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1 2 Proibida venda e reprodução. Uso exclusivo como material de estudos do Ciclo de seminários sobre vida e obra de Laura Perls. 3 Uma conversa de aniversário Como Educar Crianças para a Paz Notas sobre a Psicologia de dar e receber A Abordagem de Um Gestalt Terapeuta Notas sobre Ansiedade e Medo Notas sobre Mitologia do Sofrimento e Sexo Dois casos em Gestalt Terapia 04 11 17 26 33 37 48 índice 4 Uma conversa de aniversário 5 Uma conversa de aniversário Caros amigos, como posso chamar cada um de vocês que veio aqui essa noite para celebrar conosco o 25º aniversário do Instituto de Gestalt Terapia de Nova York. Esse é um momento feliz, especialmente para mim, vendo o que começou há 25 anos como um experimento distante e ousado envolvendo apenas um punhado de pessoas, pessoas dedicadas, e um pequeno número de alunos e clientes reunidos desordenadamente, agora completamente transformado em um método de terapia abrangente e em constante desenvolvimento que está sendo ensinado e praticado não apenas nos Estados Unidos, mas na muitas partes do mundo. Não quero aborrecê-los com uma palesta longa sobre começos e desenvolvimento do nosso Instituto, mas eu gostaria de dividir com você algumas memórias das pessoas que estavam envolvidas no momento que começamos. Quatro pessoas com quem Fritz e eu já trabalhávamos há alguns anos se juntaram a nós como professores no início do Instituto. Eram eles: Paul Goodman, Paul Weiz, Elliot Shapiro, e Isadore From. A contribuição de Paul Goodman para Gestalt Terapia é amplamente subestimada. Na verdade, não haveria nenhuma teoria coerente de Gestalt Terapia sem ele. A segunda parte do Gestalt Terapia: Excitamento e Crescimento da personalidade humana é em grande parte seu trabalho e por sorte temos agora sua coleção de ensaios psicológico que refletem seu desenvolvimento como terapeuta, como teórico, e Gestalt Terapeuta. Para nós que trabalhamos com ele e fomos seus amigos, Paul permanece uma presença viva e o celebramos nesse dia de lembrança. Paul Weisz era, como Paul Goodman, um professor nato, produzindo, aparentemente sem esforço, observações, ideias, teorias, e piadas de um fundo inesgotável de experiência, conhecimento, e imaginação que ia de alquimia à bioquímica, de ecologia à matemática, de contos de fadas à filosofia, de Cabala ao Zen budismo. Se ele escreveu algo, e eu suspeito que sim, ele não publicou nada. Ele também morreu muito cedo, ele vive inesquecível na memória daqueles que tiveram a sorte de trabalhar com ele- seus pacientes e seus alunos aqui em Nova York e em Cleveland e seus amigos. E tem o Elliot Shapiro, que fiz os primeiros cursos de Gestalt para educadores, mas ficou no instituto apenas por poucos anos antes de se tornar tão completamente envolvido e imerso nos problemas de inovação na educação e políticas educacionais 6 que não havia mais tempo e energia para nós. Mas ele está vivo e bem. Ralph Hefferline que foi co-autor do Gestalt Terapia: Excitamento e Crescimento, não se juntou à equipe do Instituto. Na época, uma associação próxima a nós provavelmente não se encaixava em sua carreira acadêmica, ele deu algumas palestras como convidado e manteve contato, mesmo que fosse somente enviando pacientes e estudantes até o ano da sua morte prematura. Dos fundadores originais, apenas dois ainda estão vivos e ativos no instituto, Isadore From e eu. Isadore começou com o curso que ele anunciou como “não será dado esse ano”, mas desde então a ele foram entregues muitas práticas e seminários, trabalhou com inúmeros pacientes, trabalhou com um grande inúmeros pacientes, treinou um grande número de terapeutas, aqui em Nova York e em Cleveland, e se tornou nosso melhor terapeuta e professor. Hoje nós honramos ele como ainda mais criativo e encantador, fiel velho amigo e colaborador. E também celebramos seu sexagésimo aniversário, que ele fez mês passado. Não é fácil falar sobre o papel do Fritz no desenvolvimento do Instituto. Pelo menos não é fácil para mim. Ele era o mais interessado em iniciá-lo e deu as palestras introdutórias e parte dos workshops por alguns anos. A genialidade do Fritz eram seus insights intuitivos e palpites inquietantes, que então teriam que ser fundamentados para uma elaboração mais exata. Fritz com frequência não tinha paciência para esse trabalho detalhado. Ele era em criador, não um desenvolvedor ou organizador. Sem o constante apoio de seus amigos, e meu, sem o constante encorajamento e colaboração, Fritz nunca teria escrito uma linha, nem fundado nada. Mas ele tinha o tipo de personalidade carismática que facilmente envolvia pessoas nas suas ideias e planos e fazia com que elas cuidassem, de maneira entusiasmada, de todos os detalhes que ele mesmo não gostaria de se preocupar. Nesse contexto, quero mencionar, além dos professores que se tornaram professores, Jim Hoffman, que como secretário do Instituto, tomou de conta de todo os aspectos técnicos, como publicidade, impressão e envio de folhetos e cartões de admissão dos cursos., etc, etc. Eu, em particular, passei a apreciar seu trabalho, pois quando ele não pode mais fazê-lo eu me tornei o pau pra toda obra. Eu recebia todas as ligações e entrevistas e eu respondia a correspondência. Tudo acontecia na minha casa- todos os workshops e reuniões. Além de Fritz e eu, Isadore e Paul Weis tinha seus consultórios em nossa casa também. Quando a ideia de começar um instituto Gestalt terapia nasceu entre Fritz e Paul 7 Goodman após a publicação do Gestalt Terapia: Excitamento e Crescimento. Eu deixei claro que eu não iria assumir parte alguma disso. Além de uma clínica que crescia constantemente, eu tinha uma casa, crianças e netos, e não queria assumir nenhuma responsabilidade adicional. Eu também estava acostumada principalmente ao trabalho individual. Eu trabalhei com um grupo pequeno somente por uns dois anos e eu ainda estava assustada em trabalhar com grupos maiores. Mas na primeira palestra de Fritz, quarenta pessoas apareceram. Então para a prática, ele ficou com vinte e eu com vinte. E aqui ainda estou. Quero falar algo sobre as pessoas que vieram ao Instituto como pacientes e alunos. Através dos milhares de folhetos que enviamos a todos os profissionais em e ao redo de Nova York, nós tivemos quase nenhuma resposta. As pessoas que vieram eram nossos pacientes ou amigos de Paul Goodman. Daí se desenvolveram longas cadeias de referências pessoais e profissionais das Universidades, Columbia, Yeshiva e Adelphi, dos hospitais Kings County, Bellevue, e St.Luke, departamento de assuntos dos Veteranos e outras instituições. Quase todas as pessoas que são hoje nossos professores trabalharam conosco nos primeiros dez anos, a maioria deles começou como pacientes que apesar de, ou talvez por causa de, seus muitos talentos e interesses não encontrou um lugar agradável em nossa sociedade rigidamente estruturada. Eles encontraram através e na Gestalt Terapia não somente uma profissão, mas uma vocação. Então por muito tempo nós não fizemos propaganda, mas desenvolvemos muito discretamente como uma organização de membros que funcionava como um sistema de formação, minimamente organizado, mas crescendo de maneira constante. Somente nos últimos anos que, devido à crescente popularidade da Gestalt Terapia e nossa crescente adesão, tivemos que nos organizar de uma forma um pouco mais estruturada e estamos continuamente repensando nossos processos. É extremamente difícil não cair na armadilha de uma Gestalt fixada e permanecer na fronteira de crescimento. No final dos anos cinquenta e início dos anos sessenta, i clima cultural começou a mudar. Eu acredito que a abordagem da Gestalt, particularmente o trabalho do Fritz em muitos lugares e os escritos de Paul Goodman- Growing up Absurd, Compulsory Mis-Education e outros- contribuíram substancialmente para o desenvolvimentohumanístico. Não apenas na terapia e educação, mas na forma de viver como um todo de uma geração mais jovem. Mas se Fritz e Paul eram os feiticeiros, seu verdadeiros 8 discípulos eram e são frequentemente aprendizes de feiticeiros que nunca entenderam completamente os fundamentos realistas e organísmicos da Gestalt terapia, mas liberaram uma onda de anti-intelectualismo, esquecendo que é o intelecto que nos diferencia de outras criaturas viventes. É o equipamento específico do ser humano. Dispensando todo discurso intelectual como “porcaria”, a prática da Gestalt terapia se torna empobrecida e simplista e, na realidade, não é levada a sério por muitos terapeutas e professores sérios que foram apresentados apenas a essa abordagem reduzida e diminuída. Mas estou feliz em ver nos últimos dois anos um crescente reconhecimento dessa insensatez do humanismo de hoje, e eu assumo algum crédito por minhas contribuições para essa mudança através do meu trabalho com muitos grupos nos Estados Unidos e por toda Europa. Eu não quero encerrar em expressar minha gratidão a algumas pessoas que desde o início mostraram interesse e até confiança em nosso empreendimento. Primeiro temos, Arthur Ceppos, da Julian Press, que assumiu o risco de publicar em 1951, Gestalt Terapia: Excitamento e Crescimento da Personalidade Humana. Ele disse, na época, esse livro vai sair bem devagar no início, e em dez anos se tornará um clássico. Ele estava certo. Virou a nossa bíblia. Mas imediatamente algumas pessoas fora de Nova York se interessaram. Num curso intensivo de dez dias três pessoas de Cleveland apareceram, entre elas Erving Polster, quem se tornou um dos maiores expoentes da Gestalt Terapia. Eles começaram, em 1953, o Instituto de Gestalt de Cleveland, que se tornou num ativo e multifacetado instituto de Gestalt. Tem o Bill Groman, agora professor de psicologia in Richmond, Virginia, que treinou e supervisionou a maioria dos gestalt terapeutas de Washington, D.C – quem, no início dos anos cinquenta, voltou para a faculdade e aos anos de estudos acadêmicos para se tornar um Gestalt terapeuta. A primeira oportunidade de participar de um simpósio interdisciplinar foi oferecida por Sam e Karen McGruval. Incitado provavelmente por Leo Chafin e Ira Suldillano por seus relatos de casos em psicologia clínica no Kings County Hospital. Esse simpósio foi presidido pelo falecido Harry Bone. Eu contribuí com duas instâncias da Gestalt Terapia. Harry Bone escreveu uma discussão extraordinária, inteligente e imaginativa na qual ele me fez falar do ponto de vista da Gestalt de uma maneira muito mais pungente do que eu mesmo poderia ter conseguido na época. Eu gostaria que ele pudesse ter escrito meu discurso hoje. 9 A próxima oportunidade, dessa vez em escala nacional, se apresentou anos depois, em 1959, quando eu fui convidada pela Academia de Psicoterapeutas para estar numa painel com Carl Rogers, Carl Whittaker, Drichos e Julie Nieds na sua conferencia anual. Desde que me tornei membra da A.A.P1, eu fiz workshops em todos os workshops de verão por mais de dez anos. Foi pelo contato pessoal e as amizades que se desenvolveram, assim como através do trabalho do Fritz em Columbus, Miami, e mais tarde na costa oeste, que a Gestalt Terapia se tornou conhecida com um grande método terapeutico e que um número de pacientes e alunos era encaminhados a nós por todo Estados Unidos. Eu tenho o prazer de cumprimentar alguns membros da A.A.P aqui nessa noite – alguns dos quais se tornaram membros do nosso Instituto ou começaram institutos em Atlanta e em Washington. Assim como outros terapeutas de longa data e conhecidos, vindos de orientações muito diferentes, juntaram-se ao Instituto: Betsy Mintz, Ruth Cohn, quem me enviou uma longa carta e manda seus melhores votos e parabéns ao Instituto e a todos os membros, Leon Menaker e Ruth Ronall, Alan Shwartz, e outros. Finalmente quero agradecer todos os companheiros e membros que através dos anos ministraram workshops e seminários: Isadore From, Richard Kitzler, Pat Kelly, Magda Denes, o falecido Buck Eastman, Paul Oliver, Daniel Rosenblatt, Marilyn Rosanes, David Altfeld, Karen Humphrey, Elaine Rapp, Theo Skolnik e muitos outros. E por último mas não menos, eu agradeço a todos os colegas de trabalho que, nos últimos anos, me aliviaram de todos os deveres e tarefas que por muitos anos eu assumi. Em particular os sucessivos vice-presidentes: Isadore From, Daniel Rosenblatt, Richard Kitzler e Jean Greggs. Eu agradeço as pessoas que cuidaram das finanças e e outros serviços demorados: Marilyn Rosanes, Doug Davidove, Art Bartunek. Todos os membros que se revesaram respondendo questionamentos, entrevistando e indicando potenciais pacientes e alunos, e todos os membros e associados que estão ou estiveram, no conelho executivo e todos vocês que são envolvidos em atividades do Instituto e dão tanto suporte em seu desenvolvimento contínuo. E agora eu desejo a todos vocês, todos nós, uma noite muito feliz. Divirtam-se e uns aos outros2 . Obrigada! 1 A.A.P – Academia Americana de Psicoterapeutas 2 No inglês: Enjoy yourselves and each other – que numa tradução literal seria : Aproveitem a si mesmos e aos outros. E que como expressão idiomática, enjoy yourselves quer dizer: Divirtam-se! Ela, que gosta de jogos de palavras, complementa a expressão acrescentando “each other” incluindo o a relação com os demais como parte da experiência. 10 Essa fala foi escrita por Laura Perls que a leu no 25º Jantar de Aniversário do Instituto de Gestalt Terapia de Nova York. Foi publicada inicialmente na revista de Gestalt, número 2, volume XIII (outono, 1990). Como citar: PERLS, Laura. Uma conversa de aniversário. In: PERLS, Laura. Living at the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press, 1992. 25-33 p. Título original: An Anniversary Talk. 11 Como Educar Crianças para a Paz 12 Como Educar Crianças para a Paz Confrontado com a pergunta: “Como podemos educar as crianças para a paz?” o psicanalista1 se encontra em uma posição difícil. Os psicanalistas olham para os seres humanos e seu comportamento não moralmente, mas psicologicamente. Tentamos ver as coisas como são, não como deveriam ser. E assim, antes que possamos sugerir algo sobre como treinar crianças para a paz, primeiro temos que declarar as condições e possibilidades que essa tarefa apresenta. Talvez também tenhamos de destruir alguns delírios, dos quais muitas pessoas sofrem porque colocam seus próprios desejos antes dos fatos. Desejo chamar a sua atenção em particular para o fato de que a exigência por paz se opõe estritamente a um dos instintos mais vitais de cada ser vivo, a saber, a agressão. Por “agressão”, a maioria das pessoas entende o desejo de atacar, destruir e matar. Portanto, eles a condenam de todo o coração, e a tendência geral em nossa civilização por muitos séculos, é para a supressão, mais ou menos completa, desse instinto aparentemente mais perigoso de todos. Como todos devemos saber, a criança pequena é um pouco selvagem, um animal indomado, cujo comportamento é dirigido principalmente pelo princípio do prazer e com pouca atenção às exigências da realidade. As etapas pelas quais a criança aprende as demandas da realidade variam em diferentes lares. Normalmente, a família média reage da seguinte maneira: Cada sinal evidente de agressão na criança (choro, chute, mordida, quebra de coisas, etc.) é recebido com desaprovação pelos adultos. A mesma desaprovação é dirigida à impaciência e ao mau humor da criança. Suas explosões de temperamento frequentemente resultam em punições severas. O cuidador responsável tenta realizar seu ideal de um bom cidadão, que ele geralmente não consegue realizar por si mesmo - em seus filhos. A criança é instruída a ser bem-humorada, obediente e respeitosa. Este objetivo é geralmentealcançado apelando-se para o medo da criança de problemas e punição ou para seu desejo de ser amado. Pode-se esperar que as pessoas que foram treinadas desde o início de suas vidas para ter consideração por seus vizinhos, respeitar a propriedade, obedecer à autoridade, tenham o melhor treinamento possível para a paz. Mas se olharmos hoje para os países onde por centenas de gerações as pessoas foram educadas dessa forma, devemos admitir que os resultados são bastante decepcionantes. Para onde quer que olhemos, 1 Quando o artigo foi escrito, ela ainda se considerava psicanalista e o livro ego, fome e agressão ainda não havia sido publicado. Importante perceber como fundamentos apresentados no livro que foi publicado somente em 1942, estavam presentes aqui. 13 vemos pessoas se engajando ou se preparando para a guerra, jovens entusiasmados em ir para a guerra e filósofos procurando encontrar justificativas para provar a necessidade das guerras - tudo isso apesar dos ideais religiosos e humanitários. Como podemos entender isso? Primeiro, para descobrir, temos que examinar a concepção comum de “agressão”. Esta concepção deriva principalmente dos efeitos que a agressão tem nas pessoas a ela expostas. A agressão da criança pequena causa muitos transtornos e aborrecimentos aos adultos. Portanto, a maioria das pessoas considera isso indesejável e tenta interromper a vontade da criança. Mas eles correm o risco não só de suprimir a sua chamada “travessura”, seu choro e gritar, morder, chutar e arranhar, rasgar e quebrar coisas, mas também suprimir seus questionamentos e sua curiosidade. Claro, a curiosidade da criança e sua agressividade física são muito desgastantes para os adultos. A satisfação delas exige muito tempo e paciência, e podem ser muito constrangedoras. Elas exigem até o reconhecimento da própria ignorância, o que muitos pais consideram um sério dano à sua autoridade. Mas, por outro lado, os questionamentos e a curiosidade são condições indispensáveis para o desenvolvimento intelectual da criança, sua capacidade de aprender e estudar, de compreender as pessoas e as circunstâncias. E a supressão completa da agressividade causa - se não estupidez, então certamente inibição intelectual séria - e leva à impossibilidade de pensamento crítico. Dentro da família, isso pode aparecer como um benefício. A exigência de respeito dos pais implica que a criança não questione os adultos, que se faça como mandam, que se acredite no que se ensina, em geral que se deve aceitar e não criticar. A psicóloga conclui metaforicamente que muita coisa é forçada garganta abaixo da criança, sem permissão para morder, mastigar ou digerir. Na verdade, essa não é apenas uma metáfora conveniente, mas a possibilidade de morder, mastigar, digerir e assimilar alimentos físicos (e, por outro lado, o poder de pensar, de criticar, de compreender, o que representa o meio de assimilar o alimento intelectual) são apenas diferenciações do mesmo instinto agressivo. Nossa experiência psicanalítica mostra que a supressão de um lado afeta muito seriamente o outro lado e vice-versa. Prefiro não entrar em uma longa discussão técnica do problema. Se você compreender o papel importante que o instinto agressivo desempenha no desenvolvimento de uma criança, certamente reconhecerá que as consequências de nossa educação2 tradicional costumam ser desastrosas. Pessoas que foram criadas para a obediência cega, que não conseguem pensar e 2 Ela não se refere aqui somente a educação escolar. O termo utilizado é upbringing – que está relacionado a educação em termos mais abrangentes, como criação e cuidado familiar também. 14 agir independentemente, usando seu próprio discernimento e vontade - essas pessoas só podem fazer o que lhes é mandado, e tornam-se presas fáceis para qualquer um que assuma a liderança. Essas pessoas acreditarão e aceitarão qualquer coisa que lhes for impressa com pressão suficiente, seja com promessas ou pela força. Como não treinaram sua capacidade crítica, têm poucas possibilidades de compreender as circunstâncias sociais e políticas ou de agir de acordo com seu discernimento e julgamento. Eles são facilmente dominados por uma demonstração de força aparente e sucumbem à propaganda. Desta forma, podemos explicar o fato de que o fascismo poderia ganhar um número tão grande de seguidores em tão pouco tempo, não só nos países onde se originou, mas em todo o mundo, em países que diferem muito em seu desenvolvimento histórico, seu sistema político, seu caráter nacional ou sua formação social e cultural. É claro que a imaturidade intelectual não é causada apenas pela supressão da agressão infantil precoce. De igual importância para o desenvolvimento do fascismo é o fato de que a repressão da agressão individual geralmente acarreta um aumento da agressão universal. Em todos os países altamente civilizados, podemos ver onde o indivíduo médio não desenvolveu suas capacidades agressivas em qualquer extensão considerável, mas é, pelo contrário, bastante contido, bem-comportado, até mesmo com medo de complicações, que a comunidade desenvolveu seus meios de agressão em extremos absolutamente aterrorizantes. O aperfeiçoamento da máquina de guerra (canhões, tanques, aeronaves, bombas, gás venenoso, treinamento militar e eficiência estratégica) parece estar em proporção direta com a supressão da agressividade individual, como se a agressão reprimida de todos os indivíduos tivesse se acumulado em algo além do indivíduo e simplesmente teve que forçar sua saída. Aqui estamos bem próximos da verdade. Na verdade, um instinto não pode ser reprimido, apenas suas expressões. As energias agressivas permanecem as mesmas e precisam encontrar uma saída. Em alguns casos, elas podem ser investidas na resistência contra a agressão e construir uma consciência forte, como meio de direcionar essas energias. Frequentemente, as energias agressivas reprimidas manifestam-se em dois fenômenos muito indesejáveis: neurose e delinquência. E, de certo modo, esses dois são os pilares do militarismo e do fascismo. O fato de um governo, um general ou um “Führer” assumir a responsabilidade dos ombros do indivíduo tem o efeito como o de tirar a tampa de uma chaleira com água fervente. Como o vapor comprimido, 15 a agressão há muito reprimida e acumulada simplesmente dispara. Mas por ter sido totalmente reprimida, não pode ser transformada de forma alguma, ainda é a agressividade original da criança pequena: pouco inteligente, cruel, bestial - agora apenas executada com a força física e os meios técnicos de um adulto. A permissão na guerra ou em circunstâncias semelhantes para cometer atos que, em circunstâncias normais, trariam a condenação social e jurídica do indivíduo, na verdade significa uma ruína, uma aniquilação das inibições infantis iniciais da agressão. E a pessoa ou o sistema que dá essa permissão, toma o lugar das primeiras autoridades infantis: pai, mãe, professores, etc. Mas se essas autoridades impuseram inibições e, portanto, talvez encontraram um certo ressentimento e medo, a autoridade que desfaz essas inibições é aceita sem reservas; ele é recebido como um libertador e um salvador; ele é o bom pai, e a fixação que é criada pode ser igualmente forte ou até mais forte do que as primeiras fixações infantis. Pintei um quadro bastante sombrio. Receio que não tenha sido exatamente o que você esperava e que eu possa até ter criado a impressão de que “saí do trilho” e divaguei. Para voltar ao nosso tema: Como podemos treinar nossos filhos para a paz? Apesar ou talvez com os fatos que apresentei. Nosso primeiro passo deve ser revisar nossa concepção de “agressão”. A agressão não é apenas uma energia destrutiva, mas a força que está por trás de todas as nossas atividades, sem a qual nada poderíamos fazer. A agressão não só nos faz atacar, mas também nos faz enfrentar ascoisas: não só destrói, mas também edifica: não só nos faz roubar e furtar, mas também está por trás de nossos esforços para agarrar e dominar o que temos por direito. É uma falsa questão reprimir ou não a agressão. Visto que a agressão é um ingrediente indispensável do fazer humano, temos que usá-la para transformá-la em um instrumento valioso para a gestão de nossas vidas. Isso implica que, em particular, não se deve impedir os primeiros sinais de agressão na criança pequena, mas sim encorajá-la e dar-lhe o apoio adequado. No início, isso significa principalmente comida suficiente, pois a falta geralmente cria avidez. Assim que os dentes da criança começam a crescer, ela quer morder. Agora ele precisa de comida sólida e brinquedos. Do contrário, ele morderá tudo o que puder, até mesmo o dedo ou o peito da mãe: mas se ele fizer isso, não deveria ser considerado um crime. Mais tarde, os brinquedos devem ser algo com que a criança possa trabalhar: blocos, areia, argila, papel, giz de cera, etc. Devem estimular as habilidades criativas e construtivas da criança. Brinquedos que só podem ser estragados ou destruídos, sem fornecer material para novas atividades, são de uso limitado. 16 Quando os pais têm uma atitude pacifista, provavelmente não darão aos filhos brinquedos militares: armas, soldados, etc. Mas mesmo que o façam, não acho que a criança sofrerá por toda a vida por causa de suas influências, se em geral ele aprendeu a pensar e agir de forma independente. E assim, volto ao ponto que quero enfatizar mais fortemente: as mães - e os pais - devem encorajar as atividades mentais da criança desde o início. As crianças deveriam ter permissão para descobrir coisas, mesmo que isso ocasionalmente significasse quebrar uma boneca e descobrir o que está dentro. As perguntas das crianças devem ser respondidas com a maior honestidade possível. Embora a criança saiba pouco, sua curiosidade e curiosidade são os principais meios pelos quais ela pode adquirir conhecimento e experiência. Se lhe disserem: “Não seja bobo!”, se ela é levada a sentir que é muito pequena e muito jovem para entender as coisas e que só atrapalha os grandes quando eles trabalham ou se divertem, não será capaz de se livrar desse sentimento de inferioridade quando ela própria for adulto. A criança está preocupada com o presente e mantém suas primeiras reações ao ambiente como um padrão para sua vida futura. Ela então considerará suas próprias opiniões e realizações como pequenas e sem importância em comparação com as de outras pessoas, talvez nem tente fazer nada por conta própria ou pensar seus próprios pensamentos, mas apenas fará e acreditará no que lhe é contado. E isso significa que, como ser social e político, ele terá uma qualidade muito duvidosa, será pouco inteligente e pouco confiável. Mas a criança que não reprimiu sua agressão, que aprendeu a usá- la, a administrá-la, mais tarde poderá ter um papel inteligente na vida social e política. “How to Educate Children for Peace” foi escrito em alemão e publicado em Joanesburgo, África do Sul, em 1939. Foi editado para publicação por Joe Wysong. A primeira publição em inglês está no Living at Boundary publicado em 1994. Como citar: PERLS, Laura. Como Educar Crianças para paz. In: PERLS, Laura. Living at the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press, 1992. 37-44 p. Título original: How to educate children for peace. 17 Notas sobre a Psicologia de dar e receber 18 Notas sobre a psicologia de dar e receber “É dar e receber1”. Essa mais oportuna frase do inglês (nenhuma outra língua tem igual) indica a própria essência de relacionamentos. Dar e receber não são meramente verbos transitivos no sentido estrito da gramática. Eles sugerem como objetos não apenas o que é dado ou recebido, mas o ato de dar e o ato de receber, os dois tendo um ao outro como objeto. Entre eles abrangem todo o âmbito do processo social, cujo objetivo é o equilíbrio do campo social, enquanto o crescimento continua. A consciência alerta, contínua e sempre mutante do positivo e do negativo na situação social que chamamos de Justiça. A justiça é cega; pois o olho - de acordo com a formação da figura-fundo - é o órgão de preferência. O sentido cinestésico é o órgão do equilíbrio, então a Justiça é retratada segurando uma balança, e para equilibrar o, “é dar e receber”. Dar e Receber espontâneo Um PRESENTE é algo que simplesmente “é”, entregue, oferecido. A palavra alemã para presente é “ Geschenk”. Schenken significa “derramar”; “der Schenke” é aquele que derrama2 o vinho à mesa (Músicas de Hafiz, West-Oestl, Divan, etc); “die Schenke” ou ” der Ausschank” significa “ a pousada”. Geschenk é assim algo derramado, transbordando, obtido sem esforço. Ele vem de abundância (Cornucópia, Mãe Terra, Terra de Leite e Mel, etc). Um presente não é um sacrifício, mas algo que se dá com facilidade e sem expectativas do lado do doador. Também não é uma surpresa ou recompensa, mas o que é naturalmente experado e procurado em uma comunidade estabelecida, como o bebê espera pelo leite da mãe. Pois para o bebê tudo é ( ou deveria ser) Geschenk, a realização natural e fácil do desejo natural. O bebê não é (e não precisa ser) grato. Gratidão é a resposta ao presente inesperado, ao benefício não merecido, resumidamente, a um ato de graça. Alguém se sente grato pela liberação dos sentimentos de culpa, e pelo reestabelecimento do sentimento de pertecimento. Alguém não sente ou expressa gratidão especial pelo que está chegando a ele no curso natural dos eventos, tal como a situação onde é tão 1 Apesar de esse ser o equivalente da expressão em inglês, a tradução ao pé da letra sugere algo como: Dar e tomar, com algo que se toma de volta. No popular, algo como “toma lá, da cá!” Talvez Laura tenha se precipitado em dizer que não há expressão igual em outra língua. 2 No sentindo de servir o vinho de maneira generosa. 19 imperioso para mãe dar como é para a criança receber alimento. O presente restaura a integridade do doador assim com a de quem recebe. A livre correspondência entre abundância e necessidade garantem o equilibrio do campo social. Natal à moda antiga O significado oral original do presente é muito obviamente expresso nos costumes europeus do Natal. Papai Noel chega com um grande saco cheio de nozes, frutas e doces que ele esvazia no meio da sala, e todas as crianças pegam o quanto podem segurar. Na Alemanha, a piéce de resistance3 de cada pilha individual de presentes de Natal é um prato de biscoitos tradicionais de Natal, nozes, passas, frutas, doces, etc. Antes da fabricação industrial de decorações de Natal, as principais decorações da árvore de Natal, além das velas, eram comestíveis. A árvore, cravejada de luzes e carregada de comida no meio do inverno, é uma manifestação feliz do senso de abundância e justiça do Homem, simbolizando o esforço para compensar a escuridão e a esterilidade da natureza. Presentes eram dados principalmente a crianças e outros dependentes, aos pobres, etc. O grande evento do dia de Natal era a grande refeição, alimentar os servos, empregados, órfãos, indigentes, etc. Adultos na mesma categoria econômica e social não davam presentes uns aos outros, pois isso significaria impor e incorrer em obrigações, o que seria contrário ao verdadeiro espírito do Schenken. E certamente, não se esperava que nenhum dependente fizesse qualquer despesa por um presente a alguém em melhor situação que ele mesmo, ou seja, fazer um sacrifício. O necessitado tinha um direito natural ao presente, sem obrigação, sem “merecimento”, etc. A mesma atitude é refletida no costume de dar presentes de aniversário. Pelo seu aniversário você ganha algo não porque você é necessitado, muito menos “merecedor”, mas simplesmente porque você “é”. Com o reconhecimento de sua existência comoser humano, sua potencial necessidade é tida como certa. O mundo é um presente para toda criança humana; as fadas boas e más ou os Três Reis Magos estão presentes em todo nascimento. Adultos, que por todo ano privam as crianças dos seus direitos de nascença, expiam a culpa dando presentes de Natal e aniversário. 3 Pièce de résistance é uma expressão francesa, também chamada “plat de résistance” na França, que em tradução livre para o português significa um “pedaço de resistência”, em referência à parte mais significativa ou valorizada de algo. FONTE: Wikipédia 20 Novo estilo de Natal Expiação não é um ato de justiça; não se baseia na awareness aguda e responsável da necessidade real. Deriva do vago senso de obrigação que, na complicada estrutura de nossa sociedade, está substituindo cada vez mais a awareness espontânea e discriminadora do relacionamento. Atualmente os presentes de Natal ou aniversário compensam não tanto a necessidade de quem recebe, mas a culpa do doador. Assim, ele não reestabelece o equilíbrio no campo social, mas cria um desequilíbrio adicional através de frustração do lado quem recebe e ressentimento do lado do doador, quem, para aliviar seus sentimentos de culpa e criar um semblante de equilíbrio social, precisa investir o presente de natal com um significado muito maior que seu valor real. Se torna um agente de propaganda que tem que convencer o recebedor que ele realmente precisa e quer o que está recebendo. O mínimo possível é gasto em presentes que são feitos para parecer que valem um milhão. “ Boa vontade aos Homens” torna-se algo impresso cada vez menor em cartões de natal cada vez mais artísticos e embalados, em quantidades mesquinhas e de qualidade inferior, em embalagens cada vez mais engenhosas. O senso de obrigação é a vaga aceitação do envolvimento social sem a awareness aguda que faria do cumprimento da obrigação um ato limitado e socialmente válido. O cumprimento da obrigação não libera o doador e receptor a uma relação mais balanceada, mas cria um novo vínculo, como o nome indica, de obrigação mútua ilimitada. Portanto, introduz o circulo vicioso completo de competição e suborno, sacrifício fútil, frustração, ressentimento e culpa. A farsa anual de natal deixa todos exaustos física, emocional e financeiramente; em Janeiro estamos doentes, mesquinhos e falidos. De símbolo do amor e da justiça do homem, o Natal degenerou-se em uma algazarra, cuja própria característica é desequilibrar o processo social. Como em nossa civilização urbanizada e industrializada, tornou-se cada vez mais difícil e, de fato, impossível estar plenamente ciente da situação social e do lugar de cada um nela, muitas atitudes sociais anteriormente eficazes (medidas para restaurar o equilíbrio no campo social) tornaram-se distorcidas e inválidas. 21 Sacrifício Criativo e Prejudicial Fazer um SACRIFÍCIO originalmente implicava abrir mão de algo de menor valor por algo de maior valor. Ele quebra a inteireza da integridade pessoal para atingir integridade num nível suprapessoal. Como a palavra “sacrifício” indica, ela tem um significado principalmente religioso (ou social, o que é originalmente o mesmo). Significa fazer alguém inteiro através da comunhão com o Divino; abrindo mão dos prazeres na terra pela vida futura; sacrificar a sexualidade pelo amor a Cristo ou a vida privada pelo bem da comunidade. O sacrifício colocaria uma enorme responsabilidade no receptor, se não fosse no contexto religioso ou social, o sacrificador o faz responsável (através de oração e meditação e atividades sociais), entao seu sacrificio não será em vão. Ele não precisa sobrecarregar Deus ou a sociedade com sentimentos de culpa por sua falta de sucesso, pois por seu próprio sacrifício ele é afastado de seus próprios sentimentos de culpa. Assim, o sacrifício, por maior que seja, nunca equivale a uma privação real, mas a uma reestruturação intrapessoal da personalidade, longe de linhas mais pessoais e ao longo de linhas mais impessoais. Nas relações interpessoais, por outro lado, o sacrifício equivale praticamente a um suborno. Um amor forte ou relações familiares podem ser um caso boderline ( o contexto sexual, também, é impessoal), mas qualquer contato interpessoal tende a colocar toda responsabilidade do sacrificio de algo menor por algo maior no receptor. O sacrificador espera que o receptor cresça em seu sacrifício, por exemplo, mostre e aprecie seu ganho ( do receptor), o que por si só faria o sacrifício valea pena. O sacrifício impessoal tenta extrair do receptor algo (amor, afeto, reconhecimento, gratidão, etc.) que de outra forma poderia não acontecer. Falta auto estima ao sacrificador e ele tenta forçar isso do receptor, por exemplo, ele aumenta o que quer que ele esteja dando ou fazendo, ele “ esfrega na cara”, para que o receptor não esqueça disso em momento algum. Como ele projetou sua própria necessidade não realizada de totalidade no receptor, o sacrificador nunca pode fazer o suficiente e nunca pode obter o suficiente. Ele continuamente tenta escapar de seus próprios sentimentos de culpa, jogando-os no receptor. Enquanto o sacrificio supra pessoal genuíno abre mão de algo de valor pessoal definitivamente apreciado pela união com algo maior, o sacrifício interpessoal compra apreço pessoal e, assim, compensa a falta de auto-estima. O desapontamento é 22 inevitável, pois quanto mais do que é dado, mais é tido como garantido pelo receptor, de modo que cada vez menos a apreciação vem, enquanto o sacrificador fica progressivamente mais e mais empobrecido e desintegrado. Enquanto o sacríficio interpessoal é geralmente feito por pessoas imaturas e inseguras, o sacrifício genuíno ( supra pessoal) é um ato de maturidade e insight. O Buda, abre mão de uma vida de prazer e dissipação para o caminho da pobreza e concentração aos quarenta anos de idade. Cristo vai à Cruz aos trinta e três. Abrãao se prepara para sacrificar Isaque, quem ele gerou na sua velhice, e somente no momento final ele é abençado pela percepção de que seu próprio sacrifício pessoal do seu maior tesouro não é nada comparado com a promessa de gerações futuras após gerações vivendo aos olhos do Senhor. Renunciar ao sacrifício, e com ele a própria integração intrapessoal imediata, é talvez o maior sacrifício - tão grande, na verdade, que Abraão em sua senilidade (ou infantilidade) não é totalmente capaz de realizá-lo. O sacrifício do carneiro no lugar do sacrifício original novamente equivale a um suborno. É um dispositivo fictício infantil, um substituto que permite exteriorizar o sentimento de culpa (a evidência da falta de integração) e, assim, prevenir com eficácia qualquer reorganização intrapessoal ou intergrupal. Afinal, a diferença entre o bode expiatório e o bezerro de ouro não é tão grande! Suborno e Chantagem O SUBORNO é um pagamento a priori por uma traição ainda não cometida. Para ser bem-sucedido, o suborno deve ser atrativo o suficiente, por exemplo, vantagem material ou social suficiente para o receptor, para tentá-lo a fazer uma mudança na lealdade moral. Precisa ser forte para quebrar um compromisso prévio e para superar os sentimentos de culpa associados a tal ruptura, formando um vínculo de lealdade mais promissor. Somente os insatisfeitos e frustrados estão abertos ao suborno; somente os gananciosos e insaciáveis estão propensos a pagar subornos. É, na verdade, o mesmo tipo de pessoa que, dependendo das circunstancias reais, paga ou recebe suborno. É o parasita infantil e inseguro, que não se sente convencido da legitimidade de suas 23 próprias necessidades e demandas e que não tem confiança em sua capacidade de impor consideração e respeito. Tanto o que suborna quanto aquele que recebe o suborno estão abertos à CHANTAGEM e são chantageadores em potencial. Eles têm que cuidar bem uns dos outros; a generosidade dosuborno nunca deve diminuir; a subserviência do subornado deve ser perpetuamente assegurada. Como o subornador e o subornado se sentem igualmente culpados, eles se sentem igualmente ameaçados pela exposição. E a chantagem nada mais é do que extorsão (de dinheiro ou outras vantagens) pela ameaça de exposição. Claro que suborno não é uma condição indispensável para a chantagem. De fato, qualquer conhecimento sobre qualquer coisa que poderia pontencialmente descredibilizar alguém aos olhos de outras pessoas pode ser usado com o propósito de extorsão. Como em uma sociedade totalitária, a desintegração das relações humanas individuais se torna objetivo político, o suborno e a chantagem se tornam os principais dispositivos políticos. Mas aprendemos, com a experiência de nossa própria época, que nenhuma sociedade equilibrada pode ser estabelecida por métodos que podem aumentar os sentimentos de culpa e produzir o desprezo mútuo de seus membros. O grau de indiferença e atrevimento necessário para se livrar da depressão subsequente põe em movimento todo o processo paranóico de dessensibilização e projeção, suspeita, sentir-se atacado e perseguido, procurar bodes expiatórios, ataque e destruição e, finalmente, autodestruição. Pagamento e Recompensa Deve-se esperar que a maneira mais bem-sucedida de equilibrar o processo social seja uma troca exata de valores. Mas, infelizmente, “olho por olho e dente por dente” aplica-se apenas no campo da retribuição e punição. Desde que foi refutado pela primeira vez pela Sabedoria de Salomão, muita tinta já fluiu para provar a invalidade desse princípio primitivo, que pressupoe um senso de valores não desenvolvido e indiferenciado, por exemplo, sem awareness das necessidades e possibilidades na situação atual. Vamos nos limitar aqui a uma discussão de dois outros aspectos da troca de 24 valor, a saber, PAGAMENTO e RECOMPENSA. O pagamento é feito como um equivalente monetário ou material para mercadorias ou para trabalho. É dado em reconhecimento de valor, que por sua vez é definido por circunstâncias econômicas temporárias, dependendo da oferta e da demanda Recompensa, por outro lado, é uma expressão de apreciação de mérito. Qualquer ação meritória permanece por si só, “por seu próprio mérito”. Não há padrões comparáveis de valor que pudessem ser adequadamente expressos em dinheiro. Assim, uma recompensa pode consistir em uma quantia em dinheiro (que então é decidida arbitrariamente), mas também pode consistir em uma medalha, um diploma ou um título, ou o reconhecimento e a gratidão de um próximo, ou simplesmente na consciência de uma coisa bem feita. Promoção no serviço militar ou civil é em parte uma recompensa, uma apreciação de mérito. Mas quando é esperada com regularidade e conectada com vantagens materiais contínuas, é pagamento pelo serviço. O médico americano ou europeu é pago por serviços prestados em uma escala geralmente aceita, tanto por visita ou operação ou sessão psicoterapêutica. O médico chinês é pago quando sua cura é bem-sucedida, ou seja, ele é recompensado por um esforço único. Em geral pode-se dizer que quanto mais meritório o esforço, ou seja, quanto mais contribui para um equilíbrio social genuíno, menos ele é recompensável em dinheiro. Então, a recompensa policial, que é prometida e dada por informação, é simplesmente pagamento por traição. , que cai mais na categoria de “suborno” que de “recompensa”. Por outro lado, “a virtude é sua própria recompensa”. Os serviços e sacrifícios mais incessantes e altruístas permanecem não apenas não pagos e não recompensados, mas também são tidos como garantidos. Apenas o trabalho ou objeto limitado pode ser pago com uma quantia limitada de dinheiro; apenas o serviço ou esforço limitado pode ser recompensado com promoção, título ou citação. A devoção ilimitada de um familiar ou a dedicação de uma vida inteira a uma causa não pode ser paga ou recompensada; pode apenas ser aceita e não precisa nem ser reconhecida. Sua recompensa está no próprio desempenho, no sentimento de restaurar o equilíbrio social em um processo contínuo de mudança. 25 “Notas sobre a Psicologia de dar e receber “ apareceu originalmente no Volume IX (1953) da Complex, uma revista edutada pelo amigo do Dr. Perls e profissional associado, Paul Goodman. Como citar: PERLS, Laura. Notas sobrea Psicologia de dar e receber. In: PERLS, Laura. Living at the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press, 1992. 71-81 p. Título original: Notes on the Psychology of Give and Take. 26 A Abordagem de Um Gestalt Terapeuta 27 A Abordagem de Um Gestalt Terapeuta Confrontada com a lista formidável de perguntas que o Comitê do Programa criou, sou uma oradora muito relutante. Se este grande inquisidor fosse um paciente vindo para sua primeira sessão comigo, armado com esse tipo de pergunta “o que você faz, quando ...?” Eu não tentaria responder a nenhuma delas. Em vez disso, posso contar uma história a ele. Dois mendigos, um cego e um tolo, estão viajando juntos. Ao fim de um dia longo e quente, chegam a uma casa de fazenda e o tolo diz: “Vamos entrar e pedir um copo de leite.” O cego pergunta: “O que é leite?” “Leite? O leite é branco.” “O que é branco?” “Branco? Branco é um cisne.” “Mas o que é um cisne?” “Um cisne é um grande pássaro com pescoço torto.” “E o que é ‘dobrado’?” O tolo pega o braço do cego, estica-o e diz: “Está vendo? Isso é reto. E isso”, ele dobra o braço do outro no pulso e no cotovelo: “isso é ‘dobrado’.” “Aaahh”, diz o cego, “agora eu sei o que é leite!” Portanto, vamos mendigar juntos e tentar responder à primeira pergunta: O que fazer com o paciente relutante? Todos os pacientes relutam em uma coisa ou outra, em algum momento. Quase todos os pacientes são mal motivados no sentido de que vêm, ou são obrigados a vir, pelos motivos errados. Desconfio do paciente que demonstra grande perspicácia e carrega seu sofrimento na ponta da língua. E desconfio do paciente ansioso e entusiasticamente cooperativo que concorda e confirma, pega o jargão em um instante e sonha sob encomenda. Ele reluta em experimentar e expressar sua diferença de opinião, suas dúvidas e objeções. Mas, de modo geral, não estou particularmente interessada nas questões de motivação e encaminhamento. Eu recebo o paciente como ele se apresenta no momento de sua sessão comigo, ele estava motivado o suficiente para vir para aquela consulta, e partimos daí, fazendo contato um com o outro estritamente com base em nossa consciência mútua no momento . Focar no que é e não no que não é ou no que deveria ser, geralmente dá ao paciente apoio suficiente para vir para a próxima sessão - não necessariamente uma motivação melhor para “fazer terapia”, mas a vontade de continuar o contato com o terapeuta. Fiz atendimentos domiciliares apenas em casos de acidentes imobilizantes e em dois casos de agorafobia. Depois de algumas semanas, os dois pacientes puderam vir 28 ao meu consultório. O paciente que esquece ou se recusa a pagar seus honorários dará indicações de sua relutância desde o início da terapia, não apenas em relação ao dinheiro, mas a tudo o que você possa pedir dele: pontualidade nas consultas, informações, expressão de opiniões e sentimentos, tentativa de experimento, avaliação de suas próprias atitudes e ações ou de outras pessoas. Ele pode ser relutante por muitos motivos: medo ou rancor, um senso confuso de valores, uma necessidade infantil de ser cuidado sem ter que fazer nada em troca.Esses são os problemas que, em última análise, devem ser enfrentados. Nesse ínterim, é claro, o paciente pode ser persuadido e estimulado a pagar com relutância, de uma forma ou de outra (você pode deixar claro que tudo o que você fizer por ele ou com ele não pode ser avaliado e compensado em dinheiro. O que o paciente paga é por seutempo e sua atenção durante esse tempo, Tudo o que acontece durante a sessão está a serviço das necessidades do paciente, mesmo aquelas de nossas demandas que no momento o deixam ansioso ou desconfortável. Por suas próprias necessidades o terapeuta pede apenas pelo pagamento regular). Essa explicação é geralmente aceita intelectualmente como justa, mas você descobrirá que a relutância do paciente se transforma em genuína disposição de pagar apenas quando ele desenvolve uma consciência de seu próprio valor. Só ele pode dar quem tem e é. Por outro lado, o paciente que paga de forma fácil e regular não é necessariamente o mais promissor. Ele pode obter alguma satisfação secreta com os sacrifícios de sua família por ele. Ele pode estar comprando você. Ele pode até ser o paciente que olha as vitrines que precisamente não “compra”, mas paga a taxa de admissão para uma consulta como para um desfile de moda, testa o tamanho do analista e repete a mesma façanha durante a próxima temporada de confusão ou depressão com outro terapeuta. Acho que minha consciência do “estilo” do paciente e o fato de mostrar a ele apenas o que imediatamente “se ajusta” a ele geralmente o faz “comprar”. Por fim, fico com o vitrinista, sobrecarregadoa não apenas com sua “relutância”, mas também com os problemas específicos decorrentes de suas tentativas anteriores de interrupções na terapia. Mas essa é outra história! A segunda pergunta: Você supõe que deseja inconscientemente que todos os seus pacientes melhorem? Eu não posso responder. Não sei o que faço inconscientemente. Pelo que sei, 29 quero que meus pacientes melhorem. Do contrário, tenho que buscar o que deixei de perceber ou de fazê-los perceber no relacionamento em curso. Para isso, devo fazer uso não apenas de suas expressões, comunicações e atitudes, mas também de minha chamada contratransferência. Não gosto de usar esse termo, que não faz sentido em nossa abordagem, pois se orienta pela consciência do momento presente real e não pela interpretação do passado. Nem sempre expresso verbalmente meus sentimentos e atitudes em relação ao paciente. Mas, no decorrer da terapia, o paciente aprende a tomar consciência de minhas reações e expressões tanto (e às vezes mais!) quanto eu tenho das dele, mesmo que não seja verbalizado. Compartilho verbalmente apenas o que estou ciente de que o capacitará a dar o próximo passo por conta própria - isso expandirá seu apoio para assumir um risco no contexto de seu mau funcionamento atual. Se me comunico demais, posso provocar uma reação terapêutica negativa: ansiedade intolerável, fuga, resistência, paralisia, dessensibilização, projeção. Descreverei alguns problemas e experiências de minha própria vida ou de outros casos, se espero que isso me dê suporte ao paciente para uma compreensão mais plena de sua própria posição e potencialidades - se isso o ajudar a dar o próximo passo. A terceira questão: o que fazer com o paciente que está “encenando”? Isso me parece mais criar um problema do que identificá-lo. Cada paciente, o tempo todo, está encenando de alguma forma, e chamamos isso de “atuação” principalmente quando é obviamente indesejável, inadequado, exagerado, superagressivo, pervertido, por exemplo, quando interrompe o desenvolvimento e os relacionamentos contínuos do paciente. Mas o paciente está ou pode estar “atuando” também quando se comporta muito corretamente - mantém uma postura catatônica - e frequentemente mesmo quando ele verbaliza de forma mais racional e articulada: e ele continuará a “atuar” enquanto tiver apoio insuficiente para um comportamento mais apropriado. Portanto, a tarefa da terapia não é interferir ou impedir a “atuação” do paciente, que para ele é, de toda forma, a única maneira possível de agir, mas construir um auto-suporte mais adequado para um comportamento que está mais continuamente se integrando e integrado. Esse processo demorado geralmente não é auxiliado pela imposição de todos 30 os tipos de restrições, limitações e ameaças, pelo menos não no que diz respeito ao comportamento do paciente fora da situação terapêutica. Dentro das situações de terapia, algumas restrições podem fazer parte de uma exploração experimental dos padrões e possibilidades comportamentais do paciente: mas é a reação do paciente que define aos limites de tolerância ao comportamento do terapeuta. Eu não sou punitiva. Não acho que a atitude: “é melhor você fazer o que estou te mandando, senão ...!” vai com um respeito genuíno pelo paciente, cujas resistências são o seu principal suporte. Puni-lo pelo que ele mais confia sempre provoca uma reação negativa: medo, rancor, ressentimento, vingança, todos os quais interrompem o processo contínuo de comunicação e compreensão. O terapeuta punitivo está “atuando” da pior maneira possível: e ele o faz pela mesma razão que o paciente que “atua”: porque ele não sabe mais o que fazer, porque ele mesmo não tem apoio suficiente para dar suporte onde é mais necessário. Quarta questão: Contato físico com o paciente? Vou responder muito brevemente. Eu uso qualquer tipo de contato físico se espero que facilite o próximo passo do paciente em sua consciência da situação real e do que ele está fazendo (ou não) nela e com ela. Não tenho regras especiais com relação a pacientes do sexo masculino ou feminino. Vou acender um cigarro, alimentar alguém com uma colher, arrumar o cabelo de uma menina, dar as mãos ou segurar um paciente no colo, se esse parecer ser o melhor meio de estabelecer a comunicação inexistente ou interrompida. Eu também toco pacientes ou deixo que eles me toquem em experimentos para aumentar a consciência corporal: para apontar tensões, descoordenação, ritmo de respiração, espasmos ou fluidez de movimento, etc. Parece haver grande divergência de opinião e muito de ansiedade quanto à admissibilidade do contato físico na terapia, como é indicado pela própria formulação das questões que estamos considerando aqui. Eles me parecem muito um apelo por salvo-conduto em território desconhecido, obviamente um absurdo. Se quisermos ajudar nossos pacientes a se realizarem mais plenamente como seres humanos, nós mesmos devemos ter a coragem de arriscar os perigos de ser humanos. Isso me leva diretamente à pergunta: o que você pensa sobre a natureza básica do homem e como isso afeta o processo terapêutico? Lamento que esta tenha sido colocada como a última questão, pois considero-a 31 a mais importante, à luz da qual todas as outras fazem sentido ou são irrelevantes. Acredito que não apenas todas as medidas terapêuticas, mas todos os pensamentos e atos são informados por nossa convicção básica do que torna o homem “humano”, mesmo que nunca expressemos manifestamente essa convicção e a consideremos tão óbvia que dificilmente estamos consciente dela.Falando estritamente por mim - a única maneira que uma gestalt terapeuta Gestalt pode dizer algo - estou profundamente convencida de que o problema básico da vida, não apenas da terapia, é: Como tornar a vida habitável para um ser cuja característica dominante é sua consciência de si mesmo como um indivíduo único, por um lado, de sua mortalidade, por outro. O primeiro dá- lhe uma sensação de importância avassaladora como o próprio centro do mundo, o outro um sentimento de frustração e vaidade, por ser menos que um grão de areia no Universo. Suspenso entre esses dois pólos, ele vibra num estado de inevitável tensão e ansiedade que, pelo menos para o homem ocidental moderno, parece inviável e deu origem a várias soluções neuróticas. Se a consciência e a expressão da singularidade e da individualidade são reprimidas, temos a uniformidade, o tédio e a falta de sentido da cultura de massa, na qual a consciência da própria morte se torna tão intolerável que deve ser alienada a qualquer preço, “divertindo-se “com futilidades acumuladas ou com excitaçõesartificiais (álcool, drogas, delinquência). Quando a singularidade e a individualidade são enfatizadas demais, temos um falso “humanismo” com o homem como a medida de todas as coisas, resultando em expectativas exageradas, frustração e decepção. Como uma formação reativa, encontramos ou um falso distanciamento, um laissez-faire sem esperança ou blasé, ou um falso compromisso, uma busca frenética de uma pseudo-criatividade, que é apenas uma brincadeira obsessiva com “hobbies” e “atividades culturais” , desde a pintura faça-você-mesmo das prateleiras da cozinha até “ver meu analista “e ir à igreja. A verdadeira criatividade, em minha experiência, está inextricavelmente ligada à consciência da mortalidade. Quanto mais nítida for essa consciência, maior será o desejo de trazer algo novo, de participar da criatividade infinitamente contínua da natureza. É isso que faz do sexo, amor: do rebanho, sociedade: do milho e da fruta, do pão e do vinho: e do som, da música. Isso é o que torna a vida habitável e - aliás - a terapia possível. Enquanto a orientação judaico-cristã era o esteio estrutural da sociedade e da personalidade, o homem ocidental poderia aceitar a identidade de viver e morrer sem questionar. No Oriente, o objetivo do Zen Budismo é precisamente essa compreensão da identidade de viver e morrer, de compromisso e desapego. Em nosso mundo 32 ocidental, o neurótico é o homem que não pode enfrentar sua própria morte e, portanto, não pode viver plenamente como um ser humano. Na Gestalt-terapia, com sua ênfase na consciência e no envolvimento imediatos, temos um método para desenvolver as funções de suporte necessárias para um ajuste criativo autocontinuado, que é a única maneira de enfrentar a experiência de morrer e, portanto, de viver. “A Abordagem de Um Gestalt Terapeuta“ foi apresentado na cidade de Nova York como um artigo na conferência anual de 1959 da Academia Americana de Psicoterapeutas. Foi publicado como “The Gestalt Approach”1 no Barron & Harper’s (Eds.) Annals of Psychotherapy em 1962 e foi revisado para a publicação Fagan & Sheperd’s (Eds.) Gestalt Therapy Now em 1970. Como citar: PERLS, Laura. Abordagem de uma Gestalt Terapeuta. In: PERLS, Laura. Living at the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press, 1992. 115-123 p. Título original: One Gestalt Therapists approach 1 Pode ser traduzido como: A abordagem Gestaltática 33 Notas sobre Ansiedade e Medo 34 Notas sobre Ansiedade e Medo Medo é da alteridade; de um objeto, uma pessoa, um evento reconhecível. Ele mobiliza maior atenção (orientação) para e manipulação da situação perigosa. O metabolismo aumenta: excitação, raiva, agressividade. Medo e coragem não são fenômenos mutuamente exclusivos, mas manifestações de uma e mesma experiência: contato com o perigo. A consciência intensificada e a produção excedente temporária de energia facilitam uma manipulação extraordinária de uma situação. Portanto, o feito “corajoso” não parece algo muito especial para o herói “modesto”. Em contraste, ansiedade surge em uma situação confluente, quando e onde a confluência é ameaçada. A ameaça permanece essencialmente vaga, como uma tendência em direção a uma ruptura- surgindo no próprio indivíduo ou em seu ambiente - não pode ser objetivamente reconhecida dentro de um estado de confluência. O estado de confluência é um sistema de equilíbrio organísmico que deve funcionar sem orientação específica e manipulação dirigida especificamente. Sempre que esse equilíbrio é alterado, há a ansiedade. Ansiedade é a única emoção infantil mais antiga. (Sua alternativa é indiferença, quando o equilíbrio da confluência está funcionando cem por cento). É um estado de irritação geral indiferenciada que não fornece orientação suficiente para um enfretamento bem sucedido da situação. Ansiedade como uma emoção predominantemente infantil pode ser manejada de forma adequada e superada na primeira infância apenas com meios puramente infantis. A irritação indiferenciada é descarregada em reações motoras indiferenciadas e não direcionadas: chorando, chutando, o que, por sua vez, é normalmente suficiente para promover algum tipo de atividade no ambiente que restaure o equilíbrio. Não acho que uma criança possa ficar paralisada pela ansiedade. E nenhum adulto em plena posse de funções de apoio e contato fica paralisado pelo medo. Paralisia é a inibição de uma manipulação inadequada em potencial combinada com uma orientação defeituosa ou inadequada. Nesse estado de semi-orientação, há uma vaga percepção “autoconsciente” da responsabilidade da atividade motora por quaisquer mudanças na situação. A primeira consciência é da quebra da confluência, 35 pela qual a própria atividade da pessoa, já reconhecida, deve ser responsável – enquanto a fronteira entre a sua própria atividade e a de qualquer outra pessoa ainda não foi estabelecida ou não está funcionando adequadamente (choque, drogas, exaustão, introjeção, projeção, etc). Então a paralisia aparece como um tipo de gesto mágico, uma tentativa de evitar ou ignorar o evento desastroso- a quebra da confluência- e os seus próprios sentimentos de culpa. O diagrama a seguir pode ilustrar mais claramente a coordenação das diferentes fases de orientação e manipulação com a reação emocional respectiva a uma ameaça de perturbação do equilíbrio. Se olharmos para o valor de sobrevivência dessas diferentes reações, podemos fazer as seguintes observações: A expressão da ansiedade, por exemplo, a demonstração de desamparo e atividade motora desorganizada evoca compaixão, simpatia do meio ambiente e, com isso, uma restauração do equilíbrio. É, portanto, pelo menos para o bebê, uma reação adequada. Seu valor para o adulto é mínimo, pois o que promove simpatia e assistência para a criança pequena pode provocar antipatia, ridicularização e rejeição para o adulto, principalmente se a ansiedade e desorganização se aplicarem apenas a determinados campos de experiência (fobia), enquanto que em outros ORIENTAÇÃO MANIPULAÇÃO RESPOSTA EMOCIONAL Sem orientação Indiferenciado, atividade motora não diferenciada Ansiedade, confluência Inadequada, meio orientado, não há confluência, ainda não há contato. "Inadequado, atividade motora meio direcionada: bloqueio motor Falta de jeito Paralisia Erros" "Vergonha Sentimento de culpa Constrangimento Pânico Medo" Completa, adequada, orientação; contato Atividade motora organizada específica Coragem 36 campos o paciente pode mostrar orientação e manipulação muito adequadas. O psicótico avançado pode ser um pouco melhor no que diz respeito a obter simpatia do ambiente, pois sua ansiedade pode ser tão óbvia e onipresente como a de um bebê. Mas enquanto as necessidades específicas não reconhecidas da criança pequena são comparativamente primitivas e podem ser mais ou menos fácil e especificamente presumidas por um ambiente experiente, as necessidades específicas não realizadas do psicótico adulto são muito mais complicadas não apenas por sua estrutura adulta mais diferenciada, mas por introjeções e projeções que dificilmente podem ser completamente aferidas, muito menos satisfeitas, mesmo pelo ambiente mais experiente e simpático, e assim sua ansiedade nunca é completamente amenizada. ”Notas sobre ansiedade e medo” foi originalmente preparada para apresentação no Instituto de Nova York em 1965. Aparece aqui em inglês pela primeira vez1. Como citar: PERLS, Laura. Notas sobre ansiedade e medo. In: PERLS, Laura. Living at the Boundary. Tradução Tássia Lobato Pinheiro. Gouldsboro: The Gestalt Journal Press, 1992. 125-128 p. Título original: Notes on Anxiety and Fear. 1 Nota ao final do texto publicado no livro “Living at the boundary”, publicado em 1992 37 Notas sobre Mitologia do Sofrimento e Sexo 38 Notas sobre Mitologia do Sofrimentoe Sexo I. Quando o “Elo Perdido” deixou a última árvore, a árvore do conhecimento, e andou sobre suas duas pernas - deixando para trás a floresta em chamas - Adão, tornando-se humano, cometeu este ato de pecado original. Expulso do Paraíso, ele e todos os seus parentes foram condenados a um trabalho vitalício e à morte final. O mito bíblico, aceito ao longo dos tempos como a verdadeira história do primeiro ser humano, deve representar uma simbolização adequada do Homem como ele se encontrava no início de seu desenvolvimento humano. Além disso, a persistência e a validade do mito foram garantidas pela experiência mais antiga de cada homem no início de sua vida individual. Expulso do paraíso intrauterino, todo homem tem que enfrentar as tribulações de sua própria existência separada e a contínua ameaça de sua inevitável morte pessoal. Durante os últimos séculos, os mitos bíblicos perderam parte de sua validade original. Sua aparente incongruência com os resultados da pesquisa científica levou ao seu abandono consciente pelos de mente mais racional. Mas os conceitos de “pecado original” ou “a maldição do trabalho e da morte” ainda permeiam a existência contemporânea, o primeiro embutido em um sentimento de culpa a priori que exige um esforço contínuo de justificação de nossa existência, o último na desesperança onipresente e a indiferença, que ocorreu com a expectativa racionalmente insustentável de uma vida compensadora no futuro. Essa desesperança me parece não - como comumente se pensa - um resultado, mas uma condição para as nossas atuais circunstâncias políticas e econômicas. A superindustrialização, a guerra e a bomba atômica fornecem uma tela de projeção conveniente para a interpretação errônea não realizada da condição humana como ela existe hoje. Nas culturas ocidentais, ainda não existe nenhum mito válido que pudesse substituir os antigos e obsoletos e fornecer a facilitação para o desenvolvimento humano e orientação para a conduta humana que a ciência e a tecnologia sozinhas não podem bancar. No entanto, um mito não pode ser inventado ad hoc1; surge da percepção inconsciente da situação humana e afeta as camadas inconscientes da personalidade, por exemplo, o comportamento automático, mesmo muito depois 1 Ad hoc é uma expressão latina cuja tradução literal é “para isto” ou “para esta finalidade”. É geralmente empregada sobretudo em contexto jurídico, também no sentido de “para um fim específico”. Fonte: Wikipédia 39 de seu conteúdo manifesto ter sido rejeitado conscientemente ou “cientificamente explicado”. Neste momento, podemos apenas tentar desautomatizar as atitudes tradicionais obsoletas, desmascarar e reinterpretar os antigos mitos, descobrir e integrar as forças e potencialidades que foram impedidas de serem realizadas não apenas no indivíduo neurótico, mas em toda a espécie humana. Devemos abrir caminho para o crescimento de um novo mito, que possa fortalecer e guiar a humanidade no período de seu desenvolvimento que está entrando agora, e dar à existência humana um sentido adequado a esse desenvolvimento. Os mitos bíblicos da queda de Adão e da Paixão de Cristo poderiam dar esse significado e orientação ao longo de muitos séculos, mas as teorias meramente científicas de Marx e Freud ou a filosofia de Nietzsche não poderiam, mesmo por algumas décadas. Na criação consciente de uma teoria científica ou política em um mito, o terreno científico logo se perde, e o que resta é a pseudociência e o pseudo-mito: as monstruosidades totalitárias do Hitlerismo e do Estalinismo. II. É costume dar à lenda de Adão e Eva uma interpretação moral-sexual; tentação e sedução, desobediência e punição são seus ingredientes principais. Mas para que uma lenda se torne um mito válido, o problema moral racional não é suficientemente forte. Para dar direção ao desenvolvimento humano nos próximos milênios, ele deve estar profundamente ancorado no biológico. A interpretação sexual da lenda parece estranhamente inadequada para explicar a validade do mito. Paradoxalmente, apresenta como pecaminoso, o que é a menor ruptura possível na confluência paradisíaca. Adão “conheceu” Eva, ele se tornou consciente da diferença dos sexos, da sua “alteridade”. Mas, no auge do orgasmo sexual, essa consciência da diferença é novamente perdida; o Homem se sente totalmente envolvido em um processo natural, não apenas parte disso, mas “isso”: “e eles serão uma só carne”. Cada ato, se levado a cabo, traz consigo a expiação do crime de reconhecimento e alienação. Assim, a interpretação sexual da lenda parece ser prematura e sua continuação como um mito um sintoma obsessivo. O que originalmente é sentido como um crime não é o aspecto sexual, mas a real consciência da diferença no sentido mais amplo. O mito da Queda representa não uma queda “moral” da graça “espiritual” (essas concepções exigiriam um desenvolvimento avançado na abstração que não podemos possivelmente esperar do Homem nos estágios iniciais de sua carreira humana), mas 40 sim uma queda real do macaco da árvore, caindo sobre as suas pernas traseiras e tendo que deixar o pegada protetora que segurava a árvore agora em chamas. Claro que podemos olhar para a teoria das “florestas em chamas” apenas como mais um mito. Isso não descreditaria, mas sim confirmaria sua validade, se não histórica, certamente fisiologicamente. Pois tudo o que é experimentado como diferente é excitante, “queima”. O Homem não faz mais parte da árvore, mas de repente se dá conta de si mesmo como diferente, à parte, sozinho. E no início de seu desenvolvimento, o Homem não experimenta essa alteridade como “levantar-se” ou como “independência “, mas como” cair “e” ser expulso “. Ele não está ciente de seu equipamento para discriminação e julgamento como sendo próprio, mas o projeta em Deus e no anjo com a Espada que guarda a porta fechada do Paraíso. Se, ao que parece, o próprio Homem ergueu a barreira para o Paraíso, podemos presumir que naquele momento deve ter sido, ou ter parecido ser para ele, no interesse de seu desenvolvimento humano. A interpretação meramente sexual está em apoio direto à barreira, já que o ato sexual desinibido é o retorno mais fácil e óbvio ao Paraíso (como todo ser humano saudável sabe). Para salvaguardar o seu desenvolvimento humano de orientação e manipulação (enfrentamento do outro, do diferente), o Homem teve que se livrar do sentimento de culpa que se origina no rompimento da confluência de um lado, na awareness incompleta e no tratamento incompleto da diferença do outro. Ele desviou seus sentimentos de culpa para o canal mais inócuo, o sexo, onde o “saber”, a consciência da diferença, é bastante não essencial e redundante (os animais copulam de maneira bastante eficaz sem “saber”), e onde o tratamento competente da situação não precisa ser “ consciente “, pois a essência do ato é uma reflexão espontânea orgástica. Esse deslocamento, ou melhor, restringir toda a questão da awareness à sua parte mais insignificante tem as consequências de mais longo alcance. Por um lado, garante o desenvolvimento especificamente humano do Homem, deixando livre a sua curiosidade, interesse e iniciativa para tudo o mais, exceto o sexo. Por outro lado, é responsável pela divisão mais insidiosa no desenvolvimento das relações humanas. O sentimento de culpa limitado deixa livre o caminho da abordagem objetiva (orientação e manipulação, criatividade, semelhança à imagem de Deus) para o Homem, mas recai fortemente sobre a Mulher, deixando-a muito atrás nas cadeias animais da reprodução e da criação dos filhos. A mulher continua envolvida no sexo, ou seja, no pecado; ela é do demônio, a eterna tentadora, desprezível e misteriosa (porque o homem não a quer conhecer), redimida apenas pelo nascimento de filhos, que por sua vez se tornarão 41 homens e justificarão sua existência, enquanto suasfilhas mal serão toleradas como potenciais portadoras de filhos. E enquanto o Homem gradualmente alivia a maldição de ter que trabalhar “com o suor de sua testa” com sua própria imaginação criativa, mudando assim o mundo e a si mesmo, tornando-se cada vez mais correto, justo, bom, claro, competente, etc, nada pode aliviar o fardo das mulheres de criatividade animal sem imaginação. Até a chegada da eletricidade e do controle da natalidade, as demandas da domesticidade permaneceram substancialmente as mesmas ao longo dos séculos e não proporcionaram muito espaço para a imaginação criativa. A mulher permaneceu inferior, sinistra, misteriosa, deixada para lidar com as consequências do pecado dentro de um escopo limitado de domesticidade, desprezando-se e invejando o homem. A tal chamada “inveja do pênis” da Mulher não tem muito a ver com a supremacia sexual do Homem, mas- se é que existe – é um resultado da mesma atitude obsessiva que produziu os sentimentos de culpa sexual. O pênis nesse contexto não é um símbolo de superioridade sexual, mas de tudo que não é sexual, por exemplo, que não está preocupado com a continuação da espécie, mas com o desenvolvimento do indivíduo, sua singularidade e independência comparativa. Mas, como o termo “inveja do pênis” indica, a interpretação sexual obessiva tem permeado até mesmo as tentativas psicanalíticas contemporâneas de reintegrar o sexo ao tecido humano. Assim como antes o sexo era considerado a fonte de todo o mal, agora é considerado a fonte de todas as bênçãos, a cura para tudo, e a repressão do sexo tornou-se o bode expiatório. Mas nós sabemos agora (ou pelo menos deveríamos saber) que o mero desfazer da repressão sexual não reabre as portas para o Paraíso. Pelo contrário, traz o que poderia ser chamado de “ uma reação terapêutica negativa”. Sem o fortalecimento prévio das funções de ego, a remoção do sentimento de culpa limitado (por exemplo, a barreira de segurança obsessiva) simplesmente abre a porta para um sentimento de culpa ilimitado sobre toda discriminação e diferenciação, expressando-se na dessensibilização e indiferença geral e, particularmente entre os jovens, em um antiintelectualismo generalizado. A neurose de massa da repressão sexual religiosa foi seguida pela psicose de massa do industrialismo e do totalitarismo. O Homem contemporâneo, em seu antigo temor da liberdade, produz um modo de vida padronizado e uniforme, no qual faz o mínimo e o pior uso possível de seu equipamento humano para orientação e manipulação. Essa indiferença e uniformidade contemporâneas nada têm em comum com 42 a indiferença comparativa da criança ou do animal (que se deve inteiramente à falta de equipamento diferenciador), mas é devido a um esforço de dessensibilização e imobilização do aparelho especificamente humano, resultando em paralisia e projeção, impotência e paranóia. III. Todo o esforço do homem para facilitar o processo de viver parece ter levado não à genuína superação do sofrimento e à obtenção do prazer na criatividade humana, mas apenas a um embotamento do sofrimento e do prazer, de modo que o ser humano permanece no limbo do “descontentamento com a nossa civilização”. Neste ponto, parece mais necessário encontrar uma reorientação para a experiência e avaliação do sofrimento. O Homem contemporâneo ainda está oprimido com o conceito de Adão de sofrimento como punição, por exemplo, como retribuição ou intimidação. O sentimento de culpa, o sentimento de pecaminosidade, é um abandono completo da tentativa de ato (“Eu não deveria ter feito isso; gostaria de não ter feito isso; nunca mais farei isso! Pater peccavi2“). Mas essa retirada só faz sentido se há falha ( falibilidade), não se arrepende do sucesso. Implica a expectativa de satisfação imediata, que daria ao Homem o sentimento de perfeição e onipotência. Homem primitivo – como sua Majestade o bebê – é impaciente e ganancioso e incapaz de suportar tensão. Como ele ainda não está consciente do que ele pode eventualmente se tornar, ele experiencia o status quo como perfeito e espera de cada movimento que ele faz imediata restauração da sua perfeição animal. Aqui é onde o Diabo entra, o gênio do atalho, o traidor de Deus e Homem com a promessa de conquista fácil e imediata (onipotência = semelhança de Deus). Não é por acaso que a serpente pôde se tornar e permanecer a imagem eterna do tentador, do enganador, do Diabo. O verme que, por alguns momentos, atinge uma posição quase vertical, serve como um símbolo perfeito do homo sapiens nos primeiros estágios de seu desenvolvimento humano, fingindo estar mais longe e saber mais do que realmente é verdade em qualquer momento particular. É o limitado, “perfeito” mas enganoso, conhecimento obsessivo, baseado na suposição de uma postura pretensiosa e na elaboração de uma interpretação precoce, que é rejeitada por Deus como “não sua imagem”. A pele pretensiosa deve ser removida repetidamente, revelando o verme original rastejando na poeira. 2 Em latim: Pai, eu pequei. 43 Mas Deus se revela apenas até onde Adão pode compreender a si mesmo. “ Do pós vieste, ao pós retornarás”. Para Adão essas são as únicas características relevantes do Homem: seu início como um verme e seu fim na morte. Mas entre pó e pó o Homem cria a si mesmo à imagem de Deus, tanto quanto for realizável em um algum dado momento. Como qualquer outro neurótico obsessivo, que impõe um padrão concebido prematuramente em toda existência, Adão confunde o parcial com o total, os incidentes: o Diabo e a Morte, com o essencial: Deus como ele se revela no homem. Adão rejeita a auto-realização inexperiente e incompleta à imagem de Deus. Tendo perdido a integridade do ciclo do instinto animal, ele se sente culpado, por exemplo, expulso de sua matriz e desorientado. Ele é incapaz de reconhecer e realizar a infinitude de Deus em suas próprias potencialidades infinitas. Mas a Morte e o Diabo são sempre completos e finitos; então para Adão e todos os seu parentes de centenas de gerações, Morte e o Diabo, tornam-se indicadores de orientação, placas de sinalização pervertidas com a ajuda das quais o humano desorientado se atrapalha em seu caminho pela vida. Condenado à ignorância, ao sofrimento e à morte, Adão e sua progênie escravizam ao longo dos séculos enquanto um Deus impiedoso, onisciente e insensível, observa. IV. Alguns milhares de anos depois, Deus não é mais um mero observador. Ele veio à terra como um simples trabalhador, sofrendo pobreza, tortura e morte. Usando a coroa de espinhos do sofrimento do Homem, carregando a cruz da pecaminosidade do Homem, estando para sempre pregado nela e morrendo sobre ela, ele está sempre participando do sofrimento da humanidade e por este ato de participação, aliviando o sentimento de culpa do Homem por sua inadequação, sua imperfeição, sua dessemelhança com Deus: Ecce Homo3 Desde a época de Adão, este é o passo maior e mais incisivo no desenvolvimento humano ocidental. Permite ao Homem salvar-se da Queda, da degradação intolerável de ter-se tornado humano (falível). A condescendência de Deus ao nível humano de erro, sofrimento e morte torna o Homem aceitável para si mesmo. Mas aqui outra dicotomia se insinua. Parece que na união mais estreita de Deus e do Homem e no modo de desenvolvimento facilitado pelo Cristianismo, o Espírito Santo foi para o Diabo. O próprio agente que provocou o desenvolvimento espiritual do Homem - desde o macaco assustado que caiu da árvore do Paraíso até o ser humano 3 Em latim: Eis o Homem. Expressão que teria sido usada por Pôncio Pilatos ao apresentar Jesus Cristo ao povo judeu. 44 cujo próprio sofrimento é à imagem de Deus - o Espírito Santo da Imaginação Criativa foi abandonado no processo de Cristianização . “Em certo sentido, a imaginação criativa é repugnante ao cristianismo e a qualquer mito corporificado fixo.” Pela escolha de