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o CONSELHO DE ESTADO 1. Introdução I. Illtrodução; 2. A questão da I'italiciedade dos conselhei· ros; 3. As funções do COllselho de Estado; 4. O cOlltencioso administrativo: 5. A obra do COllselho de Estado; 6. A crise econômica de 1864; 7. A regência prol"isória e o poder do regente; 8. A crise Za("{/rias·Caxias; 9. A reforma eleitoral: 10. A abertura do Amazonas; 11. A questão religiosa (1873·1875); 12. COllclusão. THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI* A análise da história constitucional e política brasileira, tanto no Império como na República, permite destacar em todo o período, desde a Indepen dência, algumas instituições que serviram de suporte à evolução da nossa vida política. Elas constituíram as bases das nossas constituições e tiveram, na prática dos diversos regimes por que passamos, uma aplicação extremamente esti mulante por parte dos homens públicos e dos políticos que manipularam os nossos sistemas políticos. Pouco importa que tivessem os seus fundamentos encontrado inspiração em teorias e instituições formuladas ou criadas por gênios políticos ou governos estrangeiros. A verdade é que ao adaptar-se à nossa vida política e prática constitucional, essas instituições encontraram sentido próprio: constituíram, com a riqueza de imaginação dos que as aplicaram, expressão peculiar, e sofreram transformações que lhes deram características próprias. Muito teríamos que dizer, se pudéssemos ampliar o nosso campo de estudos. O nosso propósito, porém, é o de fixar determinado período his tórico, precisamente aquele em que deram sentido peculiar à nossa vida política - o Poder Moderador e o Conselho de Estado - que viveram e se desenvolveram no reinado de nosso Imperador D. Pedro 11. * Ministro do Supremo Tribunal Federal (aposentado); professor emérito da Uni· versidade Federal do Rio de Janeiro; diretor do Instituto de Direito Público e Ciência POlítica da Fundação Getulio Vargas. R. Cio pol., Rio de Janeiro, 19(4) :37-57. out./dez. 1976 Poder Moderador e Conselho de Estado, instituições que se comple tam, porque duvidoso teria sido o sucesso da aplicação do Poder Mode rador, se o imperador não se apoiasse no Conselho de Estado. É que o Moderador, apesar de ser um poder eminentemente político, apoiava-se em decisões sábias e ponderadas no terreno político e em medidas admi nistrativas e de governo. É da própria Constituição de 1824 (art. 98) a definição do Poder Mo derador, como "chave de toda a organização política ... delegada priva~ tivamente ao imperador". O que o autor francês, Benjamin Constant, chamava de Poder Real, foi traduzido entre nós por Poder Moderador, "chave de toda a organização política", na expressão do texto constitucional brasileiro, reproduzindo o que Constant considerava como ele! de toute organizatiol1 politique. Na realidade, o Poder Moderador foi a chave usada pelo regime para atingir a conservação da estabilidade política, foi a chave do suceS50 do Império para manter a unidade nacional. E, nesse ponto, representava uma parti cipação maior no exercício do poder do que o previsto na concepção de Benjamin Constant. Este poder foi exercido dentro de suas finalidades constitucionais, tão bem definidas por Pimenta Bueno: "a suprema inspeção da Nação, o alto direito que ela tem e que não pode exercer por si mesma, de examinar como os diversos poderes políticos que ela criou e confiou a seus manda tários, são exercidos. Com ele, é mantido o equilíbrio e são evitados os abusos. Como força social é o mais influente órgão da Nação. "1 Nas monarquias representativas, o monarca sempre exerce um poder superior que é o da Coroa mas que, constitucionalmente, se identifica estritamente com o Poder Executivo. O sistema da Constituição Imperial, entretanto, separou os dois. O Mo derador, exercido pelo imperador com o Conselho do Estado, e o Executi vo, chefiado pelo imperador, mas exercido pelo seu ministério. São com petências bem diferentes exercidas pelo imperador: Poder Moderador exer cido com o Conselho de Estado, Poder Executivo exercido com o seu mi nistério. Por isso mesmo, os ministros não subscrevem os atos do Poder Moderador, senão os do Executivo, pelos quais são também responsáveis. O Poder Moderador é que representa precipuamente a presença do Po der Real. Foi a existência desse poder - a presença de um rei - que, no dizer de Oliveira Vianna, salvou o Brasil do desmembramento." Assim, o imperador, não como poder que se exercia mais no campo administrativo e executivo, mas como monarca, exerceu um poder real que eliminou as forças da dissociação. Seria longo enumerar a competência constitucional da posição do impe rador no sistema, mas não seria demasiado dizer que ele encabeça o tí tulo - o imperador - que incluía os seguintes capítulos: 1 Pimenta Bueno. Direito Público Brasileiro, n. 265. ~ Oliveira Vianna, Francisco José de. Populações meridionais do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, p. 263. 38 R.C.P. 4/76 o Poder Moderador, O Poder Executivo, O Ministério, O Conselho de Estado. Ao imperador, no exercício do Poder Moderador, como chefe supremo da Nação e seu primeiro representante, cabe velar incessantemente pela independência, a harmonia dos poderes. E por isso: a) interfere na nomeação dos senadores; b) convoca assembléia geral no intervalo das sessões; c) sanciona os decretos e resoluções da assembléia geral, para que tenham força de lei; . d) aprova e suspende as resoluções das assembléias provinciais; e) dissolve a Câmara dos Deputados em caso de salvação do Estado, e convoca outras; f) suspende os magistrados; g) perdoa, suspende e comuta penas. É, assim, o poder supremo, o árbitro dos grandes problemas políticos nacionais. Não se tratava, portanto, de um poder neutro, mas uma emanação da Coroa, que constituía para alguns a garantia de um efetivo equilíbrio de poderes. Os liberais nunca se conformaram com a autoridade desse quarto poder. Foi uma luta que ocupou a história política do Império. Por maior que seja a nossa simpatia por certas posições tomadas pelos liberais, a análise da vida do nosso país durante todo o Império nos conduz à convicção de que os sacrifícios foram compensados por uma política por vezes reacionária, mas que assegurou a unidade nacional e consolidou essa unidade, evitando numerosas tentativas de dissociação. Mas, juntamente com o Poder Moderador, a existência do Conselho de Estado acha-se intimamente ligada à formação histórica da nossa estrutura política constitucional. Foi por intermédio dele que o primeiro imperador elaborou o projeto de Constituição e nele certamente se apoiou como uma instituição que completaria a estrutura de seu governo. O rei, em Conselho, quer privado ou no Parlamento, estaria na tradição histórica e na formação das monarquias tradicionais. Assim foi na Inglater ra, como também na monarquia francesa. Ao dissolver a Constituinte, Pedro I conscientizou a importância do seu ato e de suas repercussões. Dissolveu o Conselho de Procuradores, mas criou para ampará-lo um Conselho de Estado, ao qual atribuiu desde logo a tarefa de redigir uma nova Constituição (13 de novembro de 1823). Como foi redigido o projeto, quais os responsáveis pela sua elaboração? A perda de todos os documentos relacionados com esta fase da nossa vida constitucional torna impossível a reconstituição dos fatos mais importantes então ocorridos, bem como a determinação de onde partiram as principais iniciativas na elaboração do texto. Conselho de estado 39 Extinguiu-se o primeiro Conselho com a promulgação da Constituição, mas foi restabelecido por força do art. 137 da própria Constituição. Sem regulamento e. portanto. sem uma disciplina de trabalho e uma competên cia mais específica, o Conselho de Estado funcionou mal nessa primeira fase, até a sua extinção em 1834. Foi o Conselho criado e extinto diversas vezes porque, em nosso país, foi sempre um ponto de discórdia entreconservadores e liherais: os pri meiros, para fortalecer o Poder Moderador. defendiam a sua criação. enquanto que os segundos consideravam-no obstáculo ao desenvolvimento político. núcleo de reação, instituição retrógrada, uma espécie de oligarquia que rodeava o imperador. Daí as suas flutuações e a precariedade do seu prestígio durante todo o I mpério. Para os conservadores, na frase de Uruguai, era o "automural do Poder Moderador". enquanto que para os liberais como Tito Franco e Cristiano Ottoni. era o baluarte do imperia lismo. pelo menos quando se achavam em oposição. Flutuou. assim, entre as duas tendências - desapareceu com os liberais e descentralizadores, voltou com os conservadores e com o fortalecimento do poder central. Os conservadores viam na sua existência o próprio espírito do Poder Moderador. base do regime constitucional do Império. "A supressão do Conselho de Estado", dizia um político liheral. Teófilo Ottoni. em um de seus ataques àquela instituição. "era também um grande triunfo da idéia liberal. pois que anulava em sua essência o poder modera dor, causa de tantas apreensões durante o primeiro reinado". Por outro lado. o Visconde de Uruguai. grande político conservador e autor de um dos nossos melhores e mais antigos ensaios de direito admi nistrativo, atribuía o fracasso do Conselho aos elementos que o integravam. O precursor do Conselho de Estado no Brasil foi. como já vimos. o Con selho dos Procuradores-Gerais das Províncias. Foi criado pelo Príncipe Regente Pedro L pelo Decreto de 16 de fevereiro de 1822. movido por uma necessidade justificável de se rodear de uma corporação de pessoas com experiência e discernimento, que o auxiliasse na difícil obra da administração. A reação liberal tinha como ponto capital do seu programa a extinção do Conselho de Estado. Estava isto logicamente dentro de suas finalidades. E assim o Ato Adicional, em seu art. 32, não podendo suprimir o Poder Moderador. em grande parte devido à resistência do Senado. suprimiu o Conselho de Estado: "Fica suprimido o Conselho de Estado. de que trata o título 5'.1, capítulo 7~) da Constituição". Não acabou. porém. aí. a luta em torno do Conselho. O debate doutri nário continuou até que em 184 I o imperador. em sua fala de 1 3 de maio. por ocasião da abertura das Câmaras, chamava sua atenção para a necessi dade da criação do Conselho de Estado. Neste mesmo ano. o projeto foi apresentado e te\e andamento. O debate foi longo e a discussão versou principalmente sobre a sua composição. a constitucionalidade do restabelecimento do Conselho diante do Ato Adi cionaI, a perpetuidade do exercício de seus membros. e a sua amovibilidade. 40 R.C.P. 4/76 Alves Branco. Bernardo de Vasconcellos e Paula Souza distinguiram-se particularmente nos memoráveis debates. Veio por fim a Lei de 23 de novembro de 1841 regulamentada em 5 de fevereiro de 1842. Por essa lei. o Conselho de Estado tinha 12 membros ordinários. além dos ministros de Estado. As suas sessões seriam conjuntas ou em seções, as primeiras presididas pelo imperador, e as últimas pelos ministros a quem pertencessem os objetos das consultas. O regulamento de 1842 dividiu o Conselho em quatro seções: 1. i\'egócios do Império. ') Negócios da Justiça e dos Estrangeiros. 3. Negócios da Fazenda. 4. Negócios da Guerra e da Marinha. Esta divisão foi útil por atender ao critério da competência especializada dos membros do Conselho. A reunião plenária, entretanto. era a que tinha maior relevância política. 2. A questão da vitaliciedade dos conselheiros Objeto de largos debates foi a questão da vitaliciedade dos conselheiros. Argumentos a favor e contra, motivos de interesse público e a defesa do princípio da independência foram trazidos a debate por quantos trataram do assunto, notadamente por Bernardo Pereira de Vasconcellos. este favorá vel à vitaliciedade." Quanto à vitaliciedade, prevaleceu um critério intermediário. A Lei de 1841 admitia, em princípio, a perpeituidade, podendo entretanto o impera dor dispensar o conselheiro de Estado, por tempo indeterminado, do exer cício de suas funções. A vitaliciedade foi sempre matéria controvertida, principalmente porque aos liberais repugnava a perpetuidade do poder. Os conservadores e os moderados, ao contrário, achavam conveniente uma continuidade, impe dindo uma substituição em cada administração. O Visconde de Uruguai iu~tificava essa posição com as seguintes palavras: '"A vitaliciedade oferece garantias de independência, de luzes de experiência, de justiça. de impar cialidade e de segredo". Analisado por outro prisma que não o do interesse de quem exerce o cargo, colocava-se o problema da conveniência em assegurar-se a fideli dade do conselheiro às idéias que sustentava ao tempo da nomeação, e a preocupação de saber se o conselheiro poderia mudá-Ias, ou seja, evoluir com as e~igências da conjuntura, ou se dever-se-ia dele exigir uma total inalterabilidade das idéias. Por isso é que Bernardo Pereira de Vasconcellos :1 Veja Assuf, Maurice. Tese .\Obre o conselho de estado. Aqui são discriminados lodo~ os argumentos pró e contra a vitaliciedade. Conselho de e5lad(l 41 defendia a vitaliciedade - e o fazia por motivos ponderados. Dizia ele: "O problema não é só do Conselho de Estado, será também o da magis tratura vitalícia, ou o exercício de qualquer atividade estável". O problema é complexo, terá os seus aspectos éticos e políticos. Nenhum homem de pensamento pode se considerar imutável em suas idéias - a mudança não será fatalmente infidelidade. O cargo de conselheiro é de confiança mas apenas quanto ao apreço do imperador pela sua escolha. A fidelidade deverá ser com o regime, com as instituições e ao próprio imperador. A realidade é que nunca houve oportunidade sequer para controvérsia entre o imperador e o Conselho. Este opta, mas quem decide é o imperador. Sobre o tema, dizia Bernardo de Vasconcellos: "Outra hipótese dos nobres adversários é que o Conselho de Estado fique condenado a professar sempre as idéias que tinha no tempo em que foi nomeado; que o conselheiro de Estado, homem político, não acompa nhe as circunstâncias de seu país; que não saiba obedecer ao seu império; que não é perfectível, não é capaz de desenvolver a sua razão, de se es clarecer. Ora, este argumento tem contra si a opinião de todos os que têm escrito sobre a filosofia do direito; todos os publicistas têm reconhecido que nenhum homem pode ser imutável, ainda os que mais se inculcam por tais; que tudo muda no homem e em torno; por conseguinte sua inteligência está sujeita a essa lei de mudança. Eu com isto não justifico a versatilidade do homem. Uma coisa é abandonar a opinião sem motivo, por uma incon sistência inqualificável. O homem político que facilmente abdica das suas idéias, ou revela a sua incapacidade, ou más intenções. E outra coisa é modificar as suas idéias, segundo o estado social, fazê-Ias servir ao bem do País; é por isto que nós compomos a sociedade à imagem do homem. Toda sociedade bem organizada deve ser composta à sua semelhança e uma das principais obrigações é a de desenvolver a qualidade do homem que é ser perfectível. Ora, o conselheiro de Estado, posto no meio da administra ção pública, observando todos os dias o estado da opinião do País, tanto no meio da discussão oficial, quanto no meio da espontânea, há de emperrar sempre na idéia que tinha no tempo em que foi nomeado conselheiro? Eu considero que nenhum homem pode conservar-se estacionário quando tem de votar, de deferir negócios de alta importância que estão a seu cargo; pode por algum tempo, por muito, por toda a vida, conservar-se estacionário o homem que abandona a vida política, que dela nada mais quer, mas nunca aquele que tem obrigação de votar todos os dias, de ouvir recla mações, de atender às representações e que sobre todos os objetos impor tantes é obrigado todos os dias a dar o seu parecer. Pode-se entenderque a inteligência não se move, que não compara as necessidades do País, para se acomodar à marcha e movimento social; poderá ser, mas a minha convicção é mui diversa, e felizmente em abono, dela tenho autoridades respeitáveis;" 42 R.C.P.4/76 3. As funções do Conselho de Estado Desdobrando as atribuições conferidas pela lei e pelo regulamento de 1842 ao Conselho de Estado, Uruguai divide assim as suas funções: a) do Poder Moderador; b) do Poder Executivo, político ou governamental; c) do Poder Administrativo gracioso; e d) do Poder Administrativo contencioso. 1. A função do Conselho de Estado junto ao Poder Moderador era talvez a mais delicada função do Conselho: o exercício do Poder Moderador ficava em grande parte apoiado sobre a responsabilidade do Conselho, em assunto da mais alta relevância política para a Coroa. . A convocação das assembléias gerais, a aprovação ou a suspensão das resoluções das assembléias provinciais, a pensão dos magistrados, a con cessão da anistia, a escolha dos senadores eram assuntos sobre os quais sempre poderia ser ouvido o Conselho de Estado, cuja opinião era ou não acatada, mas que nem por isso influía menos na política geral do País. A sua vinculação ao Poder Moderador decorria também da sua compe tência para aconselhar o imperador prontamente quando ele devia exercer o Poder Moderador. O responsável por esses conselhos era o Conselho de Estado (art. 143 da Constituição), como o eram os ministros pelos atos do Poder Executivo. Intangível era apenas a pessoa do imperador. 2. O Poder Executivo, político ou governamental compreendia impor tantes matérias como a declaração de guerra, os ajustes de paz, as rela ções e negociações com as nações estrangeiras ou com o poder espiritual. 3. Com relação à jurisdição administrativa graciosa, Pimenta Bueno chama-a de quase contenciosa. Este talvez seja o ponto mais interessante sob o aspecto que se relaciona com o direito administrativo. Neste terreno verifica-se a intervenção do Conselho de Estado como função consultiva, mas' sobre matéria acentuadamente administrativa. Diz Pimenta Bueno: "Há alguns assuntos administrativos que participam do caráter contencioso sem que, todavia, possa este predominar sempre, já porque se dá propria mente litígio, já porque alguma vez é necessário conservar à administração uma certa liberdade ou latitude de ação a respeito, como indispensável aos interesses públicos. Neste caso estão as questões de guerra, os conflitos de atribuições, as questões de competência entre autoridades administrativas e os recursos por abusos das autoridades eclesiásticas". A intervenção do Conselho de Estado era em todos os casos, porém, facultativa, cabendo sempre ao imperador a iniciativa da consulta. 4. Finalmente, relativamente aos negócios contenciosos, ainda prevê a lei a intervenção do Conselho de Estado com o caráter meramente consul tivo e facultativo. Verifica-se, entretanto, a sua audiência: a) nos conflitos entre a jurisdição administrativa e a judiciária; Conselho de estado 43 ") nos recursos interpostos das resoluções dos presidentes das províncias em matéria contenciosa ou das decisões dos ministros de Estado; c) nos embargos opostos às resoluções imperiais. Os art. 24 e seguintes do Regulamento de 5 de fevereiro de 1842 esta belecem a forma de processo e os casos em que se verificam o recurso e a intervenção do Conselho de Estado. Sob o ponto de vista administrativo, duvidosa foi a eficiência do Conse lho de Estado na monarquia. O contencioso administrativo, ou melhor, a jurisdição administrativa praticamente não tinha existência, faltando-lhe os elementos indispensáveis ao funcionamento normal e obrigatório dos órgãos jurisdicionais inerentes àquele sistema. Mas a Lei de 1842 extinguiu-se com o regime, depois de tentativas de reforma. entre as quais deve ser citada a do Marquês de São Vicente. em 1867. 4. O contencioso administrativo Uma das funções atribuídas ao Conselho de Estado. e das mais importan tes. é aquela que exerceu no processo do contencioso administrativo. Entre os diversos sistemas jurisdicionais teremos primeiro a função jurisdicional exercida por um único poder que é o judiciário. ao qual estão submetidas todas as controvérsias. No segundo,.o princípio da separação de poderes tem aplicação com a separação ttas"' funções, ficando a administração sujeit'á· aos seus próprios juízes e tribunais. Temos dúvida quanto ao amparo de Montesquieu a esse princípio quando ele diz que não haverá liberdade se o juiz não estiver separado do poder legislativo ou executivo. Mas o fato é que a criação de órgãos jurisdicionais administrativos serviu de base a numerosos sistemas constitucionais, cujo modelo maior é o francês. A evolução, entretanto, na maioria dos países terá sido no sentido de uma jurisdição administrativa própria, não pelo princípio da separação de poderes. mas obedecendo a um processo de especialização, como ocor reu na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde, em época recente, verifi cou-se o reconhecimento de um direito administrativo fundado no princí pio da "legalidade", especializado, com instâncias e tribunais administrativos para julgar as controvérsias entre o Estado e os particulares, com base no direito administrativo. A evolução seguiu linha paralela ao reconhecimento de um direito admi nistrativo, o que era recusado por alguns dos mais conceituados autores anglo-saxônicos. Em 176 I vamos encontrar entre nós a criação da jurisdição administra tiva por iniciativa do Marquês de Pombal, com as leis de 22 de dezembro de 176 I, que organizaram o Tesouro Real e o Real Erário, mas que ema nariam do poder judiciário as controvérsias sobre a arrecadação de rendas 44 R.c.P. 4/76 e todos os direitos e bens da Coroa, de qualquer natureza que fossem.4 Mais tarde, em 1859, criou-se o Tribunal do Tesouro. A existência desses tribunais tinha, entre nós, um fundamento regaliano e visava proteger os bens da Coroa e os do Tesouro. Exerciam os ministros da Fazenda também funções decisórias, julgando os recursos, nas contro vérsias da Fazenda Nacional. Mas não me quero perder na análise teórica do problema, pois estamos tratando especificamente do Conselho de Estado. Ora, este, como já vimos, exercerá precipuamente funções consultivas, em relação direta com o Po der Moderador, o que não excluía pelo regulamento de 1842 a função do Poder Administrativo gracioso e contencioso. Aqui se deve considerar a sua competência especialmente: a) nos conflitos entre as jurisdições administrativas e judiciárias; b) nos recursos integrados das resoluções dos presidentes das províncias em matéria contenciosa ou da decisões dos ministros de Estado; c) nos embargos opostos às resoluções imperiais. Árduo foi o trabalho do Conselho de Estado no exercício dessas funções. É o que nos apresenta Rego Barros, em seu livro Apontamentos sobre o contencioso administrativo, onde se acham compendiadas as resoluções sobre conflitos entre o judiciário e .o administrativo, exame das mais varia das controvérsias administrativas. Mas eu vos pouparei a análise mais profunda de numerosas resoluções que se acham nos atos do Conselho de Estado. Direi, apenas, que foi um contencioso administrativo imperfeito, por falta de uma estrutura apta a suportar as tarefas de um contencioso administrativo em suas diversas instâncias. Por outro lado, as atribuições do Conselho de Estado eram principal mente opinativas ou consultivas. Mereciam, entretanto, o apoio decisivo da Coroa. A República pôs termo ao contencioso administrativo, estabelecendo o princípio de unidade de jurisdição. Continua de pé, entretanto, a contro vérsia sobre a conveniência da abolição total de jurisdições especializadas ou de especializações de juízes nas causas administrativas, fiscais e pre videnciárias. O estudo sobre o contencioso do Império é extremamente útil, como experiência. Lamento faltar o tempopara uma análise mais profunda da matéria, que teria, além do mais, um sentido muito particular que interessa ria sobretudo aos especialistas. O Conselho de Estado exerceu funções contenciosas, mas imperfeitas, limitadas pela própria natureza da institui ção. Deixou, entretanto, vasto material para estudos e decidiu, na época, questões da mais alta relevância. 4 Veja Cavalcanti. Themistocles Brandão. Tratado de direito adlllillistrati\'o. v. 4, p. 501. Conselho de estado 4S 5. A obra do Conselho de Estado Não é possível deixar sem lembrança os inúmeros benefícios prestados ao País pelo Conselho de Estado. Além do portentoso trabalho legislativo em torno da legislação sobre concessões de estradas-de-ferro, ainda acrescenta Souza Bandeira o se guinte: "Examinem-se todas as grandes questões nacionais, em que andou envolvida a responsabilidade do governo imperial, ou se trate das nossas infindáveis complicações com as repúblicas platinas, ou das medidas finan ceiras em que se debatia a argúcia dos ministros da fazenda, ou das varia das reformas propostas ao Parlamento, e sempre nas discussões do Conse lho encontrar-se-á o apanhado fiel das várias correntes de opinião, expos tas com clareza, competência e lealdade. O governo podia errar e errou muitas vezes. Nunca, porém, poderia-se dizer que o fez por não estar devida mente aconselhado, tendo perfeitamente pesado o pró e o contra. "" Não poderei omitir aqui as numerosas tentativas feitas, notadamente pelo Visconde de Uruguai, de dividir o Conselho de Estado em duas atri buições: políticas e administrativas. A solução reforçaria o contencioso administrativo e enfraqueceria o próprio Conselho que perderia a sua força pela mutilação de sua forte estrutura política e administrativa. Atenderia certamente à política liberal, porque tiraria ao Poder Moderador um instru mento poderoso para a eficácia de sua política. Relembramos algumas decisões históricas proferidas pelo Conselho de Estado, depois de longos e brilhantes debates, em que se cumulavam argu mentos jurídicos e políticos, sempre com o propósito de cumprir a sua tarefa junto ao Poder Moderador. As resoluções que escolhemos como exemplo abrangem as mais variadas posições, sendo de observar as reper cussões que teriam ou que tiveram na política e na vida nacional. 6. A crise econômica de 1864 Em 1864 grave crise econômica rebentou. Iniciada com a quebra do ban queiro Visconde Souto, a crise ameaçou alastrar-se nos meios financeiros. Um clamor provocado pelo pânico exigia medidas concretas para preservar a fortuna pública e particular. O Conselheiro Furtado, presidente do Conselho, procurou atender, mas a sua formação profissional de magistrado só lhe apontava soluções legais, quando a crise era econômica. O imperador era, na realidade, quem poderia encontrar os meios para debelar a crise, pois o que se exigia eram medidas administrativas que repercutiriam no mercado financeiro e estas medidas seriam necessaria mente drásticas e imediatas. Solicitou entretanto o imperador a opinião do Conselho de Estado, que depois de longos estudos e debates, entendeu necessárias medidas rigorosas 5 Souza Bandeira. Evocações e outros escritos. 46 R.C.P. 4/76 para pôr termo à crise. Sugeriu que, por decreto imperial, fosse determina da a liquidação dos bancos sem recursos para funcionar, e a suspensão de todos os pagamentos. Coube a Nabuco redigir os atos e decretos que deve riam atender à resolução do Conselho de Estad06 e o fez com a sua notória competência nos assuntos jurídicos e financeiros. Foi certamente um relevante serviço prestado pelo Conselho de Estado. Agiu com eficácia, mostrando ter condições para encontrar uma solução tecnicamente válida. 7. A regência provisória e o poder do regente A viagem do imperador à Europa em 1872 suscitou um problema que até então não havia sido objeto de cogitação: a regência do trono, durante a sua ausência. Além da consulta que particularmente havia sido feita aos conselheiros, julgou o imperador necessário um pronunciamento do Conselho de Estado. Em 25 de abril de 1871, enviou o imperador ao Conselho de Estado uma consulta, assim formulada: 1. Ausentando-se o imperador para fora do império como o permite o art. 104 da Constituição, compete a regência à princesa imperial? 2. Pode a assembléia geral limitar as atribuições da regência, quando esta cabe ao príncipe imperial ou ao parente do imperador, como fala o art. 122 da Constituição? 3. Admitida essa possibilidade, convém no caso presente sua limitação? 4. Qual a forma pela qual deve o imperador requerer e dar o consenti mento para o imperador poder sair? Estava o Conselho de Estado diante de um problema constitucional, mas que envolvia também considerações de ordem política. As questões constitucionais foram abordadas com certa liberdade, su prindo-se as lacunas da Constituição por um entendimento lógico que expri mia uma orientação favorável aos desejos do imperador, sem, contudo, violar a letra da Constituição. O entendimento geral foi de que, embora a Constituição não se referisse às viagens do imperador, permitia entretan to a sua substituição, em caso de impedimento ou, nos termos do art. 126 da Constituição, por causa física ou moral. Achou a maioria do Conselho que a apreciação das causas deveria estar sujeita aos critérios da assembléia geral, que abria afinal o juízo político da conveniência de atender ao pe dido do imperador. No dizer de Visconde de Abaeté, os casos a que se refere o art. 126 da Constituição não dependeriam nem da Constituição, nem de qualquer lei de caráter permanente, por isso que dependem de numerosas hipóteses, inclusive da possibilidade da substituição por um regente. li Nabuco, Joaquim. Um estadista do império. v. 1, p. 382. Conselho de estado 47 Foi este o pensamento que prevaleceu no Conselho, embora variassem as abordagens do problema pelos conselheiros. No fundo. foi um voto que se baseou em razões de ordem política. como a conveniência de atender à vontade imperial. Quanto à possibilidade de limitação dos poderes do regente, a decisão não foi unânime. Vencidos foram o Barão de Muritiba, o Conselheiro Torres Homem e o Barão de Três Barras - este o mais radical porque achava que deveria limitar os ditos poderes. O Barão de Bom Retiro só admitia a limitação da regência eletiva. As razões foram expostas pelos "vencidos" fundados nos art. 15 a 20 da Constituição atribuindo à assem bléia geral competência para limitar as atribuições do regente. Portanto, quanto à conveniência de limitação para os poderes do regente, não foi encontrado motivo no caso presente dadas as condições em que o queria a princesa imperial. Finalmente, a questão da forma da licença. Entendiam alguns, como o Barão de Três Barras, que só por lei isso seria possível. A maioria, porém. entendia que o ato deveria consistir em uma Resolução da assembléia. 7 A solução do Conselho foi eminentemente constitucional, com reflexos políticos evidentes. 8. A crise Zacarias-Caxias Grave dissídio ocorreu em 1867 entre o presidente do Conselho, Zacarias de Goes e Vasconcellos. e o Duque de Caxias. comandante-em-chefe das forças empenhadas na guerra do Paraguai. Deste episódio resultou uma carta do presidente ao imperador, pedindo a demissão do ministério e envolvendo também a demissão de Caxias, cuja presença no teatro das operações militares julgava necessária. Quanto ao Conselho de Estado, esteve manifestamente contra as duas demissões. já que seria uma perda irremediável do princípio da autoridade. julgando em sua maioria necessário que o imperador reiterasse a sua con fiança no general. O imperador nào aceitou a sugestão e pediu ao Conselho uma opção - Zacarias ou Caxias. A maioria do Conselho foi pela saída de Zacarias. levada pelo voto do liberal Nabuco, acompanhado por Rio Branco, Torres Homem, Muritiba e Bom Retiro. Julgava a maioria que a demissão do ministériopara satisfazer o general seria um precedente funesto para o sistema tanto mais que essa decisão acarretaria mudanças radicais na política, favorecendo o partido conservador. No entanto. esta decisão fez vir a público a fraqueza e a impopularidade do ministério. No final da luta. volta ao poder o partido conservador. A "dúvida" do imperador e os votos do Conselho. especialmente o de Nabuco, feriram de morte Zacarias, que teve de ceder o seu lugar a um ministério liberal. para atender à maioria eleitoral manifestada nas urnas. .. RC\'is!a de Ciência Puil1lca, v, 5. n. 2, abr./jun. 1971, 48 RC.P. 4/76 Bastou que o imperador manifestasse a dúvida na necessidade de manter Zacarias, para que ele se julgasse politicamente sem recursos para manter se no poder. Oliveira Vianna considera a crise e a queda do gabinete liberal de Zacarias vinculadas ao processo da queda do Império. S Raymundo Faoro, em Os donos do poder,? segue mais ou menos a mesma opinião, descre vendo as fraquezas do regime. Daí por diante, já em 1869, as crises se sucederam enfraquecendo o regIme. 9. A reforma eleitoral A reforma eleitoral em 7 de novembro de 1878 foi outra questão que envolvia matéria de alta relevância política, colocada pelo imperador pe rante o Conselho de Estado. As questões formuladas foram as seguintes, admitida como aceita a reforma eleitoral, com a introdução do voto direto: 1. Qual o censo que se deverá exigir para que o cidadão possa ser consi derado eleitor? 2. Deverá ser condição para o eleitor saber ler e escrever'? 3. Convirá a reforma do art. 95 da Constituição, e seus parágrafos 2lJ e 3'·' - em que sentido? 4. Para se conseguir a alteração do referido dispositivo, será necessária a reforma da Constituição? Tratava-se, como se vê, de questões jurídicas e políticas, já que eram questões do interesse dos eleitores, como o voto do analfabeto e o proble ma constitucional da competência das câmaras para aprovação da reforma. A decisão era da maior importância e grandes foram as suas repercussões. Basta dizer que a decisão do Conselho foi fatal para o voto dos analfabetos ao responder ao primeiro quesito de forma peremptória, com largos fun damentos que se referiam à necessidade de dar ao eleitor a sua idoneidade para votar. Votou pelo voto do analfabeto apenas o Visconde de Muritiba, porque o fato de não saber ler e escrever não salva o cidadão de possuir o bom senso e a discrição necessária para escolher quem o represente. Votaram na sessão: Visconde de Bom Retiro, Visconde de Abaeté, Vis conde de Muritiba, Visconde de Jaguari, José Pedro Dias de Carvalho, Joaquim Raimundo de Lamare e Paulino José Soares de Souza. A elevação do censo não prevaleceu e não foi julgada necessária a re forma constitucional. Convocada em 28 de outubro de 1879 para opinar sobre a necessidade da convocação de uma assembléia geral para discutir a reforma, opinou o Conselho de Estado contra, não só por motivos constitucionais, mas também de conveniência política. Discutido o projeto pela Câmara, esta o , Oliveira Vianna, Francisco José de. O ocaso do império. S. Paulo. Melhoramento~. !I Faoro, Raymundo. Os dOllos do poder. Porto Alegre, Globo: São Paulo, EDUSP, 1975. 2 v. COllselho de estado 49 aprovou quase por unanimidade. O Senado, entretanto o reJeItou, não porque fosse contra o voto direto, mas por motivos conexos, como as pro postas que envolviam a intervenção do Senado e do Poder Moderador na mudança da Constituição. Consultou em seguida o imperador sobre a conveniência da dissolução da Câmara dos Deputados. Na sessão de 28 de fevereiro de 1880 foi a questão debatida. Pretendia a consulta que as novas eleições convocadas dissessem se o eleitorado desejava ou não a reforma eleitoral, solução que sensibilizaria o Senado, que certamente atenderia à vontade das urnas. A maioria do Conselho votou contra a dissolução. Não houve a dissolução mas, logo em seguida, em 28 de março de 1880, o gabinete Sinimbu era substituído pelo gabinete José Antônio Saraiva que, em sua explicação inicial sobre as suas propostas, punha em primeiro plano a reforma eleitoral. 1" As transigências do novo ministério com a atitude do Senado não atin giram a execução do projeto. Afinal, foi ele aprovado e promulgado pela Lei nQ 3.029 de 9 de março de 1881. Foi árduo o trabalho do Conselho nos episódios que determinaram a reforma eleitoral que consagrou princípios novos na tradição eleitoral do Império. Agiu o Conselho de Estado com muita acuidade política ao mesmo tempo que trazia rica contribuição à técnica do sistema eleitoral. 10. A abertura do Amazonas A abertura do Amazonas foi uma das grandes questões levadas ao Conse lho de Estado em 1864. O debate que ali se travou constituiu tema relevante para os interesses econômicos do Brasil, dada a sua repercussão no comércio internacional, assim como tema político e jurídico que abriria as maiores controvérsias. Tavares Bastos era o seu mais tenaz debatedor.11 No Conselho de Estado, coube principalmente a Uruguai e a Pimenta Bueno o seu exame, a começar com a preocupação da delimitação das fronteiras e a fixação dos direitos dos ribeirinhos, com largas perspectivas para a descoberta de rios desconhecidos. Para os políticos interessados em política exterior tomava a questão perspectivas mais amplas porque abrangia não só o problema do Amazo nas, mas também o do Prata, onde os interesses nacionais eram bem maio res, pela preocupação de atender à defesa e à proteção das margens dos nossos rios internacionais, mas também pela necessidade de obter uma grande liberdade de navegação até Mato Grosso. Como poderíamos res tringir a navegação do Amazonas, se advogávamos a liberdade de navega ção no Prata, nos nossos rios internacionais? 10 Veja Organização e programas ministeriais. 2. ed. p. 185. 11 Tavares Bastos. Cartas do solitário. 50 R.C.P. 4/76 As divergências que então surgiram e que protelaram a solução definitiva foram relativas aos afluentes. Nabuco, Uruguai e Pimenta Bueno faziam a restrição. Preferiu o imperador a ressalva do Conselho de Estado, excluin do os afluentes, mesmo na parte pertencente ao Brasil. E tinham razão de ser as nossas preocupações com a política do Prata, pois a Argentina seguia nesse particular uma política liberal. A Constitui ção argentina, obra de Alberdi, em 1853, assegurava a liberdade de nave gar para todas as bandeiras, para os seus rios interiores, ressalvados os regulamentos expedidos pelas autoridades competentes. Em 1856, um tra tado de Paz e Comércio assegurava a liberdade de navegação dos rios Paraná e Paraguai, para os navios mercantes e de guerra do Paraguai e Argentina. Ao mesmo tempo, em 7 de março de 1856, abria-se a navega ção do rio da Prata aos países ribeirinhos com o Tratado de Amizade, Comércio e Navegação celebrado pelo Visconde de Abaeté com a Con federação Argentina, o qual concedeu largas vantagt?ns à Argentina, ao Brasil, ao Paraguai e à Bolívia para o comércio do rio da Prata. A nossa política no Prata, em relação à navegação e direito dos ribei rinhos, caracterizou-se por uma série de acordos e entendimentos quase sempre bilaterais, mas que conduziram a uma convenção geral que resul tou em uma larga política de liberdade, sempre, entretanto, acompanhada de ressalvas das garantias e segurança dos ribeirinhos. 1 " A abertura do Amazonas constituía assim uma sábia política comercial, com a afirmação da coerência dos princípios que defendemos no rio da Prata. 11. A questão religiosa (1873-1875) A questão religiosa foi das mais importantes submetidas ao Conselho de Estado pelo Poder Moderador. Não vou relatar a Questão dos Bispos - não caberia aqui, nessa rápida análise do Conselho de Estado - apenas tecerei algumas considerações sobre sua atuação e a de seus membros. Esta análise obedece à mesma linha de algumas observações que já fizemos sobre a influência das idéias pessoais e das convicções individuaisdos conselheiros na apreciação principalmente dos casos políticos. E a questão religiosa era política em sua essência, não só porque incluía uma política geral, como influía no comportamento dos juízes, subordinada a condições subjetivas. E, em nenhum outro caso mais do que nos religio sos, o elemento íntimo de cada um haveria de influir na decisão. E assim o foi, porque desta ou daquela forma, o espírito religioso ou a vinculação à maçonaria foi objeto de apreciação e de declaração expressa de muitos conselheiros. A atitude do Conselho de Estado foi moderada mas não definitiva, pois a solução final foi determinada pela decisão judiciária e, principal- 12 Veja Tavares Bastos. Cartas do solitário; e Teixeira Soares. Diplomacia do império no rio da Prata. Conselho de estado 51 " mente, pela ação enérgica do Poder Moderador - que no caso dever-se-ia chamar de Poder Real, porque o prestígio da Coroa e da autoridade tem poral haveria de impor uma solução contrária aos interesses da Igreja. Mais de uma vez foi o Conselho de Estado consultado sobre a crise. Na primeira vez, em ]2 de fevereiro de ]873, o imperador indagava em primeiro lugar sobre a eficácia das bulas pontifícias contra a maçonaria, se deviam ser aplicadas no Brasil, e a sua eficácia em face de nosso direito. Em segundo lugar, indagava até que ponto poderia prevalecer a ação dos prelados diocesanos contra as irmandades e associações religiosas. Em ter ceiro lugar, até onde poderia ir a ação do governo em relação aos atos dos bispos nas irmandades religiosas que tiveram maçons em seu seio? Os debates e as conclusões de São Vicente, Souza Franco, Inhomerim, Bom Retiro e Caxias permitiram ao imperador iniciar o processo no judiciário. contra o voto de Nabuco. Em 8 de novembro novamente foi ouvido o Conselho, desta vez sobre as funções dos bispos, a falta de cumprimento das resoluções do governo pelos párocos e a extensão das decisões do governo em relação às irman dades. O Conselho opinou sobre as teses controvertidas, esclarecendo o imperador na solução dos problemas específicos que foram ocorrendo. Pro cessados e julgados, os bispos do Pará e OI inda foram condenados e cum priram pena pelo crime de "obstar ou impedir o efeito das determinações do Poder Moderador e Executivo conforme a Constituição e a lei". A última consulta ao Conselho de Estado foi em 1875, feita pelo ga binete Caxias. Coube ao Conselho de Estado dar o voto final na questão, opinando pela anistia. O radicalismo do comportamento imperial havia, entretanto, aberto uma profunda divisão entre a Igreja e o Estado, contrariando o sentimento re ligioso dominante. Às crises que se sucediam, acresceu mais esta. Diria mais tarde o Bispo D. Macedo Costa: "caiu o Trono mas permaneceu o Altar". Repetia-se, assim, a tradição histórica na luta da Igreja com o Estado. A questão religiosa seguida da questão militar e o problema agrário de corrente da abolição da escravidão foram as causas mais diretas da queda do Império. Essas questões provocaram a crise nas bases da nossa já en velhecida estrutura social e a espera de uma renovação que veio com a República. A análise dessas manifestações do Conselho de Estado, em suas mais variadas formas, mostra a verdadeira atuação desse órgão. Política em sua essência, a atuação do Conselho de Estado caracterizou-se por uma linha de equilíbrio, na qual se procurava atender aos interesses nacionais, sem contrariar as preferências da Coroa, mas sempre acompanhada de ponde rações que conduziam a uma solução equilibrada. Em sua maioria políticas, não raro, entretanto, soluções técnicas e considerações jurídicas valoriza riam as manifestações do Conselho de Estado. 52 R.c.P. 4/76 12. Conclusão o nosso Conselho de Estado da Monarquia sofreu duas influências prepon derantes - a que vinha de nossa tradição político-jurídico, ligada a Por tugal, e a que procurou no modelo francês e na legislação desse país um elemento útil à construção do nosso sistema. Em ambas, de origens muito antigas, pois que a de Portugal remontava ao século XIV, a influência do Poder Real e o caráter consultivo do Conselho imprimiram a feição original do nosso Conselho de Estado. Somente no correr do século XIX definiu-se a sua ação jurisdicional, com que se multiplicou a competência daquele órgão. Também aqui entre os dois modelos - o francês e o português - düicilmente seria possível descobrir qual a fonte mais preponderante na or ganização e no funcionamento do nosso Conselho de Estado. A leitura das suas decisões, entretanto, mostra bem a influência marcante do direito administrativo francês, pelo menos em algumas sugestões sobre as quais versavam pareceres e decisões daquele órgão. Em matéria processual, no regime dos contratos e concessões, nas ques tões puramente teóricas e doutrinárias, os autores franceses são freqüente mente citados, enquanto que em questões territoriais e de domínio, bem como nas finanças, e em certas peculiaridades de instituições que não en contram similar no direito estrangeiro, prevalece o velho direito portu guês - as nossas leis civis e administrativas, ainda em formação, consti tuem o apoio máximo das decisões e pareceres do Conselho. Não seria, entretanto, demasiado dizer que em relação à orientação doutrinária, preponderou a influência do modelo francês, por intermédio de autores familiares aos nossos juristas de então, especialmente Corme nin, Macarel, Renault (em sua História do Conselho de Estado), Oalloz, Vivien e outros. Na elaboração da Lei de 1842, houve sempre a preocupação de evitar o modelo francês, ou peld menos, afirmou-se muito reiteradamente este propósito. O autor do projeto, Ministro do Império e Senador Bernardo Pereira de Vasconcellos, por exemplo, insistia na originalidade do nosso Conselho de Estado, como órgão consultivo, função que na França exer ceu, excepcionalmente, em períodos muito transitórios, como na Restau ração. No Brasil, foi entretanto esta a sua competência maior, desde a sua organização, lembrando mais talvez o Conselho Privado da Coroa Inglesa. A reação contra uma cópia muito liberal de qualquer modelo estran geiro, era também natural, embora seu sucesso fosse muito duvidoso. Além do mais, a idéia do Conselho de Estado estava, no Brasil, ligada à do Po der Moderador, inspirada na concepção de Benjamin Constant. Foi, por isso mesmo, em torno do imperador que a idéia cresceu - e que se cons truiu o Conselho de Estado, pelo menos em sua forma mais primitiva. Foi com a atenção voltada para o Conselho de Estado na França que enveredamos por um caminho perigoso e de difícil execução, isto é, o da ampliação da competência do Conselho de Estado à matéria contenciosa COllselho de estado 53 administrativa, convertendo-se timidamente por falta de preparo prevlO em uma espécie de tribunal administrativo. Desvirtuava-se com isto o objetivo político de sua criação, lançando-se numa aventura cujo sucesso só seria possível por uma atuação ousada e decidida. Neste setor jurisdicional, a tentativa resultou em fracasso. O mesmo, entretanto, não ocorreu nos demais setores, especialmente no exercício da função normativa e regulamentar, bem como no estudo dos nossos grandes problemas administrativos. Aí foi o seu trabalho da maior importância, e nele se encontra a base do nosso direito administrativo. Sem o Conselho de Estado, pouco nos teria legado o Império. Tal como na França, discutiu-se muito a legitimidade do Conselho de Estado, como poder criado pela lei, sem a origem constitucional. Na prá tica, ele se interpunha entre os poderes, não só no exercício da função jurisdicional, reduzindo de alguma forma a competência própria e especí fica do poder judiciário, mas também na ação política dos ministros e do Parlamento. Como admitir-se o sistema, quando a organização dos pode res e o seu funcionamento dependiam da estrutura constitucional? Dizia-se também que o Conselho de Estado limitavaaté o direito reco nhecido ao imperador de consultar quem entendesse, ficando, pelo órgão criado, limitado o número dos seus conselheiros. Objetam outros que tendo a Constituição abolido o Conselho de Estado não seria lícito restabelecê-lo por lei - quando muito seria tolerável criar outro. As objeções não tinham razão de ser. O único obstáculo apreciável à sua criação era o de natureza constitucional, mas apenas no que dizia respeito ao funcionamento dos poderes constitucionais, inatingível por outros órgãos criados pela lei ordinária. Outro motivo de oposição era a vitaliciedade do Conselho, que criava uma oligarquia sempre consultada, sempre a recomendar ao monarca as mesmas figuras, somente substituíveis pela morte de um, escolhidos por vontade única do imperador. Mas, no caso, a vitaliciedade era uma prote ção contra o arbítrio do imperador, uma garantia da liberdade do voto e da opinião dos conselheiros. Um conselho à mercê da vontade do impe rador não teria o prestígio e a independência necessários para manifestar em qualquer assunto, mesmo de natureza política, a sua opinião. Sempre houve, entretanto, duas preocupações no Brasil, como em Por tugal, na organização e no funcionamento do Conselho de Estado: a) manter o Conselho de Estado na dependência do Poder Executivo, con siderando-o órgão auxiliar da administração ativa; b) respeitar o princípio da separação dos poderes, pela independência da administração em face ao judiciário, e deste perante o Poder Executivo. Não obstante esta preocupação, o contencioso administrativo não tomou o desenvolvimento que seria de esperar. Em matéria consultiva também desapareceu o Conselho de Estado com a República. Compreende-se bem esta orientação, se considerarmos a tradição real dos Conselhos de Estado, a sua função protetora do soberano, o que levou 54 R.C.P. 4/76 um político brasileiro a chamar o Conselho de Estado de pára-raios do imperador. Era natural, por isso, que a República pelo menos em seus {'rimeiros anos o suprimisse. Tentativas, entretanto, foram feitas· com os projetos ArnoIfo Azevedo e Afrânio de Mello Franco para revivê-Io, ajustado à forma republicana de governo. Não lograram êxito as tentativas, mas os conselhos técnicos e consultivos apareceram sob formas novas, bem conhecidas no direito admi nistrativo moderno, principalmente no setor econômico. Com o advento da República, suprimiu-se entre nós o contencioso admi nistrativo. Adotamos um regime judicialista que exclui a dualidade do sis tema jurisdicional: uma justiça única, em que somente os tribunais judi ciários que integram a justiça ordinária decidem as controvérsias. Uma única exceção tivemos, mas já foi em parte abolida em relação às causas federais, não pelo critério,ratione materiae, da natureza jurídica da controvérsia, mas pela presença no processo do Poder Federal - ratione personae. Qualquer decisão administrativa, mesmo as proferidas pelas ins tâncias administrativas, estão sujeitas ao controle da legalidade. Se, por um lado, amplia-se a competência da jurisdição comum, incluindo sob o seu controle todos os atos administrativos, por outro, restringe-se a sua competência na profundidade dos atos e na sua conformidade com a lei. Elimina-se a jurisdição administrativa própria, mas também para alterar a natureza do controle adstrito à função própria aos órgãos judiciais. E este é um dos aspectos peculiares ao sistema - a instância judicial não se envolve no mérito do ato, mesmo quando de natureza administrati va, nas razões de conveniência, de oportunidade, de interesse, mas apenas da sua conformidade com a Constituição e a lei. Neste particular, a instância administrativa esgota-se nos próprios órgãos administrativos, sujeitos ao poder judiciário apenas no que diz com a lega lidade do ato ou decisão. O recurso por excesso de poder, o abuso do poder, são expressões de compreensão restrita porque na sua apreciação judicial, raramente envolvem as razões que determinaram o ato, mas unicamente a competência da auto ridade, a conformidade do seu ato com os preceitos legais aplicáveis à espécie. Há uma diferença de técnica no julgamento dos atos administrativos pelos tribunais especializados,· que os franceses conhecem, como todos aqueles que têm um regime contencioso administrativo. No Brasil, esta diferença de técnica só se encontra na justiça do trabalho, autônoma, ou em certa forma, na justiça eleitoral, também independente. Na órbita administrativa, porém, esta distinção não existe, porque mesmo os tribu nais administrativos, ou melhor, os órgãos coletivos a que estão afetas as questões administrativas, têm os seus atos sujeitos ao controle judicial, como qualquer autoridade administrativa. Este sistema tem provocado certas reações tendentes à criação de algu mas jurisdições administrativas especializadas. Nos Estados Unidos, prin cipalmente, desenvolveu-se esta tendência para criação de commissions COllselho de estado 55 relacionadas nào só com a exploração dos serviços públicos (pllblic llIili fies), mas também com o comércio interestadual e internacional (Interstate Commerce Commission). Na Inglaterra também verificou-se a mesma ten dência. No Brasil, porém, todas as instâncias e "tribunais" administrativos estão sujeitos ao controle judicial e com uma intensidade talvez excessiva. Nos Estados Unidos, por exemplo, em matéria de tarifas do serviço pú blico, decidem soberanamente os commissiol1s sem recurso judicial. Mas, este será cabível todas as vezes em que tais tarifas forem consideradas confiscatórias, isto é, forem tão baixas que levem a empresa à falência, ou tão altas que sejam inacessíveis ao usuário. Não será o princípio da estrita legalidade que orientará o juiz, mas um elemento quase imponderável cujo nome é a cláusula due process, por meio da qual todos os direitos e liberdades não expressos. encontram a sua proteção. Somente a sensibilidade de um juiz anglo-saxônico, educado na aplicação da commoll lall' e do costume, poderia manejar instrumento tão sutil. Tenho sustentado sem grande sucesso perante os tribunais, que a parte técnica das decisões proferidas pelos tribunais administrativos especializa dos é inacessível ao exame judicial, por exemplo: as condições técnicas de um abalroamento de navios para efeito da responsabilidade. o resultado de uma perícia sobre produtos minerais realizada por uma instância de ta rifas aduaneiras, etc. Os tribunais brasileiros, entretanto, têm considerado tais decisões admi nistrativas como sujeitas à apreciação. como prova, como elementos de informação, sem reconhecer a natureza decisória desses atos. Todas essas dificuldades teriam sido sobrepujadas com a criação de tri bunais administrativos ou, pelo menos, com o reconhecimento do valor de certas decisões administrativas, como res judicata, pelo menos no que se refere ao merecimento dessas decisões na sua parte técnica e especializada. Em conclusão, o modelo político a que obedeceu o sistema imperial foi da maior eficácia para a política de todo o reinado de D. Pedro lI. O seu valor técnico e doutrinário fornecia ao modelo, além do mais. um sentido que muito contribuiu para a sua boa aplicação. As crises naturais em um país ainda em formação enfraqueceram o sistema e determinaram a procura de outros modelos, inteiramente diversos. A República criou um modelo novo, ainda hoje à procura de uma definição que a atualize com as neces sidades da época em que vivemos. A revivescência de um Conselho de Estado, novo, aperfeiçoado, adequado às necessidades do regime presiden cial, poderia, na opinião de muitos, servir de suporte às decisões graves de um presidencialismo forte. Não creio que se possa transpor o modelo imperial para uma República. No modelo presidencialista não há lugar para um órgão que tire ao pre sidente a flexibilidade de sua ação ou limite o seu poder de decisào. As suas relações com o Poder Legislativo é que precisamser esclarecidas, porque da perfeição desse convívio é que pode resultar uma política sáhia, uma administração eficaz e um regime de liberdade. 56 R.C.P. 4/76 Poder Moderador e Conselho de Estado faziam parte de um modelo político que foi salutar para o Segundo Reinado. Não posso dizer que o seja para uma República presidencialista. Esta tem um modelo conhecido, cuja eficácia depende de sua articulação com os outros poderes, cada qual com sua função específica. O Conselho de Estado foi, no Império, uma peça essencial para o fun cionamento do Poder Moderador, sabiamente exercido pelo nosso Impera dor Pedro 11. Foi uma grande instituição que teve a sua época. SE VOC~ ACHA QUE SABE TUDO SOBRE PSICOLOGIA, NAO DEVE ASSINAR ABPA. ABPA * destina-se aos profissionais de psicologia que desejam estar bem informados. Em suas páginas, o leitor encontra sempre novas questões. ABPA publica artigos e comentários atuais sobre temas psicológicos e informa sobre tudo que se publica na área da psicologia. Não assine ABPA se você não deseja questionar seus conhecimentos. * Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada (diga ABPA) Conselho de estado 57
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