sinopses, podemos destacar grandes estágios de precarização. À exemplo, na Indústria 1.0, onde o labor de crianças nas indústrias têxtis era livremente permitido, com manuseio das máquinas de tecnologia a vapor e em carga horária exorbitante, podendo chegar até 16 horas diárias, sem qualquer espécie de proteção. Pelo contrário, naquela época, nem sequer, se pensava em saúde e/ou direitos dos trabalhadores, muito menos se cogitava acerca de saúde mental destes. Mas, e nos dias hoje? Em que ponto de aperfeiçoamento a nossa indústria se encontra? Chegando em nossa sociedade atual, temos a quarta Revolução Industrial – ou Indústria 4.0, a qual engloba um amplo sistema de tecnologias avançadas, dentre estas: a inteligência artificial, o sistema cibernético, a robótica, a internet das coisas, o metaverso, a computação em nuvem, além das principais inovações tecnológicas desses campos. Trata-se de uma rede de tecnologias que está em desenvolvimento crescente e transformando as formas, os meios de produção e os modelos de negócios no Brasil e no mundo. Podemos afirmar que, atualmente, nós vivemos em uma sociedade totalmente digital e interconectada. O que vemos hoje em dia é uma realidade virtual que, por vezes, pode acarretar benefícios e, por outras, malefícios aos nossos propósitos. Ademais, sabemos que o estado pandêmico vivenciado pelo mundo entre os anos de 2019 e 2021 devido a Covid-19, assim como a campanha do “fique em casa” em prol da saúde das pessoas, acelerou imperiosamente os modelos de trabalho no mundo todo e, consequentemente, impulsionou e adiantou inúmeras tecnologias antes adormecidas ou estruturadas para inauguração posterior. Devido à crise do coronavírus, as estruturas mundiais obrigaram-se a adaptação em prol da mantença da economia de seu país, inclusive, o Brasil. Dentre tais medidas adotadas, se encontram o teletrabalho e o trabalho remoto, de maneira a permanecer em funcionamento com a maioria de seus postos de trabalho e com a continuidade da movimentação de seu sistema econômico. Dessa forma, a empresa e seus empregados ganharam uma opção para manter-se operantes, com o auxílio e a grande evolução de melhoramento nos sistemas virtuais de computação. 14 Destarte, mesmo depois de superado o período pandêmico, muitas empresas nacionais e internacionais – inclusive, os órgãos públicos de todos os poderes brasileiros – estão optando por manter a dinâmica do trabalho virtual, tendo em vista os benefícios e comodismos que tal sistema trouxe. A Indústria 4.0 é a indústria da “era digital”, é aquela que o ser humano e o profissional estão tendo de aprender a se reinventar, se especializar no mais complexo, se readequar ao mercado de trabalho ante as novas tecnologias e sistemas, que estão abarcando as tarefas mais obsoletas e repetitivas. Este é o período do metaverso, dos sistemas de algoritmos, da plataformização do trabalho (ou uberização, a quem preferir), das audiências e reuniões por videoconferências, dos softwares de gestão e das profissões híbridas, que, muitas vezes, não exigem experiência tradicional, mas sim, a experiência da “mente aberta”, do querer conhecimento e do estar disposto a se especializar nas técnicas atuais exigidas pelo mercado de trabalho. É diante desta Indústria 4.0, a conhecida era digital, que se propõe a explorar a saúde mental dos trabalhadores, questionando acerca do impacto que esta nova forma industrial está refletindo na sociedade, em especial naqueles que impulsionam a economia de nosso país. Como subsistir em um mercado de trabalho altamente mutável e adaptável do ponto de vista tecnológico e econômico, sem, contudo, debilitar a sua própria saúde e mente nesse cenário? 1.1 A sociedade de vigilância de “Foucault” e a sociedade do cansaço de “Han” No ano de 1975, o filósofo francês Michel Foucault, escreveu sua enaltecida obra “Vigiar e Punir”, a qual tratou de um exame dos mecanismos teóricos e sociais que influenciaram as mudanças nos sistemas penais ocidentais. Com posicionamentos fortes e marcantes, o filósofo apresenta sua análise sobre a “sociedade da vigilância”, defendendo que as relações de poder postas, seja por qualquer instituição, escola ou prisão, são marcadas pela disciplina, a qual se instrumentaliza através do poder hierárquico, bem como que o poder é fonte das práticas discursivas, da linguagem e do conhecimento compartilhado. A disciplina é exercida, pressupõe-se, por um dispositivo que obrigue, pelo jogo de olhar, “um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam” (FOUCAULT, 1987, p. 196). A sanção normalizadora é a que comina, ou sanciona, toda pena. Segundo Foucault (FOUCAULT, 1987, p. 202). 15 Dentre as características da sociedade da vigilância suscitada por Foucault, os sujeitos eram submetidos por um contrato de obediência em uma sociedade dominada pelo negativismo. Temos então, as relações humanas e laborais condicionadas a subordinação rígida, aos comandos, a estrada dirigida e regrada por aqueles hierarquicamente superiores. O poder de vigilância é uma estratégia para alcançar um objetivo, não um objeto que pode pertencer a alguém, muito menos um lugar a ser ocupado e cobiçado. Acreditando em uma perspectiva mais intimista, no ano de 2010, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han apresentou ao mundo sua análise acerca das relações sociais através de sua obra chamada “Sociedade do Cansaço”, a qual, ousamos apontar, trata-se de uma das obras de maior relevância acadêmica da atualidade. Para Han, a sociedade contemporânea está alicerçada no cansaço de nossos trabalhadores e trabalhadoras, sendo sucumbidos pela era digital e pelas doenças psíquicas acarretadas ou concausadas por estas. Ao contrário da perspectiva trazida por Foucault, “a sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos da obediência’, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos” (HAN, 2017, p. 23). Aocontrário da sociedade disciplinar que adotava a abordagem do negativismo, a sociedade do desempenho é caracterizada pelo excesso de positivismo. É o elevar do homem até o último grau, retirando todas as espécies de comando e transpondo-o toda a liberdade e confiança para a execução de seu próprio labor, a seu livro arbítrio. É a confiança, o excesso de poder entregue ao trabalhador, a sua autonomia para demonstrar o seu potencial dentro do mercado, de maneira a se firmar pessoalmente. Esta é a nossa sociedade atual, aquela em que são criados os depressivos, os estressados, os ansiosos, os fracassados e os sem destinos. Aqueles que são libertos na imensidão do mundo, que são testados e motivados ao extremo quanto a sua capacidade, mas que não encontram seus caminhos e se perdem dentro de si mesmos. “O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo” (HAN, 2017, p. 26). É dentro dessa perspectiva, que Han reflete sabidamente acerca do sistema de poder envolvido por trás de toda a máquina produtiva de nossa sociedade. O sujeito de obediência é aquele que, antigamente, sempre esteve limitado pelo negativismo, obedecendo ordens em uma cadeia de produção, limitado a um sistema que não tinha mais onde lucrar. Dessa forma, adota- se o livramento da instância externa de domínio que obriga este sujeito a trabalhar ou ser 16 explorado. É trazido à tona o excesso de positividade, fazendo que ele não seja mais submisso a ninguém, apenas a si mesmo. Esta é a distinção entre os sujeitos de obediência e o de desempenho. Entretanto, a queda da disciplina não leva a liberdade, ao contrário, faz com que esta e a coação coincidam. O sujeito de desempenho tem a falsa sensação de liberdade, contudo, em verdade, ele está vivendo em auto exploração em razão do excesso de trabalho e desempenho, em uma verdadeira sociedade caracterizada pelo cansaço (HAN, 2017, p. 29-30). Nesse sentido, o explorador é, ao mesmo tempo, o explorado, o agressor e a vítima. Com esse paradoxo é que Han analisa a transformação de nossas relações sociais e da cadeia de produção, ao passo que uma sociedade de desempenho produz mais e, consequentemente, dá maiores lucros. A sociedade do cansaço está provocando infartos psíquicos, “o que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão do desempenho. Vista a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida” (HAN, 2017, p. 27). 1.2 Breve histórico do conhecimento da psicopatologia atribuída ao trabalho no Brasil A análise pormenorizada das relações humanas e de suas inter-relações laborais resultam no próprio conceito de autodeterminação governamental e de seus reflexos socioeconômicos e culturais. Sem sombra de dúvidas, ao mesmo passo que as doenças físicas e psíquicas foram sendo vistas e levadas em consideração, dado seu crescimento e afetação nas atividades de produção industrial, foram sendo constituídos legalmente os direitos dos trabalhadores a um ambiente salubre, digno e não excessivo, tudo em um processo moroso e de grandes golpes políticos. Por óbvio que as psicopatologias tiveram seu alcance legal tardio comparadas as patologias ergonômicas, tendo seus primeiros estudos atribuídos ao trabalho somente no ano de 1920, como será tratado a posterior. O término da Primeira Guerra Mundial, no ano de 1918, provocou uma grande reflexão em inúmeros países mundiais, ensejando a conquista de práticas mundiais humanitárias e preventivas, dentre elas, a criação da Liga das Nações ainda no ano de 1918, bem como a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no ano seguinte, em 1919, esta originada pelo Tratado de Versalhes, documento de suma importância assinado pelas potências europeias, em forma de um tratado de paz que encerrou oficialmente a Primeira Guerra Mundial. 17 Em suma, a Liga das Nações apontava a necessidade de relativizar a soberania dos Estados, (...) “tinha como finalidade promover a cooperação, paz e segurança internacional, condenando agressões externas contra a integridade territorial e a independência política dos seus membros” (PIOVESAN, 2013, p. 189), enquanto a OIT tencionou na promoção da justiça e paz social por meio da melhoria qualitativa do trabalho no mundo, mediante a premissa de concretização de um trabalho digno para todos, sendo este o único meio para atingir tal objetivo. Rompeu-se, então, aquela ideia de soberania estatal absoluta, direcionando-se o olhar social para um viés de soberania centrada no cidadão, na dignidade da pessoa humana como centro universal das regulamentações. O viés do legislador passou para proteger a pessoa humana e não mais aquela prioridade do Estado. Atualmente, a OIT é uma agência multilateral especializada nas questões do trabalho, especialmente no que se refere ao cumprimento das normas internacionais, sendo integrada a Organização das Nações Unidas (ONU), sucessora da Liga das Nações, que foi extinta no ano de 1946. Ainda no ano de 1919, mais precisamente no dia 11 de agosto, a Alemanha, também traumatizada com a primeira grande guerra, promulgou a conhecida Constituição de Weimar, a qual foi uma construção muito importante para Europa e um verdadeiro marco histórico nos direitos sociais, ao passo que foi uma das primeiras que incluiu dentre suas normas a proteção ao trabalhador e o direito à educação. Posteriormente, a Constituição de Weimar serviu como base e grande influência positiva a inúmeros outros países na construção de suas próprias Cartas Magnas, inclusive, as do Brasil, especialmente a Constituição de 1934 e a atual Constituição Federal da República de 1988 (CF/88), ambas com seus direitos sociais e modelo de controle de constitucionalidade. Dentre os direitos sociais trabalhistas abordados, a Constituição de Weimar tratou da limitação da jornada; do desemprego; da proteção a maternidade; da previsão de idade mínima para admissão de trabalhadores na indústria, e; ainda, da regulamentação de questões do trabalho noturno para menores de idade. Como mencionado brevemente acima, os primeiros estudos das psicopatologias relacionadas ao trabalho podem ser vislumbrados somente no ano de 1920. Em que pese, precedentemente, já serem detectadas e tratadas as doenças psíquicas singularmente – sem qualquer vinculação ao trabalho –, bem como as patologias de origem ergonômicas já serem consideradas como doenças ocupacionais, mediante incidência do nexo de causalidade, somente a partir do mencionado ano as doenças de origem psíquicas passaram a ser apontadas e relacionadas com as atividades laborais, abrindo as possibilidades de averiguação entre a 18 patologia mental identificada no trabalhador e a atividade laboral por este desempenhada adjunto de seu ambiente, para configuração do nexo causal entre ambas. Dessa forma, deu-se início aos debates abarcando as psicopatologias como doença do trabalho, originadas tanto de maneira direta – causa de origem – quanto de maneira indireta – concausa / agravamento. No Brasil, constitucionalmente, houve alguns avanços tímidos no decorrer do século XX. Inicialmente, com a Constituição de 1934, a qual sedimentou várias garantias trabalhistas, dentre estas, e principalmente: a garantia de liberdade sindical; a previsão de jornada limitada a 8 horas diárias; a isonomia salarial; a proteção do trabalho do menor e da mulher; o repouso semanal remunerado; as férias anuais remuneradas, e; o salário-mínimo. Em segundo momento, na época da “Era Vargas”, com a outorga da Constituição de 1937 pelo então presidente do Brasil Getúlio Vargas. Através de seu discurso protetivo em prol dos trabalhadores, Vargas conquistou inúmeras categorias, difundindo e prometendo direitos, vantagens e liberdades. Em que pese a importância do impulsionamento e normas trabalhistas,Vargas instituiu a aplicabilidade do princípio da “unicidade sindical” no Brasil – duradouro até os dias de hoje –, determinando a possibilidade de criação de um único sindicato por categoria limitado por região, assim como instituiu o imposto sindical e atribuiu a competência normativa dos Tribunais Regionais do Trabalho para análise e julgamento das decisões em dissídio coletivo, sem a participação do Poder Legislativo. Dessa forma, toda e qualquer possibilidade de criação de sindicatos representativos das categorias deveriam ser autorizadas pelo atual governo, o qual, por sua vez, apresentava parecer positivo a classes limitadas de trabalhadores, privilegiando somente aquelas elencadas no mais alto escalão do governo, ou seja, categorias “a seu dispor” e “a seu gosto”. Ressalva-se que, na era Vargas, o exercício de greve era totalmente proibido, sendo que sua prática era considerada como ato atentatório ao país e ao governo. Avançando, tivemos a Constituição de 1946 que, além de englobar em seu texto direitos já consagrados pelas constituições anteriores, trouxe – finalmente – a legalização do direito de greve; a participação nos lucros e resultados da empresa, e; conceitos de estabilidade do trabalhador. Como pode ser vislumbrado, os pequenos avanços conquistados nas Cartas Magnas ora mencionadas não tratavam diretamente acerca de prevenções do ambiente de trabalho psíquico em si, com olhar focado nesse intuito. Tais normas foram um start regional em nosso país para 19 o reconhecimento dos direitos sociais de seus trabalhadores em prol de um trabalho digno, visando a redução de acidente físico de trabalho. A promulgação da atual CF/88 trouxe em seu escopo uma divisão histórica em nosso país. Estávamos vivendo em regime ditatorial, em tempos de violações de direitos humanos e crueldade. O país inteiro padecia e reivindicava por direitos, liberdade e fraternidade, mediante um sistema democrático, de justiça social e igualitário. Envolvido pela influência e acolhimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada em 1948 pela ONU – a qual listou em seu bojo inúmeros direitos sociais, conjugou liberdade com igualdade, priorizou os direitos humanos e o Estado Democrático de Direito, e fez da dignidade da pessoa humana a proteção maior de uma nação –, o Estado brasileiro formou a Assembleia Constituinte que, em 5 de outubro de 1988 promulgou a Constituição Cidadã, movida pelo sentimento de democracia e proteção aos direitos humanos, em prol da liberdade, da igualdade, da fraternidade e da dignidade da pessoa humana. A atual Carta Magna trouxe consigo em seu título segundo uma gama de direitos e garantias fundamentais individuais e coletivos, tipificando-os como cláusulas pétreas, nos termos de seu artigo 60, § 4º, inciso IV, e de aplicação imediata, conforme art. 5º, § 1º. A proteção à saúde física e mental dos trabalhadores está inserida expressa e implicitamente dentre as normas constitucional, em especial no art. 7º. Inciso XXII, que prevê a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” como um direito específico dos trabalhadores urbanos e rurais. A partir deste marco temporal, a preocupação a saúde psíquica dos trabalhadores passou a ser tratada normativa e constitucionalmente, abrindo um leque de possibilidades infraconstitucionais de regulamentação ao nosso Poder Legislativo, o qual passou a exercê-lo desde então. De fato, pode ser afirmado que, atualmente, a saúde e proteção dos trabalhadores e o ambiente das relações de trabalho os quais se encontram inseridos, inclusive psiquicamente, são matérias de suma importância e delicadeza tratadas pelos três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, assim como aplicadas a todas as espécies de regimes de trabalhos e trabalhadores – por exemplo: empregados celetistas, autônomos, eventuais, prestadores de serviços, servidores estatutários, etc. – sendo devidamente apurada a responsabilidade por patologias no caso de configuração do nexo de causalidade ou concausalidade. 20 2 A SÍNDROME DE BURNOUT COMO O “NOVO” MAL DO SÉCULO XXI No ano de 1974, o psicólogo estadunidense Herbert J. Freudenberger, nascido em Frankfurt, na Alemanha, foi um dos primeiros estudiosos a dedicar sua pesquisa a observância das bruscas e significativas alterações de humor, atitude, motivação e personalidade associadas à exaustão profissional. Seu trabalho resultou, inicialmente, na publicação de um artigo denominado Staff Burn-out, para justamente descrever o que era essa síndrome causada pela exaustão do trabalhador e, posteriormente, no ano de 1980, na publicação da obra Burn Out: The High Cost of High Achievement, What it is and how to survive it. Foi o psicanalista Herbert J. Freudenberger que trouxe à tona, através de seus estudos, os primeiros conceitos e definições sobre a Síndrome de Burnout, e que impulsionou a preocupação para esta psicopatologia, associando-a diretamente com o ambiente do trabalho. Mediante informações extraídas diretamente do site do Governo Federal Brasileiro na página do Ministério da Saúde, traduzindo do inglês, burn significa queima e out exterior, ou seja, em análise podemos associar a um indivíduo que põe para fora, desencadeia as suas emoções até então adormecidas e acumuladas dentro de si por meio de ato(s) explosivo(s), em razão de seu esgotamento e cansaço mental relacionado ao trabalho Dessa forma, a Síndrome de Burnout ou “Síndrome do Esgotamento Profissional” trata-se de um distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade, tendo como principal causa da doença justamente o excesso de trabalho. Esta síndrome é comum em profissionais que atuam diariamente sob pressão e com responsabilidades constantes, como médicos, enfermeiros, professores, policiais, jornalistas, dentre outros. Em conexão aos princípios e análise perpetrados pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra “Sociedade do Cansaço”, conforme debatido em tópico anterior, a Síndrome de Burnout está intimamente ligada a atual conjuntura de nossas relações sociais, direcionando- se as tarefas no meio laboral. Isto pois, os sintomas do Burnout podem acontecer, também, quando o profissional, tomado pelo positivismo, excesso de otimismo e confiança lhe entregues, planeja ou é pautado para objetivos de trabalho muito difíceis e acaba por não conseguir atingi- los ou finalizar as tarefas lhe imputadas, acreditando em sua falta de capacidade e incompetência. Tais situações somadas aos demais cenários pequenos e detalhistas, mas recorrentes, acrescidos a um ambiente de trabalho hostil e insalubre, acumulam-se dentro do próprio âmago do profissional na forma de inúmeros e confusos sentimentos, alojados e 21 escondidos, que ficam queimando-o e aguardando o momento para eclodir e libertar o interior daquele trabalhador de todo o esgotamento psíquico aglomerado dentro de si que estava lhe corroendo. No ano de 2013, antes de cogitarmos a possibilidade de um período pandêmico a nível mundial, o Ministério da Saúde realizou uma Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) visando apurar os índices de cometimento da população brasileira no que tange as doenças psíquicas. Os resultados mostraram que, naquele ano, 14,1 milhões de brasileiros se encontravam cometidos por algum transtorno ou sofrimento mental, dentre estes: depressão, ansiedade, estresse, Síndrome de Burnout, solidão conectada e dependência digital. À época, tais números já alarmavam e se mostravam significativos, contudo, em decorrência da pandemia mundial ocorrida em virtude do coronavírus, entre os anos de 2019 e 2021, estes números cresceram de forma absurda e fumegante, tanto no Brasil quanto no mundo. Consoante dados apresentadospelo próprio Governo Federal, os problemas de saúde mental têm se tornado cada vez mais comuns em todo o mundo, como, por exemplo, a ansiedade, que atinge mais de 260 milhões de pessoas, sendo que o Brasil é o país com maior índice de pessoas ansiosas, ao passo que cerca de 9,3% da população sofre com esta psicopatologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Novos dados mostram que 86% dos brasileiros sofrem com algum transtorno mental, como a ansiedade e a depressão. Por óbvio que a adaptação e a tomada de atitudes eram obrigatórias para que as nações pudessem transpassar a crise trazida pela Covid-19, em especial nas áreas da saúde e da economia, todavia, as consequências de tais condutas estão e irão ser suportadas por cada um de nós hoje e em longínquos anos futuros. As pessoas precisaram adotar um “novo estilo” de vida, precisaram se adaptar a permanecer em suas casas o dia inteiro, todos os dias, e nela realizar todas as suas atividades cotidianas e costumeiramente exercidas fora de suas residências. Passaram a trabalhar e estudar em suas casas, perdendo o contato diário com as demais pessoas, vendo-as somente virtualmente. Tiveram de despender do convívio integral com suas famílias, acomodando a rotina de cada um para encontrar hipóteses de não conglomeração de tarefas, sejam estas relacionadas ao trabalho, atividades domésticas, de cunho pessoal ou relacionadas aos estudos. De um lado, muitas práticas adotadas durante o estado pandêmico foram de bom agrado para o impulsionamento da tecnologia e do futuro das profissões em si, e irão permanecer de maneira positiva como gatilho para as relações sociais e laborais. Entretanto, impossível 22 mensurar o reflexo psíquico que este “novo estilo” de vida acarretou a cada ser humano que a ele teve que sucumbir. A pandemia, de certa forma, fez com que as doenças mentais e psíquicas ganhassem um protagonismo e fossem mais discutidas abertamente. A Síndrome de Burnout ganhou um impulso avassalador nos últimos anos, em especial, pelo fato das relações de trabalho serem inegavelmente um dos pilares atingidos durante a pandemia da Covid-19 e terem sofrido, neste estágio, um número enorme de mudanças e transformações. Sendo já denominada como o “novo” mal do século, como vimos, o Burnout não é uma psicopatologia recente, nem mesmo um gênero que pode ser aplicado livre e abertamente. Por certo, a Síndrome de Burnout é uma espécie de doença psíquica que está estritamente ligada as relações de trabalho, ao esgotamento e cansaço mental que o trabalhador tem de suportar diariamente, independentemente de sua classificação hierárquica. A intensidade é levada ao mais alto grau de desespero, interferindo em suas relações pessoais e em sua vida íntima e privada, ou seja, o que advém de seu trabalho prejudica sua vida privada e não ao contrário. Estamos vivendo em uma sociedade cansada, esgotada, tomada pelo excesso de informações e opiniões supérfluas, cobrada intensamente, paralisada pelo medo de não conseguir e que, ao mesmo tempo, é habitualmente compelida a acreditar nas exceções e na crença de que tudo é possível, basta apenas querer e ir atrás. A ausência de bom senso e percepção da realidade das coisas está nos transformando em uma sociedade de depressivos, fracassados, ansiosos e estressados, com indivíduos que terão de carregar sua pesada carga de derrotismo na alma pelo resto de suas vidas. 3 SAÚDE MENTAL DOS TRABALHADORES NA ERA DIGITAL: IMERSÃO DO MUNDO VIRTUAL O Tribunal Superior do Trabalho (TST), já em período pós-pandémico, apresentou estatística muito importante através de matéria publicada em seu sítio eletrônico, demonstrando a mensuração de parte do impacto da turbulência mental gerada pela Covid-19, validando o aumento exponencial de benefícios previdenciários por doenças psíquicas e mentais concedidas no ano 2020. Dados fornecidos pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho apontam que, em 2020, a concessão de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez decorrente de transtornos mentais e comportamentais bateu recordes: foram mais de 576 mil afastamentos, uma alta de 26% em relação ao ano de 2019. No caso do benefício de auxílio-doença, os afastamentos por motivos de psicopatologias como a depressão e a ansiedade registraram a maior alta entre as 23 principais doenças indicadas como razão para o pedido deste benefício, sendo que, o número de concessões passou de 213,2 mil, no ano de 2019, para 285,2 mil, no ano de 2020, com aumento de 33,7%. A duração média de afastamento do beneficiário, nos casos de psicopatologias, é de 196 dias. Importante dizer que o benefício auxílio-doença mencionado acima é aquele não relacionado a acidente ou doença de cunho ocupacional. Dentre os principais fatores determinantes para este crescimento, se encontram a inadaptação dos trabalhadores ao home office, o acúmulo de tarefas profissionais e domésticas, o endividamento, as incertezas sobre o futuro, a ansiedade, a depressão, a síndrome do pânico, dentre outros. O Comitê Gestor do Programa Trabalho Seguro da Justiça do Trabalho elenca entre as principais causas do surgimento ou da intensificação de problemas relacionados à saúde mental no ambiente de trabalho a exposição ao assédio moral e sexual, jornadas exaustivas, atividades estressantes, eventos traumáticos, discriminação, perseguição da chefia e metas abusivas. Entretanto, no período da pandemia, eles são acrescidos das mudanças decorrentes do teletrabalho, da sobrecarga de trabalho no setor de saúde e nos riscos diários a que se expõem homens e mulheres que precisam trabalhar presencialmente. A rápida adaptação imposta a todos os trabalhadores durante o período pandêmico alavancou uma nova realidade tecnológica nas relações de trabalho, a nível nacional e mundial. As comunicações, informações, interações e a própria presença física das pessoas se transformaram em modelo virtual, vindo a internet assumir um papel fundamental ao auxiliar na continuidade do convívio entre os indivíduos e nas prestações de serviços, bem como permitir a abertura de um conhecimento evolutivo, até então, total ou parcialmente desconhecido pelas pessoas. O que estamos presenciando atualmente na área tecnológica pode ter sido, de fato, algo novo ou, então, um impulsionar do que ainda estava por vir, mas que acabou sendo antecipado em razão das condições ora impostas pela pandemia da Covid-19. Independente desta resposta, resta claro que a estrutura das relações de trabalho nunca mais serão as mesmas. Estamos vivendo na conhecida Quarta Revolução Industrial – ou Indústria 4.0 –, um conceito extremamente amplo, que engloba a automação industrial e a integração de diferentes tecnologias, que visam, dentre seus objetivos, facilitar as tarefas cotidianas com a utilização das tecnologias, melhorar a eficiência e produtividade dos processos, e promover a digitalização 24 das atividades industriais. Nas palavras do engenheiro e economista alemão Klaus Martin Schwab, Fundador e Presidente Executivo do Fórum Econômico Mundial, ao envolver o tema em sua aclamada obra “A Quarta Evolução Industrial”: Imagine as possibilidades ilimitadas de bilhões de pessoas conectadas por dispositivos moveis, dando origem a um poder de processamento, recursos de armazenamento e acesso ao conhecimento sem precedentes. Ou imagine a assombrosa profusão de novidades tecnológicas que abrangem numerosas áreas: inteligência artificial, robótica, internet das coisas, veículos autônomos, impressão 3D, nanotecnologia, biotecnologia, ciência dos materiais, armazenamento de energia e computação quântica, para citar apenas algumas (SCHWAB, 2016, p. 15). Essencial compreender que, assim como o mundo das atividades laborais, a própria sociedade está ingressando em um período vital de evolução de suas técnicas. As máquinas acabaram por se tornarimportantes em nossas vidas, de forma alguma para nos substituir ou tomar nosso lugar em determinada atividade, mas sim, para realização de tarefas repetitivas e fáceis, que se tornaram obsoletas. Nesta perspectiva, é alcançada ao indivíduo a oportunidade de dedicação a tarefa de maior complexidade técnica. O profissional do futuro será aquele que se adaptar à nova era digital a qual estamos vivenciando. Ora, mas ainda nem mesmo conseguimos nos adaptar ao mundo pós-pandemia, como iremos nos enquadrar ao mercado de trabalho em um futuro tomado pela incerteza de uma era ainda em construção? Esta indagação deve ser refletiva e analisada em conjunto com os dados mencionados no início deste tópico, que apontam o aumento torrencial na identificação de indivíduos, no Brasil, enfermos com alguma doença psíquica, entre os períodos anterior e posterior a pandemia do coronavírus, apurados através da base de concessões dos benefícios previdenciários de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. A saúde mental da sociedade como um todo foi extremamente afetada em razão da pandemia da Covid-19, ocorrida entre os anos de 2019 e 2021, contudo, a categoria que maior se destaca, sem qualquer dúvida que possa pairar, é a classe dos trabalhadores. Os regimes de teletrabalho e trabalho remoto impostos, bem como a obrigatoriedade de moldagem a esta nova estrutura, com todas as particularidades que lhe são advindas, por certo representam o cansaço excessivo demonstrados por aqueles que necessitaram permanecer no labor remotamente em suas residências. O acúmulo das tarefas laborais com as atividades de 25 cunho pessoal – muitas vezes, de caráter educacional aos filhos, vindo os pais a assumirem verdadeiros papéis de professores dentro de casa – certamente culminou ou, no mínimo, auxiliou a constituir o trabalhador depressivo e reflexivo sobre a sua própria vida e existência, com questionamentos aquém de seu saber e com sentimento de incapacidade, sensações características da Síndrome de Burnout. O retorno ao mercado de trabalho, seja presencialmente em período pós-pandêmico ou em forma de readaptação funcional, exigirá do trabalhador uma preparação a frente de suas capacidades atuais, impondo sua adequação ao novo mundo cibernético e tecnológico, com atualização momentânea de informações e postura limpa, inócua e de raciocínio rápido perante todas as situações. Infelizmente, não é esse o quadro geral vislumbrado atualmente no que tange aos trabalhadores brasileiros. À vista das ponderações ora aduzidas, está mais do que na hora do Estado atribuir a importância devida a causa em debate. É o momento de tornarmos real – finalmente – as doenças mentais, aquelas desacreditadas e esquecidas, que se proliferam dentro de cada um de nós, a nosso jeito singular e único de sentir e sofrer; e de reconhecermos o cansaço e o esgotamento mental dos trabalhadores. A classificação da Síndrome de Burnout como uma doença relacionada ao trabalho – objeto abordado no próximo tópico – é mais do que uma conquista, é uma demonstração de empatia pelo próximo, é conseguir enxergar além de si mesmo e compreender, mesmo que timidamente, o sentimento e a dor do outro. 4 A SÍNDROME DE BURNOUT E SUA CONFIGURAÇÃO COMO DOENÇA DO TRABALHO Sui generis, a Síndrome de Burnout é uma espécie de distúrbio psicológico relacionado ao trabalho que afeta milhares de pessoas em todo o mundo. Encontra-se em grande crescimento e evidência, tornando-se cada vez mais conceituada ao lado de outras grandes e conhecidas doenças psíquicas recorrentes, como, por exemplo, a depressão, a ansiedade, o estresse generalizado e a síndrome do pânico. É caracterizada por uma sensação de esgotamento e exaustão emocional, despersonalização e redução do desempenho no trabalho, independentemente da profissão exercida e enquadramento na cadeia hierárquica, podendo fazer que o trabalhador sofra impactos significativos em sua saúde física e mental, transpassando os reflexos do cotidiano laboral para o caráter de sua vida pessoal e privada. 26 Diante desse cenário, a OMS classificou, em 1º de janeiro de 2022, a Síndrome de Burnout como uma doença ocupacional – a CID 11 – mediante seu enquadramento na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. Dentre as repercussões que esta decisão encadeia, primeiramente, de sorte, os trabalhadores diagnosticados passam a ter as mesmas garantias trabalhistas e previdenciárias previstas para as demais doenças do trabalho, ao passo que o reconhecimento do benefício por incapacidade laborativa em face de doença e/ou acidente do trabalho (B91) implica no advento de inúmeros direitos ao trabalhador, dentre estes: estabilidade de 12 meses quando do retorno ao trabalho – nos termos do artigo 118 da Lei nº. 8.213/91 –, depósitos fundiários durante o período que permaneceu em gozo do benefício previdenciário, mantença no plano de saúde da empresa para realização de seu tratamento e indenizações por parte da empresa. Em continuidade, há inferências, também, na seara cível, ao passo que a configuração e apuração do elemento culpa em lato sensu será subjetiva, devendo ser analisado e provado o tripé: dano, conduta ilícita e nexo causal. A responsabilidade do empregador e seu eventual dever de indenizar deverá ser enquadrado ao caso concreto, sendo de suma importância apontar que os ramos do direito trabalho e do direito previdenciário são independentes e autônomos e, ainda que possam vir a servir de auxílio um ao outro, suas decisões não são vinculadas, não possuem efeitos contraditórios ou formam coisa julgada ou litispendência em relação a seara diversa. Em que pese a decisão relativamente recente por parte da OMS em classificar a Síndrome de Burnout como uma doença ocupacional, os nossos tribunais trabalhistas já lidam com a temática há tempos, julgando em suas decisões casos concretos envolvendo esta psicopatologia. Em referência, no ano de 2017, nosso Egrégio TST publicou reportagem em seu sítio eletrônico abarcando o assunto, enfatizando acerca da importância de conscientização do tema e aplicando penalidade pecuniária exorbitante a empresa reclamada a título de danos morais, mediante o entendimento de caracterização de forte dano ao seu trabalhador, vítima da de Síndrome de Burnout. Vejamos trecho da reportagem: O HSBC Bank Brasil S.A. Banco Múltiplo foi condenado a pagar R$ 475 mil em indenização por danos morais a um ex-bancário que se aposentou aos 31 anos, vítima de síndrome de burnout. A Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho desconsiderou o 27 argumento do banco de que o valor é “absolutamente exagerado” diante do caso, e negou provimento a seu recurso contra a condenação. A síndrome de burnout é um distúrbio psíquico resultante de tensão emocional e estresse crônicos provocados por condições de trabalho físicas, emocionais e psicológicas desgastantes. Segundo o processo, a partir de 1994, o ex-bancário passou a ser perseguido pelo seu superior hierárquico com práticas vexatórias e humilhantes, com uso de apelidos pejorativos, ameaças explícitas de demissão, cobranças excessivas, piadas de mau gosto e questionamentos quanto à sua sexualidade, entre outras. Afastado do trabalho por doença ocupacional em 2003, o empregado foi aposentado por invalidez dois anos depois. (...) O número do processo foi omitido para preservar a privacidade do trabalhador. (grifo nosso) Sem sombra de dúvidas, a Justiça do Trabalho, uma das pioneiras nos princípios protetivos aos trabalhadores hipossuficientes, se coloca desde os seus primórdios à disposição daqueles que a procuram, mediante decisões de cunho racional e voltados aos seus fundamentos basilares. Com a temática ora proposta não seria diferente, à medida que a aborda em seus julgamentos de maneira plena e congruente, primando pelo bem-estar,segurança e defesa daqueles que assumem os papeis dianteiros no avanço da economia do país através de sua mão de obra. Dentre os princípios destacados atualmente pela Justiça do Trabalho e vinculado diretamente como agente intensificador da Síndrome de Burnout, quando não observado, encontra-se o direito a desconexão. Os direitos fundamentais da pessoa humana estão intimamente ligados ao direito a desconexão, em especial, o direito à vida privada e a intimidade, elencados nos artigos 5°, inciso X, e 6° da CF/88. Tais premissas objetivam preservar o equilíbrio entre a vida profissional e a vida particular do indivíduo, sem qualquer pretensão danosa ao mercado de trabalho, porém sim, visando o resguardo do bem-estar humano e social (ALMEIDA, SILVA, 2023, p. 78-79). Em que pese os grandes avanços e as informações já disseminadas, ainda muitos trabalhadores temem a busca pela desconexão digital por temerem represálias e prejuízos em seu emprego, como a dispensa da empresa ou perca de possível promoção. Entretanto, o condicionamento desta espécie de pensamento somente retarda a necessidade de reabilitação do ser humano acometido pela síndrome, incluso seu desligamento pela empresa em tempo definido como 28 forma de contenção de danos, com a possibilidade de nova aparição de sintomas em trabalhador diverso substituto (ALMEIDA, SILVA, 2023, p. 80). Ante o exposto, destaca-se a importância efetiva das empresas e organizações trabalharem e adotarem práticas para o fornecimento de um ambiente de trabalho seguro, saudável e digno aos seus trabalhadores, garantindo que a carga de trabalho seja gerenciável e que haja tempo suficiente para descansar e se recuperar, garantindo, ainda, um equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, de sorte, que o labor não se torne uma fonte de estresse constante. CONCLUSÃO A necessidade de nos desconectarmos deste encadeamento tecnológico perpetrado pela Indústria 4.0 e moldado por uma verdadeira rede integrada a todo momento e em todos os lugares, contendo informações em tempo real e sobre todos os assuntos, torna-se fundamental para a essência de nossa própria origem e para nosso descanso mental. Notadamente, houve assertiva por parte da OMS do reconhecimento da Síndrome de Burnout como uma doença ocupacional. Não obstante a mensuração teórica possível para o momento, as implicações efetivas serão vislumbradas prática e concretamente a posterior. O que resta de concreto é a conscientização da interdisciplinaridade da matéria, de sua importância fundamental e da certeza das consequências negativas para a saúde física e mental dos trabalhadores acaso não consideradas. Os reflexos podem ser singulares em primeira oportunidade, contudo, a máxima se expandirá a todas as relações econômicas e sistemas a ela agregados em segundo momento, desentoando na sociedade como um todo. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Saulo Carvalho; SILVA, Ticianne Lourenço. Tecnologia e o novo mundo do trabalho: a síndrome de burnout e o necessário reconhecimento de um direito a desconexão laboral. Revista Eletrônica do TRT-PR. Curitiba: TRT-9ª Região, V. 12 n. 119, p. 67-87, Abr. 2023. FOUCAULT, M. (1975). Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Tradução brasileira de Raquel Ramalhete. 18ª edição – Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. Governo Federal, Ministério da Educação. Disponível em: <https://www.gov.br/ebserh/pt- br/comunicacao/noticias/acoes-realizadas-pela-rede-ebserh-mec-buscam-conscientizar-sobre- a-importancia-da-saude-mental>. Acesso em: 24 set. 2023. https://www.gov.br/ebserh/pt-br/comunicacao/noticias/acoes-realizadas-pela-rede-ebserh-mec-buscam-conscientizar-sobre-a-importancia-da-saude-mental https://www.gov.br/ebserh/pt-br/comunicacao/noticias/acoes-realizadas-pela-rede-ebserh-mec-buscam-conscientizar-sobre-a-importancia-da-saude-mental https://www.gov.br/ebserh/pt-br/comunicacao/noticias/acoes-realizadas-pela-rede-ebserh-mec-buscam-conscientizar-sobre-a-importancia-da-saude-mental 29 Governo Federal, Ministério da Saúde. Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt- br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/sindrome-de-burnout#:~:text=S%C3%ADndrome%20de%20Bur nout%20ou%20S%C3%ADndrome,demandam%20muita%20competitividade%20ou%20resp onsabilidade>. Acesso em: 24.set.2023. Grupo Globo, Gente. Disponível em: <https://gente.globo.com/sociedade-do-cansaco/>. Acesso em: 24 set. 2023. HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução brasileira de Enio Paulo Gianechini. 2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. Tribunal Superior do Trabalho (TST). Disponível em: <https://www.tst.jus.br/noticias/- /asset_publisher/89Dk/content/id/27270562/pop_up>. Acesso em: 26 set. 2023. Tribunal Superior do Trabalho (TST), Notícias. Disponível em: <https://www.tst.jus.br/- /mantida-indenizacao-a-bancario-aposentado-aos-31-anos-por-sindrome-de-burnout>. Acesso em: 28 set. 2023. Tribunal Superior do Trabalho (TST), Programa Trabalho Seguro: Programa Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho. 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Os dilemas éticos e jurídicos abordados, como a priorização de pacientes, riscos ocupacionais, carga de trabalho excessiva e escassez de recursos, ilustram a complexidade desse tipo de atendimento. É evidente que a tomada de decisões éticas e legalmente sólidas é fundamental nesse contexto. A capacitação ética e a orientação jurídica são ferramentas essenciais para profissionais de saúde, permitindo-lhes lidar com situações complexas enquanto protegem os direitos e o bem-estar dos pacientes. Além disso, destacamos a importância das políticas institucionais que promovam a ética no atendimento de urgência. Uma cultura organizacional que priorizea ética e o apoio psicológico adequado para os profissionais de saúde que enfrentam situações emocionalmente desafiadoras são cruciais para enfrentar esses dilemas de maneira responsável e compassiva. Em última análise, enfrentar esses dilemas é essencial para garantir que os pacientes recebam o atendimento adequado em situações delicadas de saúde, ao mesmo tempo em que protegemos os direitos e o bem-estar dos profissionais de saúde. Este estudo destaca a necessidade contínua de equilibrar a ética e a legalidade no atendimento de urgência, com a esperança de que uma abordagem consciente e responsável possa levar a resultados mais satisfatórios em momentos críticos. Palavras-chave: Saúde; Urgência; Ética; Riscos; Legislação. INTRODUÇÃO A área da saúde é inegavelmente um campo de complexidades e desafios constantes, onde os profissionais dedicam suas vidas à preservação da saúde e ao bem-estar dos indivíduos. No bojo dessa responsabilidade encontra-se o atendimento de urgência. Essa é uma função determinante que opera na fronteira entre a vida e a morte, entre a decisão e a ação imediata. Quando nos deparamos com a necessidade urgente de assistência médica, a extrema relevância desse serviço torna-se evidente, pois é um momento em que cada segundo conta e cada escolha pode ter implicações duradouras. 1 Advogado. OAB/RS 75.077. Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Pós-graduado em Direito Penal Empresarial. E-mail:anderson.borba@outlook.com. 2 Advogado. OAB/RS 61.862. Pós-graduado em Direito Médico e da Saúde. Membro da Comissão Especial da Saúde da OAB/RS. E-mail: josecarrazzonijr@gmail.com. 31 Nesse contexto, os profissionais de saúde são frequentemente confrontados com dilemas éticos e jurídicos que transcenderam as fronteiras do simples diagnóstico e tratamento. A agilidade requerida para salvar vidas muitas vezes exige decisões rápidas e cruciais, envolvendo escolhas que podem ser moldadas por diferentes fatores, como recursos limitados, gravidade do quadro clínico, valores pessoais do paciente e familiares, além das normas regulatórias que norteiam a prática médica. O tensionamento entre agir com celeridade e agir com precisão ética se estabelece como uma constante preocupação para aqueles que se dedicam a esse campo. Este estudo se concentra em explorar e analisar os dilemas éticos e jurídicos que surgem no cenário de atendimento de urgência, abordando questões críticas como a priorização de pacientes, riscos ocupacionais, carga de trabalho extenuante e escassez de recursos. Cada um desses desafios representa um dilema delicado que requer uma abordagem cuidadosa e ética. A priorização de pacientes, por exemplo, impõe aos médicos a tarefa angustiante de decidir quem recebe atendimento imediato. Esta é uma decisão que não apenas impacta a vida dos pacientes, mas também coloca os profissionais de saúde em uma posição de extrema responsabilidade, tanto do ponto de vista ético quanto jurídico. Além disso, a carga de trabalho esmagadora e a exaustão associada a ela podem comprometer a qualidade do atendimento, criando um conflito entre o dever de cuidar dos pacientes e o autocuidado dos profissionais de saúde. Esses desafios podem ser agravados pela escassez de recursos, que pode levar a decisões difíceis sobre como agir de forma justa e ética. No âmbito dessas questões, os conflitos de valores e crenças entre profissionais de saúde e pacientes podem surgir, destacando a importância da comunicação eficaz e do respeito às escolhas individuais. A responsabilidade legal e o registro adequado também são cruciais para proteger os direitos e interesses de todas as partes envolvidas. Este estudo busca não apenas identificar esses dilemas, mas também enfatizar a necessidade de capacitação ética e orientação jurídica para profissionais de saúde, bem como políticas institucionais que promovam a ética no atendimento de urgência. Além disso, reconhecemos a importância do apoio psicológico adequado para profissionais de saúde que enfrentam situações emocionalmente desafiadoras. Em última análise, a abordagem responsável e compassiva desses dilemas é fundamental para garantir o melhor atendimento possível em momentos críticos de saúde. 32 1 PRIORIZAÇÃO DE PACIENTES: O CONFLITO DA ESCOLHA A priorização de pacientes em situações de emergência é um dilema ético que confronta constantemente médicos e demais profissionais de saúde. A decisão sobre quem receberá atendimento prioritário, em um ambiente, que, muitas vezes, apresenta quantidade limitada ou insuficiente de recursos disponíveis para atender às necessidades, é uma questão complexa que levanta preocupações fundamentais sobre equidade e justiça na distribuição de cuidados médicos. A partir desse ponto vamos explorar minuciosamente os intricados desafios éticos que permeiam o processo da tomada de decisões cruciais associadas à priorização de pacientes, a partir da ótica do médico, e, ao mesmo tempo, instigar uma profunda reflexão acerca do delicado equilíbrio necessário entre as demandas individuais e as restrições sistêmicas que caracterizam esse contexto. Para os médicos, a priorização de pacientes em situações de emergência é uma responsabilidade frequentemente angustiante. A necessidade de tomar decisões rápidas e precisas, muitas vezes com informações limitadas, pode ser avassaladora. Além disso, essas decisões podem afetar profundamente a vida e o bem-estar dos pacientes, bem como gerar um peso emocional significativo para os profissionais. É importante não perder de concepção, conforme estabelecido no Código de Ética Médica, no Capítulo I, dos Princípios Fundamentais que: II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional. III - Para exercer a medicina com honra e dignidade, o médico necessita ter boas condições de trabalho e ser remunerado de forma justa. Para que isso ocorra os médicos são treinados para fornecer cuidados de saúde com base em princípios éticos, incluindo a equidade e a justiça. No entanto, em situações de meios restritos, esses princípios podem ser testados ao máximo. Os médicos devem equilibrar a necessidade de tratar todos os pacientes com a realidade dos meios disponíveis. Essa perspectiva pode ser muito bem ilustrada pela Resolução CFM nº 2.156/2016, emitida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que fornece diretrizes específicas para a priorização de admissão na unidade de tratamento intensivo (UTI). Essa resolução estabelece critérios claros com base na condição clínica dos pacientes, probabilidade de recuperação e limitações terapêuticas. Esses parâmetros fornecem um guia importante para a tomada de decisões éticas sobre a alocação de meios limitados. 33 Além disso, a Resolução CFM nº 2.110/2014, que dispõe sobre a normatização do funcionamento dos Serviços Pré-Hospitalares Móveis de Urgência e Emergência em todo o território nacional, enfatiza a importância de priorizar os atendimentos primários em domicílio, ambiente público ou via pública, por ordem de complexidade. O Artigo 5º dessa resolução declara: Art. 5º. O serviço pré-hospitalar móvel de urgência e emergência deve, obrigatoriamente, priorizar os atendimentos primários em domicílio, ambiente público ou via pública, por ordem de complexidade, e não a transferência de pacientes na rede. Quando questionado sobre “Qual a melhor conduta a ser tomada referente a sobrecarga de atendimento de médicos plantonistas em um pronto-atendimento e pronto-socorro”, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo expediu a Consulta nº 124.524/06, garantindo que: Há que se ter claro que cabe à direção prever todosos meios necessários para que não ocorram situações de risco aos pacientes que buscam o pronto-socorro. Pode ser indicado um médico, o mais experiente da equipe, o mais preparado, proceder à triagem, selecionando os casos com prioridade e encaminhando os demais que possam ser atendidos em outros serviços. É importante considerar também que comunicar as decisões de priorização aos pacientes e seus familiares é uma etapa crítica e sensível no processo de cuidados médicos em situações de emergência. Quando a necessidade de tomar decisões difíceis se torna imperativa, médicos enfrentam o desafio de equilibrar a necessidade de transparência com a delicadeza necessária para não aumentar o sofrimento emocional dos envolvidos. A falta de uma estrutura adequada, ou ainda equipamentos médicos essenciais e até mesmo profissionais de saúde disponíveis, pode levar a decisões que afetarão diretamente a vida dos pacientes e seus acompanhantes. Nesses momentos críticos, é fundamental que os médicos comuniquem essas decisões de maneira empática e compassiva. Isso significa não apenas fornecer informações sobre as decisões tomadas, mas também criar um espaço para ouvir as preocupações e dúvidas dos pacientes e de seus familiares. Destaca-se que o Código de Ética Médica, no capítulo que trata da relação com pacientes e familiares, proíbe ao médico: Art. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. 34 A priorização de pacientes em situações de emergência, sob a ótica do médico, é um dilema ético que demanda uma combinação de julgamento clínico, princípios éticos e a orientação de diretrizes advindas do Código de Ética Médica e demais resoluções. Médicos diariamente enfrentam a difícil tarefa de tomar decisões críticas em momentos de capacidades limitadas, com o objetivo de fornecer cuidados de saúde de qualidade. Estabelecer critérios claros, transparentes e objetivos, bem como garantir a comunicação eficaz com os pacientes e suas famílias, são passos fundamentais para enfrentar esse desafio ético de maneira mais justa e equitativa. 2 RISCOS OCUPACIONAIS E PROTEÇÃO DOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE No âmbito das urgências médicas, a dedicação inabalável dos profissionais de saúde em fornecer assistência imediata muitas vezes os coloca diante de uma série de riscos ocupacionais complexos e desafiadores. O ambiente do atendimento de urgência é caracterizado pelo ritmo acelerado, imprevisibilidade das demandas e a necessidade da adoção de decisões rápidas e precisas. Nesse cenário, os profissionais enfrentam uma gama diversificada de perigos, que variam desde exposição a doenças altamente contagiosas até riscos físicos decorrentes de procedimentos médicos invasivos. O atendimento de urgência coloca os profissionais de saúde em contato direto com pacientes que frequentemente chegam com condições médicas graves e muitas vezes desconhecidas. A exposição a patógenos infecciosos, vírus emergentes, bactérias resistentes e outras doenças transmissíveis, é um risco inerente a esse serviço. Mesmo em se tratando de procedimentos de reanimação, administração de medicamentos e realização de cirurgias de emergência, tais intervenções médicas envolvem desafios físicos que colocam em risco a saúde dos profissionais. A legislação brasileira concernente à saúde e segurança no ambiente de trabalho apresenta uma estrutura escalonada, abrangendo diversos níveis de regulamentação para assegurar um ambiente laboral seguro e saudável. Essa base legal é inaugurada em linhas gerais pela Constituição Federal, já a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) adiciona detalhes específicos, delineando responsabilidades e direitos tanto para empregados quanto para empregadores. Complementando essa estrutura, as Normas Regulamentadoras (NRs), como a NR-32, definem padrões mais específicos e adaptados a setores particulares, como os serviços de saúde, onde os riscos podem ser distintos. Paralelamente, a Lei nº 8.080/1990 amplia a perspectiva ao enfatizar a colaboração entre os sistemas de saúde e trabalho para a promoção, 35 proteção e recuperação da saúde em geral. Essa abordagem estruturada reflete o compromisso do ordenamento em garantir um ambiente de trabalho seguro e saudável, levando em consideração os princípios constitucionais e adaptando-os às necessidades específicas de diversos setores e trabalhadores. Estabelecendo um ponto de partida legal, a Constituição Federal (CF) institui princípios e diretrizes relacionados à saúde e segurança dos trabalhadores, incluindo, obviamente, os profissionais de saúde que atuam em situações de urgência. A disposição constitucional mais relevante encontra-se insculpida no Artigo 7º, inciso XXII, CF, referindo que são direitos dos trabalhadores urbanos, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança”. O Artigo 196 da Constituição Federal é um dos principais balizadores, dispondo que a “saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos, bem como ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” Torna-se evidente que a proteção da saúde e da segurança dos profissionais que atuam em situações de urgência na área da saúde não é apenas uma questão regulatória, mas também um imperativo constitucional. A preservação da saúde desses profissionais não só reflete o respeito pelos princípios fundamentais da Carta Magna, mas também é essencial para garantir a qualidade e a eficácia dos serviços de atendimento de urgência, reforçando a relevância contínua de medidas que assegurem um ambiente de trabalho seguro e saudável para esses dedicados profissionais. Ressaltando com clareza a abrangência das responsabilidades do Sistema Único de Saúde (SUS), o Artigo 200, Inciso VIII, CF, estabelece a sua competência em colaborar na proteção do meio ambiente, incluindo o ambiente de trabalho. Através desse dispositivo, reconhece-se a conexão intrínseca entre a saúde dos trabalhadores e a preservação do ambiente em que eles desempenham suas atividades. A disposição constitucional reflete a importância da criação de um ambiente laboral seguro e saudável, onde os profissionais possam realizar suas funções sem estarem expostos a riscos ocupacionais prejudiciais. Ao considerar o meio ambiente do trabalho como parte integrante de sua missão, o SUS reafirma seu compromisso em assegurar não apenas o bem-estar dos indivíduos, mas também a promoção da saúde em um sentido mais amplo, abordando as condições nas quais o trabalho é executado. 36 A Norma Regulamentadora 32 (NR-32) é especialmente relevante para os profissionais de saúde, porque ela estabelece diretrizes para a segurança e saúde no trabalho em serviços de saúde, incluindo ambientes hospitalares e de atendimento médico. A NR-32 aborda diversos aspectos relacionados à proteção dos profissionais de saúde, como: (a) a obrigatoriedade do fornecimento, uso e treinamento relacionado aos equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados para os riscos presentes nos ambientes de saúde; (b) medidas para prevenir a exposição a agentes biológicos, como vírus, bactérias e outros patógenos presentes em ambientes de saúde; (c) adoção de medidas para evitar acidentes com objetos perfurocortantes, como agulhas e bisturis; (d) implementação do Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA), que é voltado para a identificação, avaliação e controle de riscos ambientais presentes nos locais de trabalho; e, (e) adoção do Programa de Controle Médico deSaúde Ocupacional (PCMSO) é outro programa obrigatório que visa a promoção e preservação da saúde dos trabalhadores, incluindo exames médicos específicos para os riscos ocupacionais enfrentados pelos profissionais de saúde. Por seu turno, a Lei nº 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde no Brasil, não trata especificamente da segurança do trabalho de forma detalhada como faz a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ou as Normas Regulamentadoras (NRs). No entanto, mesmo que não aborde diretamente sobre segurança do trabalho, é importante notar que ela contribui para um ambiente de trabalho mais seguro de maneira indireta. Isso porque a lei enfatiza a importância da promoção da saúde, proteção contra riscos à saúde e recuperação das condições de bem-estar. Portanto, ela pode ser interpretada como um suporte para políticas e ações que visam à melhoria das condições de trabalho em geral, inclusive a segurança do trabalho. Para assegurar a segurança e proteção dos profissionais de saúde no atendimento de urgência, uma abordagem multifacetada é essencial. A implementação de protocolos rigorosos de higiene e prevenção de infecções é um passo crucial para minimizar a exposição a patógenos. Isso inclui o uso adequado de EPIs, como luvas, máscaras, aventais e óculos de proteção. Além disso, a formação contínua acerca das medidas de segurança, manejo em situações de alto risco e técnicas de comunicação eficazes em momentos críticos são componentes essenciais para a preparação de profissionais de saúde para lidar com situações críticas. Outra abordagem importante envolve a criação de ambientes de trabalho seguros e saudáveis. Isso inclui a disponibilização de instalações adequadas, equipamentos de alta qualidade e sistemas de suporte, inclusive psicológico, para lidar com o estresse e o trauma 37 associados ao atendimento de urgência. Além disso, a legislação e as políticas públicas devem ser revistas e atualizadas regularmente para garantir que os direitos e a segurança dos profissionais de saúde sejam devidamente reconhecidos e protegidos. Não se pode ignorar que os profissionais de saúde que atuam em situações de urgência enfrentam riscos ocupacionais significativos que podem afetar a saúde física e mental. A análise cuidadosa desses riscos e a implementação de medidas de proteção adequadas são fundamentais para assegurar que esses profissionais possam exercer seu papel crucial na prestação de cuidados de emergência, mantendo sua segurança e bem-estar como prioridade. 3 CARGA DE TRABALHO E EXAUSTÃO: O IMPACTO NA QUALIDADE DO ATENDIMENTO Segundo os dados do relatório “Diretrizes sobre Saúde Mental no Trabalho”, publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em setembro de 2022, estima-se que 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos anualmente por causa da depressão e da ansiedade, custando à economia mundial quase 1 trilhão de dólares. No Brasil, de acordo com o Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), 209.124 mil pessoas foram afastadas do trabalho por transtornos mentais, entre depressão, distúrbios emocionais e Alzheimer em 2022. As diretrizes da OMS e da OIT apresentam dez fatores de risco para saúde mental, tais como: conteúdo do trabalho/desenho da tarefa, carga e ritmo de trabalho, horário de trabalho, baixa participação nas decisões relativas ao trabalho, adequação de ambiente e equipamentos, cultura e função organizacional, relações interpessoais no trabalho, papel na organização, preocupações com o desenvolvimento da carreira e questões relativas à interface casa-trabalho. O “Informe Mundial de Saúde Mental: transformar a saúde mental para todos”, publicado em junho de 2022 pela OMS, demonstra que transtornos mentais são a principal causa de incapacidade e causam um em cada seis anos vividos com incapacidade. Pessoas com condições graves de saúde mental morrem em média 10 a 20 anos mais cedo que a população em geral, especialmente devido a doenças físicas evitáveis. Ainda segundo o relatório, 15% dos adultos vivem com algum transtorno mental, como depressão e ansiedade. O aprofundamento no estudo das consequências ao psíquico dos trabalhadores, geradas pelos estressores, resulta no surgimento do termo burnout, designando aquilo que deixou de funcionar por exaustão energética, expresso por meio de um sentimento de fracasso causado por um excessivo desgaste de energia e recursos. A síndrome de Burnout instala-se quando 38 situações de enfrentamento do estresse profissional prolongado e crônico não foram utilizadas, falharam ou não foram suficientes (MENZANI, 2006; MUROFUSE; ABRANCHES; NAPOLEÃO, 2005). O Ministério da Saúde descreve a síndrome de burnout, também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, como um distúrbio emocional com sintomas de exaustão estrema, estresse e esgotamento físico resultante de situações de trabalho desgastante, que demandam muita competitividade ou responsabilidade. Ao definir esta síndrome (SCHMIDT; DANTAS,2006) relatam que ela se caracteriza por três diferentes componentes: exaustão emocional, despersonalização e ausência de realização profissional e que acomete, geralmente, os profissionais que trabalham em contato direto com pessoas como os trabalhadores da saúde. Atualmente, o conceito de burnout é considerado um dos desdobramentos mais importantes do estresse ocupacional. Segundo o relatório “Demografia Médica no Brasil – 2023”, especialmente no período de pandemia, houve considerável aumento da demanda no atendimento de casos agudos, cuidados intensivos e de emergência, somado à necessidade de realizar triagem, testagem e vigilância, além de garantir atendimentos essenciais não associados à covid-19 (SCHEFFER, 2023). Deste modo, profissionais de saúde, médicos dentre eles, foram submetidos a condições inadequadas de trabalho, falta de equipamento de proteção e longas jornadas de trabalho, aumentando os riscos à saúde e à vida (DAL POZ; SCHEFFER, 2022). No mesmo sentido, foram relatadas práticas de jornadas excessivas dos residentes, problema que precisa ser contornado, pois investigações já demonstraram relação direta entre alta carga horária e má qualidade de vida, podendo contribuir para maior incidência de burnout, estresse, depressão e fadiga (SCHEFFER, 2023). Como se vê, o trabalho desenvolvido pelos profissionais da saúde, por sua própria natureza e características, se revela especialmente suscetível ao fenômeno do estresse ocupacional. O ambiente hospitalar destaca-se como importante fonte geradora de estresse, merecendo especial destaque as unidades de urgência e emergência, permeadas de situações que envolvem conflitos e tensões passíveis de gerarem estresse, intimamente ligadas ao número de atendimentos excedente à capacidade da unidade de saúde. Além do mais, são exigidos dos profissionais de saúde conhecimentos técnicos, científicos, habilidades e competências que devem se expressar em respostas rápidas. Uma equipe que atua em emergência se depara com inúmeras situações, podendo estas ser 39 desencadeadoras tanto de satisfação, quanto de frustração, sofrimento, impotência, dentre outros. Ao cuidar de pessoas que em muitas situações estão em risco iminente de morte, onde a assistência requer respostas rápidas e imediatas da equipe e qualquer erro pode implicar na morte do paciente, acaba por desencadear comportamentos inadequados à saúde dos profissionais, como, por exemplo, posturas ergonomicamente inadequadas e tensão emocional. A sobrecarga de trabalho não acontece exclusivamente pelo excesso de horas de trabalho, mas sim às condições inerentes ao exercício do trabalho, como carga horária excessiva, falta de funcionários e recursos materiais, além da falta de suporte profissional e emocional, sendo também necessário considerar que as atividades desenvolvidas poresses profissionais exigem intensamente habilidades emocionais e cognitivas que contribuem para seu desgaste. Ainda que previsto em lei, é perceptível que nem sempre tem sido assegurada a proteção e promoção da saúde para o profissional em seu ambiente de trabalho. A relação do profissional com o trabalho constitui fator importante na apresentação de morbidades que podem estar associadas a este trabalho. Nessa perspectiva destaca-se o estresse ocupacional como fator marcante de desgaste mental e físico podendo interferir diretamente na qualidade de vida do trabalhador a na qualidade dos serviços prestados (SILVEIRA; STUMM; KIRCHNER, 2009; MENDES; BORGES; FERREIRA, 2002). Portanto, a fim de garantir a segurança dos pacientes, é imprescindível pensar na saúde dos profissionais, visando melhores condições de trabalho e, especialmente, redução da sua sobrecarga, pois, esgotados, apáticos e dominados pelo estresse, os profissionais da saúde repercutem na má qualidade de assistência à população. 4 ESCASSEZ DE RECURSOS E ALOCAÇÃO ADEQUADA No contexto dos atendimentos de urgência a temática da escassez de recursos e alocação adequada apresenta um cenário complexo e desafiador no âmbito da medicina de emergência. Em situações críticas, como acidentes em larga escala, surtos de doenças ou desastres naturais, os profissionais de saúde muitas vezes se deparam com a dura tarefa de tomar decisões difíceis e éticas sobre a distribuição de meios restritos, como equipamentos médicos, leitos hospitalares e até mesmo a disponibilidade de profissionais capacitados. 40 Nessa conjuntura, as questões éticas emergem de forma proeminente. A distribuição justa e equitativa dos recursos se confronta com o princípio de igualdade no tratamento dos pacientes. Profissionais de saúde podem se encontrar em uma encruzilhada, onde a necessidade de salvar vidas e priorizar os casos mais graves se choca com a realidade de que nem todos os pacientes podem ser atendidos da mesma forma. O debate sobre quem deve receber tratamento imediato e quem pode esperar pode gerar tensões e dilemas éticos profundos. Além disso, os aspectos jurídicos também vêm à tona nesse contexto. A legislação em saúde muitas vezes garante a igualdade de acesso aos cuidados médicos, mas em situações de dificuldades, a aplicação prática da lei é um desafio. Decisões sob pressão podem potencialmente gerar litígios legais, levantando questões sobre a possível violação dos direitos dos pacientes ou a discriminação no tratamento. Importa ressaltar que a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, assegura que Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III - preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV - igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; Convém mencionar a existência da prerrogativa da chamada "vaga zero", que é um recurso essencial estabelecido pela Resolução CFM nº 2.077/14 para garantir acesso imediato a pacientes em risco de morte ou que estejam enfrentando sofrimento intenso nos Serviços Hospitalares de Urgência e Emergência. No entanto, é importante ressaltar que essa aplicação deve ser considerada uma exceção e não uma prática cotidiana na assistência de urgência. A prerrogativa de encaminhar pacientes como "vaga zero" é exclusiva dos médicos reguladores de urgências, que têm a responsabilidade de tentar estabelecer contato telefônico com o médico no hospital de referência, detalhando o quadro clínico do paciente e justificando a necessidade do encaminhamento. Em situações de remoção de pacientes para hospitais em regime de "vaga zero", as informações detalhadas sobre o estado clínico do paciente devem ser enviadas pelo médico 41 solicitante do serviço de origem. Quando a "vaga zero" é utilizada em um Serviço Hospitalar de Urgência e Emergência superlotado ou que não possui capacidade técnica para continuar o tratamento, cabe à equipe médica receptora estabilizar o paciente, e após a obtenção das condições clínicas adequadas para a transferência, a equipe médica deve comunicar o fato à regulação, solicitando o encaminhamento. Nesse cenário, a responsabilidade do gestor público persiste na obtenção de vagas para a continuidade do tratamento, podendo envolver até a compra de leitos, conforme estipulado pela legislação vigente. Para abordar esses desafios, os profissionais de saúde e os legisladores devem colaborar para estabelecer diretrizes claras e transparentes para a alocação de recursos em situações de emergência. O desenvolvimento de protocolos baseados em princípios éticos sólidos e em consonância com a legislação é fundamental para garantir que as decisões sejam tomadas de maneira justa e imparcial. Além disso, a educação contínua dos profissionais de saúde sobre questões éticas e legais relacionadas à escassez de recursos é essencial para prepará-los para lidar com essas situações complexas. Em última análise, a escassez de recursos e a alocação adequada são enfrentamentos inerentes ao atendimento de urgência e exigem uma abordagem sensível e equilibrada. A reflexão ética profunda e o entendimento das implicações jurídicas são cruciais para enfrentar esses dilemas complexos, garantindo ao mesmo tempo a prestação de cuidados médicos de qualidade e a proteção dos direitos dos pacientes. 5 CONFLITOS DE VALORES E CRENÇAS Conflitos de valores e crenças no contexto médico são situações complexas que frequentemente desafiam os profissionais de saúde. Tais conflitos surgem quando os valores e crenças dos pacientes divergem dos padrões éticos e médicos estabelecidos, o que pode criar dilemas éticos significativos. Neste cenário, é essencial considerar a importância do respeito à autonomia do paciente e a busca por soluções conciliatórias que atendam tanto às necessidades do paciente quanto aos princípios éticos da medicina. A autonomia do paciente é um princípio essencial na ética médica que desempenha um papel crucial na resolução de conflitos de valores e crenças. Respeitar a capacidade de decisão do paciente, desde que esteja bem informado, é fundamental para garantir que as escolhas médicas sejam congruentes com os valores e crenças do paciente, sempre que possível. Isso exige uma abordagem ética e sensível, bem como uma comunicação aberta e empática entre médicos e pacientes. 42 Sobre isso, o Código de Ética Médica, assegura como princípio fundamental que: XXI - No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus pacientes relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas. Para enfrentar adequadamente, ou mitigar os conflitos de valores e crenças, é essencial que médicos e profissionais de saúde compreendam as razões por trás das divergências. Isso requer uma comunicação aberta e empática com o paciente, permitindo que eles expressem suas preocupações e convicções pessoais. A compreensão das divergências de valores e crenças no contexto da saúde é um processo multifacetadoque exige comunicação aberta, empatia e consideração cuidadosa. Essa compreensão é um passo crucial para o encaminhamento de soluções éticas que equilibrem a autonomia do paciente com as responsabilidades éticas e legais dos médicos. À medida que os profissionais de saúde se esforçam para compreender as perspectivas dos pacientes, eles podem promover uma relação de confiança que beneficia tanto o paciente quanto a qualidade dos cuidados de saúde fornecidos. Na Resolução CFM nº 2.144/2016 observa-se um exemplo prático, na realização de cesarianas a pedido das gestantes: Art.1º– É direito da gestante, nas situações eletivas, optar pela realização de cesariana, garantida por sua autonomia, desde que tenha recebido todas as informações deforma pormenorizada sobre o parto vaginal e cesariana, seus respectivos benefícios e riscos. Uma parte essencial da gestão de conflitos de valores e crenças é a busca por alternativas que visem soluções conciliatórias. Os médicos podem trabalhar em conjunto com os pacientes para encontrar um equilíbrio que permita atender às necessidades clínicas enquanto também respeitam as crenças do paciente. Em última análise, a capacidade de abordar conflitos de valores e crenças no contexto assistencial reflete o compromisso com a entrega de cuidados de saúde de alta qualidade, que respeita a individualidade e os direitos dos pacientes. Reconhecer a complexidade desses desafios e adotar uma abordagem sensível e cuidadosa é fundamental para encontrar um equilíbrio ético entre a autonomia do paciente e os princípios da prática médica. Isso assegura que os cuidados de saúde prestados sejam não apenas eficazes clinicamente, mas também éticos e respeitosos com as convicções e valores dos pacientes. 43 6 RESPONSABILIDADE LEGAL E REGISTRO ADEQUADO O registro das informações é uma das diversas atividades diárias dos profissionais da saúde, quando envolvidos na assistência ao paciente. Assim sendo, o estabelecimento de uma boa relação com o paciente pode prevenir que o profissional da saúde seja acionado judicialmente por algum problema ocorrido durante o atendimento ou tratamento. Todavia, não somente o prontuário devidamente preenchido é imprescindível no vínculo profissional-paciente, uma vez que conterá informações de interesse para ambas as partes, mas especialmente o termo de consentimento informado que expressará a autorização do paciente para a realização do respectivo procedimento de saúde. Enquanto o prontuário é a coleção de informação relativa ao estado de saúde de um paciente, armazenada e transmitida em completa segurança e acessível ao paciente e a qualquer usuário autorizado (GALVÃO; RICARTE, 2012), o Consentimento Informado é a autorização do paciente obtida pelo profissional para a realização de procedimento médico de indiscutível necessidade. É condição indispensável da relação médico-paciente contemporânea. Trata-se de uma decisão voluntária, verbal ou escrita, protagonizada por uma pessoa autônoma e capaz, tomada após processo informativo, para aceitação de um tratamento específico consciente dos seus riscos, benefícios e possíveis consequências (BRANDÃO, 1999). O processo informativo seguido do consentimento do paciente vem de encontro à hierarquia que historicamente marcou a área da saúde, especialmente a medicina. Dessa forma, o poder técnico que se refletia na decisão do profissional sobre a saúde do paciente passa a ser substituído por um crescente respeito à autonomia individual. No entanto, a percepção dos profissionais da saúde sobre a responsabilidade civil e profissional tem aumentado a partir da incidência de inúmeros processos judiciais e administrativos. Reformas na Constituição Federal de 1988, no Código Civil Brasileiro, mas, especialmente, com o advento do Código de Proteção de Defesa do Consumidor, os pacientes passaram a reivindicar na justiça seus direitos, fazendo com que os profissionais da saúde se resguardassem melhor quanto a eventuais litígios. Ao paciente, respaldado pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, é facultado decidir como viver sua vida, o que inclui quaisquer tratamentos médicos. O próprio Código de Ética Médica, em consonância com a Carta Magna, estabelece: “é vedado ao médico: 44 deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo sem risco iminente de morte”. Contudo, existem algumas dificuldades na utilização adequada do Termo de Consentimento Esclarecido, dentre eles está a fragilidade do vínculo entre paciente e profissional da saúde, principalmente no que se refere à comunicação, cuja deficiência prejudica o entendimento do doente sobre seu quadro clínico, diminuindo sua capacidade de opinar sobre o tratamento. Situação que pode ser agravada pela carga emocional da internação, que amplia incertezas e temores e intensifica a vulnerabilidade, comprometendo a assistência. (CASTRO; QUINTANA; OLESIAK; MÜNCHEN, 2020). Sobre o ponto, orienta o Conselho Federal de Medicina na Recomendação n.º 1/2016: A redação do documento deve ser feita em linguagem clara, que permita ao paciente entender o procedimento e suas consequências, na medida de sua compreensão. Os termos científicos, quando necessários, precisam ser acompanhados de seu significado, em linguagem acessível. Ademais, ainda que o consentimento informado seja absolutamente desejável e recomendável na relação do profissional de saúde com seu paciente, quando o paciente está em condição extrema, que necessite urgente de intervenção médica, o profissional de saúde fica dispensado de obter seu consentimento. Em tais situações, além de estar amparado nas determinações do Conselho Federal de Medicina, o profissional estará amparado pelo Código Penal, que no artigo 146, § 3º, inciso I, diz que não configura crime de constrangimento ilegal a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida. A falta de disponibilidade de tempo necessário para a obtenção do consentimento exonera, excepcionalmente, o médico do cumprimento desse dever. Do mesmo modo, o privilégio terapêutico também poderá ser utilizado nos casos em que a revelação da verdade sobre a saúde do paciente possa causar-lhe prejuízo psicológico grave, de forma a constituir um novo proibidor para a obtenção de seu consentimento. Esta exceção é garantida ao médico pelo Código de Ética Médica, cujo artigo 34 permite a não informação quando a comunicação direta ao paciente possa lhe provocar danos, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu responsável legal. Ainda, podem ocorrer situações de risco em que pacientes portadores de enfermidades transmissíveis, potencialmente causadores de riscos graves para terceiros, sobretudo menores, negligenciam o tratamento ou negam seu consentimento para adoção de cuidados necessários. Nessa situação também se justifica o tratamento compulsório, não sendo exigível o 45 consentimento informado do paciente, fins de prestigiar a coletividade em detrimento da vontade individual ou autodeterminação, com fulcro no Código Civil Brasileiro. No mesmo sentido, pessoas com transtornos mentais graves poderão ser internados compulsoriamente para tratamento, por determinação judicial ou involuntariamente, a pedido da família ou indicação médica, devendo esta decisão ser comunicada ao Ministério Público Estadual, no prazo de 72 horas, segundo prevê o artigo 8º, § 1º, da Lei n.º 10.216/2001. Por derradeiro, hipótese também prevista na Recomendação n.º 1/2016 do Conselho Federal de Medicina, poderá ser dispensado o consentimento informado, quando o paciente se recusar a receber a informação, situação em que o paciente nega a verdade a seu respeito ou se nega a decidir, impossibilitando a comunicaçãodo procedimento para obtenção do consentimento livre e esclarecido. Nesses casos, quando a recusa em receber informação não significa, necessariamente, negativa de consentimento do paciente, a atuação do médico deverá guiar-se pelo princípio da beneficência. Pondera-se, todavia, que o termo de consentimento livre e esclarecido em “branco”, ou seja, àquele que outorga poderes ilimitados ao médicos apenas com base na confiança, não atinge a finalidade de comprovar que o paciente foi devidamente informado, pelo médico, acerca de suas condições e que efetivamente concorda com o tratamento a ser realizado, apenas de haver riscos (OLIVEIRA; PIMENTEL; VIERIA, 2010). Como se vê, excetuadas as hipóteses legalmente previstas para a dispensa do consentimento livre e informado do paciente, a relação profissional de saúde-paciente deve ser equilibrada, levando-se em consideração o binômio: desejos do doente e segurança do profissional, evitando-se, desta maneira, ações judiciais desnecessárias. 7 CONCLUSÃO: ENFRENTANDO OS DILEMAS ÉTICOS E JURÍDICOS NO ATENDIMENTO DE URGÊNCIA Neste trabalho, exploramos os complexos dilemas éticos e jurídicos que os médicos enfrentam no ambiente dos atendimentos de urgências. Abordamos questões cruciais, como a priorização de pacientes, riscos ocupacionais, carga de trabalho, escassez de recursos, conflitos de valores e crenças e responsabilidade legal. Cada um desses tópicos demonstrou a natureza complexa e desafiadora desse tipo de atendimento e a necessidade de estratégias e políticas adequadas para enfrentá-los. 46 Recapitulando os principais pontos discutidos, fica claro que os profissionais de saúde estão constantemente equilibrando suas responsabilidades éticas e legais, muitas vezes em situações de alta pressão e recursos limitados. A priorização de pacientes é uma área particularmente delicada, onde a decisão sobre quem receberá atendimento imediato pode ter implicações éticas e legais significativas. Além disso, a carga de trabalho excessiva e a exaustão dos profissionais de saúde podem comprometer a qualidade do atendimento, tornando ainda mais crítica a necessidade de encontrar soluções eficazes. A escassez de recursos e a alocação adequada são desafios intrínsecos ao sistema de saúde, exigindo uma abordagem ética transparente e baseada em critérios claros. Conflitos de valores e crenças podem surgir entre os profissionais de saúde e os pacientes, destacando a importância da comunicação eficaz e do respeito pelas escolhas individuais. Além disso, a responsabilidade legal e o registro adequado dos procedimentos são essenciais para proteger tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde. Pressões institucionais e conflitos de interesses podem comprometer a tomada de decisões éticas, enfatizando a necessidade de uma cultura organizacional que priorize a ética e o bem-estar do paciente. Em face desses dilemas, é imperativo reconhecer a importância da capacitação ética e orientação jurídica para todos os profissionais de saúde. A formação contínua e o acesso a recursos que ajudem a lidar com essas situações complexas são fundamentais para garantir que as decisões tomadas sejam com base em critérios éticos e legalmente sólidos. Além disso, as instituições de saúde devem implementar políticas que estimulem a prática ética nos atendimentos de urgências, além de fornecer apoio psicológico adequado para os profissionais de saúde que enfrentam situações emocionalmente desafiadoras. Em última análise, enfrentar os dilemas éticos e jurídicos no atendimento de urgência é uma tarefa árdua e complexa, mas crucial. Garantir que os pacientes recebam o atendimento adequado, ao mesmo tempo assegurando suficiência e qualidade na assistência, inclusive protegendo os direitos e bem-estar dos profissionais de saúde, requer um equilíbrio delicado. No entanto, com o compromisso contínuo com a ética, a formação adequada e o apoio institucional, é possível enfrentar esses desafios de maneira responsável e compassiva, garantindo o melhor atendimento possível em situações críticas de saúde. 47 REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 ago. 2023. BRASIL. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 2 maio 1943. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del5452.htm>. Acesso em: 15 ago. 2023. BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, DF: Senado Federal, 1990. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm>. Acesso em: 14 ago. 2023. BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Norma Regulamentadora 32: Segurança e Saúde no Trabalho em Serviços de Saúde. Brasília, DF, 2005. 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Estressores e coping: enfermeiros de uma unidade de emergência hospitalar. Rev. Eletr. Enf., v. 11, n. 4, 2009. 50 REPRODUÇÃO ASSISTIDA POST MORTEM E SUA REPERCUSSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO Bianca Krombauer Antunes1 Mariana Silva Goulart2 Jair Pereira Coitinho3 RESUMO O presente artigo descreve a evolução da reprodução assistida post mortem, bem como a sua regulamentação jurídica, englobando o direito das sucessões. A pesquisa apresenta a linha do tempo da inseminação post mortem diante a evolução da sociedade; a importância da Reprodução Assistida Post Mortem na sociedade, expondo um panorama da evolução legislativa acerca do tema; uma abordagem da legislação específica, clara e objetiva acerca do assunto, trazendo o Código Civil de 2002, para, ao final, demonstrar a necessidade de maior regulamentação do assunto pelo ordenamento jurídico; os efeitos do assunto na área de direito e sucessões. Além disso, se faz presente um projeto de lei acerca do referido assunto. O método utilizado foi o hipotético-dedutivo, com base em um estudo de livros, artigos e jurisprudência acerca do assunto tratado. Palavras-chave: Reprodução assistida Post Mortem; Direito; Filiação; Sucessão. 1 INTRODUÇÃO Na contemporaneidade, observa-se diversas mudanças no cenário familiar e no Direito de Família, tendo este deixado a ideia de que o estabelecimento da filiação se baseava na relação sexual entre os parceiros, para a ideia de que os sentimentos de afeto e amor bastavam como base para a maternidade e paternidade. Isso se deu por meio de acontecimentos históricos, como o processo de industrialização, as Grandes Guerras Mundiais e os movimentos feministas e mudanças no ordenamento jurídico, como o advento da Constituição Federal Brasileira de 1988, todos que tiveram papel fundamental na transformação do conceito de família na sociedade. Essa sucessão de mudanças é exemplificada pelos autores Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias da seguinte maneira: 1 Graduanda do curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Pampa de São Borja. E-mail: biancaantunes.aluno@unipampa.edu.br. 2 Graduanda do curso de Bacharelado em Direito pela Universidade Federal do Pampa de São Borja. E-mail: marianagoulart.aluno@unipampa.edu.br. 3 Professor Adjunto A da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Possui Doutorado em Direito Constitucional pela UNIFOR - Universidade de Fortaleza (CE). Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil (ABDPC). Oab 39. 468. E-mail: jaircoitinho@unipampa.edu.br. 51 A travessia para o novo milênio transporta valores totalmente diferentes, mas traz como valor maior uma conquista: a família não é mais um núcleo econômico e de reprodução, onde sempre esteve instalada a suposta superioridade masculina. Passou a ser muito mais um espaço para o desenvolvimento do companheirismo, do amor, e, acima de tudo, o núcleo formador da pessoa e elemento fundante do próprio sujeito” (PEREIRA; DIAS, 2003). Nesse contexto, a inversão de valores em âmbito familiar, como mencionado anteriormente, com a ideia de que o afeto e a vontade de constituir família bastavam, passou a direcionar o olhar da ciência e medicina para os indivíduos que, de alguma forma, não podiam ou não desejavam conceber filhos de forma natural, possibilitando, assim, com que a vida humana, que há pouco tempo provinha-se somente de forma natural, também se validasse artificialmente. Dessa forma, a reprodução humana assistida surge, inicialmente, para auxiliar os indivíduos com complicações de fertilidade na concepção de filhos, tendo evoluído, posteriormente, para o acolhimento de pessoas que desejam esperar o momento certo para serem pais, para a concepção entre casais homoafetivos, gestação independente e até para o planejamento familiar visando a diminuição do risco de doenças genéticas. Genival Veloso França traz que a reprodução humana assistida é: o conjunto de procedimentos no sentido de contribuir na resolução de problemas da infertilidade humana, facilitando assim o processo de procriação quando outras terapêuticas ou condutas tenham sido ineficazes para a solução e obtenção da gravidez desejada” (FRANÇA, 2001, p. 225). Mais tarde, com a evolução da tecnologia, biomedicina e pesquisas genéticas, tornou-se possível, ainda, a reprodução assistida após a morte de um dos cônjuges ou companheiros, a chamada reprodução assistida post mortem, que trouxe controvérsias significativas nos meios social e jurídico. Neste contexto, o presente artigo visa apresentar a evolução da abordagem jurídica relacionada às técnicas de reproduçãoassistida homóloga post mortem, bem como seus reflexos no direito de família e sucessões, como forma de apontar as ainda recentes discussões e controvérsias acerca do tema, evidenciando a importância de uma melhor regulamentação jurídica acerca deste. A relevância do tema é evidente, uma vez que a técnica de reprodução póstuma possibilita aos indivíduos a concretização do desejo de ter filhos do cônjuge ou companheiro falecido, visando a proteção do instituto da família e o resguardo da paternidade, mesmo após a morte. Além disso, a observância dos reflexos e implicações da técnica e de seus procedimentos no ordenamento jurídico é de extrema importância para a compreensão de como https://www.dasagenomica.com/blog/doencas-geneticas-e-hereditarias/ 52 se sucede a questão dos direitos das crianças póstumas, especialmente em relação ao direito à herança. 2 REPRODUÇÃO HUMANA ASSISTIDA HOMÓLOGA POST MORTEM A reprodução assistida pós-morte trata do uso de espermatozoides, óvulos ou embriões, os quais tenham sido anteriormente congelados, para a obtenção da gestação após o falecimento de um dos cônjuges. O processo se dá, no caso de uso de espermatozoide congelado, por meio do procedimento de inseminação intrauterina ou fertilização in vitro e no caso da utilização de óvulo congelado, por meio, somente, da fertilização in vitro. Contudo, a realização do procedimento não se dá de maneira simples, uma vez que é necessário prévia autorização, com a assinatura de um consentimento, para o uso do material biológico em caso de falecimento de um dos indivíduos. De acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), na Resolução nº 2.168/2017, “é permitida a reprodução assistida post-mortem desde que haja autorização prévia específica do(a) falecido(a) para o uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente”. Outrossim, o Enunciado 106 do Conselho Nacional de Justiça traz que: “para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatória, ainda, a autorização escrita do marido para que se utilize seu material genético após sua morte”. Veja-se, dessa forma, que a autorização expressa de um dos cônjuges para a utilização do material genético é de extrema necessidade, uma vez que não é possível prever o desejo dos indivíduos falecidos em perpetuar seus genes. No entanto, na falta deste documento escrito, a realização do procedimento só poderá ser feita por meio de expressa autorização do Poder Judiciário. Ademais, tem-se que uma das dúvidas mais frequentes em relação ao assunto é acerca da possibilidade de os homens poderem utilizar o material genético por meio de um útero de substituição ou a cessão temporária de útero, uma vez que as discussões acerca do assunto focaram, inicialmente, na mulher viúva. 53 Sobre a questão, o Enunciado nº 633 do Conselho da Justiça Federal, advindo da VIII Jornada de Direito Civil, demonstrou que: “é possível ao viúvo ou ao companheiro sobrevivente o acesso à técnica de reprodução assistida póstuma por meio da maternidade de substituição, desde que haja expresso consentimento manifestado em vida pela sua esposa ou companheira”. Além disso, a norma do Conselho Federal de Medicina que expõe sobre a possibilidade da utilização do útero de substituição, prevê que “a cedente temporária do útero deva pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe/ filha; segundo grau – avó/ irmã; terceiro grau – tia/ sobrinha; quarto grau – prima). Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina”. 2.1 Breve contexto histórico É de suma importância discorrer sobre o surgimento da técnica de reprodução humana assistida post mortem e recordar a gênese da discussão acerca desta. Antes do desenvolvimento das técnicas de congelamento dos embriões e gametas, a chamada crioconservação, os procedimentos de reprodução assistida não eram completos, devido a necessidade de efetivação imediata destes. Com o advento da crioconservação, se tornou possível o armazenamento desse material genético para uso futuro, o que fez surgir discussões acerca da utilização do material congelado na mulher, mesmo após o falecimento de seu cônjuge. Assim, surge o primeiro caso de reprodução assistida post mortem, mundialmente conhecido como “caso Affair Parpalaix”. Este se sucedeu na França, no ano de 1984, quando Alain Parpalaix, companheiro de Corine Richard, descobriu que estava com um câncer nos testículos, sendo a doença incurável. O desejo do casal era ter filhos, porém, o tratamento da doença fez com que Alain se tornasse infértil, o que levou o casal a procurar um banco de sêmen, onde Alain depositou seus espermatozoides. Após a morte do marido, Corine procurou o banco de sêmen para se submeter à inseminação artificial, tendo o banco se recusado a realizar a técnica e devolver o sêmen armazenado, alegando a falta de previsão legal acerca do assunto. Em disputa judicial, o tribunal francês de Créteil condenou o banco de sêmen, determinando que o material genético de Alain fosse devolvido à viúva. No entanto, devido à demora para o encerramento do caso, a técnica não prosperou, eis que os espermatozoides não tinham mais potencial fecundativo. 54 Contudo, mesmo com o resultado negativo da utilização da técnica, o caso foi considerado um marco histórico, abrindo portas para o início da discussão acerca do tema e do destino do material genético armazenado após a morte do doador. Em relação ao Brasil, por sua vez, o primeiro caso de nascimento de uma criança póstuma, se deu em razão de ordem judicial, na data de 21 de junho de 2011, quando nasceu Luísa Roberta (Moraes, 2019). Ademais, seguem outros casos tramitados na justiça brasileira acerca do assunto: Na cidade de São Paulo/RS, na data de 30 de abril de 2008, a juíza de Direito da 22ª Vara Cível do Foro Central, Dra. Carla Themis Lagrotta Germano, deferiu alvará para utilização, pela autora, do sêmen congelado do falecido marido, pelo prazo de um ano. O caso em questão tratava-se de pedido, pela autora, de alvará para a utilização do material genético do marido que havia falecido durante os procedimentos de tentativa de reprodução assistida realizados pelo casal. Da mesma forma, no município de Curitiba/PR, na data de 17 de maio de 2010, o Juiz de Direito da 13ª Vara Cível deferiu pedido da autora para realizar a técnica de inseminação utilizando o material genético congelado de seu marido, que havia falecido de câncer. Neste caso, a decisão foi proferida mesmo sem a autorização do marido, uma vez que os fatos apontavam o inequívoco desejo do mesmo de ser genitor. 2.2 Regulamentação jurídica Ainda que seja um assunto delicado e polêmico, o tema da reprodução assistida post mortem não se afixa em alguma regulamentação específica que legisle a implantação de embriões após a morte de um dos cônjuges. Há casos em que uma legislação específica faz falta, pois pode-se encontrar casos de difícil resolução e delicados ao extremo, o que apenas dificulta ainda mais a decisão do juízo, necessitando apelar aos princípios, costumes e atos administrativos pairados sobre a jurisdição, não esquecendo também dos desafios que essa natureza traz, assim como discorre Maria Helena Diniz, em sua obra do Estado Atual do Biodireito: Possibilidade de uma criança nascer de genitor morto, por ter sido utilizado, na ectogênese, esperma congelado de pessoa já falecida, ainda que seja o marido de sua mãe, ou por ter havido fecundação in vitro de óvulo de mulher morta, ou por ter ocorrido o óbito de mãe ou pai genéticos antes que mulher morta, ou por ter ocorrido o óbito de mãe ou pai genéticosantes que o embrião seja colocado no útero da mãe de substituição. É preciso evitar tais práticas, pois, como já dissemos alhures, as 55 consequências ético-jurídicas que delas advirão são muito graves. Por isso, necessário será que se proíba legalmente a reprodução humana assistida post mortem, e, se porventura houver prévia permissão do falecido para uso do material biológico criopreservado, de acordo com a legislação vigente (Res. CFM n. 2.013/2013, Seção VIII), dever-se-á prescrever quais são os direitos do filho, inclusive sucessórios, diante, p. Ex., do disposto no art. 1798 do Código Civil. (DINIZ, 2014, p. 704) Embora no Código Civil de 1916 não houvesse a possibilidade de ser realizada uma concepção humana após a morte do genitor, os direitos do nascituro eram garantidos, sendo considerados desde o momento da concepção para fins de início da personalidade (MOREIRA FILHO, 2002). É importante lembrar que há projetos de lei acerca do tema proposto neste artigo, mas que ainda se encontram em andamento e que a reprodução assistida, de certa forma, é resguardada pelo Código Civil de 2002, como será mostrado em seguida. Com uma visão direta e bem elucidada, a reprodução assistida deve ocorrer de uma forma segura e benéfica tanto ao paciente quanto ao descendente, como frisa a autora Maria Helena Diniz: O direito de alguém à concepção e a descendência por meio de fertilização assistida só deverá ser permitido, lembramos mais uma vez, se não colocar em risco a vida ou a saúde da paciente e do possível descendente (Res. CFM n.2.013/2013; Lei espanhola n. 14/2006, art. 3º). Não se poderia admitir o ocorrido na Itália, onde, por ocasião de uma reprodução assistida, a gestante e o bebê foram contaminados com o vírus da AIDS, apesar de o teste feito por ela e seu marido ter acusado não estarem contaminados. O vírus estava no espermatozoide; o engano se deu ante o fato de apenas terem os médicos encontrado esse vírus no líquido seminal, na secreção vaginal, no sangue e raras vezes na saliva e na lágrima. Daí o enorme risco existente na reprodução assistida, requerendo maiores cautelas no banco de sêmen e nos exames efetuados nos doadores de material fertilizante e nas mulheres que cederam seu útero para procriação alheia. (DINIZ, 2014, p. 746) Seguindo com as regulamentações da reprodução assistida post mortem, cita-se o Conselho Federal de Medicina, que através da Resolução CFM nº 2.320/22, mais atualizada, revogou a Resolução CFM nº 2.294/21. Ficou decidido pela atual Resolução, no âmbito da reprodução assistida, que a técnica é permitida, porém, deve haver autorização específica do membro para poder fazer o uso do material biológico criopreservado em vida, de acordo com a legislação vigente (BRASIL, 2022). O primeiro procedimento a ser realizado para que a reprodução assistida post mortem se concretize é a formalidade da vontade dos pacientes autorizando a técnica diante do falecimento de uma das partes, através de um TCLE (Termo de Consentimento Livre e Esclarecido), cujo documento vale-se de autorização do casal para que a clínica possa tomar devidas condutas. Cabe também às partes informar, por meio escrito, se ocorrer o divórcio do casal ou a dissolução de união estável, qual será a finalidade adotada para os criopreservados. https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10607181/artigo-1798-da-lei-n-10406-de-10-de-janeiro-de-2002 https://www.jusbrasil.com.br/legislacao/111983995/c%C3%B3digo-civil-lei-10406-02 56 Ainda, se destaca, o Art. 1.597, inciso III, do Código Civil, o qual dispõe que os filhos advindos da fecundação artificial homóloga são presumidos da mesma forma que os concebidos na constância do casamento. Sobre este artigo em específico falaremos mais adiante, em um tópico próprio, discutindo uma questão importante e relevante para a sociedade em detrimento de sua repercussão. Pesa, ainda, citar o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que editou o Provimento nº 63 de 14 de novembro de 2017, e este dispõe o art. 17, §2º, “Nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos elencados nos incisos do caput deste artigo, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular com firma reconhecida” (Brasil, 2017). Esta resolução engloba o pressuposto legal do consentimento, sendo nada menos que o consentimento prévio do falecido referente a reprodução assistida post mortem. Observando ser um tema complicado e que necessita de regulamentação específica, a Professora Ana Claudia Silva Scalquette, defende, em sua tese, a iniciativa de um Estatuto da Reprodução Assistida, o qual argumenta e garante em um capítulo exclusivo à Reprodução Assistida Post Mortem, os direitos das partes, bem como o núcleo familiar, podendo representar, ou não, um interesse de modo coletivo da sociedade, a permissão do uso do material genético, conforme dita o Estatuto e os demais trâmites para o procedimento. Ainda, a necessidade de o Poder Legislativo criar um regulamento acerca da reprodução assistida post mortem decorre de uma série de fatores, incluindo: a falta de uma conceituação legal e clara sobre o tema, podendo gerar incertezas e conflitos jurídicos; a necessidade de proteger os direitos da pessoa falecida, de quem será a mãe e do filho concebido e; a necessidade de garantir que esta técnica ocorre de forma saudável, ética e responsável. 2.3 Posicionamento do STJ acerca da reprodução assistida post mortem É sabido que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) carrega consigo a atribuição de uniformizar a interpretação da legislação federal e, portanto, é seu dever fiscalizar o poder Judiciário e Legislativo, incentivando-os a atuarem de forma constitucional. Assim, o Superior Tribunal de Justiça ganha o título de instância máxima para a solução de questões 57 infraconstitucionais entre os cidadãos, não à toa que tal é conhecido também por “Tribunal da Cidadania”, referindo-se a Constituição Cidadã. Então, é nesse viés, que o STJ se pronunciou sobre a Reprodução Assistida Post Mortem, através do julgamento do Recurso Especial nº 1.918.421, da Quarta Turma, o qual contou com o voto prevalecente do Ministro Luís Felipe Salomão, que dissertou que a reprodução assistida post-mortem traria algumas inferências, tanto patrimoniais quanto cíveis. Sendo assim, para que o pré-falecido manifeste a sua vontade, de gerar outra vida com o seu material genético após o seu falecimento, deverá ser feita de modo escrito e antes da morte do indivíduo, por testamento ou outro instrumento de igual teor. De um modo geral, o STJ entendeu, em junho de 2021, que há possibilidade de realizar a reprodução assistida post mortem, desde que haja autorização expressa do falecido. Retrocedendo 4 anos do momento atual, era decidido pelo STJ a constitucionalidade da reprodução assistida post mortem, valendo-se do argumento de que esta técnica não transgredia o direito à vida, já que o Art. 2º do Código Civil ressalta, entre linhas, que o embrião não é considerado uma pessoa, pois antes do nascimento, o embrião não possui direitos e deveres civis. Todavia, vale ressaltar que há exceções que podem ser destacadas, como direitos patrimoniais, o direito à herança, por exemplo, como já mencionada no texto acima. O Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Provimento nº 63/2017, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), são documentos que regulamentam a reprodução assistida post mortem no Brasil. O CFM, por meio da Resolução CFM nº2.320/22, dispõe que a reprodução assistida post mortem é permitida desde que haja autorização específica do falecido. O Provimento nº 63/2017, do CNJ, regulamenta acerca do registro de nascimento e também a emissão das certidões dos filhos concebidos por reprodução assistidapost mortem. Neste contexto, observa-se que a temática da reprodução assistida post mortem é bastante enigmática e complicada, levando em consideração que esta abrange outros temas polêmicos, como por exemplo ética e religião. 2.4 Filhos concebidos pela técnica da reprodução assistida “post mortem” e seus direitos sucessórios De início, para descobrir o que se pretende neste tópico, é inquestionável que primeiramente faz-se necessário compreender o conceito da expressão filiação e seus preceitos básicos, afim de formar uma visão ampla para melhor entender os direitos sucessórios dos filhos concebidos por essa técnica. 58 A autora Maria Berenice Dias (2013, p. 360), apontou que, durante o século XX, “a família constituída pelo casamento era a única a merecer reconhecimento e proteção estatal, tanto que sempre recebeu o nome de família legítima”. Com isso, pode ser afirmado que o conceito de filiação nos tempos passados, mas não muito distantes, eram construídos de maneira discriminatória e patriarcal, visto que os filhos eram divididos em legítimos (frutos do casamento) e ilegítimos (concebidos fora do casamento). Após esse momento da história, passaram a ser reconhecidos os filhos nascidos de pais unidos através do matrimónio. Por meio da Constituição Federal de 1988, o direito à igualdade entre os filhos e à família foi assegurado, fazendo as necessárias adequações perante o momento histórico que era vivenciado à época. Entre essas adequações, ocorreu a de uma nova conceituação para a palavra filiação, trazendo o afeto como uma das bases nas relações paterno-filiais. Assim, nasce a oportunidade do reconhecimento da filiação dos filhos adotivos e também dos filhos concebidos pelas técnicas da ciência. Segundo Maria Helena Diniz: Filiação é o vínculo existente entre pais e filhos; vem a ser a relação de parentesco consanguíneo em linha reta de primeiro grau entre uma pessoa e aqueles que lhe deram vida, podendo ainda (CC, arts. 1.593 a 1.597 e 1.618) ser uma relação socioafetiva entre pai adotivo e institucional e filho adotado ou advindo de inseminação artificial (DINIZ, 2015, p. 503-504). Se faz importante a percepção no que tange a sucessão, a qual tem o nome de sucessão causa mortis, justamente pelo fato de abordar a herança patrimonial de um de cujus (falecido, constando os bens em inventário). Trata-se de um ato de suceder. Este ato de suceder poderá ser designado de duas formas, uma delas é por testamento – a qual ocorre a transferência do bem de uma pessoa falecida para outra em vida - e a outra é legitimamente – ocorre quando a lei ordena a destinação do patrimônio do autor da herança a quem tem direito, através da mesma. Adentrando um pouco mais na regulamentação dos direitos sucessórios dos filhos concebidos por reprodução humana assistida post mortem, é de suma importância apontar aqui a presunção legal da paternidade, definindo que, consoante o artigo 1.597 do Código Civil (BRASIL, 2002): “Art. 1.597. Presumem concebidos na constância do casamento os filhos: [..] III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido”. Este instituto jurídico determina, de maneira bem sintetizada, que o marido da mãe é considerado o pai do filho, salvo prova em contrário, como por exemplo, o exame de DNA, assegurando ao filho póstumo o direito ao reconhecimento da presunção da filiação. 59 Entretanto, para que este artigo seja validado, no processo da reprodução post mortem, é necessário que haja a autorização prévia do marido. Em relação a esse artigo, existem diferenças teóricas quanto à sua utilização prática. Alguns autores acreditam que a utilização deste artigo só é adequada para casais ainda casados e não aceita a sua inclusão em casamentos estáveis. Lôbo (2003), por outro lado, discorda desse entendimento, argumentando que mesmo que o artigo se refira à “estabilidade do casamento”, as presunções das relações pai-filho e mãe- filho aplicar-se-ão às uniões estáveis, independentemente do casamento. Outro princípio significativo é o princípio da igualdade entre os filhos, sendo um princípio constitucional que garante que todos os filhos, independentemente de sua origem, tenham os mesmos direitos e garantias. Esse princípio está previsto no artigo 227, §6º, da Constituição Federal, que estabelece que “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”. Assim, Maria Helena Diniz (2007, p. 476) leciona que, “Todos os filhos de qualquer natureza serão igualados, ou seja, filhos havidos na constância do casamento e demais filhos reconhecidos recebem, de forma igual, quinhão hereditário”. Portanto, os direitos garantidos a cada um dos filhos deverão ser respeitados de forma igualitária entre tais, discriminando qualquer obstáculo ou diferenciação entre os componentes da entidade familiar. Entre os princípios que ensejam o direito sucessório, destaca-se também o Princípio de Saisine ou Droit de Saisine, originado no direito medieval francês e localizado no Código Civil (BRASIL, 2002), em seu artigo 1.784, que estabelece: “Aberta a sucessão, a herança transmite- se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários”. Ou seja, a partir do exato momento em que a pessoa se torna de cujus, o indivíduo que, por testamento ou legitimamente, dispuser do direito da herança, mesmo sem ter a ciência do falecimento da pessoa, se torna, no mesmo momento, detentor da herança deixada, isto é, se torna dono da coisa, ocorrendo de forma automática, sem necessidade de algum tipo de formalidade naquele momento. A abertura da sucessão se dá então, através da morte. Seguindo a linha de legitimados à sucessão, aponta-se o artigo 1.798 do Código Civil, estabelecendo que: “legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão” (BRASIL, 2002). O que este artigo quer dizer é que existem requisitos a serem preenchidos, para então entrar na categoria de legitimário, sendo os requisitos necessários: que a pessoa esteja viva ou já concebida no momento da abertura da sucessão. Em seguida, lista-se alguns exemplos de legitimados à sucessão, de acordo com o mencionado 60 artigo: filhos vivos ou já concebidos; pais; cônjuge sobrevivente; outros parentes colaterais. Também é importante destacar que, para que o indivíduo tenha capacidade sucessória, é necessário que ele não seja classificado como sucessor indigno, ou seja, não ter dado causa à perda do direito sucessório em razão de ato violento ou fraudulento praticado diante do autor da herança. Quando se fala em “já concebida”, a expressão engloba os nascituros também. Entende- se por nascituro as pessoas que ainda não nasceram, porém já foram concebidas. Ou seja, pessoa concebida já adquire o direito a receber herança, mesmo que ainda não tenha nascido. O artigo 1.829 do Código Civil de 2002 estabelece a ordem de vocação hereditária, ou seja, a ordem em que os herdeiros serão chamados a receber a herança de um falecido. São classificadas em quatro a ordem de vocação hereditária: I – Descendentes; II – Ascendentes; III – Cônjuge sobrevivente e; IV – Colaterais. Na classe dos descendentes são considerados os filhos, netos, bisnetos e assim sucessivamente, sendo os herdeiros mais próximos do falecido e, por consequência, têm preferência em relação aos outros. Entretanto, estes são chamados à sucessão em concorrência com o cônjuge sobrevivente, a menos que o de cujus estiver casado no regime da comunhão universal de bens ou no regime da separação obrigatória de bens. Já os ascendentes são considerados pais, avós, bisavós e assim por diante, sendo chamados à sucessão apenas no caso de não haver algum descendente. Estes também são chamados à sucessão em concorrência como cônjuge sobrevivente. No que tange a classe de cônjuge sobrevivente, será chamado à sucessão mesmo que não tenha filhos com o de cujus ou também descendentes. O cônjuge sobrevivente é chamado à sucessão com os descendentes, ascendentes e colaterais. A quarta classe são os irmãos, sobrinhos, tios e assim por diante, sendo chamados à sucessão somente se não houver descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivente. Os colaterais são concorrentes entre si quando chamados à sucessão. 61 O artigo 1.829 é de suma importância, pois é ele um dos artigos que garante a segurança jurídica das relações sucessórias. Além dos dispositivos já mencionados, há também o Projeto de Lei nº 1.218, de 2020, que se encontra sujeito à apreciação pelo Plenário, tendo como intuito a alteração da redação do art. 1.798 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a fim de estabelecer direito à sucessão de filho gerado por meio de inseminação artificial após a morte do autor da herança. 3 CONCLUSÃO Ao observar-se as mudanças no Direito de Família na sociedade, percebe-se que o conceito de filiação mudou com o passar do tempo, uma vez que deixou a ideia de que esta só poderia acontecer de forma natural, por meio da relação sexual entre casal composto por homem e mulher, para a ideia de que a intenção de construir família e o amor, independentemente de sua forma, bastam para a concepção de um filho. Dessa forma, teve-se a abertura de portas para os estudos e pesquisas de métodos para possibilitar a filiação de forma artificial, inclusive após a morte de um dos cônjuges ou companheiros. Ao expor o conceito e modo de funcionamento das técnicas de reprodução assistida pós- morte, nota-se que temas muito discutidos, como a questão da necessidade de autorização prévia de um dos cônjuges para o uso do material genético e a possibilidade de o homem utilizar os gametas da viúva, foram elucidados, através da exposição de normas e Enunciados. No levantamento da evolução legislativa em relação ao tema de reprodução assistida homóloga post mortem, percebe-se que no Brasil não há norma legal acerca do tema, mas somente regras de deontologia médica, as quais não possuem eficácia erga omnes. Contudo, como demonstrado na pesquisa, existem diversos projetos de lei tramitando, alguns há um tempo considerável, no Congresso Nacional sobre o assunto. Nesse contexto, verifica-se que a falta de legislação específica acerca do tema gera grandes dúvidas nos indivíduos, como, por exemplo, de que forma deve ser feita a autorização para a utilização do material genético após a morte, se por meio de instrumento público ou particular. Além disso, a necessidade de uma conceituação legal e clara sobre o tema é vista por meio de questões relacionadas a proteção do direito de todos os indivíduos que participam da reprodução assistida, tais quais os receptores e os doadores do material genético e da demanda de garantir que os procedimentos sejam realizados de forma segura e responsável. 62 Ante o exposto, averiguou-se que a normatização das técnicas de reprodução assistida no ordenamento jurídico brasileiro é parca, uma vez que, embora o Código Civil de 2002 preveja a possibilidade de filiação póstuma, não abrange os pressupostos para a realização da técnica, gerando hesitação quanto às suas consequências jurídicas. Quanto à análise acerca de como os Tribunais têm enfrentado os temas de reprodução assistida póstuma, verificou-se que o assunto não é recorrente, sendo pouca a quantidade de decisões referenciais no âmbito das cortes superiores. É inegável que a inseminação homóloga post mortem trouxe inúmeros avanços para o Direito, considerando as questões referentes à sucessão e no direito de família dos filhos concebidos por esta técnica. Pela ausência legislativa no que tange os reflexos sucessórios do filho póstumo como sucessor, há grande divergência doutrinária e jurisprudencial, pelo fato de que se parte do princípio da igualdade entre os filhos para iniciar a sucessão e, também, do reconhecimento da paternidade do filho póstumo pela lei infraconstitucional. É de estimada importância que seja realizada a inclusão de lei específica regulamentando as técnicas de reprodução assistida e também os reflexos jurídicos na esfera das sucessões dos filhos concebidos após a abertura da sucessão. Ademais, o filho póstumo, a partir do dia em que completar seus 16 anos de idade, tem o prazo de 10 anos para manifestar seu direito a herança. A interpretação jurídica é que a criança concebida por inseminação post mortem tem o direito de ser nomeada sucessora no testamento do falecido. Isso ocorre porque é imperativo honrar os desejos finais e inequívocos do falecido. Para garantir o reconhecimento do seu legítimo direito como sucessor, torna-se necessária a regulamentação através de legislação infraconstitucional. O objetivo é fazer face às perdas sofridas devido à ausência de uma lei específica e salvaguardar os direitos das crianças póstumas e dos seus pais. Dito isso, nota-se que a reprodução assistida post-mortem não é vedada em nosso país, devendo ela ser acompanhada por autorização expressa de vontade do genitor falecido(a). Nestes termos, a pesquisa contribuiu para o compreendimento da reprodução humana assistida homóloga post mortem, a maneira como essa se dá e os requisitos para a sua realização, bem como a evolução legislativa acerca do assunto e seu enfrentamento pelos tribunais superiores. Dessa forma, o problema que guiou a pesquisa foi respondido de forma afirmativa, evidenciando-se a necessidade da criação de uma legislação específica acerca do assunto a fim 63 de melhor regulamentar tal questão para haver mais qualidade na condução do procedimento de reprodução assistida post mortem. REFERÊNCIAS AGÊNCIA SENADO. “Projeto legaliza implantação de embriões após a morte de um dos membros do casal.” Senado Federal, 4 julho 2022. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2022/07/04/projeto-legaliza-implantacao-de- embrioes-apos-a-morte-de-um-dos-membros-do-casal>. Acesso: em 24 de set. de 2023. BERGAMO, Bruno. Reprodução Assistida Post Mortem e sua Eficácia no Sistema Jurídico Brasileiro | Jus Brasil. Jus Brasil. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/reproducao-assistida-post-mortem-e-sua-eficacia-no- sistema-juridico-brasileiro/305585189>. Acesso em: 23 ago. 2023. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 1.218, de 2020. Altera a redação do art. 1.798 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, para estabelecer direito à sucessão de filho gerado por meio de inseminação artificial após a morte do autor da herança. Brasília: Câmara dos Deputados, 2020. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0hnj3rn3n 800gsn9o7rx0vd3l1444088.node0?codteor=1937682&filename=Avulso+-PL+1218/2020>. Acesso em: 20 set. 2023. BRASIL. Código civil. 22. ED. São Paulo: Saraiva, 2016 BRASIL. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n° 2.320, de 20 de setembro de 2022. 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A importância da pesquisa está em que o Brasil foi, em 2022, o país em que mais se mataram pessoas trans no mundo, o que impõe uma reinterpretação das regras do homicídio. Nessa ordem de ideias, o trabalho tem o objetivo geral de compreender o feminicídio, e o objetivo específico de conduzir a uma hermenêutica que tutele adequadamente os direitos das mulheres trans. Assim, na pesquisa, chega-se à conclusão de que com base na bioética interventiva uma mulher trans pode, sim, configurar-se como sujeito passivo da qualificadora de feminicídio em um homicídio doloso, o que impõe a reinterpretação da respectiva qualificadora. Palavras-chave: Feminicídio; Mulheres Trans; Bioética de Intervenção; Direito Penal. ABSTRACT This work constitutes the result of research carried out in the form of a bibliography review, methodologically located in the broad area of Criminal Law, on the subject of qualifiers for intentional homicide, and it intents to answer the following question: in basis of Intervention Bioethics, feminicide, as a qualifying circumstance for homicide (item VI of the § 2 of article 121 of the Penal Code), has women as victims only because of their biological gender, or should it be interpreted to also cover trans women? The importance of the research is that Brazil was, in 2022, the country in which the most trans people were killed in the world, which requires a reinterpretation of the homicide rules. In this order of ideas, the work has the general objective of understanding feminicide, and the specific objective of leading to a hermeneutics that adequately protects the rights of trans women. Thus, in the research, we come to the conclusion that in basis of Intervention Bioethics a trans woman can, indeed, be configured as a passive subject of the qualification of feminicide in an intentional homicide, in fact to reinterpretate the institute. 1 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus São Borja. E-mail: brunoandrade.aluno@unipampa.edu.br. 2 Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus São Borja. E-mail: ederleal.aluno@unipampa.edu.br. 3 Professor Adjunto do Curso de Direito da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus Sant’Ana do Livramento. Doutor em Direito Constitucional (UNIFOR). E-mail: jaircoitinho@unipampa.edu.br. mailto:brunoandrade.aluno@unipampa.edu.br mailto:ederleal.aluno@unipampa.edu.br mailto:jaircoitinho@unipampa.edu.br 68 Keywords: Feminicide; Trans Women; Intervention Bioethics; Criminal Law. 1 INTRODUÇÃO Até pouco tempo atrás, distinguir as pessoas em apenas dois gêneros (masculino e feminino), ligados ao sexo biológico, era tarefa considerada usual. Com a evolução social, os avanços na seara técnico-científica e o reconhecimento da multiplicidade de formas identitárias, notadamente nos últimos 30 anos, tais limites devem ser reinterpretados. De certo que para as gerações mais novas, de 20 anos para cá, as coisas são bem mais simples e de fácil compreensão. No entanto,para os mais antigos, os que vivenciaram esta fase de transição bem no meio de seus ciclos de vida, as coisas já não são tão simples assim. O fato é que hoje, já passado um quinto deste século XXI, distinguir as pessoas apenas na condição binária “homem” ou “mulher” já não é mais a única visão possível. Nesse sentido, mais do que analisar as mudanças de paradigmas sociais dos nossos tempos atuais, o tema proposto neste trabalho acadêmico restringir-se-á a alçar uma parte dessa celeuma social para responder a seguinte questão: com base na Bioética de intervenção, o feminicídio, como circunstância qualificadora do homicídio (inciso VI do § 2º do artigo 121 do Código Penal),4 tem como vítimas as mulheres apenas pelo sexo biológico, ou deve ser interpretado para abranger também as mulheres trans? A pesquisa mostra-se necessária porque não se pode ignorar o aumento exponencial dos índices de violência contra pessoas trans e a motivação que leva os autores de crimes brutais contra essa parcela da população, e que merecem a mesma diligência do Estado na investigação, na apuração e na aplicação da lei penal. Com efeito, em 2022, o Brasil foi, pela 14ª vez consecutiva, o país que mais matou pessoas trans no mundo (BENEVIDES, 2023). Considerando-se também que no Brasil há cerca de quatro milhões de pessoas transgênero ou não binárias (BRASIL, Ministério da Saúde, 2023), insta repensar-se na Bioética como uma metódica que, em busca da diminuição de desigualdades e da promoção da Justiça, auxilie a reinterpretação do texto normativo da qualificadora do feminicídio para que sejam incluídas como vítimas as mulheres trans. 4 A redação do texto legal é esta: “Homicídio qualificado - § 2° Se o homicídio é cometido: [...]VI - contra a mulher por razões da condição de sexo feminino: (Incluído pela Lei nº 13.104, de 2015) [...] Pena - reclusão, de doze a trinta anos”. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13104.htm#art1 69 Propôs-se desenvolver o presente trabalho de pesquisa em vista de existirem controvérsias no que tange ao entendimento e à interpretação ora proposta. Na doutrina, há quem afirme não caber a qualificadora de feminicídio quando a vítima é uma mulher trans. Não obstante, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vêm adotando decisões no sentido de proteger de forma igual as mulheres, independentemente da condição biológica. Para os fins deste artigo, será feita na terceira seção a conexão da Bioética de intervenção com a hermenêutica constitucional, notadamente quanto aos direitos fundamentais, para concluir pela (re)interpretação dos crimes contra a vida de mulheres trans. Antes, porém, é preciso estabelecer as premissas da Bioética interventiva – é o que se fará na segunda seção. 2 MULHERES TRANS E A COMPREENSÃO TRADICIONAL DO FEMINICÍDIO: A CRÍTICA A PARTIR DA BIOÉTICA DE INTERVENÇÃO O chamado “transexualismo” é melhor identificado hoje como simplesmente “trans”, condição de gênero e que, como tal, resulta de uma construção não dada aprioristicamente pelo sexo biológico. É dizer, gênero feminino não é necessariamente o mesmo que sexo feminino; por isso, a tutela jurídica haverá de ser integral quer numa, quer noutra situação. É o que se procurará demonstrar nesta seção. 2.1 Uma premissa: gênero é construído, não imposto A pessoa transgênero refere-se à condição do indivíduo cuja identidade de gênero difere daquela designada no seu nascimento. Diz-se que “trans” é quem se considera pertencente a um gênero diverso do que suporia ser seu sexo biológico de nascimento (com aparelho reprodutor masculino ou feminino). Na definição contida em Noah Adams et al. (2017): Depending on cultural and geographic context, transgender may be seen as a gender identity that denotes a desire to live in a gender role different from that assigned at birth, and/or ‘‘an umbrella term which includes transsexuals, cross dressers, intersex... persons, gender variant persons and many [others that may or may not have] ... undergone any surgery or physiological changes.” Assim, pessoas transgênero devem ser vistas desde um enfoque de diversidade, respeito e inclusão visto que não se trata apenas de “desejo” sexual: “o transexualismo representa uma alteração da psique que dificulta e muitas vezes inviabiliza a integração do indivíduo na sociedade” (ARAÚJO, 2000, p. 11). 70 Para enquadrar as pessoas trans em definições tradicionais, falava-se em patologia (ARAN, 2011, p. 49): [...] o transexualismo é considerado uma patologia por ser definido como um "transtorno de identidade", dada a não-conformidade entre sexo e gênero. Por outro lado, ele também pode ser considerado uma psicose graças à suposta recusa da diferença sexual. O que define este diagnóstico é uma concepção normativa dos sistemas de sexo-gênero, a qual se converte em um sistema regulador da sexualidade. Em resposta, teria a Bioética de princípios a potencialidade de iniciar o reconhecimento da “disforia” entre sexo/gênero a partir do humanismo e do princípio da beneficência, nos como indica Patrícia Soley-Beltran (2014): La transexualidad, el transgénero y otras migraciones de género como prácticas y categorías médicas han estado atravesadas por cuestiones de bioética desde sus mismos inicios. El impulso que movió a un sector de la clase médica a acuñar la distinción sexo/género como parte de los protocolos de tratamiento y etiología de la denominada disforia de género fue considerada por este mismo sector como una acción inspirada por una ética humanista, pues su fin era aliviar el sufrimiento de los pacientes que declaraban sentir un doloroso desacuerdo entre su identidad - masculina o femenina - y su morfología física. Ocorre que desde 2019, com a 11ª revisão da ICD (International Classification of Diseases), a transexualidade deixou de constituir um transtorno mental e foi redefinida como uma “incongruência de gênero” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2022): Gender Incongruence of Adolescence and Adulthood is characterised by a marked and persistent incongruence between an individual´s experienced gender and the assigned sex, which often leads to a desire to ‘transition’, in order to live and be accepted as a person of the experienced gender, through hormonal treatment, surgery or other health care services to make the individual´s body align, as much as desired and to the extent possible, with the experienced gender.5 Com isso, passou efetivamente para o capítulo das “conditions related to sexual health”6 (item 17), de modo a impor a atenção integral à saúde de tais pessoas, algo que, no Brasil, tomara forma desde o ano de 2008, quando o Ministério da Saúde, por meio da Portaria nº 1.707, formalizou diretrizes técnicas e éticas para a atenção ao Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, iniciaram-se movimentos como a possibilidade de adequar o sexo biológico ao gênero psíquico mediante cirurgia de redesignação sexual. A realização da cirurgia 5 Em tradução livre: “A Incongruência de Gênero da Adolescência e da Idade Adulta é caracterizada por uma incongruência marcante e persistente entre o gênero vivenciado de um indivíduo e o sexo atribuído, o que muitas vezes leva a um desejo de 'transição', a fim de viver e ser aceito como pessoa da experiência vivida. gênero, por meio de tratamento hormonal, cirurgia ou outros serviços de saúde para alinhar o corpo do indivíduo, tanto quanto desejado e na medida do possível, com o gênero vivenciado.” 6 Em tradução livre: “condições relacionadas à saúde sexual”. 71 representa um direito fundamental do ser humano ligado à sua identidade pessoal, ao seu equilíbrio psíquico e ao direito à sua dignidade. Cuida-se,não de uma cirurgia de mutilação, mas de um procedimento realizado sob recomendação médica e orientação psicológica, para que o interior e o exterior do indivíduo possam harmonizar-se. De qualquer forma, ver-se-á adiante que a realização de intervenções para a redesignação sexual não é pressuposto para a alteração do gênero de alguém. “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, registrou Simone de Beauvoir (1980, p. 17), o que indica que o que se tem como gênero é resultante da construção identitária própria da pessoa. Diz-se por isso que “la identidad es privada, interna y es independiente del modo de vestir, actuar, andar o con quien se tienen relaciones sexuales” (ALCALA-MERCADO, 2020, p. 14), a impor uma reinterpretação da tutela dos direitos das pessoas transgênero que ultrapasse a simbologia tradicional. A base para tanto será a Bioética de intervenção, mas antes disso é preciso criticar a forma tradicional como as mulheres trans são vistas. É o que se fará no próximo item. 2.2 O “estado da arte” Como lembrado por Cézar Roberto Bitencourt (2017, p. 94-95), o feminicídio não constitui um tipo penal novo ou um crime; trata-se, em realidade, de uma circunstância qualificadora do homicídio doloso, com a inserção do inciso VI no § 2º do art. 121 do Código Penal por meio da Lei nº 13.104/2015. Além disso, essa lei alterou também a Lei nº 8.072/1990, para inserir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Segundo o texto incluído no Código Penal, o feminicídio é o homicídio doloso cometido “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. Todavia, a lei foi além e, em seu próprio corpo, trouxe uma norma penal explicativa, através de seu § 2º-A do mesmo artigo 121 do Código Penal. Assim, considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência doméstica e familiar ou II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher”. Através do texto normativo, verifica-se, em uma interpretação literal, que o legislador teria sido taxativo em limitar a qualificadora a apenas essas duas hipóteses e nos casos de o homicídio ser praticado especificamente contra uma mulher (do ponto de vista biológico). 72 Ou seja, esse § 2º-A foi acrescentado para esclarecer quando o assassinato de uma mulher deverá ser considerado motivado em razão do sexo feminino. Oportuno que se ressalte que o conceito de violência doméstica e familiar, constante do inciso I, pode ser obtido no art. 5º da Lei nº 13.340/2006 (Lei Maria da Penha), a qual será retomada mais à frente neste trabalho. Chama a atenção do leitor que, como bem ressaltou Cleber Masson (2018, p. 45), o reconhecimento da violência doméstica ou familiar contra a mulher não é suficiente para a configuração do feminicídio. Ou seja, para que ocorra o feminicídio, o homicídio haverá de ter sido motivado por “razões de condição do sexo feminino”, e, por consequência dessas razões, resulte a violência doméstica ou familiar. Já no requisito “menosprezo ou discriminação à condição de mulher”, não se exige que a violência tenha ocorrido no âmbito doméstico ou familiar, bastando o menosprezo do autor pela condição de mulher da vítima. No mesmo sentido, manifesta-se Rogério Sanches Cunha (2017, p. 96), afirmando que o feminicídio pressupõe uma violência motivada no gênero, ou seja, trata-se de agressões cuja motivação é a opressão à mulher. Nesse ínterim, torna-se imprescindível que a conduta do agente tenha sido motivada pelo menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima. Por fim, mais uma vez enfatiza-se a notoriedade de Rogério Sanches Cunha (2018, p. 64) ao lembrar que a incidência da qualificadora reclama situação de violência praticada contra a mulher, em contexto caracterizado por relação de poder e submissão praticada por homem ou por mulher (a agente) sobre outra mulher (a vítima) em situação de vulnerabilidade. Por todo o exposto, ficaria razoavelmente claro e fácil subsumir um homicídio doloso na qualificadora do art. 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, qual seja, o feminicídio, quando a vítima é mulher e claros restarem os fatos e evidências que permitam à autoridade policial e ao Ministério Público entenderem que houve, no caso concreto, os requisitos exigidos pelo texto normativo em sua literalidade. Ocorre, porém, que essa interpretação conduz à exclusão de mulheres trans, cuja identidade feminina não pode ser desconsiderada. Para a resolução do problema, propõe-se tomar por base a Bioética de intervenção, como se verá no próximo item. 73 2.3 A Bioética de intervenção como instrumento metodológico apto à resolução do problema A Bioética tal como conhecida e estudada tradicionalmente é baseada nos princípios de Autonomia, Não Maleficência, Beneficência e Justiça é resultado de um modelo liberal implementado desde a segunda metade do Século XX. Como destaca Volnei Garrafa (2005, p. 128), “[a] bioética se difundiu pelo mundo partindo dos EUA: uma bioética anglo-saxônica, com forte conotação individualista e cuja base de sustentação repousava sobre a autonomia dos sujeitos sociais”. Nessa ordem, ideias como são vistas a partir da liberdade individual em detrimento de um modelo inclusivo. Não por acaso, continua Volnei Garrafa (2005, p. 128-129): [a] abordagem de grande parte das questões do âmbito da bioética foi reduzida à esfera individual, tratando preferencialmente das contradições: autonomia versus autonomia e autonomia versus beneficência. A partir de abusos históricos (como no caso Tuskegee) ou das denúncias apresentadas por Henry Beecher(8), a bioética foi criada, pelo menos inicialmente, para defender os indivíduos mais frágeis nas relações entre profissionais de saúde e seus pacientes ou entre empresas/institutos de pesquisa e os cidadãos. Ocorre, contudo, que para países de modernidade tardia, como é o caso do Brasil, detentor de elevados índices de desigualdade e de intolerância em relação a minorias vulneráveis, impõe-se adotar um modelo epistemológico mais duro: entra aí a noção de uma bioética “interventiva”, nos moldes do que preconizou o autor (GARRAFA, 2005, p. 130): Essa nova proposta conceitual e prática, denominada “bioética de intervenção”, propõe uma aliança concreta com o lado historicamente mais frágil da sociedade, “(...) incluindo a reanálise de diferentes dilemas, dentre os quais: autonomia versus justiça/eqüidade, benefícios individuais versus benefícios coletivos, individualismo versus solidariedade, omissão versus participação e mudanças superficiais versus transformações concretas e permanentes”.7 Nessa reanálise, a Bioética interventiva indica como pontos elementares justificáveis (GARRAFA, 2005, p. 130-131): a) “no campo público e coletivo: a priorização de políticas e tomadas de decisão que privilegiem o maior número de pessoas, pelo maior espaço de tempo e que resultem nas melhores conseqüências, mesmo que em prejuízo de certas situações individuais, com exceções pontuais a serem discutidas;” 7 Id. Ibid. p. 130. 74 b) “no campo privado e individual: a busca de soluções viáveis e práticas para conflitos identificados com o próprio contexto onde os mesmos acontecem”. Na medida em que o reconhecimento e a proteção de minorias, com a erradicação das desigualdades, são objetivos da República Federativa do Brasil (inciso IV do art. 3º da CF), a Bioética de intervenção assume papel relevantíssimo na medida em que, para dialogar com as promessas fundantes do Estado Democrático de Direito, “[f]az opção pela banda frágil da sociedade e se propõe a lutar contra todas as formas de opressão e pela promoção da justiça, tendo como referencial o princípio da equidade” (FEITOSA; NASCIMENTO, 2015). Como consequência, a discussão sobre a identidade de gênero a partirda Bioética de intervenção ganha contornos de suceder outras teorias: entre as superadas (ALCALA- MERCADO, 2020, p. 14): [e]stán las teorías sobre los derechos humanos (Cviklová 2012, 45), sobre los derechos sexuales y reproductivos, el derecho a la salud, a la vida, a la familia, que en el caso del hombre T se refiere a la fertilidad y a las tecnologías de reproducción (Armuand et al. 2017, 283), o a los cuidados de la diversidad o de la reproducción en estas personas por ser diversas (Hoffkling et al. 2017, 332), y a la paternidad mediante adopción por parte de padres diversos (Goldberg et al. 2014, 221) o al mercado queer como grupo particular de consumo (Eichler 2012, 1). Diz-se assim que a proposta da Bioética de intervenção é a construção de paradigmas que busquem, no campo epistemológico, o reconhecimento das minorias vulneráveis; e, no campo político, a concretização, quer na área da saúde, quer na área do Direito, de práticas comprometidas com a transformação dessa realidade social que hoje é injusta. Isso dialoga com a hermenêutica sistemática e que busque a máxima concretização dos direitos fundamentais, como se indicará na próxima seção deste trabalho. 3 A BIOÉTICA INTERVENTIVA E A HERMENÊUTICA EM BUSCA DE UMA PROTEÇÃO EFETIVA DOS DIREITOS DAS MULHERES TRANS Buscada a igualdade a partir de uma Bioética interventiva, que busca dar visibilidade às minorias vulneráveis, emancipa-se também o conteúdo do “caput” do art. 5º da Constituição Federal (CF) para que mulheres (por sexo ou por gênero) sejam protegidas não apenas “no” Direito, mas também “perante” o Direito. Nesse sentido, Laura Saldivia Menajovsky (2018, p. 137) registra que: El paradigma despatologizador del género que encumbra a la autonomía personal como su pilar organizador es reflejo de una bioética preocupada por la dignidad 75 humana y por la protección de los derechos humanos de los grupos más desaventajados. Consiste en una bioética respetuosa de la autopercepción que tienen las personas respecto de un aspecto íntimo y fundamental de su identidad personal como es el género. Además, importa el reconocimiento de la situación de desigualdad estructural en la que se encuentran las personas transgénero, brindando herramientas para modificar tal desigualdad. Essa nova noção da Bioética articula-se com uma hermenêutica que se projeta a partir da Constituição Federal em direção à dignidade humana (artigo 1º, inciso III), afinal as normas devem ser vistas, não como mero conjunto de normas justapostas, mas como um sistema normativo íntegro e coerente. Com efeito, se se reconhece que “qualquer exegese comete, direta ou indiretamente, uma aplicação de princípios gerais, de normas e de valores constituintes da totalidade do sistema jurídico” (FREITAS, 1995, p. 47), o princípio da unidade aperfeiçoa-se como especificação da própria interpretação sistemática. Nesse sentido, ressalta Jorge Miranda (1990, p. 197-198): O Direito não é mero somatório de regras avulsas, produto de ato de vontade, ou mera concatenação de fórmulas verbas articuladas entre si. O Direito é um ordenamento ou conjunto significativo e não conjunção resultada de vigência simultânea; é coerência ou, talvez mais rigorosamente, consistência; é unidade de sentido, é valor incorporado em regra. Com base nessa perspectiva, é preciso que o Direito busque a concretização da promessa constitucional mediante coerência e integridade, qualidades que informam o sistema como um todo, nos dizeres de Ronald Dowrkin (1999, p. 213 e segs.). 3.1 Reinterpretando o espectro do feminicídio Numa interpretação conservadora e literal, não haveria que se falar em feminicídio na morte da mulher trans, pois biologicamente a vítima era homem. Tal interpretação se prende à justificativa de que entendimento diverso seria prejudicial ao autor do crime, constituindo-se em uma analogia in malam partem, não tolerada pelo Direito Penal. Na mesma perspectiva, se a vítima fosse biologicamente mulher e, por gênero, homem, ter-se-ia presente a condição do “sexo” (biológico) feminino, pelo que cabível a qualificadora do feminicídio. O que este trabalho acadêmico visa é exatamente descontruir essa interpretação, carreando para uma nova interpretação. Lembra-se, a propósito, das palavras de Carlos Maximiliano (2004, p. 7), para quem: Interpretar é explicar, esclarecer; dar o significado de vocábulo, atitude ou gesto; reproduzir por outras palavras um pensamento exteriorizado; mostrar o sentido 76 verdadeiro de uma expressão; extrair, de frase, sentença ou norma, tudo o que na mesma se contém. Com efeito, o problema de pesquisa aqui estudado é exemplo de que a interpretação, mesmo nos casos em que a lei se mostre aparentemente clara, sempre será necessária, pois a sociedade, seus conceitos e seus paradigmas são mutáveis e voláteis, de forma que decorrido pouco tempo após a elaboração da norma, poderão surgir casos concretos que suscitarão dúvidas sobre o efetivo alcance daquela norma. No mesmo sentido é a lição de Hans Kelsen (1998, p. 392), para quem “a necessidade de uma interpretação resulta justamente do fato de a norma aplicar ou o sistema das normas deixarem várias possibilidades em aberto...”. Percebe-se que a forma de tratamento adotada pela interpretação conservadora com relação à possibilidade de uma mulher trans ser vítima de feminicídio remete a uma interpretação gramatical, também denominada literal ou sintática; e declaratória, também denominada declarativa ou estrita. Isso porque se apega ao fato de no art. 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal, estarem escritas taxativamente as expressões “contra a mulher” e “sexo feminino”. Ocorre que, com base no paradigma teórica apontado acima, a redação do texto legal da qualificadora do feminicídio não foi adequada, pois no lugar de “razões da condição de sexo feminino”, melhor seria se tivesse utilizado algo como em “razão de gênero feminino”, assim como fez a Lei Maria da Penha. Segundo Cleber Masson (2018, p. 43), o Projeto de Lei nº 8.305/2014, que culminou na Lei nº 13.104/2015, teria adotado o termo “razões de gênero”, mas este foi substituído em decorrência de manobras políticas da bancada conservadora do Congresso Nacional, exatamente com a finalidade de excluir as mulheres trans da tutela do feminicídio. No entanto, erros e impropriedades gramaticais em textos legais não são novidade, nem tampouco privilégio da qualificadora ora em estudo. Isso faz aumentar a responsabilidade na hermenêutica do texto legal – para o que este trabalho se serve da Bioética de intervenção na medida em que esta procura “[d]emonstrar o papel do Estado de garantir livre, justa e solidária, o respeito aos direitos humanos fundamentais e sua aproximação com bioética” (CRUZ; MELO, 2020, p. 71). Há ademais importante legislação atual que veio com a missão de resguardar os direitos e proteger as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar. Refere-se, assim, à Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), cujo artigo 2º destaca que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, (...), goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa 77 humana (...)”, o que se coaduna com a Bioética interventiva que ruma para a diminuição de desigualdades e para a construção de uma sociedade mais livre, respeitosa e inclusiva. Já no art. 4º consta que, “na interpretação desta Lei, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.” Por oportuno, ressalta-se que igual entendimento se faz a partir do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), segundo o qual “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum”. Por fim, destaca-se o art. 5º dareferida lei, segundo o qual “[c]onfigura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”. Esse artigo mais uma vez traz à tona o conceito de violência doméstica definida como sendo a agressão contra mulher, num determinado ambiente, qual seja o doméstico, familiar ou de intimidade, com finalidade específica de objetá-la, isto é, dela retirar direitos, aproveitando-se da sua hipossuficiência. Destaca-se contudo a redação do texto normativo, que foi feliz ao utilizar a expressão “baseada no gênero”, pois se assim o é, por que não se poderia identificar uma pessoa trans como integrante do gênero feminino? Desses textos normativos permite-se obter a interpretação segundo a qual as mulheres trans devem receber as mesmas garantias que as mulheres cisgênero, no que se tem também a doutrina de Cézar Roberto Bitencourt (2017, p. 96): Por isso, na nossa ótica, somente quem for oficialmente identificado como mulher (certidão do registro de nascimento, identidade civil ou passaporte), isto é, apresentar sua documentação civil identificando-a como mulher, poderá ser sujeito passivo dessa qualificadora. Nesse sentido, é irrelevante que tenha nascido do sexo feminino, ou que tenha adquirido posteriormente, por decisão judicial, a condição legalmente reconhecida como do sexo feminino. (...). Cumpridas essas formalidades, a pessoa é reconhecida legalmente como do sexo feminino e ponto final. É mulher e tem o direito de receber as mesmas garantias à mesma proteção legal dispensada a quem nasceu mulher. Na mesma linha de raciocínio, Rogério Sanches Cunha (2018, p. 70) ressalta: A nosso ver, a mulher de que trata a qualificadora é aquela assim reconhecida juridicamente. No caso de transexual que formalmente obtém o direito de ser identificado civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os efeitos, esta pessoa será considerada mulher. A proteção especial não se estende, todavia, ao travesti, que não pode ser identificado como pessoa do gênero feminino. Restaria ainda verificar se e em que medida tais lições encontram eco nos precedentes jurisprudenciais. É o que se pretende fazer no próximo item deste trabalho. 78 3.2 Os precedentes das Cortes Supremas: mulher trans é mulher sim! A interpretação que, a par da tutela de direitos fundamentais, repousa também na Bioética interventiva em prol das pessoas trans, tem sido chancelada tanto pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), chamados de “Cortes Supremas” em matéria respectivamente de interpretação/aplicação constitucional e infraconstitucional. O Pleno do STF, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275, admitiu por unanimidade a possibilidade de alteração de nome e gênero no assento de registro civil mesmo sem a realização de cirurgia de redesignação de sexo. A ementa do acórdão foi esta (BRASIL, 2018): Ementa: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DIREITO CONSTITUCIONAL E REGISTRAL. PESSOA TRANSGÊNERO. ALTERAÇÃO DO PRENOME E DO SEXO NO REGISTRO CIVIL. POSSIBILIDADE. DIREITO AO NOME, AO RECONHECIMENTO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, À LIBERDADE PESSOAL, À HONRA E À DIGNIDADE. INEXIGIBILIDADE DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO OU DA REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS HORMONAIS OU PATOLOGIZANTES. 1. O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. 2. A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. 3. A pessoa transgênero que comprove sua identidade de gênero dissonante daquela que lhe foi designada ao nascer por autoidentificação firmada em declaração escrita desta sua vontade dispõe do direito fundamental subjetivo à alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil pela via administrativa ou judicial, independentemente de procedimento cirúrgico e laudos de terceiros, por se tratar de tema relativo ao direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. 4. Ação direta julgada procedente. A premissa de que partiu a Corte sobre o papel do Estado de reconhecer e não constituir a identidade de gênero é importante porque assume o caráter plural da sociedade. No mesmo sentido, por meio do Recurso Extraordinário nº 670.422 (Tema 761 - Repercussão Geral), Relator o Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 15 de agosto de 2018, o STF decidiu que a pessoa transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação da vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa. O acórdão foi assim ementado (BRASIL, 2018): 79 EMENTA Direito Constitucional e Civil. Transexual. Identidade de gênero. Direito subjetivo à alteração do nome e da classificação de gênero no assento de nascimento. Possibilidade independentemente de cirurgia de procedimento cirúrgico de redesignação. Princípios da dignidade da pessoa humana, da personalidade, da intimidade, da isonomia, da saúde e da felicidade. Convivência com os princípios da publicidade, da informação pública, da segurança jurídica, da veracidade dos registros públicos e da confiança. Recurso extraordinário provido. 1. A ordem constitucional vigente guia-se pelo propósito de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, voltada para a promoção do bem de todos e sem preconceitos de qualquer ordem, de modo a assegurar o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos e a resguardar os princípios da igualdade e da privacidade. Dado que a tutela do ser humano e a afirmação da plenitude de seus direitos se apresentam como elementos centrais para o desenvolvimento da sociedade, é imperativo o reconhecimento do direito do indivíduo ao desenvolvimento pleno de sua personalidade, tutelando-se os conteúdos mínimos que compõem a dignidade do ser humano, a saber, a autonomia e a liberdade do indivíduo, sua conformação interior e sua capacidade de interação social e comunitária. 2. É mister que se afaste qualquer óbice jurídico que represente restrição ou limitação ilegítima, ainda que meramente potencial, à liberdade do ser humano para exercer sua identidade de gênero e se orientar sexualmente, pois essas faculdades constituem inarredáveis pressupostos para o desenvolvimento da personalidade humana. 3. O sistema há de avançar para além da tradicional identificação de sexos para abarcar também o registro daqueles cuja autopercepção difere do que se registrou no momento de seu nascimento. Nessa seara, ao Estado incumbe apenas o reconhecimento da identidade de gênero; a alteração dos assentos no registro público, por sua vez, pauta- se unicamente pela livre manifestação de vontade da pessoa que visa expressar sua identidade de gênero. 4. Saliente-se que a alteração do prenome e da classificação de sexo do indivíduo, independente de dar-se pela via judicial ou administrativa, deverá ser coberta pelo sigilo durante todo o trâmite, procedendo-se a sua anotação à margem da averbação, ficando vedada a inclusão, mesmo que sigilosa, do termo “transexual” ou da classificação de sexo biológico no respectivo assento ou em certidão pública. Dessa forma, atende-se o desejo do transgênero de ter reconhecida sua identidade de gênero e, simultaneamente, asseguram-se os princípios da segurança jurídica e da confiança, que regem o sistema registral. 5. Assentadas as seguintes teses de repercussão geral: i) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registrocivil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação da vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa. ii) Essa alteração deve ser averbada à margem no assento de nascimento, sendo vedada a inclusão do termo ‘transexual’. iii) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, sendo vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial. iv) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar, de ofício ou a requerimento do interessado, a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos. 6. Recurso extraordinário provido. O STF deixou claro que a alteração do nome e da classificação de gênero independe de procedimento cirúrgico de redesignação de sexo. Decidiu, ainda, que a alteração pretendida 80 deve ser averbada à margem no assento de nascimento, sendo vedada a inclusão do termo “transexual”. O STF também julgou procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 26 e o Mandado de Injunção (MI) nº 4733 para reconhecer a mora do Congresso Nacional em tipificar atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGBTQIAPN+. Como forma de resolver temporariamente a questão, equiparou tais atos ao racismo, assentando a expressão segundo a qual (BRASIL, 2019): Garantir aos integrantes do grupo LGBTI+ a posse da cidadania plena e o integral respeito tanto à sua condição quanto às suas escolhas pessoais pode significar, nestes tempos em que as liberdades fundamentais das pessoas sofrem ataques por parte de mentes sombrias e retrógradas, a diferença essencial entre civilização e barbárie. Nesse âmbito, tem-se decisão do Ministro Luís Roberto Barroso, Relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 527, ajuizada pela Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) e que questionava decisões judiciais contraditórias na aplicação da Resolução Conjunta da Presidência da República e do Conselho de Combate à Discriminação nº 1/2014, que estabeleceu parâmetros de acolhimento do público LGBTQIAPN+ submetido à privação de liberdade nos estabelecimentos prisionais brasileiros. Na decisão monocrática proferida em 19 de março de 2021, o Relator ajustou medida cautelara deferida em 26 de junho de 2019 para permitir “que presas transexuais e travestis com identidade de gênero feminino possam optar por cumprir penas em estabelecimento prisional feminino ou masculino” (BRASIL, 2021). Segundo constou no pronunciamento (BRASIL, 2021): [a] decisão mais adequada do ponto de vista da dignidade de tais grupos, extremamente vulneráveis e estigmatizados, não implicaria apenas olhar para questões de identidade de gênero, tais como direito ao nome, à alteração de registro e ao uso de banheiro, mas também para as relações de afeto e múltiplas estratégias de sobrevivência que eles desenvolvem na prisão. A ADPF foi extinta, e a cautelar, revogada, por julgamento virtual encerrado no dia 14 de agosto de 2023, em razão da edição de Resolução do CNJ que alterou substancialmente o panorama normativo descrito quando de seu início. Não obstante, constituiu-se em mais um passo rumo à tutela efetiva dos direitos das pessoas trans. No âmbito do STJ, acórdão da Sexta Turma no Recurso Especial nº 1.977.124/SP, relator Ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 05 de abril de 2022, deu pela interpretação teleológica da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), a fim de que tal lei possa ser aplicada, além das vítimas mulheres (biologicamente falando), também às vítimas mulheres transexuais. 81 Segundo entendimento daquela Turma, uma mulher trans também pode ser enquadrada como vítima de violência doméstica, afastando qualquer distinção entre sexo e gênero nesse tipo de violência em particular. A ementa do acórdão foi esta (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2022): RECURSO ESPECIAL. MULHER TRANS. VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. APLICAÇÃO DA LEI N. 11.340/2006, LEI MARIA DA PENHA. CRITÉRIO EXCLUSIVAMENTE BIOLÓGICO. AFASTAMENTO. DISTINÇÃO ENTRE SEXO E GÊNERO. IDENTIDADE. VIOLÊNCIA NO AMBIENTE DOMÉSTICO. RELAÇÃO DE PODER E MODUS OPERANDI. ALCANCE TELEOLÓGICO DA LEI. MEDIDAS PROTETIVAS. NECESSIDADE. RECURSO PROVIDO. 1. A aplicação da Lei Maria da Penha não reclama considerações sobre a motivação da conduta do agressor, mas tão somente que a vítima seja mulher e que a violência seja cometida em ambiente doméstico, familiar ou em relação de intimidade ou afeto entre agressor e agredida. 2. É descabida a preponderância, tal qual se deu no acórdão impugnado, de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, cujo arcabouço protetivo se volta a julgar autores de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres. Efetivamente, conquanto o acórdão recorrido reconheça diversos direitos relativos à própria existência de pessoas trans, limita à condição de mulher biológica o direito à proteção conferida pela Lei Maria da Penha. 3. A vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos não pode ser resumida tão somente à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas e o Direito não se deve alicerçar em argumentos simplistas e reducionistas. 4. Para alicerçar a discussão referente à aplicação do art. 5º da Lei Maria da Penha à espécie, necessária é a diferenciação entre os conceitos de gênero e sexo, assim como breves noções de termos transexuais, transgêneros, cisgêneros e travestis, com a compreensão voltada para a inclusão dessas categorias no abrigo da Lei em comento, tendo em vista a relação dessas minorias com a lógica da violência doméstica contra a mulher. 5. A balizada doutrina sobre o tema leva à conclusão de que as relações de gênero podem ser estudadas com base nas identidades feminina e masculina. Gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres. Uma análise de gênero pode se limitar a descrever essas dinâmicas. O feminismo vai além, ao mostrar que essas relações são de poder e que produzem injustiça no contexto do patriarcado. Por outro lado, sexo refere-se às características biológicas dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, bem como ao seu funcionamento, de modo que o conceito de sexo, como visto, não define a identidade de gênero. Em uma perspectiva não meramente biológica, portanto, mulher trans mulher é. 6. Na espécie, não apenas a agressão se deu em ambiente doméstico, mas também familiar e afetivo, entre pai e filha, eliminando qualquer dúvida quanto à incidência do subsistema da Lei n. 11.340/2006, inclusive no que diz respeito ao órgão jurisdicional competente - especializado - para processar e julgar a ação penal. 7. As condutas descritas nos autos são tipicamente influenciadas pela relação patriarcal e misógina que o pai estabeleceu com a filha. O modus operandi das agressões - segurar pelos pulsos, causando lesões visíveis, arremessar diversas vezes contra a parede, tentar agredir com pedaço de pau e perseguir a vítima - são elementos próprios da estrutura de violência contra pessoas do sexo feminino. Isso significa que o modo de agir do agressor revela o caráter especialíssimo do delito e a necessidade de imposição de medidas protetivas. 8. Recurso especial provido, a fim de reconhecer a violação do art. 5º da Lei n. 11.340/2006 e cassar o acórdão de origem para determinar a imposição das medidas protetivas requeridas pela vítima L. E. S. F. contra o ora recorrido. 82 Concluindo, o STJ deu mais um passo para uma jurisprudência,ainda não sumulada e não vinculante, no sentido de que toda forma de violência contra mulheres transgênero seja igual à violência praticada contra mulheres cisgênero. A ratio decidendi de tais acórdãos indica que se parte de uma interpretação sistemática (própria da Bioética de intervenção) e conforme à Constituição que, no catálogo-tópico de princípios de interpretação constitucional (CANOTILHO, 1998, p. 1099-1100), surge como verdadeiro mecanismo de controle de constitucionalidade ao afirmar a compatibilidade de uma lei com a Constituição (SICCA, 1996, p. 29), procedendo à exclusão das possibilidades de interpretação entendidas como inconstitucionais (BASTOS, 1999, p. 170). A interpretação conforme à Constituição, havida a partir daqueles precedentes, é validada pelo princípio da unidade da ordem jurídica (Einheit der Rechtsordnung), que considera a Constituição como contexto superior (Vorrangiger Kontext) às demais normas. As leis e as normas secundárias devem ser interpretadas, obrigatoriamente, em consonância com a Constituição. Ou seja: pode-se chegar a vários sentidos para o mesmo texto normativo, o que é muito compreensível num sistema pluralista. No entanto, a partir de um parâmetro de razoabilidade (BULOS, 1997, p. 54), deve ser adotada como válida apenas a interpretação que a compatibilize com a Constituição, o que implica elastecer ou restringir a norma de acordo com tal finalidade. Pretende-se, ainda, que a interpretação seja feita conforme a Constituição. Como citado em obra de Rogério Sanches Cunha (2018, p. 69), neste tipo interpretativo a norma legal é hierarquicamente inferior ao texto constitucional. Dessa forma, propõe-se o confronto entre a estrita literalidade do texto legal do feminicídio e a Constituição. Assim procedendo, dentro de uma perspectiva bioética interventiva, verifica-se que a literalidade do texto normativo em questão está em desacordo com um exercício hermenêutico que dignifique a situação das mulheres trans. 4 CONCLUSÃO Mercê da maestria de Cézar Roberto Bitencourt e Rogério Sanches Cunha e de suas opiniões acerca do assunto, as quais foram reproduzidas na íntegra ao final do tópico anterior e, com as quais, oportuno que se diga, concorda-se, ousa-se ir além: para os autores do presente trabalho, além das situações em que a pessoa trans já tenha adquirido o seu reconhecimento judicial de mulher, será mulher também aquela que assim tiver construído seu gênero, inclusive 83 as que eventualmente tenham optado por realizar procedimentos cirúrgicos e estéticos a ponto de serem fisicamente identificadas com uma mulher biológica. Assim, o que se propõe é que nos casos em que o sujeito ativo mata uma mulher trans, e desde que o crime tenha sido praticado em uma situação caracterizadora de violência doméstica e/ou familiar ou motivado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher, incidirá a qualificadora contida no inciso VI do § 2º do art. 121 do Código Penal, incluída pela Lei nº 13.140/2015. Com tal interpretação, cuja base remonta à Bioética de intervenção, poderá ser tutelada juridicamente a vida de mulheres trans, elemento indissociável de sua dignidade (inciso III do art. 1º da CF), e poderão ser traçados rumos para uma sociedade mais justa, solidária, inclusiva e sem preconceitos, concretizando os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (incisos III e IV do art. 3º da CF). REFERÊNCIAS ADAMS, Noah et al. Guidance and Ethical Considerations for Undertaking Transgender Health Research and Institutional Review Boards Adjudicating This Research. Transgender Health 2, n. 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Com efeito, essa discussão necessitaria passar pelo crivo de aliviar a dor, sofrimento, morrer em paz, sem medos, ansiedades, proporcionando ao enfermo uma morte digna aos pacientes terminais, tendo em vista que somos seres humanos mortais. Em contrapartida, temos o testamento vital como documento legal que permite ao paciente no fim da vida expressar sua vontade quanto ao tratamento médico que será adotado quando perderem a capacidade de decisão. Para tanto, este artigo discorre sobre os aspectos éticos e legais da distanásia, assim como da importância do testamento vital como uma ferramenta que garante os desejos do paciente. Por fim, a metodologia proposta para atingir os objetivos é hipotético-dedutiva com cunho exploratório e realizada por meio de levantamento bibliográfico. Palavras-chave: Bioética; Diretivas antecipadas de vontade; Distanásia; Cuidados paliativos; Testamento vital. INTRODUÇÃO O presente estudo versa sobre as diversas facetas que envolvem o prolongamento da vida, elucidando a diferença entre distanásia, eutanásia, ortotanásia, e seus reflexos no sofrimento no término da vida dos pacientes. A pesquisa, primeiramente, tem o condão de brevemente diferenciar os aspectos normativos da distanásia, eutanásia e ortotanásia. A discussão tem se intensificado com o 1 Advogada. Estudante regular do curso de doutorado da Universidade Federal de Buenos Ayres – UBA. Membro da Comissão Especial da Saúde (CEDS). E-mail: camilamaciel.advogada@gmail.com OABRS n.87.890. 2 Mestre em Direito pela Universidade de Passo Fundo – UPF. Especialista pela PUCRS. Advogada e consultora. Associada IARGS. Consocia IAB. Coordenadora do GT pesquisa da Comissão Especial da Saúde (CEDS) E-mail: estefani.f.teixeira@gmail.com. OABRS n.115.412. 3 Bacharel em direito. Especialista em Direito Médico e da Saúde – Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Membro da Comissão Especial da Saúde (CEDS). E-mail: mariana.oliveirassis@gmail.com. mailto:estefani.f.teixeira@gmail.com mailto:mariana.oliveirassis@gmail.com 88 avanço da medicina e com os dilemas éticos enfrentados pela sociedade a respeito do fim da vida. No próximo tópico, aborda-se, os cuidados paliativos e uma abordagem humanizada, ética da sacralidade da vida e qualidade de vida do paciente. Desse modo, respeitando os direitos inerentes a todo ser humano, essencialmente, sua dignidade. No último tópico, exploraremos as diretivas antecipadas de vontade e o princípio da dignidade da pessoa humana, examinando as definições e implicações legais. Desse modo, respeitando à vontade do paciente, do representante legal e humanização da medicina com um olhar atento a bioética. Aborda-se ainda a capacidade civil, que é quando o indivíduo perde a sua capacidade de exercer o seu direito de decidir e o testamento vital. Importante destacar que, os códigos brasileiros de ética médica ainda são marcados por dispositivos tradicionais secular, influenciada de princípios humanitários, mas sem a observar as garantias éticas na religião ou cultura, por exemplo. Ademais, existe o estereótipo que médicos devem salvar vidas a qualquer custo, caso contrário são por muitas vezes são intitulados fracassados em suas condutas, pois temos esse aspecto cultural de manter o prolongamento da vida humana, visando ao tempo da vida, não à qualidade desta vida prolongada, a qual é chamada “boa morte”. Dentro desse desdobramento, passamos analisar os aspectos terminológicos nas próximas linhas. BIOÉTICA E DIREITO: DISTANÁSIA, EUTANASIA E ORTOTANÁSIA Sem a pretensão de aprofundar as terminologias e suas origens, frisa-se que a Bioética é termo derivado da fusão de vocábulos de origem grega: bio significa “vida” e ethos significa “ética”. Por isso, o termo significa “ética da vida”. Há divergências a respeito do período do nascimento da bioética, assim como quem seriam seus fundadores e idealizadores. Sabemos, no entanto, que o conhecimento se constrói ao longo do tempo e conta com a colaboração de muitos estudiosos, pesquisadores e cientistas (LOPES; LIMA; SANTORO, 2017, p. 97). Lopes, Lima e Santoro (2017, p. 49) fazem a seguinte reflexão: “adotar a distanásia, também conhecida como obstinação terapêutica, ou adotar as medidas necessárias para preservar e promover a dignidade do paciente, por meio dos cuidados paliativos?” Respondem no sentido de que: 89 Se a morte for compreendida como um processo natural e final da vida e não como um fracasso, a ortotanásia será concebida como um procedimento pautado no respeito à morte digna, o que possibilitará a humanização do processo de morte. Afinal, se todo o processo da vida deve ser pautado pelo respeito à dignidade, não há dúvida que o processo de morte também deve ser guiado pelo respeito à dignidade. E a finalidade da intervenção médica na ortotanásia é a preservação da dignidade humana, para que o paciente tenha garantido o direito à morte boa, ao seu tempo e com respeito aos seus valores. Morte boa, segundo Débora Diniz, seria: [...] aquela resultante de uma combinação de princípios morais, religiosos e terapêuticos. De forma mais explicativa, distanásia significa a obstinação terapêutica para adiar a morte iminente e os cuidados paliativos “[...] consistem em uma abordagem multidisciplinar cujo objetivo é minimizar o sofrimento e preservar a qualidade de vida com doenças graves e ameaçadoras a vida, em qualquer ambiente de cuidado.” (TURAÇA; RIBEIRO, 2021, p. 3). Portanto, verifica-se que existe um certo paradigma nos cuidados aprisionados pelo domínio das técnicas tecnológicas da vez mais modernas e o momento de compreender que somos seres mortais e limites para a boa qualidade de vida, dignidade, tratamentos mais humanizados e menos sofridos para o enfermo e seus familiares. A tecnologia é inerente à vida humana tem suas limitações. Evitar a morte não é uma falha da medicina moderna, mas sim proporcionar uma alternativa mais digna ao paciente quando em estado terminal. A medicina deve preservar a saúde ou aliviar o sofrimento quando os inovadores e promissores aparatos tecnológicos não atingem mais sua finalidade. Assim, aliviando o sofrimento e desconforto da morte. Tanto a distanásia, eutanásia e ortotanásia abordam o tratamento adotado no fim da vida; no entanto, com implicações éticas diferentes. Os denominados métodos denominados distanásia, eutanásia e ortotanásia são estudados pela bioética e o direito. A eutanásia é apontada como uma ação que tem por finalidade acelerar o processo de morte por causas humanistas, uma vez que se conclui que nada que será́ feito a partir de determinado momento resultará positivamente, tornando o rompimento do sofrimento do paciente uma solução digna. Contudo, ainda assim, sua prática é considerada ilegal e proibida no Brasil, porém é aceito em alguns países, como a Holanda e a Bélgica. Imperioso frisar que, o Código de Ética Médica brasileiro de 1988 tem todos os artigos alusivos ao tema contrários à participação do médico na eutanásia e no suicídio assistido. (FELIX, DA COSTA, ET AL, 2013 P. 2735). Destarte, a ortotanásia é a denominada “boa morte”, humana e correta. Garantindo que sejam respeitados os direitos e garantias fundamentais do ser humano também no momento da 90 terminalidade da vida humana. Sem recorrer a eutanásia (nos países que aderem) ou distanásia como recursos. No Brasil, os cuidados paliativos propõem-se a realizar uma abordagem multiprofissional, buscandoa garantir a ortotanásia. Assim, objetivando aliviar a dor e o sofrimento e os demais sintomas de ordem psicológica, espiritual, social, entre outros, priorizando a qualidade de vida para o enfermo e seus familiares. Villas Bôas classifica a etimologicamente ortotanásia: “Já a ortotanásia significa morte correta - orto: certo; thanatos: morte. Traduz a morte desejável, na qual não ocorre o prolongamento da vida artificialmente, através de procedimentos que acarretam aumento do sofrimento, o que altera o processo natural do morrer.” (VILLAS BÔAS, 2008, p. 61-83) Mendes acresce que, na ortotanásia, o indivíduo em estágio terminal “é direcionado pelos profissionais envolvidos em seu cuidado para uma morte sem sofrimento, que dispensa a utilização de métodos desproporcionais de prolongamento da vida, tais como ventilação artificial ou outros procedimentos invasivos. A finalidade primordial é não promover o adiamento da morte, sem, entretanto, provocá-la; é evitar a utilização de procedimentos que aviltem a dignidade humana na finitude da vida”. (MENDES, 2008) Por outro lado, a distanásia é o excesso terapêutico, o prolongamento excessivo da vida, envolvendo técnicas e tratamentos que não trazem benefício à vida do doente e que, muitas vezes, são contra a vontade do paciente. Portanto, a distanásia é fazer uso da tecnologia para que o resultado morte não ocorra. Tanto a distanásia quanto a eutanásia (nos países que é legalizada) levantam questionamentos complexos de ética e moral e têm perspectivas legais diferentes de acordo com a cultura e conhecimento da pessoa. Se a eutanásia busca aliviar o sofrimento do doente, a distanásia, por sua vez, acaba por prolongar esse momento de dor. Em suma, a eutanásia antecipa a morte quando se tem o diagnóstico de uma doença sem cura, o resultado prático são menos dias de vida e redução no sofrimento, enquanto a distanásia prolonga a morte resultando em mais dias de vida através da tecnologia que incluem remédios fortes e/ou aparatos tecnológicos, aumentando o sofrimento do paciente. No contexto brasileiro verifica-se que a eutanásia é ilegal e a distanásia por maioria das vezes não é a vontade do paciente e sim do responsável legal do acamado. No entanto, no direito há mecanismos para prevalecer e se fazer valer a vontade tácita e expressa do paciente. Nas páginas seguintes, aborda-se as diretivas antecipadas como garantia da dignidade da pessoa humana. 91 DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A Diretiva antecipada de vontade trata da manifestação do desejo do paciente, de forma antecipada, ainda em plena capacidade civil, em relação aos cuidados e tratamentos dispensados quando estiver acometido de uma doença grave, garantindo que não haja lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana, o valor universal inerente a todo ser humano que garante as necessidades vitais de cada indivíduo. No que tange à Constituição de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana está disposto no primeiro título do texto constitucional (artigo. 1º, III); 2 esse princípio tem representatividade e importância no cenário constitucional e internacional, além de ligar-se diretamente aos direitos da pessoa humana e direitos e garantias fundamentais (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2019, p.55). Na concepção de Sarlet, a dignidade da pessoa humana diz respeito à vida com dignidade, com o mínimo existencial e saudável. Este valor supremo é o fundamento de todo ordenamento jurídico, bem como o “princípio-guia”, de caráter inspirador da própria aplicação do direito, em seus mais diversos níveis. (SARLET, 2015) Resumidamente poderíamos dizer então que os direitos humanos, como conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida digna jurídico-político- físico-econômica e afetiva dos seres e de seu habitat, tanto aqueles do presente quando daqueles do porvir, surgem sempre como condição fundante da vida, impondo aos agentes político- jurídico-econômico-sociais a tarefa de agirem no sentido de permitir e viabilizar que a todos seja consignada a possibilidade de usufruí-los em benefício próprio e comum ao mesmo tempo (SARLET, 2003). As diretivas antecipadas baseiam-se, assim, no princípio da dignidade da pessoa humana bem como na autonomia privada do indivíduo e na proibição do tratamento desumano. Para o Conselho Federal de Medicina, no artigo 1º da Resolução 1.995/2012, as diretivas antecipadas são “um conjunto de desejos, manifestados de forma prévia e expressa pelo paciente, a respeito de todos os cuidados e tratamentos que deseja ou não receber quando não puder expressar, livre e autonomamente, sua vontade”. Esta diretiva é um documento legal que permite à pessoa se expressar sobre tratamentos médicos futuros a que deseja ou não se submeter, caso se torne incapaz de tomar decisões sobre a própria saúde. A diretiva antecipada nada mais é do que a garantia de que os desejos do 92 indivíduo serão respeitados, pois, mesmo no fim da vida, o ser humano é um sujeito de direitos, não devendo ser submetido a tecnologias ou tratamentos que não sejam da sua vontade. Incluem-se, nessa recusa, a reanimação cardiopulmonar, a ventilação mecânica e os demais tratamentos possíveis. De forma explicativa, a distanásia e a obstinação terapêutica para adiar a morte iminente e os cuidados paliativos “[...] consistem em uma abordagem multidisciplinar cujo objetivo é minimizar o sofrimento e preservar a qualidade de vida com doenças graves e ameaçadoras, em qualquer ambiente de cuidado” (TURAÇA; RIBEIRO, 2021). Jorge Miranda refere que a primeira forma de defesa dos direitos é a que consiste no seu conhecimento, e acrescenta, ainda, que só quem tem consciência dos seus direitos consegue usufruir os bens a que eles correspondem e sabe avaliar as desvantagens e os prejuízos que sofre quando não os pode exercer ou quando eles são violados ou restringidos (MIRANDA, 2000, p.254). OS CUIDADOS PALIATIVOS Os cuidados paliativos são destinados à promoção da qualidade de vida do paciente atingido por doenças graves que ameaçam a continuidade da vida. Esses cuidados visam proporcionar alívio dos sintomas da doença, no entanto a equipe multidisciplinar deve estar atenta não somente aos sintomas físicos, mas também aos sintomas emocionais e espirituais tanto do paciente quanto dos familiares. Quando o paciente adoece, toda a família é acometida pelo sofrimento e o olhar da equipe responsável pelos cuidados paliativos deve abranger também o ente querido do doente. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), em conceito definido em 1990 e atualizado em 2002, cuidados paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio de prevenção e alívio do sofrimento, por meio da identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. (INCA, 2023) No tocante ao emprego dos cuidados paliativos, em geral exigindo equipe multiprofissional, mostra-se um desafio no qual deve ser avaliado pelas vantagens e desvantagens para qualidade de vida do paciente, ainda, importante considerar o questionamento entre fazer uso de recursos tecnológicos em constante avanço apresentando 93 diversas alternativas para prolongar a vida do paciente com a necessidade do reconhecimento de que somos imortais, que o prolongamento da vida também pode resultar continuidade e agravamento do sofrimento do paciente e seus familiares, fazendo prolongar o processo de luto já instaurado, tendo em vista que o final da vida apenas será postergado, não poderá ser evitado. Sabemos também que a extensão dos cuidados paliativos focado na manutenção da qualidade de vida da pessoa,abrange profissionais de diversas especialidades da área da saúde com comunicação clara e direta para com os familiares, com paciente, quando possível, uso de medicamentos diferenciados e emprego de tecnologia avançada para controle dos sintomas e apoio à família, sendo assim, não é de acesso geral para população, mantendo-se efetivo para um grupo restrito, tendo em vista os custos financeiros envolvidos. Cabe refletirmos que o ser humano desde o nascimento merece paz e alívio e assim também se espera que seja no leito de morte, um equilíbrio respeitoso com o ciclo da vida, ao qual não pode ser alcançado pela eutanásia ou pela distanásia. PERDA DA CAPACIDADE CIVIL E O TESTAMENTO VITAL O testamento vital é um documento legalmente reconhecido pela Resolução 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina, por meio do qual os indivíduos manifestam a sua vontade acerca da aceitação ou da recusa de procedimentos ou tratamentos a que seria submetido quando acometido de doença em fase terminal. No artigo 4 da referida Resolução infere-se que o médico registre, no prontuário, as diretivas antecipadas de vontade que lhes foram diretamente comunicadas pelo paciente. (CFM, RESOLUÇÃO 1995/2012, 2012). Os testamentos vitais, também conhecidos como living will, testamentos biológicos ou testament de vie, são documentos elaborados por uma determinada pessoa que, mediante diretrizes antecipadas, realizadas em situação de lucidez mental, declara a sua vontade, autorizando os profissionais médicos, no caso de doenças irreversíveis ou incuráveis, em que já não seja mais possível expressar a sua vontade, a não prolongarem o tratamento. Nesses casos, o paciente em fase terminal ou em estado vegetativo autoriza a suspensão de tratamentos que visam apenas a adiar a morte, em vez de manter a vida. (CAROLINA CUNHA, 2011). Corroborando Borges aduz que o testamento vital: É um documento em que a pessoa determina, de forma escrita, que tipo de tratamento deseja para a ocasião em que se encontrar doente, em estado incurável ou terminal, e incapaz de manifestar sua vontade. Visa-se, com o testamento vital a influir sobre os 94 médicos no sentido de determinada forma ou tratamento ou simplesmente, no sentido do não tratamento, como uma vontade do paciente que pode vir a estar incapacitado de manifestar sua vontade em razão da doença. (BORGES, 2001, p. 283-305.) Por intermédio do referido testamento, a pessoa consegue manter o controle da assistência médica, mesmo quando perder a capacidade civil. O documento pode abordar desde procedimentos que o paciente deseja ou não se submeter como, por exemplo, reanimação cardiopulmonar, cateteres, ventilação mecânica, até questões de doações de órgãos. Trata-se de uma forma de garantir que os desejos da pessoa sejam plenamente respeitados e para amparar familiares no momento decisório. Nesse contexto Comparato ensina: [...] Ora, a dignidade da pessoa não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em si mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. " (COMPARATO, 2019, p.21) O representado deve ser capaz no momento da outorga dos poderes ao representante. O PCS só começará a atuar quando declarada a incapacidade do paciente. O próprio instrumento deve prever as condições para se reconhecer a falta de capacidade e, também, para eventualmente, readquiri-la. Não se trata de incapacidade física, mas de tomar decisões, de se autodeterminar. (KFOURI NETO, 2019, p. 390). CONCLUSÃO A dor e sofrimento humano tornam-se ainda mais relevantes quando se tem uma expectativa no contexto da tecnologia que o paciente possui mínimas chances de sobreviver por intermédio de aparelhos e/ou administração medicamentosa. A distanásia como um prolongamento do processo de morte ou adiamento da morte com auxílio de processos reanimadores, objetivando prolongar a vida biológica do paciente, tem-se que a preocupação com o sofrimento prolongado do paciente e/ou familiares, amigos, bem como empenho de recursos caríssimos, devem avaliados em conjunto e servir como parâmetro para adoção de tal conduta. Devemos atentar que a distanásia é um termo médico, mas as decisões que antecedem a morte não exigem apenas cuidados técnicos em si, trata-se de um momento delicado e que carece de tratamento sensível e humano. 95 No arcabouço legislativo brasileiro, vimos que ainda não há lei específica que verse sobre o testamento vital, ficando a decisão amparada no princípio da dignidade da pessoa humana e da autonomia privada, ambas previstas na Constituição Federal de 1988 e por intermédio da legislação específica do Conselho Federal de Medicina. Por fim, devem ser tomadas todas as medidas que visem proteger o bem maior que é a vida; no entanto, o médico deve ponderar e ter como objetivo refletir com o paciente, se em gozo da capacidade civil, ou com o responsável legal até que ponto isso pode ser realizado, evitando o sofrimento desnecessário. É necessário deixar claro aos familiares sobre a situação efetiva e chances de sobrevida do familiar. Como vimos, um tratamento humanizado somado aos cuidados paliativos pode aliviar o sofrimento tanto da família quanto do paciente, visando, assim, ao respeito à morte digna. A preservação da dignidade da pessoa humana e os direitos humanos, se conectados, podem dar o direito a morrer em paz e sem dor. Conclui-se, então, que, quando os inovadores e promissores aparatos tecnológicos não atingirem mais sua finalidade, cabe à medicina evitar o sofrimento excessivo e desnecessário. REFERÊNCIAS BRASIL. Lei no 8.080 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L8080.htm>. Acesso em: 07 out. 2023. BRASIL. Lei no 12.842 de 10 de julho de 2013. Dispõe sobre o exercício da medicina. Brasília, 2013. 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Este artigo explora a problemática do uso do critério de autoridade científica como base para a imposição de tais medidas, examinando seus impactos nas liberdades individuais e no equilíbrio entre a saúde pública e os direitos individuais. Através de uma análise crítica das decisões tomadas durante a pandemia, este estudo ressalta a importância de abordagens mais equilibradas que considerem tanto a expertise científica quanto as implicações éticas e sociais. Palavras-chave: Autoridade Científica; Medidas Restritivas; Liberdades Individuais; Pandemia de COVID-19; Bioética. 1. INTRODUÇÃO A pandemia global desencadeada pelo coronavírus (COVID-19) trouxe consigo não apenas desafios médicos e científicos, mas também questionamentos profundos sobre a intersecção entre autoridade científica, medidas restritivas e liberdades individuais. Desde o início da disseminação do vírus, os governos em todo o mundo se viram diante da tarefa complexa de tomar decisões cruciais para proteger a saúde pública, enquanto também equilibravam as liberdades civis e os direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse contexto, o critério de autoridade científica emergiu como uma ferramenta central na formulação e justificação das medidas restritivas adotadas. A busca pela orientação de especialistas e pela ciência em momentos de crise é, sem dúvida, uma abordagem sensata e lógica. A comunidade científica tem um papel inegável na 1 Advogado (OABRS 83.859). Mestre em Direito pela Unisinos (2015). Autor dos livros “Manual de Direito Desportivo” (EDIPRO, 2014), “Bacamarte” (Giostri, 2016), “Francês Jurídico” (Jano, 2022) e “A Solidão Disciplinada” (Thoth, 2023). É coautor de outras obras jurídicas. E-mail: cesar.cavazzola@gmail.com. 2 Doutorando em Educação pela Universidade de Brasília, Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Paraná e Especialista em Design Instrucional pela Unyleya. É professor de Filosofia, com publicações didáticas na área e realiza pesquisas na área de História da Educação e Educação por competências. E-mail: cj_surdi@hotmail.com. mailto:cesar.cavazzola@gmail.com mailto:cj_surdi@hotmail.com 98 coleta e análise de dados, fornecendo insights valiosos sobre a natureza do vírus, sua disseminação e potenciais estratégias de contenção. No entanto, o uso exclusivo do critério de autoridade científica como alicerce para a implementação de medidas restritivas levanta uma série de preocupações éticas, sociais e políticas que não podem ser ignoradas. Este artigo tem como objetivo explorar a complexidade dessa questão, analisando criticamente como o uso do critério de autoridade científica impactou a imposição de medidas restritivas durante a pandemia do coronavírus. Ao examinar essa dinâmica, pretende-se destacar a importância de uma abordagem equilibrada e multidisciplinar que considere tanto os aspectos científicos quanto as implicações éticas e sociais das decisões tomadas. Além disso, o artigo discutirá como a predominância da autoridade científica não só afetou, como também pode afetar as liberdades individuais e os direitos civis, levantando questionamentos fundamentais sobre o papel da ciência na formulação de políticas públicas. Ao compreendermos as implicações do uso do critério de autoridade científica para impor medidas restritivas durante a pandemia, estaremos mais bem equipados para enfrentar desafios similares no futuro. Assim sendo, o diálogo entre a ciência, a ética e a sociedade é essencial para garantir que as decisões tomadas em resposta a crises de saúde pública sejam informadas, justas e respeitosas com os direitos individuais, construindo assim um equilíbrio sólido entre a busca pela saúde pública e a preservação das liberdades fundamentais. 2. A PANDEMIA DO CORONAVÍRUS NO MUNDO E NO BRASIL A pandemia do coronavírus (COVID-19) – segundo fontes oficiais - se originou em dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, província de Hubei, China, e rapidamente se espalhou pelo mundo. O vírus responsável pela doença, o SARS-CoV-2, causou uma crise global sem precedentes nas áreas de saúde, economia e sociedade. Até o momento desta análise, mais de 220 países e territórios foram afetados pela pandemia, resultando em mais de 200 milhões de casos confirmados e um número substancial de mortes. A rápida disseminação do vírus foi influenciada por fatores como a conectividade global, densidade populacional e a falta de imunidade prévia à nova doença. No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 foi confirmado em fevereiro de 2020. Desde então, o país enfrentou uma série de desafios complexos na gestão da pandemia. O número total 99 de casos confirmados no Brasil atingiu a marca de milhões, com um alto número de óbitos registrados. A resposta ao surto no Brasil abrangeu medidas como distanciamento social, lockdowns em certas regiões, restrições de viagem, suspensão de atividades econômicas não essenciais e campanhas de conscientização pública. A eficácia dessas medidas variou de acordo com fatores como a prontidão dos sistemas de saúde, a capacidade de teste e a adesão da população. Isso não apenas impactou a saúde pública, mas também teve consequências econômicas e sociais significativas. A taxa de desemprego aumentou (alcançando o número de 15% de desempregados no 1º trimestre de 2021)3, os sistemas de saúde foram sobrecarregados, impactando seriamente no represamento de procedimentos não relacionados a COVID-19 (BIGONI, MALIK, TASCA, CARRERA, et al., 2022) e desafios em relação à educação e desigualdades sociais se intensificaram. A vacinação emergiu como a principal estratégia para controlar a disseminação do vírus e minimizar o impacto na saúde pública, embora criticada por vários setores da sociedade, sobretudo para aqueles coagidos circunstancialmente nos seus locais de trabalhoou a fim de acessar determinados serviços públicos. A complexidade da pandemia refletiu-se nas respostas variadas dos diferentes estados e municípios do Brasil. A infraestrutura de saúde, a disponibilidade de recursos e a compreensão local da gravidade da situação contribuíram para as disparidades nas estratégias de enfrentamento adotadas. A coordenação nacional e a tomada de decisões coletivas também desempenharam um papel fundamental na abordagem à crise. A pandemia do coronavírus teve um impacto profundo e multifacetado tanto globalmente quanto no Brasil. A rápida disseminação do vírus, aliada à natureza desafiadora de sua contenção, enfatizou a importância de respostas ágeis e coordenadas entre as nações e dentro dos países afetados. 3. A SUPREMACIA DA CIÊNCIA E AS CRÍTICAS À IMPOSIÇÃO DO ARGUMENTO CIENTÍFICO NA PANDEMIA A primazia da ciência como alicerce para a tomada de decisões em relação ao COVID- 19 tem sido frequentemente questionada por vozes críticas que destacam as consequências negativas desse tipo de enfoque (JIMÉNEZ, 2022; COLLINS e COLLINS, 2022; ALTERIO, 3 Dados sobre a taxa de desocupação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral, disponibilizada pelo IBGE em: <https://sidra.ibge.gov.br/tabela/4092>. Acesso em: 21 ago. 2023. 100 2023). Embora a expertise científica seja fonte valiosa para informar políticas públicas, a abordagem exclusiva em relação a esse critério foi alvo de controvérsias. Um dos principais pontos de debate gira em torno da exclusão de perspectivas multidisciplinares. Críticos argumentam que a ênfase excessiva na autoridade científica pode resultar na marginalização de outros campos de conhecimento, tais como ética, direitos humanos, sociologia e economia (COLLINS e COLLINS, 2022). Essa marginalização, por sua vez, pode levar a decisões unilaterais que não levam em conta a complexidade das implicações éticas e sociais das medidas restritivas. Além disso, a imposição unilateral do argumento científico pode negligenciar considerações práticas e contextuais. A realidade das populações mais vulneráveis, por exemplo, frequentemente é minimizada em favor de soluções aparentemente baseadas apenas em dados científicos. A desigualdade no acesso à saúde, às vezes agravada por medidas restritivas, exige um exame mais profundo das consequências socioeconômicas das políticas adotadas. Críticos também alertam para o risco de “cientificismo” (HAYEK, 1955; FEYERABEND, 2011; COLLINS e COLLINS, 2022), que é a crença infundada de que todos os problemas podem ser resolvidos por meio do conhecimento científico. Esse pensamento simplista desconsidera as implicações éticas e morais subjacentes às decisões. A questão da liberdade individual versus medidas restritivas serve como exemplo, isso porque as decisões estritamente baseadas em dados científicos podem desconsiderar o equilíbrio delicado entre saúde pública e direitos individuais. Em suma, a predominância do critério de autoridade científica gerou e tem gerado críticas substanciais. A imposição unilateral do argumento científico pode levar a decisões que carecem de considerações éticas, contextuais e práticas, levantando preocupações sobre a equidade, liberdades individuais e o papel de outras disciplinas na tomada de decisões. 4. REFLEXÕES SOBRE A CIÊNCIA E O CRITÉRIO DE AUTORIDADE CIENTÍFICA A ciência, como empreendimento humano para entender o mundo natural, é uma ferramenta inestimável para a busca do conhecimento e para a tomada de decisões informadas. 101 No entanto, é importante compreender que a ciência não é um monólito absoluto, fundado em um conjunto rígido de regras metodológicas. Como Feyeranbend (2011) já afirmou, a história da ciência mostra como as teorias e métodos científicos mudaram ao longo do tempo, muitas vezes de maneira não lineares e contraditórias, sem haver um critério absoluto para avaliar a validade das teorias científicas. A ciência evolui constantemente, moldada por paradigmas mutáveis, novas descobertas e revisões contínuas. A reflexão sobre o critério de autoridade científica no contexto da população mundial é um convite à consideração crítica dos princípios fundamentais da ciência e dos desafios que surgem quando se impõe esse critério. A ciência se baseia na observação, coleta de dados, experimentação e análise rigorosa. Ela oferece um método sistemático para compreender os fenômenos naturais, que é apoiado por revisões por pares e validações independentes. No entanto, sua própria natureza reconhece que o conhecimento é construído incrementalmente, sujeito a correções e reavaliações à medida que novas evidências emergem. Quando nos deparamos com situações como uma pandemia global, é natural recorrer à autoridade científica para orientar as decisões. No entanto, a imposição rígida do critério de autoridade científica sem uma avaliação mais ampla pode ter implicações éticas, sociais e políticas profundas. A ciência, embora uma fonte confiável de informação, não é infalível e não pode abarcar todas as dimensões de um problema complexo. O critério de autoridade científica pode levar à supressão de outras vozes e perspectivas valiosas. A riqueza da experiência humana não pode ser completamente traduzida em termos quantitativos ou qualitativos estritos. A tomada de decisões em uma pandemia envolve não apenas análises epidemiológicas, mas também ponderações éticas, considerações socioeconômicas e avaliações das implicações a longo prazo sobre as liberdades individuais. Devemos também lembrar que a ciência pode ter lacunas, incertezas e limitações. Políticas públicas estritamente baseadas na autoridade científica podem se tornar obsoletas à medida que novas informações emergem. Portanto, é fundamental adotar uma abordagem flexível, permitindo ajustes conforme o conhecimento científico avança. Em última análise, a ciência é uma ferramenta poderosa, mas não pode ser isolada do contexto maior no qual opera. O critério de autoridade científica deve ser considerado, mas também deve ser equilibrado com uma análise abrangente das diversas dimensões das decisões tomadas. 102 Assim, a reflexão sobre o papel da ciência na população mundial nos desafia a encontrar um equilíbrio entre o conhecimento científico e as necessidades, valores e contextos únicos das sociedades em que vivemos. 5. O IMPACTO NAS LIBERDADES INDIVIDUAIS E OS DESAFIOS ECONÔMICOS DA IMPOSIÇÃO DE MEDIDAS RESTRITIVAS A imposição de medidas restritivas como resposta à pandemia do coronavírus teve profundas implicações nas liberdades individuais e na dinâmica econômica. Ao examinarmos com maior detalhe esses aspectos, torna-se evidente que a busca pela saúde pública muitas vezes se choca com a preservação das liberdades individuais e o funcionamento econômico. As medidas restritivas, como lockdowns e quarentenas, buscavam conter a disseminação do vírus. Entretanto, essas restrições impactaram diretamente as liberdades individuais, como o direito à livre circulação, à educação e ao trabalho. A limitação das atividades cotidianas gerou inquietações sobre a restrição das escolhas individuais e a perda de autonomia, especialmente entre grupos mais vulneráveis. Minorias étnicas, trabalhadores informais e populações de baixa renda enfrentaram desafios adicionais ao acesso a serviços básicos e apoio governamental durante os períodos de restrição. Por conseguinte, o dilema ético entre proteger a saúde pública e salvaguardar as liberdades individuais se tornou evidente, demonstrando a necessidade de encontrar um equilíbrio delicado entre essas considerações. As medidas restritivas também tiveram impactos significativos na economia, gerando desafios em diversas frentes. A suspensão de atividades comerciais não essenciais, o fechamentode fronteiras e as restrições de viagem afetaram a cadeia de suprimentos e a produção, resultando em interrupções econômicas substanciais. Outrossim, setores como o turismo foram particularmente afetados, com perdas massivas devido à queda na demanda. Além disso, o aumento do desemprego devido ao fechamento temporário de empresas e redução de operações gerou dificuldades financeiras para muitos indivíduos e famílias. Essas consequências econômicas afetaram a qualidade de vida e a segurança financeira da população em geral, até mesmo porque a redução das atividades econômicas também impactou a arrecadação de impostos, acrescentando desafios à sustentação de programas de ajuda e investimentos governamentais. 103 Como resultado, os desafios econômicos estimularam discussões sobre o equilíbrio entre a saúde pública e a recuperação econômica. A imposição de restrições pode ser uma medida eficaz para conter o vírus, mas também pode ter implicações profundas para a estabilidade econômica e o bem-estar da população. Em resumo, a análise mais aprofundada do impacto nas liberdades individuais e nos desafios econômicos decorrentes das medidas restritivas na pandemia ressalta a complexidade inerente à tomada de decisões nesse contexto. O conflito entre a proteção da saúde pública e a preservação das liberdades individuais, bem como o equilíbrio entre a contenção do vírus e a sustentação econômica, exige uma abordagem cuidadosa e multidisciplinar. A imposição de quarentenas, toques de recolher e limitações nas atividades sociais colocou em evidência a delicada balança entre o bem coletivo e as escolhas individuais. É importante destacar que a preservação das liberdades individuais é uma pedra angular das sociedades democráticas e dos direitos humanos. Restringir essas liberdades em nome da saúde pública levanta questões profundas sobre a legitimidade e a proporcionalidade das ações adotadas. À vista disso, o desafio reside em encontrar um ponto de equilíbrio que leve em consideração não apenas a eficácia das medidas restritivas, mas também o respeito pelos direitos individuais e as consequências sociais e econômicas dessas ações. Da mesma forma, o equilíbrio entre a contenção do vírus e a sustentação econômica foi um desafio intrincado. Portanto, a análise das implicações de longo prazo nas liberdades individuais, nas dinâmicas econômicas e nas estruturas sociais deve ser central na formulação de qualquer política pública. 6. DILEMA ÉTICO: NAVEGANDO ENTRE A SAÚDE PÚBLICA E OS DIREITOS INDIVIDUAIS NA PANDEMIA A pandemia do coronavírus trouxe à tona um profundo dilema ético que envolve a busca pela saúde pública e a preservação dos direitos individuais. Esse dilema se desenrola em meio a medidas restritivas que frequentemente se chocam com as liberdades civis fundamentais. A priorização da saúde pública é inquestionável; no entanto, a imposição de medidas restritivas severas levantou questionamentos essenciais sobre a validade dessas ações em relação à liberdade de movimento, expressão e reunião. A necessidade de mitigar a propagação do vírus colocou em evidência a tensão entre o bem coletivo e a autonomia individual. 104 Por um lado, os defensores das medidas restritivas argumentaram que a proteção da saúde e da vida é imperativa. O direito à saúde é um direito humano universalmente reconhecido e a responsabilidade das autoridades de saúde é garantir a minimização de riscos para a população. A imposição de restrições temporárias, nesse sentido, pode ser vista como uma medida necessária para evitar sobrecarregar sistemas de saúde já precários e salvar vidas. Por outro lado, as restrições às liberdades individuais podem ser interpretadas como uma violação dos direitos humanos e uma ameaça à democracia. A imposição de quarentenas, por exemplo, resultou em isolamento social, impactando negativamente a saúde mental e o bem- estar emocional das pessoas, sem contar nas denúncias de abusos de poder. Além disso, a imposição indiscriminada de medidas restritivas pode afetar desproporcionalmente grupos marginalizados e economicamente vulneráveis, agravando ainda mais as desigualdades sociais. As populações que dependem de trabalho informal ou que vivem em condições precárias podem ser especialmente afetadas, levando a uma situação de escolha difícil entre a exposição ao vírus ou à privação econômica. Levando isso tudo em consideração, o dilema ético se aprofunda quando observamos a necessidade de equilibrar a resposta à pandemia com as implicações econômicas e sociais. A preservação dos direitos individuais e a sustentação econômica são elementos interconectados que requerem uma abordagem equilibrada e multidisciplinar. Encontrar esse equilíbrio é um desafio contínuo e fundamental para tomar decisões responsáveis. 7. A IMPORTÂNCIA DA DELIBERAÇÃO MULTIDISCIPLINAR NA TOMADA DE DECISÕES DURANTE A PANDEMIA Diante da complexidade das questões apresentadas pela pandemia do coronavírus, a deliberação multidisciplinar emerge como um pilar fundamental na tomada de decisões informadas e abrangentes, numa abordagem que vá além das fronteiras de uma única disciplina. O debate, no entanto, centrou-se na seara política. A colaboração entre especialistas de diferentes campos, como saúde, ética, economia, sociologia e direitos humanos, deveria ter sido vital para abordar a multiplicidade de perspectivas e considerações envolvidas. Os especialistas em saúde pública trouxeram, na sua perspectiva, conhecimentos técnicos sobre a disseminação do vírus, suas características e as melhores estratégias de contenção. Todavia, as decisões relacionadas às restrições de liberdades individuais não 105 deveriam ter sido tomadas unicamente com base em dados epidemiológicos, muitos superestimados. A ética, por exemplo, entra em jogo ao ponderar os princípios de beneficência e autonomia, enquanto a economia desempenha um papel crucial na avaliação dos impactos socioeconômicos das medidas adotadas. Além disso, a deliberação multidisciplinar promove um ambiente de debate informado, no qual diversas perspectivas são ouvidas e consideradas. Essa abordagem desafia a tendência de excessiva polarização e permite a identificação de soluções que levem em conta tanto a saúde pública quanto os direitos e necessidades individuais. Também, a diversidade de vozes também ajuda a evitar soluções simplistas que negligenciam aspectos complexos da situação. Ao abraçar a deliberação multidisciplinar, os formuladores de políticas públicas têm a oportunidade de tomar decisões mais justas e sustentáveis. A troca de conhecimentos entre diferentes campos amplia a visão de problemas complexos e estimula a criatividade na busca por soluções inovadoras. Em última análise, a pandemia do coronavírus foi um lembrete da interdependência global e da necessidade de abordagens colaborativas. A deliberação multidisciplinar é um reflexo desse entendimento, oferecendo uma maneira de enfrentar os desafios complexos que a pandemia apresenta. Ao reunir uma diversidade de conhecimentos e perspectivas, podemos tomar decisões mais fundamentadas e humanas que considerem os interesses e direitos de toda a população. 8. CONCLUSÃO: REFLEXÕES CRÍTICAS SOBRE A AUTORIDADE CIENTÍFICA E OS ABUSOS ÀS LIBERDADES INDIVIDUAIS À medida que consideramos os desdobramentos da pandemia do coronavírus, é inegável que o embate entre a busca pela saúde pública e a preservação das liberdades individuais desencadeou uma série de questionamentos essenciais. Enquanto a ciência é uma ferramenta inestimável para entender e combater a doença, a imposição unilateral de medidas restritivas baseadas no critério de autoridade científica expôs vulnerabilidades preocupantes em nossa sociedade. O abuso da autoridade científica, muitas vezes respaldado por decisões governamentais, levantouinterrogações sobre os limites éticos e a integridade da tomada de decisões. A 106 imposição de lockdowns indiscriminados e quarentenas prolongadas demonstrou uma falta de consideração pelas consequências socioeconômicas e psicológicas que afetaram a população. A supressão das liberdades individuais em nome da saúde pública segue levantando dúvidas sobre o papel das instituições e dos especialistas em lidar com crises complexas. Além disso, a falta de uma abordagem equilibrada e multidisciplinar resultou em desigualdades exacerbadas. Grupos marginalizados e economicamente vulneráveis suportaram o peso desproporcional das medidas restritivas, enquanto os mais privilegiados puderam se isolar com mais facilidade. A suposta "igualdade" das restrições não levou em consideração as realidades variadas e as necessidades específicas de diferentes setores da população. O abuso da autoridade governamental também entrou em jogo, à medida que se impuseram medidas draconianas sem o devido debate público e participação. A transparência nas decisões foi comprometida, alimentando a desconfiança e a desinformação. Logo, a falta de clareza na comunicação e na justificação das ações reforçou a sensação de que a população estava sendo manipulada em nome da saúde pública. A conclusão inevitável é que a pandemia destacou tanto a importância da ciência quanto os perigos da autoridade científica mal aplicada. As lições aprendidas reforçam a necessidade de uma abordagem mais equilibrada, que envolva não apenas especialistas em saúde, mas também ética, economia, sociologia e outras disciplinas. A proteção da saúde pública deve ser harmonizada com a preservação das liberdades individuais e com a compreensão das implicações sociais e econômicas de nossas ações. A autoridade científica, assim, deve ser usada com responsabilidade e em conjunto com outras considerações essenciais. Devemos aprender com os erros do passado e garantir que a busca pela saúde não seja alcançada à custa da dignidade humana, das liberdades fundamentais e da justiça social. REFERÊNCIAS ALTERIO, T. Big Pharma: o maior e mais obscuro negócio do século XXI. Editora PHVox, 2023. BIGONI, A.; MALIK, A.; TASCA, R.; CARRERA, M. B.; SCHIESARI, L. M.; GAMBARDELLA, D.; MASSUDA, A. Brazil’s health system functionality amidst of the COLLINS, P. D.; COLLINS, P. A ascendência da ditadura científica: um exame da autocracia epistêmica, do século XIX ao XX. Campinas, SP: Vide Editorial, 2022. 107 COVID-19 pandemic: An analysis of resilience. The Lancet Regional Health/Americas. 10. 5, March, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1016/j.lana.2022.100222>. Acesso em: 14 ago. 2023. FEYERABEND, P. Contra o método. Tradução de Cesar Mortari. São Paulo: Editora Unesp, 2011. HAYEK, F. A. The counter-revolution of science: studies on the abuse of reason. Nova York: The Free Press, 1955. IBGE - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral. Disponível em: <https://sidra.ibge.gov.br/tabela/4092>. Acesso em: 24 ago. 2023. JIMÉNEZ, C. M. A verdade sobre a Pandemia: quem é o culpado e por quê. Campinas, SP: Vide Editorial, 2022. ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE. Histórico da pandemia de COVID-19. Disponível em: <https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid- 19#:~:text=Em%2031%20de%20dezembro%20de,identificada%20antes%20em%20seres%20 humanos.>. Acesso em: 25 ago. 2023. 108 BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: INTERFACES NA CONTEMPORANEIDADE Cristiane Avancini Alves1 RESUMO A relação entre bioética e direitos humanos busca delinear os fios condutores e conectivos entre dois campos que espelham a realidade humana e que instigam o olhar sobre nós mesmos e, assim, sobre a própria humanidade. Nesse sentido, aspectos referentes a situações contemporâneas possibilitam a análise de elementos que sustentam essas reflexões, e trazem caminhos para tomadas de decisão. A questão dos cuidados paliativos e o enfrentamento da pandemia de COVID-19 suscita dilemas éticos e jurídicos que são permeados por princípios referentes ao tema, como autonomia e responsabilidade. No âmbito do processo informativo, o afastamento da desinformação, embasada pelos direitos humanos, perfectibiliza a sedimentação de uma sociedade democrática, em que o enfrentamento das emergências climáticas é situado como parte inerente da proteção da dignidade da pessoa humana e dos deveres de cuidado para com o meio ambiente. Há, portanto, a estruturação de pontes importantes de relação entre os princípios presentes na Declaração Universal de Bioética e de Direitos Humanos e temas que perpassam a atualidade, especialmente por meio da construção de sentidos e de significados que envolvem os avanços biomédicos e as novas tecnologias informativas. Palavras-chaves: Bioética; Direitos humanos; Cuidados paliativos; Informação; Meio ambiente. INTRODUÇÃO Mas as ciências também refletiram na sua marcha a revolução dupla, em parte porque esta lhes colocou novas e específicas exigências, em parte porque lhes abriu novas possibilidades e confrontou-as com novos problemas, e em parte porque sua própria exigência sugeria novos padrões de pensamento. Não desejo deduzir disto que a evolução das ciências entre 1789 e 1848 possa ser analisada exclusivamente em termos dos movimentos da sociedade que as rodeavam. (...) O progresso da ciência não é um simples avanço linear, cada estágio determinando a solução de problemas anteriormente implícitos ou explícitos nele, e por sua vez colocando novos problemas. Este avanço também prossegue pela descoberta de novos problemas, de novas maneiras de enfocar os antigos, de novas maneiras de enfrentar ou solucionar velhos problemas, de campos de investigação inteiramente novos, de novos instrumentos práticos e teóricos de investigação (Hobsbawn, 2012). 1 Pós-doutoranda do Programa CAPES junto ao Mestrado Profissional em Pesquisa Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (MPPC/HCPA), Pesquisadora junto ao Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência (LAPEBEC) do HCPA, Doutora em Direito pela Scuola Superiore Sant’Anna de Pisa, Itália, e Mestre em Direito pela UFRGS. OABRS 86649. E-mail: crisavancini@gmail.com. 109 O denominado “progresso da ciência”, referenciado por Erik Hobsbawn em sua obra A Era das Revoluções, é um tema que perpassa a humanidade. A cada período histórico, novos desafios ou novas formas de se lidar com esse progresso instigam a sociedade. No âmbito médico, ressalta-se o próprio conceito de saúde, definido após a Segunda Guerra Mundial, especialmente em virtude da descoberta de campos de concentração e a experimentação em seres humanos operadas nesse contexto. Em julho de 1946, a Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu que o conceito de saúde inclui o bem-estar mental e social, e não apenas aquele físico2. Essa definição, analisada dentro do seu contexto histórico, indica o surgimento da ideia de um Estado Social, e, também, de uma “medicina social”, o que leva à passagem do cuidado à saúde de uma esfera privada para uma responsabilidade pública. É nesse sentido que a internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história, que surge com o pós-guerra, e que se legitima através da necessidade de que a população mundial precisa, constantemente, renovar ou reascender a memória frente às garantias fundamentais que permeiam nossa sociedade. Portanto, “em face das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos direitos humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional” (Piovesan, 2012). É por isso que, de acordo com Flávia Piovesan, eles transcendeme extrapolam o domínio reservado do Estado ou a competência nacional exclusiva, criando parâmetros globais de ação estatal. Essa importância associa-se à Bioética, que configura um importante campo de encontro de áreas do conhecimento conectadas à proteção da vida humana em suas variadas perspectivas. A experimentação em seres humanos ocorrida nos campos de concentração foi um dos componentes históricos que levou a comunidade mundial a definir e, também, a aprimorar princípios basilares de aplicabilidade e conduta na relação entre a ciência e a pessoa humana. Nesse panorama, as percepções de liberdade e autonomia são fortalecidas também na esfera biomédica, com a transformação na relação médico-paciente, medicina-sociedade, após 1960. Antes, o médico tomava a decisão sobre o tratamento, o que se altera na metade de 1970. Segundo David Rothman, o impacto desses acontecimentos foi o de “tornar visível o invisível. Pessoas de fora do âmbito médico – ou seja, advogados, juízes e acadêmicos – entraram em 2 O conceito de “saúde” presente na Constituição da Organização Mundial da Saúde: “Health is a state of complete physicial, mental and social well-being and not merely the absence of disease and infirmity”. Disponível em: https://www.who.int/about/governance/constitution, acesso em 30 de outubro de 2023. 110 cada canto e recanto do processo de dar à medicina um excepcional destaque na agenda pública e de tornar o tema um discurso popular” (Rothman, 2003). O presente artigo visa, portanto, delinear um breve panorama sobre a relação entre Bioética e Direitos Humanos e suas conexões com aspectos da contemporaneidade. As percepções sobre os cuidados paliativos e o entrelaçamento com a pandemia de COVID-19 buscam evidenciar caminhos de enfrentamento sobre o tema. Seguindo-se sob o olhar reflexivo, a importância da informação – bem como o afastamento da desinformação – são bases importantes para a relação entre as emergências climáticas e os direitos humanos. Nesse percurso, a Declaração Universal de Bioética e de Direitos Humanos é documento condutor de referência principiológica na concreção de práticas sobre os temas abordados. 1 ORIGEM E FUNDAMENTOS DA RELAÇÃO ENTRE BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS O surgimento da palavra “bioética” e sua relação com os direitos humanos participa de um percurso que associa importantes princípios que emergem, especialmente, do pós-Segunda Guerra Mundial. A experimentação em seres humanos, prática exercida em campos de concentração, e seu repúdio pela comunidade internacional, trouxeram a positivação da dignidade da pessoa humana, sua autonomia e um amplo conceito de saúde como aplicações de caráter internacional. 1.1 Percursos de conexão entre Bioética e Direitos Humanos No ano de 1971, ocorre o registro da palavra “bioética” associada à conexão entre a ciência e a humanidade, sendo que, por muitos anos, esse foi considerado o marco inicial do uso da palavra “bioética”. Nesse contexto, o livro “Bioética: uma ponte para o futuro”, do bioquímico americano Van Rensselaer Potter (Potter, 1971), procurou imprimir um sentido de desenvolvimento e de caráter evolucionista, combinando o conhecimento biológico (‘bio’) com o conhecimento do sistema de valores humanos (‘ethics’). Desse primeiro momento, outras duas etapas do pensamento de Potter irão caracterizar a bioética: a primeira, ao final da década de 1980, quando ele enfatiza o seu caráter interdisciplinar e abrangente, denominando-a de “Global”, e a segunda, em 1998, ao redefinir a bioética como “Profunda”, ao entendê-la como “ciência ética que combina humildade, responsabilidade e uma competência interdisciplinar, intercultural, que potencializa o senso de humanidade” (Goldim, 2009). 111 Por muitos anos, essa referência pautou a origem da palavra “bioética”. Entretanto, estudos revelam que o termo “bio-ethics” foi utilizado pela primeira vez em 1926, por Fritz Jahr, pastor protestante, filósofo e educador alemão, no texto “Life science and ethics: old knowledge in new clothing”, sendo que, até pouco tempo, o primeiro registro da palavra datava de 1927, também em um texto de Jahr, publicado na revista Kosmos, quando o autor designou a “assunção de obrigações éticas não apenas com relação ao homem, mas a todos os seres vivos” (Engels, 2004). Para Jahr, plantas e animais “são parceiros morais dos seres humanos, e essa relação atribui obrigações aos humanos para que tratem animais e plantas apropriadamente” (Goldim, 2009), uma percepção completa e abrangente, não limitada ao âmbito da saúde e da medicina. A bioética, segundo Jahr, “não é uma descoberta do presente” (Jahr, 1926), e remete essa percepção a São Francisco de Assis, considerado um grande protetor dos animais. Jahr viveu em um período de transformações sociais, sendo que entre os anos 1926 e 1927, datas em que escreveu e registrou a palavra “bioética”, há um progressivo avanço das ciências da vida, em especial os estudos relacionados à psicologia (Sass, 2008). A Europa ainda não tinha vivido a experiência das duas Grandes Guerras Mundiais, que irão influenciar fortemente a própria humanidade (Pessini, 2013). Nesse sentido, é interessante perceber que Jahr, já naquele contexto, “delineou uma aproximação abrangente da bioética, que incluiu os seres humanos em relação de progressiva complexidade com a sociedade, com a humanidade, e com a biosfera” (Goldim, 2009). Em 1939, a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a posterior descoberta dos campos de concentração, como “gigantescas máquinas de despersonalização de seres humanos” (Comparato, 2003), suscitaram novos debates quanto à proteção da pessoa humana. Um elemento peculiar de estudo a respeito desse tema é suscitado por Giorgio Agamben, que o denomina de “paradoxo da soberania” (Agamben, 2005), ou seja, quando o soberano está, ao mesmo tempo, fora e dentro do ordenamento jurídico. O referido autor associa as suas percepções com o pensamento de outras obras que relatam como esse fenômeno participou da formação dos campos de concentração, lugares em que o chamado “estado de exceção”, proclamado pelo soberano, suspende a própria validade do ordenamento. O paradoxo reside, exatamente, no fato de alguém poder estar do lado de fora desse ordenamento e, ao mesmo tempo, pertencer a ele, porque consegue suspendê-lo. No que concerne ao campo de concentração, Agamben entende que ele “é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra” (Agamben, 2002). Assim, esse estado de exceção, que seria a suspensão temporal do ordenamento em determinado contexto 112 fático de perigo, passa a ter uma “disposição espacial permanente que, como tal, permanece, porém, estavelmente fora do ordenamento normal” (Agamben, 2002). É por isso que, na medida em que esse estado de exceção passa a ser aceito e, até mesmo, desejado, inaugura um novo “paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia o poder soberano, é realizado normalmente” (Agamben, 2002). A força dessas considerações reside no quanto determinado contexto cultural, social, econômico e político pode alterar, profundamente, a configuração jurídica de determinado ordenamento, mudança essa que atinge, diretamente, nossa própria humanidade. O fim da Segunda Guerra Mundial levou os países vencedores a estabelecer um julgamento das práticas efetuadas naquele contexto, no qual o genocídio foi classificado, portanto, como um dos crimes contra a humanidade (Lafer, 1988). É nesse sentido que a internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história, que surge com o pós-guerra, e se legitima através da necessidade de que a população mundialprecisa, constantemente, renovar ou reascender a memória frente às garantias fundamentais que permeiam nossa sociedade. Portanto, “em face das atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos direitos humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional” (Piovesan, 2012). É por isso que, de acordo com Flávia Piovesan, eles transcendem e extrapolam o domínio reservado do Estado ou a competência nacional exclusiva, criando parâmetros globais de ação estatal. Essa importância associa-se à Bioética, que configura um importante campo de encontro de diversas áreas do conhecimento conectadas à proteção da vida humana em suas variadas perspectivas. A experimentação em seres humanos ocorrida nos campos de concentração foi um dos componentes históricos que levou a comunidade mundial a definir e, também, aprimorar princípios basilares de aplicabilidade e conduta na relação entre a ciência e a pessoa humana. 1.2 A Declaração Universal de Bioética e de Direitos Humanos Entre os documentos internacionais sobre direitos humanos publicados após a Segunda Guerra Mundial, que antecederam a Declaração Universal de Bioética e de Direitos Humanos, é importante destacar aqueles que trazem princípios relevantes para os temas biomédicos. Tem- se, no artigo I da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a afirmação da dignidade inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis. O artigo III garante o 113 direito à vida, e o artigo XII dispõe sobre a proteção à privacidade e a informações pessoais. Esse documento, “retomando os ideais da Revolução Francesa, representou a manifestação histórica de que se formara, enfim, em âmbito universal, o reconhecimento dos valores supremos da igualdade, da liberdade e da fraternidade entre os homens (...)” (Comparato, 2003). Sua implementação requer o esforço sistemático de cada país para que a sociedade incorpore os direitos humanos como prática efetiva da vida em comunidade. Por ser uma declaração, tecnicamente, o documento não tem força vinculante. Contudo, o reconhecimento desses direitos deve ser exercido no âmbito do direito internacional. Afirma-se que “a Declaração Universal tem sido concebida como a interpretação autorizada da expressão ‘direitos humanos’, constante da Carta das Nações Unidas, apresentando, por esse motivo, força jurídica vinculante” (Piovesan, 2012). Com esse olhar voltado à sociedade, após a Declaração Universal dos Direitos Humanos houve o seguimento da institucionalização dos direitos humanos. Em 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos trouxe, em seu artigo 7º, a importância e a necessidade da utilização do consentimento informado como documento que atesta a adequada informação no processo de tomada de decisão na área biomédica. Essa percepção conecta-se ao artigo 12 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, publicado no mesmo ano, ao ressaltar o acesso à saúde e o pleno exercício desse direito como elemento fundante da afirmação dos direitos humanos. O desenvolvimento de novas tecnologias, no decorrer dos anos posteriores a esses documentos, levou as organizações internacionais a uma nova reflexão. O Conselho da Europa, através da Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina realizada em 1997, também conhecida como “Convenção de Oviedo”, busca harmonizar o delineamento de reflexões ou soluções para os questionamentos ou conflitos que surgem nesse campo. De acordo com Roberto Andorno, a necessidade “de ‘common standards’ mínimos para os novos dilemas que surgem na área biomédica levaram a que organizações governamentais promovessem, a partir de meados de 1990, a procura de um consenso internacional relativo a algumas normas tidas como básicas na área biomédica” (Andorno, 2008). A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos resulta desse panorama. Portanto, após a Convenção de Oviedo, outros três importantes documentos que tratam da área biomédica surgem no cenário internacional: a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (1997), a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos (2003), e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (2005). Este último é de 114 grande importância, pois é o primeiro documento internacional que, numa esfera global, estabelece a relação entre a Bioética e os Direitos Humanos. Entre os objetivos das disposições gerais da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, destaca-se a contribuição para o respeito pela dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais de modo compatível com o direito internacional, bem como a promoção do acesso equitativo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia. O documento indica, logo após, os princípios e sua aplicação, e como deverá ser feita a promoção da Declaração pelos Estados, pela esfera educacional, pela cooperação internacional, além de expor as iniciativas de acompanhamento da UNESCO. As disposições finais da Declaração indicam que seus princípios devem ser entendidos como complementares e interdependentes, nas suas medidas pertinentes e de acordo com as circunstâncias3. Um exemplo que pode ser mencionado nesse contexto diz respeito ao seu art. 5º, que dispõe que “a autonomia das pessoas no que respeita à tomada de decisões, desde que assumam a respectiva responsabilidade e respeitem a autonomia dos outros, deve ser respeitada. No caso das pessoas incapazes de exercer a sua autonomia, devem ser tomadas medidas especiais para proteger seus direitos e interesses”. De acordo com uma análise desenvolvida por Donald Evans sobre esse item da Declaração, a bioética surge através de um diferenciado número de contextos, sendo possível destacar dois deles: o primeiro refere-se ao surgimento das noções de direitos humanos e individuais durante a segunda metade do século XX, e o segundo denota a reação aos abusos cometidos na esfera dos direitos humanos nesse mesmo período quanto à prática de pesquisa clínica (Evans, 2009). Segundo o autor, a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 trouxe uma clara referência à proteção desses direitos quando indica que todos os seres humanos nascem livres e em igualdade de direitos e de dignidade, documento que “seguiu o Código de Nuremberg (1947), que tomou por base os julgamentos de Nuremberg em relação aos médicos pesquisadores que foram acusados e condenados por cometer crimes contra a humanidade em nome da pesquisa médica” (Evans, 2009). Seguindo esse cenário, o Código traz o consentimento informado como tangível expressão do respeito à autonomia. Na importância de se conectar a bioética com os direitos humanos, ficou claro para “aqueles que estavam 3 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0014/.../146180por.pdf. Acesso em 30 de outubro de 2023. 115 elaborando a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos que um artigo que dispõe sobre o respeito pela autonomia das pessoas envolvidas no tratamento médico e de pesquisa era uma exigência absoluta” (Evans, 2009). Essa exigência tem como fundamento a humanidade ínsita a cada pessoa, o que torna possível falar da universalidade dos direitos humanos. O caráter de universalidade presente na análise dos direitos humanos, em razão de serem tidos como direitos inerentes a todo ser humano, reflete-se na possibilidade de sua aplicação num amplo e importante espectro de diversidade cultural. É nesse sentido que países de orientações políticas, religiosasou sociais diversas ratificam ou aderem aos tratados e convenções que envolvem esse tema, pois “trata-se essencialmente de um direito de proteção, marcado por uma lógica própria, e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos e não dos Estados” (Cançado Trindade, 1997). O ordenamento jurídico brasileiro positiva, no art. 4º, II, da Constituição Federal, a prevalência dos direitos humanos como princípio que rege as relações internacionais. Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, foi incluído o § 3º ao art. 5º da Carta Magna, que assim dispõe: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Esse dispositivo suscitou interessantes debates quanto à hierarquia das normas, mas para a presente obra é importante referir, diretamente, que a temática dos direitos humanos possui força constitucional (Piovesan, 2012). Ressalta-se que a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos não é um tratado, mas, conforme também já referido acima, o reconhecimento dos direitos humanos no cenário mundial e a importância de sua garantia e memória quanto à proteção da pessoa humana remetem à interpretação vinculante de suas disposições, associada aos princípios que embasam essa mesma interpretação. É o denominado “sentido de direção” (Lafer, 2005) que se busca oferecer à sociedade, especialmente quando nos referimos a temas que nos confrontam com a nossa própria humanidade. 2 BIOÉTICA E DIREITOS HUMANOS: QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS Há diferentes e importantes temas contemporâneos que se associam à análise sobre Bioética e Direitos Humanos. A pandemia de COVID-19 suscitou debates necessários sobre o olhar para o fim de vida e, assim, também sobre os cuidados paliativos. Paralelamente, a preservação da vida em nosso planeta participa, da mesma forma, de espaços fundamentais de 116 debate sobre informação e o afastamento da desinformação sobre a ciência. Nesse sentido, os temas tratados buscam delinear reflexões que possam auxiliar nos processos de tomada de decisão nessas esferas. 2.1 COVID-19 e fim de vida: aspectos sobre os cuidados paliativos A relação entre Bioética e Direitos Humanos atua diretamente na percepção quanto à importância dos denominados “cuidados paliativos” no atual debate sobre o fim de vida. Esse tema foi roteiro de um interessante filme italiano ambientado, inicialmente, na década de 1970 numa praia da Toscana, quando uma bela jovem ganha o concurso de “mãe mais bonita” daquele verão (Alves, 2011). Os anos passam, e a agora senhora luta contra um câncer que não a desanima; pelo contrário, sempre com um sorriso nos lábios, ela procura unir, novamente, sua família, e restabelecer laços que tinham se perdido com o tempo. Esse panorama dos cuidados paliativos ultrapassa as telas do cinema e se torna tema legislativo em diversos países. No âmbito internacional, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que os cuidados paliativos “são uma parte crucial dos serviços de saúde integrados e centrados nas pessoas. Aliviar o sofrimento grave relacionado com a saúde, seja ele físico, psicológico, social ou espiritual, é uma responsabilidade ética global”4. Nessa visão ampla, sedimenta-se a percepção da vida, em que a morte é tida como um processo normal, sem qualquer intenção de acelerar ou retardar esse processo. A origem da palavra “paliativo” advém do latim pallium (manto, pálio, um termo que hoje caracteriza o pálio papal, uma estola de lã de carneiro que simboliza a ovelha perdida que o bom pastor carrega em seus ombros). Com essa imagem, o termo “cuidado paliativo” refere- se ao atendimento a pacientes com doenças terminais com o objetivo de melhorar sua qualidade de vida, ao invés de prolongar a sobrevida, oferecendo aos pacientes e a suas famílias um cuidado contínuo e abrangente no que diz respeito tanto aos aspectos médicos e de saúde quanto aos psicossociais, existenciais e espirituais, em um único modelo holístico (Cetto, 2010). Nesse ponto, a percepção do sofrimento entendido num aspecto mais amplo, que inclui não apenas a dor física, torna-se elemento de reflexão conjugado à própria evolução das tecnologias e das práticas biomédicas. Assim, se o aparato técnico em relação ao tratamento de doenças está em constante desenvolvimento, “o que permanece, porém, inalterada, é a natureza intrínseca do homem, com suas necessidades básicas” (Mitscherlich, 1977). Portanto, a 4 World Health Organizations (WHO), Palliative care: https://www.who.int/health-topics/palliative-care. Acesso em 30 de outubro de 2023. 117 formação de estruturas de acolhimento de pacientes que possuem diagnóstico de poucos meses de vida é demonstração do quanto esse tema também está em processo de desenvolvimento e aprimoramento no cenário mundial. Essas estruturas surgem com a denominação “hospice”, que traduz o termo em latim hospitium e retoma a imagem de um lugar de acolhimento (Cunietti et al, 1994). Ainda que haja significativas mudanças decorrentes da evolução dos tratamentos médicos, essa abordagem permanece por meio da importância que o hospice oferece aos “cuidados paliativos do que aos curativos, à qualidade da vida ao invés da quantidade da vida, ao alívio físico e espiritual do paciente ao invés da aplicação dos regimes terapêuticos e preordenados que seriam, de qualquer forma, não mais decisivos” (Cirillo, 2002). O primeiro hospice com as características de envolvimento dos cuidados paliativos semelhantes aos atuais foi idealizado por Dame Cicely Saunders, em 1967, na Inglaterra. O St. Christopher’s Hospice, localizado em um subúrbio de Londres, criou o protótipo do hospice moderno, formado por uma equipe multidisciplinar e que se apresentava como uma alternativa para a casa do paciente, uma vez que possibilitou um atendimento de saúde específico sem interrupção (24h), em um ambiente confortável e como alternativa para o hospital. Promoveu, também, a personalização do tratamento e possibiliou a presença contínua de familiares e amigos próximos ao paciente (Cunietti et al, 1994). No âmbito jurídico, há países que introduziram legislativamente o tema em seu panorama legal. Por exemplo, a Lei 2/2010 Ley de Derechos y Garantías de la Dignidad de la Persona en el Proceso de la Muerte da Andalusia, na Espanha, afirma em seu preâmbulo que “O direito a uma vida humana digna não pode ser obstaculizado com uma morte indigna. O ordenamento jurídico está, portanto, chamado também a concretizar e proteger este ideal da morte digna”5. Na França, os cuidados paliativos foram oficialmente introduzidos no sistema nacional através da circulaire Laroque de 1986, relativa “à organização e acompanhamento dos doentes em fase terminal”. Após a proposta do deputado Jean Leonetti sobre “o acompanhamento do fim de vida”, realizada em 2002, foi promulgada a Loi relative aux droits des malades et à la fin de vie em 2005, e em fevereiro de 2010 o governo francês inaugurou um “Observatório nacional do fim de vida”6. O Observatório tem como objetivo divulgar informações sobre os aspectos da lei relativa ao fim da vida. 5 Lei disponível em: http://www.parlamentodeandalucia.es/webdinamica/portal-web- parlamento/pdf.do?tipodoc=coleccion&id=47573&cley=2. Acesso em 30 de outubro de 2023. 6JORF n°0092 du 20 avril 2010 page 7331 - texte n° 60 - Arrêté du 12 avril 2010 fixant la composition du comité de pilotage de l'Observatoire national de la fin de vie, http://www.legifrance.gouv.fr. http://www.parlamentodeandalucia.es/webdinamica/portal-web-parlamento/pdf.do?tipodoc=coleccion&id=47573&cley=2 http://www.parlamentodeandalucia.es/webdinamica/portal-web-parlamento/pdf.do?tipodoc=coleccion&id=47573&cley=2http://www.legifrance.gouv.fr/ 118 No cenário italiano, o então Ministro da Saúde autorizou, em outubro de 1998, a implementação de 2.900 leitos para o âmbito dos cuidados paliativos. O decreto ministerial de 28 de outubro de 1999, relativo à Lei n. 39, de 26 de fevereiro de 19997, determinou a realização do programa de cuidados paliativos previsto no Plano Sanitário Nacional de 1998-2000, e introduziu linhas de atuação para a estruturação de centros de cuidados paliativos e dos critérios de integração desses centros com outras atividades assistenciais (Cirillo, 2002). Nesse campo, são indicadas duas leis fundamentais sobre o tema: a primeira teve como objetivo principal o financiamento do hospice para auxiliar seu nascimento e desenvolvimento, o que ocorreu em 1999; a segunda, em 2010, buscou o entrelaçamento da rede de cuidados paliativos, ou seja, a integração entre hospice e assistência domiciliar8. Especialistas nesse assunto afirmam que, normalmente, o hospice recebe pacientes com capacidade de discernimento e decisão, que assim permanecem até seus últimos dias de vida, estando habilitados a se manifestar e relacionar como todos aqueles que os circundam (Valenti, 2009). O contexto dos cuidados paliativos relaciona-se a um processo de cura, que envolve tanto o paciente quanto sua família. Os funcionários e a equipe médica auxiliam ambas as partes, pois os familiares sofrem indiretamente da mesma doença do paciente, tornando-se parte de todo o processo. É por isso que “se passa da unidade de cura ‘individual’ para uma unidade de cura ‘social” (Cirillo, 2002). Nesse ponto, o princípio da autonomia possui força fundamental, associado ao art. 6º da Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos, quando se faz referência ao consentimento. Cita-se, ainda, o art. 8º desse documento, por se tratar da preservação da integridade da pessoa humana, bem como o art. 11, ao indicar a não discriminação e a não estigmatização de cada indivíduo. Esse mesmo princípio é trazido, também, nas palavras de Stefano Rodotà, que alerta para uma espécie de “direito à doença”, ou seja, para além do direito à cura “se percebe a necessidade de aceitação social do doente, da não discriminação de quem sofre anomalias físicas ou psíquicas, como indispensável requisito da sua decisão de perceber a vida para além dos sofrimentos e dos meios que possam a alivar materialmente” (Rodotá, 2006). Para o autor, apenas quando a dor não for considerada um mecanismo de exclusão – da família, do trabalho, da vida em comum – que irão crescer as possibilidades de não se ver (a 7 Legge 26 febbraio 1999, n. 39, “Conversione in legge, con modificazioni, del decreto-legge 28 dicembre 1998, n. 450, recante disposizioni per assicurare interventi urgenti di attuazione del Piano sanitario nazionale 1998- 2000", pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 48 del 27 febbraio 1999. 8 Legge 15 marzo 2010, n. 38, "Disposizioni per garantire l'accesso alle cure palliative e alla terapia del dolore", pubblicata nella Gazzetta Ufficiale n. 65 del 19 marzo 2010. 119 dor) como um atentado à dignidade e, assim, aceitá-la e com ela conviver. É, propriamente, o equilíbrio entre essas considerações e a dignidade da pessoa (Andorno, 2005) expressa, também, pela sua autonomia, que sedimenta a implementação dos cuidados paliativos. No cenário brasileiro, o Código de Ética Médica (CEM) refere-se à terminalidade da vida e entre seus princípios fundamentais assim dispõe: “XXII - Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados”9. No art. 36, parágrafo 2º, tem-se como vedado ao médico “Abandonar paciente sob seus cuidados”, e segue: (...) § 2° Salvo por motivo justo, comunicado ao paciente ou à sua família, o médico não o abandonará por este ter doença crônica ou incurável e continuará a assisti-lo e a propiciar-lhe os cuidados necessários, inclusive os paliativos”. Entende-se que, dessa forma, o Código “preconiza o surgimento da identidade do médico como orientador e parceiro do paciente, a partir de uma visão não só biológica, mas fundamentalmente humanista” (Chaves, 2011). Novamente, ressalta-se a percepção da totalidade da pessoa humana e, mesmo que não haja legislação específica sobre o tema no Brasil, é necessário o delineamento de diretrizes que possam garantir a prática dos cuidados paliativos no país. Deve-se atentar, portanto, à percepção de como as políticas públicas devem atuar e assumir responsabilidades quanto à implementação dos cuidados paliativos como tratamento partícipe do panorama sanitário. Nesse sentido, o não oferecimento do acesso a esse cuidado poderia ser alvo de efetiva discussão também no âmbito jurídico. De acordo com John Keown, “a lei, tanto civil como penal, pode ter um papel importante a desempenhar, não apenas para reivindicar os direitos das pessoas para quem foi negado o alívio da dor e do sofrimento, mas, também, como um estímulo para promover a prática adequada” (Keown, 2012). Para além das reflexões acima, a pandemia de COVID-19 suscitou novos desafios, especialmente para os sistemas de saúde. Um estudo de autoria de membros do Cicely Saunders Institute, do King’s College de Londres, retrata que a pandemia de COVID-19 trouxe a necessidade de adaptações às realidades hospitalares, demandando flexibilidade às equipes médicas e rápida alocação de recursos para o tratamento dos pacientes. Contudo, os dados de análise ainda são escassos, o que leva a discussão ao entendimento de possíveis balanceamentos entre o cuidado paliativo comunitário (“community palliative care”) e o cuidado em “hospice” ou em centros de cuidados paliativos. No âmbito do cuidado paliativo comunitário, uma solução 9 Código de Ética Médica. Disponível em: http://portal.cfm.org.br/. Acesso em 30 de outubro de 2023. http://portal.cfm.org.br/ 120 seria o planejamento e controle dos pacientes para evitar a admissão hospitalar e respeitar o desejo de quem prefira permanecer em casa. Um outro caminho seria acrescentar a esse panorama a atuação de voluntários que, devido às medidas de distanciamento social, possam efetuar o acompanhamento de pacientes por meios digitais ou telefone, treinados para apoio psicológico. Os autores ressaltam a escassez de estudos frente ao tema, e sugerem que “Em uma pandemia que deve durar vários meses, como o COVID-19, a implementação de sistemas de coleta de dados antecipadamente ajudaria os serviços a planejar e melhorar o atendimento e poderia ser usado para projetar necessidades futuras” (Etkind et al, 2020). Um editorial da Revista The Lancet, em 202010, trouxe a preocupação com a sobrecarga do sistema de saúde frente à pandemia, o que tornaria especialmente vital, mas, também, difícil o fornecimento de cuidados paliativos seguros e eficazes. Ainda, considera-se que esse cenário pode ser agravado, principalmente, em países de baixa e média renda, onde a escassez de serviços de cuidados intensivos e paliativos é maior. Na mesma linha do estudo acima citado, há o indicativo de que os cuidados paliativos devem ocupar uma parte explícita dos planos de resposta nacionais e internacionais para a COVID-19, e o delineamento de medidas práticas, entre elas garantir o acesso a medicamentos, considerar um maior uso de telemedicina e vídeo, discutir planos de cuidados antecipados, fornecer melhor treinamento e preparação para toda a força de trabalho de saúde e abraçar o papel de cuidadores leigos e a comunidade em geral. O uso da telemedicina e de vídeos para a comunicação entre equipes, pacientes e familiares tem sido um caminho para a aproximação no distanciamento,em um paradoxo necessário nesse contexto. Assim, associa-se a reflexão quanto à necessidade, também, de acesso a esses formatos e tecnologias, inclusive em âmbito informacional, especialmente para grupos sociais que tenham pouco contato com os meios digitais. Esse mesmo processo informativo é extensivo às equipes, que se deparam com novas formas de atuação em seus escopos profissionais. O Brasil também enfrentou desafios semelhantes aos já citados, para além das disparidades econômicas e sociais de um país continental. Em seminário virtual estruturado pela Organização Panamericana de Saúde (OPA) e Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2020, foram expostas experiências de serviços de cuidados paliativos durante a pandemia de 10 Palliative care and the COVID-19 pandemic. Editorial. The Lancet, Vol. 395, April 11, 2020, p. 1168. 121 COVID-19 na América Latina e nos Estados Unidos11. O caso brasileiro apresentado trouxe a iniciativa de dois hospitais de São Paulo, um deles privado e filantrópico, de excelência, e o outro parte do sistema público de saúde, considerado o maior complexo hospitalar do Brasil12. Ambos se associaram em abril de 2020, com o objetivo de abrir uma nova Unidade de Cuidados Intensivos (UCI) com 11 leitos no prazo de 10 dias, em virtude do rápido avanço da pandemia no país. Foi formada uma equipe multiprofissional, coordenada sob uma estratégia de três etapas: pessoas, processos e resultados. Entre os diferentes aspectos que compuseram cada etapa, destaca-se a ênfase dada às pessoas como ponto inicial e fundante da estratégia elaborada. Com a etapa de “pessoas” estruturada, a etapa de processos levou ao estabelecimento de funções claras e bem definidas dos componentes da equipe, bem como rondas multiprofissionais diárias, objetivas e inclusivas, e a própria alteração do processo durante a aprendizagem em equipe, para seu aperfeiçoamento. Os resultados, como terceira etapa, foram uma consequência da estratégia delineada: concentraram não apenas a análise de dados, mas, também, a partilha de cada resultado em equipe no âmbito tanto das altas hospitalares, quanto dos óbitos. As altas foram celebradas com os pacientes, com a saída deles sob aplausos da equipe. Essa iniciativa tornou-se, também, uma forma de energizar cada profissional, que retornaria a trabalhar com os demais pacientes. Quanto aos óbitos, o médico Daniel Neves Forte, coordenador do grupo e paliativista, reunia toda a equipe para conversar com a família, para expressar seus sentimentos e dizer aos familiares que seu ente querido não morreu sozinho, pois todos estavam junto com ele. Segundo Daniel Forte, retorna-se às pessoas: se o trabalho foi iniciado com elas, a elas se retorna, pois são a base de tudo. É por meio dessa percepção que os cuidados paliativos caracterizam sua transversalidade e sua inserção na complexidade bioética, no sentido de transitarem por áreas tão importantes e sensíveis de cada paciente e de seus familiares. Nas palavras de José Roberto Goldim, vale lembrar que Muitas vezes as notícias falam de mortes que ficam anônimas, quando transformadas apenas em estatísticas. Na realidade são perdas singulares e irreparáveis para as famílias, amigos e para toda a humanidade. É a indissociabilidade do indivíduo com a comunidade humana. É a manifestação da Alteridade na prática, onde todos contam, onde todos são interdependentes, onde todos são singulares (Goldim, 2021). 11 Seminário web “Los cuidados paliativos durante la pandemia de COVID-19”, promovido pela OPA/OMS em 19 de junho de 2020. Disponível em: https://www.paho.org/es/node/71350. Acesso em 10 de setembro de 2021. 12 O caso brasileiro foi apresentado pelo médico Daniel Neves Forte no painel “Experiencias en los servicios de cuidados paliativos en la región”. Os hospitais citados foram o Hospital Sírio-Libanês e o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. https://www.paho.org/es/node/71350 122 Neste sentido, também é importante compreender que “A dignidade humana também se preserva pela memória. Parafraseando o Talmud, que afirma que ‘quem salva uma vida, salva o mundo inteiro’, é possível dizer que quem relembra estas vidas perdidas, preserva a nossa identidade como humanidade” (Goldim, 2021). A pandemia de COVID-19 trouxe inúmeras perdas afetivas, sociais e econômicas à população brasileira e mundial. O enfrentamento desse cenário possui, entre suas bases, o fomento à educação e à ciência como instrumentos primordiais para o bem-estar de cada ser humano. Isso porque, em um panorama pandêmico, esses elementos poderão auxiliar à compreensão da finitude da vida como parte do percurso natural da existência, e não através da dor originada pela ausência de tratamento ou pela falta de estruturas sanitárias. O incentivo às pesquisas leva, ainda, a um efetivo apoio às equipes que atuam diretamente com pacientes contaminados pelo vírus, na perspectiva de que o trabalho efetuado irá trazer seu retorno via aprimoramento do próprio sistema de saúde, pela busca de vacinas e de medicamentos no combate à pandemia. Sobretudo, tem-se a circularidade da vida, em seu início e em seu fim, em que cada vivência potencializa sua singularidade na coletiva percepção de humanidade em cada um de nós. 2.2 Informação e assertividade da ciência: os direitos humanos e a bioética no debate sobre emergências climáticas A emergência das mudanças climáticas suscita novas reflexões em sua associação com os direitos humanos. É importante considerar que “A identificação de que o ser humano é parte da natureza, que é um ser que tem interações ativas com seu meio, reconhecendo que pode alterar o seu próprio destino e de toda a natureza, introduziu uma nova pauta de questionamentos” (Goldim, 2009). Esses questionamentos abrangem tanto o início e o fim de vida humana, bem como a temática referente às interações com as esferas animal e ambiental13. O surgimento de diferentes patologias que podem se desenvolver para dimensões pandêmicas mostra a importância da associação entre essas diferentes áreas para a prevenção e tratamento de doenças que podem surgir desse contexto. A OMS, já em 2010, propôs uma direção estratégica de longo prazo para a colaboração internacional destinada a compartilhar responsabilidades e coordenar atividades globais para lidar com os riscos à saúde que surgem quando humanos, animais e o ecossistema interagem. Essa abordagem recebeu a denominação 13 Parte dessas reflexões foram expostas em Consulta Pública junto ao Ministério das Relações Exteriores em 30 de agosto de 2023, sob o tema “emergência climática e direitos humanos”, representando o Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência (LAPEBEC) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. 123 de “One Health” (Saúde Única). A tripartição advém da cooperação multissetorial entre OMS, Organização das Nações unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e Organização Mundial da Saúde Animal (OIE). Em 2022, essa estrutura torna-se quadripartite, com a inclusão do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA)14. Nesse contexto, o conceito de “One Health” (Saúde Única) emerge do estudo integrado de zoonoses, que consistem na transmissão de doenças entre humanos e animais. Na atualidade, este conceito “abrange as interconexões entre saúde humana, animal, ambiental e plantas em uma abordagem interdisciplinar representada por um complexo sistema biológico e social, que envolve múltiplos atores e processos e suas interações ao longo do tempo a nível local, nacional e global” (Carneiro; Pettan-Brewer, 2021). A OMS refere-se, propriamente, à percepção de Saúde Única como uma abordagemintegrada, que visa equilibrar e otimizar, de forma sustentável, a saúde de pessoas, animais e ecossistemas, todos conexos e interdependentes15. É, portanto, na conexão e interdependência entre essas esferas que a atuação dos direitos humanos é elemento não apenas integrador, mas, também, elo de atuação estatal. A Declaração de Viena de 1993, na esteira da Conferência Mundial de Direitos Humanos, afasta a divisão dos mesmos em gerações, para os sedimentar nos aspectos da indivisibilidade, inter-relação e interdependência. Em seu item 5, o documento dispõe que “é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais”16. Em 1966, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais sedimentaram aspectos referentes ao acesso à saúde e ao pleno exercício desse direito como elemento fundante da afirmação dos direitos humanos, conexos a elementos trabalhistas e ambientais. Com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, em 2005, destaca-se o princípio da dignidade da pessoa humana e a proteção dos direitos humanos, garantindo o respeito pela vida dos seres humanos e as liberdades fundamentais de modo compatível com o direito internacional, bem como a promoção do acesso equitativo aos progressos da medicina, da ciência e da tecnologia – que atuam, diretamente, também no panorama das mudanças climáticas. A promoção desses 14 Abordagem disponível em: https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/one-health. Acesso em 06 de junho de 2023. 15 Definição presente em: https://www.who.int/health-topics/one-health#tab=tab_1. Acesso em 15 de agosto de 2023. 16 Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/wp- content/uploads/2013/03/declaracao_viena.pdf. Acesso em 15 de agosto de 2023. https://www.who.int/news-room/questions-and-answers/item/one-health 124 direitos pode ser efetuada, pelos Estados, por meio da esfera educacional, bem como pela cooperação internacional17. Essa dimensão integradora embasa, portanto, a atuação dos Estados frente aos temas apresentados. Os processos que envolvem o alcance do dever de prevenção dos Estados diante dos fenômenos climáticos gerados pelo aquecimento global participam, na atualidade, da importância de uma visão integrada e integradora da relação entre o meio ambiente e os direitos humanos. Registra-se que, na esfera interamericana, um dos pilares da estruturação da Organização dos Estados Americanos (OEA) se assenta nos direitos humanos, e a proteção da pessoa humana perpassa pelo cuidado com sua existência e, assim, pela manutenção do ambiente em que vive. Esse cenário revela que o processo informativo assume importante relevância sobre a emergência climática à luz da ciência e dos direitos humanos. O direito de acesso à informação e as obrigações sobre produção ativa de informação e transparência, conforme o artigo 13 da Convenção Americana (OEA), conectam-se aos artigos 22, 23 e 24 da Declaração Universal de Bioética e de Direito Humanos. Os artigos 22 e 23 evidenciam o papel dos Estados, que devem tomar as medidas apropriadas para colocarem em prática os princípios enunciados na Declaração por meio de ações nos campos da educação, da formação e da informação ao público. Esses elementos perpassam a cooperação internacional, na medida em que, de acordo com o artigo 24, “Os Estados devem apoiar a difusão internacional da informação científica e encorajar a livre circulação e a partilha de conhecimentos científicos e tecnológicos”18. Essa percepção reforça a importância do afastamento da desinformação em sua dimensão ampla e, também, diretamente relacionada ao contexto científico - especialmente após o período pandêmico mundialmente vivenciado, que trouxe questionamentos a respeito da assertividade da ciência. Estudos indicam que, para adiar a tomada de decisões políticas ou para favorecer interesses econômicos, há grupos que tentam manter as controvérsias sobre temas como mudanças climáticas ou chuvas ácidas para criar dúvida sobre o consenso da comunidade científica. Segundo Yurij Calstelfranchi. “o problema não são notícias falsas, fakenews, mas sim fakeissues, falsas questões, controvérsias construídas para desacreditar o valor da evidência científica ou criar no público a sensação de que os cientistas discordam entre si e que, portanto, 17 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura. Disponível em: unesdoc.unesco.org/images/0014/.../146180por.pdf. Acesso em 09 de setembro de 2021. 18 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146180_por. Acesso em 28 de fevereiro de 2023. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000146180_por 125 todas as explicações têm o mesmo valor” (Castelfranchi, 2019). Para Geoffrey Thomas e John Durant, quanto maior o entendimento público sobre a ciência, maior a promoção de tomadas de decisões democráticas, e, também, maior a sua efetividade. Assim, “uma compreensão mais ampla dos aspectos científicos de uma determinada questão não levará, automaticamente, a um consenso sobre a melhor resposta, mas, pelo menos, levará a uma tomada de decisão informada e, portanto, melhor” (Thomas; Durant, 1987). No contexto da informação ambiental, a pandemia de COVID-19 trouxe a complexidade frente à transmissão de doenças de animais para seres humanos, bem como a necessidade de uma adequada orientação social em relação à prevenção e vacinação. Além desse fato, as mudanças climáticas têm aumentado casos de doenças em locais anteriormente isentos dessas patologias. Assim, a informação conecta-se à promoção da democracia pelo processo informativo ambiental na promoção da saúde tanto em seu contexto internacional (por meio da definição da OMS), quanto pelo viés nacional, por meio da garantia constitucional à saúde no âmbito dos direitos sociais. Como direito social, há relação intrínseca com os direitos humanos, também promovidos pela Constituição Federal, na principiologia presente no art. 4º, II, por meio da prevalência dos direitos humanos, elemento que embasa as relações internacionais. Verifica-se, portanto, a intrínseca relação entre os direitos humanos e a bioética, em sua complexidade. A bioética complexa “é uma abordagem abrangente na resolução de problema que envolvem a vida e o viver” (Goldim, 2009). Na medida em que as emergências climáticas afetam tanto a vida quanto o viver, insere-se a abordagem da Saúde Única nesse panorama, por se perceber que os deveres para com os animais, plantas e meio ambiente participam do entendimento da alteridade (Levinas, 2005). Nesse sentido, a percepção do viver pode se expandir para a proteção do conviver – no equilíbrio necessário entre as esferas humana e ambiental. CONCLUSÃO O caráter de universalidade dos direitos humanos, já referida no início do presente artigo, é retomado em sua relação com a bioética e sua complexidade, nas interações entre as diversas esferas de atuação desses dois campos do conhecimento. Um fator determinante na conjugação entre a bioética e os direitos humanos advém da publicação do conceito de saúde pela Organização Mundial de Saúde em 1948, após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando a descoberta dos campos de concentração demonstrou ao mundo que o ser humano não se limita 126 à corporeidade: os reflexos morais, culturais, psicológicos e afetivos compõem o “ser pessoa”, e a caracterização da saúde irá, então, abranger a totalidade do ser humano. A promulgaçãoda Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos reflete a ampliação do debate sobre os temas biomédicos associados ao âmbito jurídico, na medida em que o direito passa a ser chamado na resolução de casos que envolvem o cuidado médico. Um dos fatores responsáveis por essa conjugação é o avanço das novas tecnologias na área da saúde que, ao promoverem melhorias e descobertas importantes nesse campo, suscitaram a reflexão quanto aos limites de práticas relacionadas a diferentes aspectos da contemporaneidade – o enfrentamento de uma pandemia que alterou as bases sociais e econômicas mundiais trouxe um olhar ainda mais aguçado ao próprio sentido da vida. Nessa esteira, as questões que envolvem os processos informativos e a própria sedimentação do afastamento da desinformação para a estruturação de governança e de democracia também atuam no contexto das emergências climáticas. Os direitos humanos e a bioética atuam na busca de ponderação e de adequação nas tomadas de decisões referentes ao tema, conjugados às esferas nacionais e internacionais, na medida em que mares, rios e ar ultrapassam questões unicamente limítrofes e políticas. A relação entre Bioética e Direitos Humanos participa, portanto, de um amplo olhar sobre a sociedade, sobre o meio ambiente e sobre a importância do olhar atento para as presentes e futuras gerações. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: il potere sovrano e la nuda vita. Torino: Einaudi, 2005. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2002. ALVES, Cristiane Avancini. “La prima cosa bella”: uno sguardo alle cure palliative. Revista de Bioética y Derecho, núm. 22, mayo 2011, pp. 48-55. ANDORNO, Roberto. Global Bioethics and Human Rights. Medicine and Law, 2008, 27(1):1- 14. ANDORNO, Roberto. La notion de dignité humaine est-elle superflue en bioéthique? Revue Générale de Droit Médical, n° 16, 2005, pp. 95-102. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, volume I. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1997. CARNEIRO, Liliane Almeida e PETTAN-BREWER, Christina. 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Conclui-se que o debate ainda é incipiente dentro dos tribunais e no legislativo, bem como a sociedade deixa de discutir muitas destas questões por motivos religiosos, culturais e de não aceitação da finitude da vida. Os argumentos gerados nas últimas décadas pelo biodireito podem auxiliar a positivação do direito à morte, dentro de um regramento socialmente aceito no Brasil. Palavras-chave: Óbito; Eutanásia; Ortotanásia; Suicídio assistido; Bioética. 1 INTRODUÇÃO É preciso, primariamente, entender em que momento ocorre a morte real para o direito. No Código Civil, Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002, no seu artigo 6° traz que a existência da pessoa natural termina com a morte, enquanto que a Lei n.º 9.434, de 04 de fevereiro de 1997, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, no seu artigo 3°, trará que a retirada post mortem de tecidos, órgãos e partes do corpo humano deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica. Portanto, a morte real, para o direito, ocorre quando do diagnóstico da morte encefálica, encerrando a existência da pessoa natural. 1 Acadêmico do curso de direito da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) – Campus São Borja. E-mail: danielfranco.aluno@unipampa.edu.br. 2 Docente da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) – Campus São Borja. Graduada em ciências jurídicas e sociais pela URCAMP, especialista em direito processual civil pela PUCRS, mestre em direito pela UNISC e doutora em direito constitucional pela UNIFOR. E-mail: vivianecoitinho@unipampa.edu.br. 3 Docente substituta da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) – Campus São Borja. Graduada em direito pela FURG, especialista em direito administrativo e gestão pública pela FESMP-RS e mestre em direito e justiça social pela FURG. OAB/RS 110.623. E-mail: thaisolea@unipampa.edu.br. mailto:danielfranco.aluno@unipampa.edu.br mailto:vivianecoitinho@unipampa.edu.br mailto:thaisolea@unipampa.edu.br 130 Na medicina, no entanto, o diagnóstico de morte encefálica pode ser um conceito controverso e mais complexo de ser atestado no caso em concreto, principalmente no que implica no desligamento de aparelhos que dão sustentação a vida. Apesar do Conselho Federal de Medicina, através da Resolução n.º 2.173, de 15 de dezembro de 2017, definir os critérios e procedimentos para o diagnóstico de morte encefálica, a realidade das diferentes regiões geográficas do Brasil podem implicar numa variabilidade de critérios e na inexistência da uniformidade de exames complementares para o diagnóstico. Por mais que o direito o possua outras teorias para tratar o momento da morte, legalmente possuímos o conceito que resulta na conclusão que quando o artigo 121 do Código Penal, Decreto-Lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940, que tipifica o homicídio como matar alguém, analogamente, diz que o agente ocasionou a morte encefálica da vítima e assim encerrou a existência da pessoa natural. Destes pontos levantados, podemos chegar à hipótese que aquele que provoca a morte encefálica de um ser humano, mesmo que dentro da estrita função da sua atividade ou do desejo da vítima, poderia estar cometendo um dos crimes tipificados no capítulo dos crimes contra a vida do Código Penal. Ante o exposto, o artigo procura fazer uma análise da prática da medicina, no que se refere o momento da morte, no que trata a bioética, o direito constitucional e a possível incursão nos crimes contra a vida previstos no Código Penal. Fazendo-se um levantamento da literatura, por artigos científicos, dissertações e julgados, busca-se demonstrar como o direito à morte se insere no debate brasileiro, através do método dedutivo. 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 2.1 Diagnóstico do óbito O momento que a vida cessa deve ser claro dentro da lei, pois é neste momento que se encerra a existência da pessoa natural e habilita a abertura da sucessão definitiva. A morte no direito civil pode se dar de duas formas: morte real e a morte presumida. A primeira hipótese é aquela atestado pelo médico e que autoriza o registro no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais para elaboração do atestado de óbito, enquanto que a segunda é aquela que ocorre o desaparecimento do corpo da pessoa e pode ser presumida por ser provável (TARTUCE, 2022). 131 Nota-se, deste modo, que no direito civil a morte do agente pode ser atestado ou pode ser aberto um procedimento de reconhecimento, decorrente da ausência de corpo. Existe, no entanto, diversas situações que podem até mesmo confundir as autoridades médicas sobre o limite da vida e a morte. Nucci (2022), traz a classificação de Fernando Verdú Pascual para elucidar quatro situações entre a vida e a morte possíveis, conforme Quadro 1. Quadro 1 – Classificação de situações entre a vida e morte. Classificação Situação Vida atuada Dificuldade na percepção dos sinais vitais básicos, independentemente da origem, e que somente com exames médicos é possível detectar sinais derivados das funções neurológica, cardíaca e respiratória. Vida suspensa Perda de um dos sinais vitais que demanda a ação emergencial para recupera-la, em geral a suspensão das funções cardíacas e respiratórias. Morte certa Existência de lesões incompatíveis com a vida, como a decapitação, desmembramento, achatamento do crânio, entre outros. Morte absoluta Não identificação de sinal vital, bem como verificação de um conjunto de sinais suficientes para se presumir a morte Fonte: Nucci (2022). Assim, para a morte ser atestada deve-se existir um fator fisiológico que permite a autoridade competente verificar e certificar. Por muito tempo a parada cardiorrespiratória foi esse fator, dada a possibilidade de verificação dos visíveis sinais vitais extintos, no entanto com o crescente desenvolvimento científico o coração deixou de ser o órgão vital para a sobrevivência humana (podendo inclusive ser transplantado) dando lugar ao cérebro, único órgão que não pode ser substituído artificialmente ou transplantado (MONTE, 2019; CABEÇA, 2018). O marco desta transição advém da publicação do artigo The depassed coma: preliminar memoir, que definiu a morte encefálica, e consolidou-se em 1968 pela ação do Committee of the Harvard Medical School to Examine the Definition of Brain Death, sendo trazido na Lei n.º 132 9.434/97 que dispõe sobre a legalidade do uso de partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento. A lei determina que os critérios clínicos e tecnológicos seriam definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina – CFM (CABEÇA, 2018). Desta maneira, o CFM definiu os critérios de morte encefálica pela Resolução n.º 1.480/97, atualizada em 2017 pela Resolução n.º 2.173/17, em decorrência das transformações sociais e evolução da medicina. Assim, a resolução vigente, determina que deverá existir dois exames clínicos que confirmem coma não perceptivo e ausência de função do tronco encefálico, realizados por dois médicos diferentes, em um intervalo de no mínimo uma hora entre eles; a realização de um teste de apneia que confirme ausência de movimentos respiratórios, bem como a realização de exame complementar que comprove ausência de atividade encefálica, podendo ser a angiografia cerebral, o eletroencefalograma, o doppler transcraniano e a cintilografia (CFM, 2017). Apesar da morte encefálica ser aceita na medicina e no direito, este conceito pode trazer controvérsias na sua determinação, frente a diversidade geográfica e do acesso a aparelhos e exames no Brasil, bem como para a compreensão dos familiares, que podem se deparar com seu ente apresentando batimentos cardíacos e respiração auxiliadas por aparelhos, e, no entanto, ter sido determinada a sua morte pelaparada cerebral, baseando-se em critérios neurológicos (SHEMIE, 2007). Com a determinação da morte encefálica algumas consequências decorreram, como a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano com autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau; ou mesmo, a suspensão dos procedimentos de suporte terapêuticos em não-doador, conforme artigo 1° da Resolução CFM n.º 1.826/2017. Apesar dos critérios definidos, a determinação do óbito continua a ser discutido em decorrência da progressão das tecnologias e do conceito de morte na sociedade. Constantemente aumenta a habilidade médica de sustentar a falência de órgãos e as técnicas de transplante o que impulsiona debates sobre a determinação de quando uma doença não é terminal, quando a continuidade do tratamento é ineficaz e quando ocorre o óbito realmente (SHEMIE, 2007). 2.2 A morte provocada Quando se trata da morte provocada através da intervenção médica, podemos ter, ao menos, três tipos: eutanásia, ortotanásia e o suicídio assistido. Sendo a eutanásia, também conhecida como homicídio piedoso, a pratica de abreviar o sofrimento do paciente acometido 133 de doença incurável e profundamente angustiado através de atos e medicamentos que matam o enfermo (ativa) ou a diminuição de intervenções que promovem a manutenção da vida (passiva). A ortotanásia, chamada de homicídio piedoso omissivo, trata-se da prática médica de deixar de intervir para prolongar a vida artificialmente, permitindo a morte do paciente com doença incurável, em estado terminal e irremediável.. Já o suicídio assistido trata da opção do paciente pela morte frente a uma doença ou condição que ocasione um sofrimento intenso, ou mesmo degenerativa, ocorrendo com o auxílio de práticas médicas (NUCCI, 2022; SANTOS, 2011). Trata-se, portanto, da tentativa de proporcionar ao paciente com uma doença terminal, em situação dolorosa ou de grande sofrimento, o termino de sua vida de maneira altruísta e a possibilidade de não ser penalmente incriminado por tal conduta, fazendo uso, ainda da autonomia da vontade e do direito de escolha, o direito à morte. A morte digna, não está apenas relacionada aos procedimentos de eutanásia, ortotanásia e suicídio assistido, mas no direito individual de optar pelo momento e método de se chegar a este fim, devendo a cada um determinar o que significa este conceito (ORSELLI e FAISSEL, 2019). 2.2.1 Eutanásia A eutanásia, de acordo com a Associação Médica Mundial, é considerada como a prática consciente e intencional de por fim a vida de um paciente em estado de doença incurável por pessoa capacitada e competente. Assim, o médico pode agir de forma ativa, injetando medicamentos ou mesmo desligando aparelhos essenciais que mantenham o paciente, com a autorização desse e/ou de seus familiares; ou, de forma passiva, pode deixar de intervir, se omitindo de proceder com tratamentos terapêuticos necessários, a fim de não prologar a vida do paciente. Válido ressaltar que o médico, nestes casos age de forma intencional e consciente. (DUBÓN-PENICCHE e BUSTAMANTE-LEIJA, 2020; RODRIGUES, 2018). Nos países em que a prática é legalizada, temos como principais doenças a demência (que não se trata de uma doença específica, mas sim um conjunto de sintomas que alteram a função cerebral, principalmente memória e o discernimento) e doença do neurônio motor (como esclerose lateral amiotrófica, atrofia muscular progressiva, esclerose lateral primaria e paralisia bulbar progressiva) (TREJO-GABRIEL-GALÁN, 2021). A eutanásia está relacionada ao direto à morte. Os que apoiam a legalização, assim, tratam que este direito não viria para contrapor o direito à vida, mas sim compor o princípio da dignidade da pessoa humana, dado que a pessoa acometida de doença incurável teria o direito 134 a expressar e requer a execução da eutanásia como forma de manter sua própria dignidade. Entretanto, o ordenamento jurídico do país não expressa está questão, não existindo qualquer menção do direito à morte como direito fundamental. Dessarte, Rodrigues (2018) traz uma reflexão que permeia o debate quanto a legalização da eutanásia: Embora a eutanásia seja um gesto nobre que visa a garantir a integridade da pessoa humana, ao respeitar o seu direito de não apenas viver com dignidade e sim morrer com dignidade, é de suma importância que tal ato seja previsto na nossa legislação para se punirem aqueles que praticam a mesma com má-fé; entretanto, como ressalva o professor Cabette, não é só porque uma autoridade define tal conduta como crime que a mesma será moralmente errada (2009, p.15). Considerando como princípios da bioética: “da não maleficência”, de não ocasionar dano ao paciente de forma intencional; “da justiça”, de se ter imparcialidade em relação aos riscos e benefícios que a pratica médica ocasiona no paciente; “da beneficência”, de sempre preservar o maior interesse do paciente nas práticas médicas, visando o bem-estar; e “da autonomia”, do respeito a vontade do paciente. A eutanásia não seria uma prática abominável, pois estaria dentro do direito do paciente, no entanto, questões culturais e de costume ainda levantam o debate sobre sua legalização, não se chegando a um posicionamento do legislativo, que não criminaliza expressamente a conduta (não possuí tipo penal específico), porém não a prevê sua execução dentro do ordenamento jurídico brasileiro (RODRIGUES, 2018). Para aqueles que veem a prática como reprovável, no entanto, trazem como argumentos que a eutanásia sempre é ruim a própria pessoa, que pode estar sendo influenciada pela situação ou por terceiros; que a morte provocada sempre viola algum valor pessoal, seja religioso ou moral que a própria pessoa crê; e que a legalização poderia acarretar num efeito negativo a terceiros, pessoas que teriam sua autonomia da vontade desprezada no momento da opção médica pelo procedimento (PEREIRA, 2019). 2.2.2 SUICÍDIO ASSISTIDO O suicídio assistido relaciona-se com a morte assistida, portanto, assim como a eutanásia, diz respeito ao auxílio médico para que o paciente alcance a morte no momento desejado, associando-se com a ideia de compreensão do momento do óbito, com a escolha, privacidade, dignidade e alivio da dor e do sofrimento, bem como com a opção de local de morte, das pessoas que o acompanharão no processo e momento, o suporte emocional e espiritual escolhidos e a expressão das últimas palavras e desejos (MELO e ASSIS, 2023). 135 Assim, o suicídio assistido nada mais é do que a expressão da eutanásia de forma voluntária, permitindo a pessoa da liberdade de dispor sobre sua própria vida. Trata-se de ato causador da morte por parte da própria pessoa, requerendo auxilio médico para concretizar a ação. Nos aspectos bioéticos, não se trata de incentivar o suicídio como prática, mas permitir que os indivíduos possam optar pelo momento e métodos que possam cessar sua dor, tratando- se da autonomia da vontade individual e da morte digna (MELO e ASSIS, 2023; ORSELLI e FAISSEL, 2019). Diferentemente da eutanásia, onde o médico manipula a medicação e a aplica, no suicídio assistido o paciente fará a ingestão da medicação preparada e fornecida pelo agente de saúde, não se excluindo a hipótese da aplicação de medicações intravenosas para encerrar o ato que por si só já seria capaz de gerar o óbito. Assim, enquanto na eutanásia o agente que provoca a morte é o médico, no suicídio assistido o agente é o próprio paciente, que o faz com o auxílio médico (ORSELLI e FAISSEL, 2019). Destarte, quando falamos do direito à morte, este instituto trata o suicídio assistido como uma forma de liberdade do indivíduo de manifestar sua própria vontade e exigir que o Estado e a sociedade deem condições necessárias para a sua realização, relacionando-se assim comos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da liberdade, bem como aos princípios fundamentais do direito à integridade física e psíquica. O suicídio assistido trata-se de direito personalíssimo, não podendo ser expressado por outra pessoa que não, exclusivamente, pelo paciente que almeja e expressa sua vontade de morrer, embora não tenha capacidade de proceder sozinho na ação (MELO e ASSIS, 2023; ORSELLI e FAISSEL, 2019). Outrossim, o debate que envolve esta questão chegou, a exemplo, na Corte Constitucional Italiana, que entendeu em 2019 que o suicídio assistido não estaria relacionado ao crime de auxílio ao suicídio, mas sim a proteção de direitos fundamentais (CORTE, 2019). Visto a lacuna legal existente no ordenamento italiano, a Corte tem por entendimento que a prática não se caracteriza no crime penal previsto de auxílio ao suicídio, desde que praticado certos métodos e que estes sejam verificados por uma estrutura pública do serviço nacional de saúde, bem como tal exceção se aplicaria a casos específicos. A pessoa acometida de doença incurável, mantida por aparelhos e capaz de decidir e exigir o término do tratamento, estaria passando por grande sofrimento físico e psicológico (CORTE, 2019). 136 2.2.3 Ortotanásia A ortotanásia, tecnicamente, não se trata de uma morte provocada, mas sim, da morte no momento certo, do não prolongamento da vida e, neste aspecto, difere da eutanásia e do suicídio assistido. Trata-se da suspensão dos atos e métodos que prolongam a vida de forma artificial, com o objetivo de evitar sofrimento e conceder a pessoa uma morte digna (ALMEIDA et al., 2021). Para compreensão da ortotanásia é preciso entender o conceito de distanásia. A distanásia, conforme Nucci (2022), é a “morte lenta e sofrida de uma pessoa, prolongada pelos recursos que a medicina oferece”. Portanto a ortotanásia, também conhecida como homicídio piedoso omissivo, trata-se da prática médica de não prolongar artificialmente a vida do paciente (NUCCI, 2022). Outrossim, a ortotanásia se diferencia da eutanásia, pois na primeira hipótese, com a compreensão do fim da vida biológica, o médico deixa de agir de forma a prolongar a vida (que levaria a distanásia), enquanto na segunda o agente manipula e aplica medicação que ocasionará a morte do paciente (ORSELLI e FAISSEL, 2019). No que se refere a eutanásia passiva, está se refere ao abandono de qualquer tratamento terapêutico com o objetivo de abreviar a vida, enquanto que a ortotanásia garante a ação multidisciplinar de cuidados com o paciente e seus familiares, preservando a dignidade da morte, que ocorre de forma natural (CAVALCANTE, BARROS e GANEM, 2020). A ortotanásia é pratica respaldada no Código de Ética Médica e em outras resoluções do CRM, no entanto ainda causa insegurança de ser executada por não haver legislação específica sobre o tema, dado que o caso concreto, caso levado ao judiciário, coloca o agente de saúde que praticou nas mãos dos juristas que não possuem conhecimentos técnicos para analisar, pois apesar da possibilidade de chamamento de perito, ainda pode resultar numa incompreensão da motivação do ato. Este temor e a proximidade dos conceitos de eutanásia omissiva (penalmente punível) levam aos médicos a prática da indesejável distanásia (ALMEIDA et al., 2021; CAVALCANTE, BARROS e GANEM, 2020). Apesar da polêmica que envolve o tema, em trabalho realizado por Almeida et al. (2021), consultando 15 docentes de uma universidade do norte do Brasil, verificou-se que ortotanásia não é prática corriqueira na rotina médica, não concluindo se a ortotanásia não é praticada pela falta de conhecimento dos agentes de saúde ou pela sua não compreensão. Alerta os autores do estudo que a temática não é estudada no currículo disciplinar do curso de 137 medicina, apesar do reconhecimento da importância do tema e como sendo uma terapia útil a determinados casos. Conclusão similar teve Cavalcante, Barros e Ganem (2020) ao entrevistar 139 anestesiologistas inscritos na Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA). A pesquisa constatou que a maioria dos entrevistados não acreditaram ser satisfatória a abordagem ética e legal que tiveram na universidade, bem como que a distanásia, embora indesejada, era prática recorrente, apesar de se verificar, em outros estudos inclusive, que a ortotanásia possuí predileção entre médicos, cientistas e familiares em pacientes terminais internados em unidades de terapia intensiva. 2.3 Direito à morte Na antiguidade, o poder de morrer ou deixar viver estava nas mãos do soberano, nele estava concentrado o poder de matar sem cometer homicídio e sem um conceito sacro de sacrifício. Com o cristianismo, houve a ideia de inviolabilidade da vida, a vida como um bem supremo e divino, baseado no conceito de não matarás e nos ensinamentos de teólogos, como Santo Agostinho que teorizou que até aquele que mata a si mesmo, mata um homem (SILVA, 2013; COUTINHO e MARTINEZ, 2019). Posteriormente, o poder sobre a vida passou para as mãos do Estado, estando, atualmente, centrado na medicina e no chamado campo da biopolítica. Assim, com a politização, a vida passou a ser um bem supremo e inviolável, transpassando, por vezes, o conceito de um direito à vida para um dever de viver (SILVA, 2013). Silva (2013) traz um conceito de Agamben, que trata de qual seria a vida sem valor ou a indigna de ser vivida, passando a ser na era contemporânea aquela vivida por pacientes incuráveis ou vítimas de ferimentos graves, que tendo consciência, perdem o significado de viver. Este conceito nos permite entender a forma como a politização do direito a vida passou para a tutela do Estado, convertendo-se numa biopolítica, num biopoder, ou mesmo na tanatopolítica, decidindo quem deve viver e quem deve morrer. Está decisão do Estado pode ser observada quando o artigo 5°, XLVII, “a” da Constituição Federal, que determinam que não haverá pena de morte no Brasil, exceto em caso de guerra declarada; bem como no artigo 23 do Código Penal que determina como excludente de ilicitude quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. 138 Ademais, Silva (2013) traz a decisão da medicina, que em vista do conceito de vida sem valor ou a indigna de ser vivida na contemporaneidade, pode proceder com a morte provocada, seja de forma dolosa ou culposa, independente da licitude e das consequências jurídicas do ato. Tratada estas questões, a carta magna não prevê o direito à morte expressamente, sendo tratada por doutrinadores e cientistas como uma extensão do princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida. Portanto o Estado optou por garantir como direito fundamental à vida, discutindo-se na atualidade o conceito de vida digna como a expressão correta deste direito. Moraes (2023) disciplina que o princípio da dignidade da pessoa humana “afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual” (p. 18), assim este fundamento da República Federativa do Brasil é uma manifestação da autodeterminação consciente e responsável da própria vida, podendo ser limitado em razão da prática dos direitos fundamentais, porém não podendo ser menosprezado a condição humana das pessoas. Quanto o direito à vida, previsto no artigo 5º da Constituição Federal, refere-se a tutela do Estado de assegurar a vida, de não ser morto ou privado dela, tanto em face do Estado, quanto de particulares. Possui um duplo sentido, relacionando a um direito de continuar vivo e de uma existência digna. No que se refere aos particulares, existe a obrigação negativa, de não atentar contra, enquanto o Estado possui deveres negativos, de se abster, e deveres positivos, de atuar em prol.Assim, deste direito que surgirá a problemática do direito de dispor sobre a própria vida, de morrer com dignidade, ou seja, do direito à morte (MORAES, 2023; LENZA, 2023; BARROSO, 2022). O direito à morte surge na discussão do direito à vida. A normativa constitucional prevê como direito fundamental a liberdade de escolha, devendo o Estado se abster de tomar decisões que privem o indivíduo de fazer aquilo que considera digno em sua existência. O Estado não pode proibir alguém de colocar sua vida em risco, por exemplo atuando em uma zona de guerra. Ao mesmo tempo, é dever do Estado garantir não só que a vida seja garantida, como que essa seja digna, não expondo os cidadãos a uma vida miserável e de sofrimento. Neste mesmo sentido, se a vida deve ser preservada pelo Estado de uma maneira digna, no contraponto, sem contradizer o direito à vida, é dever do Estado preservar a morte digna, de acordo com a crença e cultura do indivíduo. Ao mesmo tempo que se abstém a escolha individual e pessoal do indivíduo dispor de sua vida. O suicídio não é prática penalmente ou 139 civilmente punível, porque o indivíduo pode dispor de sua vida e escolher a morte, no entanto, quando esta é feita com auxílio de um terceiro, o Estado puni aquele que promove a morte, pois cabe nas relações privadas a obrigação negativa, de não atentar contra a vida de ninguém. Deste modo, o Código Penal, na parte especial, no capítulo dos crimes contra a vida, trará dois tipos penais que se deve atentar quando se trata da morte provocada com auxílio médico, sendo o primeiro: Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. § 3º Se o homicídio é culposo: Pena – detenção, de um a três anos. § 4º No homicídio culposo, a pena é aumentada de 1/3 (um terço), se o crime resulta de inobservância de regra técnica de profissão, arte ou ofício, ou se o agente deixa de prestar imediato socorro à vítima, não procura diminuir as conseqüências do seu ato, ou foge para evitar prisão em flagrante. Sendo doloso o homicídio, a pena é aumentada de 1/3 (um terço) se o crime é praticado contra pessoa menor de 14 (quatorze) ou maior de 60 (sessenta) anos. O agente de saúde que pratica a eutanásia comete o delito previsto no artigo 121 do Código Penal, pois assume o dolo da ação quando manipula o tratamento com o objetivo de ocasionar morte. Valido ressaltar que o médico que, erroneamente, procede de forma a ocasionar a eutanásia estaria cometendo o delito do artigo 121, § 3° do Código Penal, observado ainda o aumentativo de pena de 1/3 àquele que pratica homicídio culposo por inobservância de regra técnica da profissão. O segundo tipo penal que devemos nos atentar, previsto no Código Penal, é: Art. 122. Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça: Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos. § 2º Se o suicídio se consuma ou se da automutilação resulta morte: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. § 7º Se o crime de que trata o § 2º deste artigo é cometido contra menor de 14 (quatorze) anos ou contra quem não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, responde o agente pelo crime de homicídio, nos termos do art. 121 deste Código. A autoridade sanitária que pratica o suicídio assistido comete o crime o previsto no artigo 122, § 2° do Código Penal. Resguardando-se ainda o paciente que não possuí o discernimento necessário para a prática ou incapaz de oferecer resistência, no qual o agente responderia pelo crime de homicídio. Destarte, tanto a eutanásia, quanto o suicídio assistido são práticas que se amoldam aos tipos penais previstos, não havendo previsão legislativa para alguma excludente de licitude, 140 dada a possível empatia ou piedade que motivam o ato, bem como a observância de técnica médica para evitar qualquer sofrimento. No que se refere a ortotanásia, no entanto, deve-se analisar com maior cautela. Primeiramente, preciso entender que o crime culposo, conforme artigo 18, II, do Código Penal, é aquele que “o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.”, consequentemente, o médico que age de forma culposa no mínimo estaria agindo no crime de homicídio culposo, previsto no artigo 121, § 3°, do Código Penal. Todavia, o médico não age com imprudência, negligência ou imperícia ao praticar a ortotanásia, nem mesmo de forma dolosa, ou seja, toma atitudes que objetivam a morte do agente. A ortotanásia se refere a permitir que paciente morra no tempo certo, a intervenção médica cessa no momento em que a continuidade de seus atos apenas prolongaria a vida do paciente de forma de forma artificial e anômala, não evitando o fim da vida. Dessarte, a ortotanásia não é um crime previsto legalmente, dado que caso o médico queira a morte do paciente estaria praticando a eutanásia; ao mesmo tempo o médico não estaria agindo de forma culposa, deixando de proceder algum tratamento por não conhecimento, esquecimento ou descaso, o profissional encerra suas atividades por não serem eficazes e apenas ocasionarem, a partir daquele momento, um prolongamento artificial da vida, no entanto, presta todo o auxílio necessário. Assim, a ortotanásia deixa de ser uma questão penal, ou mesmo de garantia de direito de morrer no momento que se deseja, e passa a ser uma questão técnica- médica e bioética. Destas questões levantadas está a importância de observar como o Conselho Federal de Medicina trata a questão da ortotanásia, prática prevista na Resolução n° 1.805 de 09 de novembro de 2006. O médico, esclarecendo as modalidades terapêuticas adequadas a cada situação, pode limitar ou suspender os procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida de paciente de enfermidade grave e incurável, respeitando a vontade do paciente ou de seu representante legal, dando possibilidade de ter uma segunda opinião. É dever do médico, ainda, continuar a dar todos os cuidados que aliviam o sofrimento do paciente, assegurando “a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.” (artigo 2° da Res. CFM n.º 1.805/2006). Respaldada, ainda, está a questão no princípio XXII do Código de Ética Médica: “Nas situações clínicas irreversíveis e terminais, o médico evitará a realização de procedimentos 141 diagnósticos e terapêuticos desnecessários e propiciará aos pacientes sob sua atenção todos os cuidados paliativos apropriados.” (p. 17, CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA). Portanto, o médico, o paciente e os seus familiares devem ter consciência da finitude da vida e que a morte é inevitável, debatendo sobre a necessidade de continuidade de tratamentos que adiam a morte à custa de prolongar o sofrimento dos envolvidos e tornando-se uma obsessão manter a vida biológica daquele que se encontra com doença terminal (RESOLUÇÃO CFM n.º 1.805/2006). Oportuno ressaltar que o Juiz Federal Substituto Roberto Luis Luchi Melo, da 14º Vara Federal do Distrito Federal, entendeu, na Ação Civil Pública n.º 2007.34.00.014809-3 (MPF x CFM), pela tese defendida pelo CFM de “que regulamenta(da) a possibilidade de o médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente na fase terminal de enfermidades graves e incuráveis, realmente não ofende o ordenamento jurídico posto.”. Retomando a questão do desejo de antecipar a morte, o CFM, na Resolução n.º 1.995/2012, entende que o médico deverá levar em consideração os desejos previamente expressos pelo paciente sobre os cuidados e tratamentos, ou de representante designado para este fim, desde que em acordo com o Código de Ética Médica. Por conseguinte, o Código de Ética Médica, definido pela Resolução CFM n.º 2.217/2018, veda o médicode abreviar a vida do paciente, ainda que expressamente manifestado pelo paciente ou seu representante legal, resguardando no seu parágrafo único a questão: Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (art. 41, parágrafo único, p. 28, Código de Ética Médica). Observa-se, deste modo, que o médico possui o dever de proceder os tratamentos necessários na promoção da cura e da vida do paciente, sendo vedado ocasionar a morte do paciente de forma intencional, independente da manifestação da vontade do paciente, do seu representante legal e/ou de seus familiares. Possui ainda o dever de não exceder nestes tratamentos para além do necessário, podendo limitar ou suspender os procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida de paciente de enfermidade grave e incurável, desde que prestando os auxílios necessários, bem como é legal e ético a suspensão dos procedimentos de suporte terapêuticos quando determinada a morte encefálica. 142 No entanto, o direito à morte encontra-se resguardado no ordenamento jurídico no que se refere a manifestação da vontade do paciente de doença grave e incurável, em situação terminal de vida, podendo expressar o desejo de limitar ou cessar os tratamentos. Quanto ao que se refere no desejo expresso pela morte, seja na busca de um auxílio para sua execução ou em um procedimento que leve a morte, a prática é vedada, sendo penalmente punível. A vida no ordenamento jurídico encontra-se como bem supremo, sendo que o direito à vida, por mais que não absoluto, não é relativizado perante a autonomia da vontade, dado que não pode ser oponível pelo próprio titular do bem jurídico tutelado (ORSELLI e FAISSEL, 2019). 2.4 Nos Tribunais Observada as questões conceituais e legais, sobre o tema nota-se a importância que o judiciário possui, dado que além do debate da sociedade e do legislativo, a justiça deve garantir o respeito a constitucionalidade das normas, bem como julgar casos concretos. O Supremo Tribunal de Justiça julgou o Agravo Regimental no Mandado de Injução n.º 6.825 – DF, no qual se recorria a decisão monocrática do ministro Edson Fachin que considerou manifestação incabível e negou o seguimento do mandado de injução. O autor da ação sustentou que o direito fundamental à morte digna não encontrava-se positivado na Constituição Federal, porém decorria dos princípios da dignidade da pessoa humana, da vedação de tortura, tratamento desumano ou degradante, da liberdade e autonomia individual, da integridade psicológica e moral, da liberdade religiosa, do dever de solidariedade por parte de terceiros e do direito fundamental à vida. O Ministro, no entanto, entendeu que o mandado de injução pressupõe uma omissão legislativa que torna inviável o exercício de direitos e liberdades assegurados pela Constituição Federal, o que não ocorreria no caso que o autor encontrar-se-ia numa situação futura de finitude da vida. O direito à morte seria uma interpretação reflexa dos princípios constitucionais, não existindo uma obrigação jurídico-constitucional de emanar provimentos legislativos. O autor, então agravante, buscou então “demonstrar, em suma, a existência de uma lacuna técnica no ordenamento jurídico que possibilitaria a regulamentação, através de mandado de injunção, do direito à morte digna.” (p. 08). Na plenária, realizada nos dias 18 e 24 de maio de 2018, o Ministro-relator Edson Fachin, acompanhado pelos votos dos ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Gilmar 143 Mendes, manteve sua decisão, entendendo que o mandando de injução não seria a via para preencher lacuna decorrente de direito eventual e incerto, autorizando o direito à morte. O Ministro Luís Roberto Barroso trouxe em seu voto que o direito à morte é garantido em diversos ordenamentos jurídicos internacionais de forma expressa. Que ao mesmo tempo que não cabe ao Estado a autorização ou legalidade de um direito à retirada da própria vida, a imposição de um dever ou obrigação de viver em agonia também não parece razoável, no entanto o debate possuí diversas camadas, entre a legitimação, aceitação da sociedade e do regramento para se proceder. No caso, acompanhou o voto do relator, por não estar demonstrado o direito invocado. Pelo Ministro: O impetrante simplesmente afirmou que existe a possibilidade de encontrar-se em situação de terminalidade vital no futuro. Ou seja, o que há, verdadeiramente, é a mera possibilidade de existência do direito em data futura e incerta. Assim sendo, considerando que o status do impetrante não se enquadra nas hipóteses de exercício do direito invocado, deve ser reconhecida sua ilegitimidade ativa e, portanto, o mandado de injunção não merece seguimento. (p. 10, AG.REG. NO MANDADO DE INJUNÇÃO 6.825/DF) O Tribunal, por unanimidade negou provimento do agravo, no entanto, como ressaltado pelo Ministro Barroso: “uma decisão de não reconhecimento imediato do direito ou uma decisão com efeito vinculante mitigado podem ser instrumentos de um produtivo diálogo da Corte com o legislador” (p. 08). Debate intrigante também surgiu no Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus n.º 732868-ES (2022/0092851-9), onde o Ministro Rogerio Schietti Cruz, em decisão monocrática, julgou como improcedente a liminar do direito à morte de um feto diagnosticado com Síndrome de Edwards ou Trissomia do 18. Dentre os documentos médicos apresentados, pareceres dos Conselhos Regionais de Medicina do Estado do Ceará e de São Paulo que concluíam pela ortotanásia do feto. No entanto, O Ministro levou em consideração que apesar da ampla maioria dos nascidos vivos viverem até um ano, existem casos de portadores da Síndrome de Edwards com até 19 anos. Mesmo que pese a gestação de alto risco, pela idade avançada da gestante e a malformação do feto, bem como o sofrimento dos genitores a concessão da interrupção da gravidez teria caráter satisfatório e irreversível e exigiria “demonstração de alta probabilidade do direito invocado - o que não se verifica na hipótese.”. Ainda se verifica no caso em concreto que a gestação contava com 25 semanas, superior, portanto, ao período de 12 semanas recomendas para o procedimento. A Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande, em análise do Recurso em Sentido Estrito n° 70084544147, sob a relatoria do Desembargador 144 Honório Gonçalves da Silva Neto manteve parcialmente a decisão que pronunciou E.R.G. por incurso na sanção do artigo 121, §§ 2°, IV e 2º-A, I, do Código Penal, após o réu ter causado a morte de vítima, que se encontrava acamada há mais de 12 anos, sem diagnóstico de possível melhora, desferindo golpes de faca contra ela. Apesar da condição da vítima, não seria caso admissível de absolvição sumária do acusado por conta do bem tutelado ser indisponível, mesmo se houvesse consentimento da vítima. Assim, entendeu o Tribunal que não seria possível permitir a inimputabilidade por uma possível eutanásia praticada pelo agente ao proceder a morte de paciente sem possibilidade de cura, tipificando o caso como incurso no crime de homicídio qualificado pela impossibilidade de defesa do ofendido, ao mesmo tempo que não seria caso de feminicídio por não ter sido praticado contra mulher em razão do sexo feminino. A Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande, em análise da Apelação Cível n.º 70054988266, sob a relatoria do Desembargador Irineu Mariani desproveu a apelação movida pelo indeferimento do pedido do Ministério Público de supressão da vontade do idoso J.C.F. que se negava à amputação do seu pé esquerdo, necrosado, e que poderialevar o paciente a morte por infecção generalizada. O Ministério Público sustentava que o idoso corria risco de vida e não tinha condições psíquicas de recusar o tratamento pelo quadro depressivo que possuía. O juízo singular e o Tribunal entenderam, no entanto, que o caso se inseria no biodireito, na dimensão da ortotanásia; o paciente não poderia ser obrigado a se submeter a cirurgia ou tratamento, ainda mais cirurgia mutilatória, que poderia causar sofrimento moral, sendo motivada a razão do paciente, que em pleno gozo das faculdades mentais, se recusa, assumindo os riscos inerentes a sua escolha. Ante os julgados apresentados, nota-se que o debate ao direito à morte digna surgiu nos tribunais de forma incipiente, provocando o Supremo Tribunal Federal a debater com o legislativo e ao Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul limitar a prática da ortotanásia, aceita no ordenamento jurídico, e punir a eutanásia. 3 CONCLUSÃO As discussões sobre um possível direito à morte iniciam-se no diagnóstico do óbito. Atualmente a medicina e o direito entendem que ele ocorre quando pronunciado a morte encefálica, no entanto os avanços tecnológicos colocam este diagnóstico em questão, podendo, em breve, ser levado novamente a análise quando, por exemplo, se avançar na manutenção das atividades neurais. 145 Este diagnóstico ainda encontra desafios quanto a praticidade do previsto pelo Conselho Regional de Medicina, dado as diferenças geográficas e de disponibilidade de equipamentos e exames existentes no Brasil que podem inviabilizar a constatação da morte encefálica. O direito à morte, no que se refere a escolha de momento e forma de morrer, ainda encontra resistência nos debates nacional, estando bem menos definido do que situações como o aborto de anencéfalos. A eutanásia e o suicídio assistido ainda são práticas penalmente puníveis no ordenamento jurídico nacional, embora possam ocorrer na surdina de hospitais brasileiros, sendo possivelmente licito pelos costumes. A ortotanásia é prática prevista como técnica médica para evitar o prolongamento anômalo da vida, relacionando exclusivamente a bioética e não sendo penalmente punível. Apesar disso, inexistem dados suficientes que possam demonstrar sua ordinariedade na rotina de hospitais, bem como as doenças e motivos para sua prática. A grande questão, no que se relaciona a autonomia da vontade do desejo de morrer, parece ser a questão psíquica do paciente. Observa-se que deve ser resguarda a condição do acometido por enfermidade e sua família que encontram-se sensibilizados pelo grande sofrimento, depressão, abandono e falta de perspectivas que o estado terminal de uma doença e/ou o ambiente de uma unidade de tratamento intensivo podem causar, ficando o questionamento se estes teriam capacidades de entender e arcar com as consequências da opção da morte adiantada como solução. O judiciário brasileiro, por sua vez, não parece debater estas questões com a devida cautela que o tema merece. Não entendem, como aqueles que buscam a positivação do direito à morte, que este seria um direito implicitamente inserido na Constituição Federal, crendo-se que o legislador foi intencional em não o mencionar. Ao mesmo, a constatação do Ministro Luís Roberto Barroso é apropriada. O direito à morte é um debate que deve ser apropriado pelos Poderes Judiciário e Legislativo, bem como pela sociedade. Existe um grande arcabouço de argumentos produzido pelo biodireito. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Naara Perdigão Cota de. Et al. Ortotanásia na formação médica: tabus e desvelamentos. Revista Bioética, Brasília, v. 29, n. 4, out.-dez. 2021. BARROSO, Luís R. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo - Os conceitos Fundamentais. Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555596700. Disponível em: 146 <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555596700/>. Acesso em: 27 set. 2023. BRASIL. Decreto-Lei n.º 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. 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Impetrado: Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo. Relator: Ministro Rogerio Schietti Cruz, 04 de abril de 2022. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Mandado de Injução 6.825 – Distrito Federal. Agravo regimental no mandado de injunção. Direito à morte digna. Inadequação da via eleita. Ausência de lacuna técnica. Inexistência de efetivo impedimento do exercício do direito alegado. Inadmissibilidade do writ. Desprovimento do agravo. Agravante: George Salomão Leite. Agravado: Câmara dos Deputados, Senado Federal e Presidente da República. Relator: Min. Edson Fachin, 11 de abril de 2019. CABEÇA, Hideraldo. Determinação de morte encefálica: uma análise de sete meses de vigência. Medicina S/A. Artigo. 17 de setembro de 2018. Disponível em:< https://medicinasa.com.br/determinacao-de-morte-encefalica-uma-analise-de-sete-meses-de- vigencia/>. Acesso em: 20 set. 2023. CAVALCANTE, Rodney Segura. BARROS, Guilherme Antonio Moreira de. GANEM, Eliana Marisa. 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S0213-4853(21)00090-6, DOI: 10.1016/j.nrl.2021.04.016, jun. 2021 149 DIREITO E BIOÉTICA POR INTERMÉDIO DA CIÊNCIA: CONSIDERAÇÕES JURÍDICAS Edgar de Medeiros Pinto1 RESUMO O presente trabalho, possui como objetivo central a análise dos limites das pesquisas com seres humanos no direito brasileiro, no tocante à área do biodireito, dos quais conforme a modernização do sistema jurídico em si, através das mudanças sociais, tornaram o supracitado tema, um meio discutível sobre até qual seria os limites de amparo legal. A partir daí, o Direito tal como disciplina normativa das ações e atitudes do ser humano como um todo surge para guiar na forma da lei os atos cometidos por profissionais interligados à saúde humana, e aos princípios da ética, tais como médicos, cientistas, farmacêuticos, geneticistas e etc. Consequentemente, a Ética trouxe equilíbrio à existência do Biodireito, para quem está usando essas novas tecnologias para o bem estar da saúde humana, onde através dela, possibilita vigiar as ações as condutas dos profissionais da saúde (médicos, farmacêuticos, cientistas etc.), e subsequentemente nascem desta junção (Direito e Ética), a “Bioética” e o “Biodireito” para a proteção da dignidade da pessoa humana e do bem jurídico mais preciso que é a “Vida”. Por conseguinte, na prática advém um dos maiores obstáculos enfrentados para a regulamentação do Biodireito no Brasil, a lentidão dos legisladores, sendo imprescindível destacar que nos fatores emergentes é muito mais difícil as normas acompanharem a evolução das descobertas e avanços das pesquisas na área genética e informática. Destaca-se com isso, que nada impede no futuro, a possibilidade do direito acompanhar o avanço da ciência e das tecnologias para dar o suporte à pessoas que vão utilizar delas. A presente pesquisa, basear-se-á na modalidade qualitativa, em sentido exploratório-descritiva, a partir da busca em obras literárias, artigos científicos e e-books, bem como na própria rede de internet. Palavras-chave: Bioética; Direito; Brasil; Dignidade; Modernização. INTRODUÇÃO Através dos tempos o ser humano evoluiu em todos os sentidos, e como de todo modo, os sistemas legislativos necessitaram adequações e modernizações de acordo com os tempos vividos pela sociedade. Consequentemente, ao mundo contemporâneo, inúmeras são as inovações realizadas pelo homem e por conseguinte, pela ciência, através de descobertas e experimentos. Por intermédio de tais descobertas, foi capaz de surgir uma nova área que abrange as questões médicas de dignidade à vida humana, e conjuntamente e tais dogmas, a 1 Advogado-OAB-RS n. 125.543. Professor em Carreiras Jurídicas. Especialista em Direito Digital. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Especialista em Criminologia e Justiça Criminal. Especialista em Direito Desportivo. Especialista em Direito Civil. 150 responsabilidade jurídica geradas pelas ações rodeadas pelas mesmas. A bioética, precursora do biodireito, torna por exigir um maior comprometimento do campo jurídico, bem como das pessoas e profissionais envolvidas com uma questão que envolve o tema. Em suma, são diversas as discussões sobre o que de fato deve estar limitado ao dispositivo legal, ou não, tais como a proteção jurídica concedida ao nascituro, ou do paciente terminal, o direito à vida, sendo tais fatos impossíveis de ser resolvido de forma voluntarista, seja por parte do legislador, pelos médicos ou pela família, fazendo com que a moral seja a introdução para a resolução de questões de vida e morte. Primeiramente, abordou-se ao capítulo inicial, acerca da bioética, tutela jurídica e conflitos com o crédulo religioso, como uma forma de elucidar, na prática, como ocorre o cuidado e o resguardo de direitos perante às pessoas por sua crença religiosa, em especial aos Testemunhas de Jeová e os casos que envolvam transfusões