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SOCIEDADE, ESTADO E O DIREITO ANTONIO CARLOS WOLKMER * 1. O indivíduo, a sodedade e o Estado; 2. A sociedade civil e a sociedade política; J. O poder, o Estado e o direito. 1. O indivíduo, a sociedade e o Estado o homem, enquanto realidade histórico-existencial, tende a criar e a desen volver, no contexto de um mundo natural e de um mundo valorativo, formas de vida e de organização social. A espécie humana fixa, na esfera de um espaço e de um tempo, tipos e expressões culturais, sociais e políticas, demar cadas pelo jogo dinâmico de forças móveis, heterodoxas e antagônicas. Cada indivíduo, vivendo na dimensão de um mundo simbólico, lingüístico e herme nêutico, reflete padrões culturais múltiplos e específicos. Sendo a realidade social o reflexo mais claro da globalidade de forças e atividades humanas, a totalidade de estruturas de um dado grupo social precisará o grau e moda lidade de harmonização deste. A unidade de estruturas, numa sociedade e período determinado, pode ser visualizada dentro de categorias ou funções de diferentes níveis. Para o sociólogo argentino Marcos Kaplan, três aspectos são básicos em toda análise. O primeiro aspecto se dá no âmbito de relação do ser humano com a natureza; implica o grau de desenvolvimento das forças produtivas. Estas propiciaram os substratos do ser cultural humano na plenitude de sua consciência histó rica. O segundo aspecto é expressado pelo mecanismo das relações de pro dução. As modalidades sócio-econômicas e políticas nas sociedades humanas descortinam o nível de desenvolvimento e estruturação das relações de pro dução. Finalmente, outro dado a considerar é o que está no grau de desen volvimento das forças produtivas que, alicerçado no jogo das relações hu manas, tende a edificar uma superestrutura, composta por configurações cul turais e ideologias, espécies e graus de poder, bem como instituições jurídicas, sociais e políticas.l A tendência natural e espontânea do homem - associar-se a outros seres humanos - parece ser uma condição fundamental na consideração de toda relação entre indivíduo, sociedade e Estado. Isto nos leva a questionar não só a natureza do homem, como a própria natureza da sociedade e do Es tado, bem como os limites da liberdade do homem e da autoridade. O homem, • Professor de Teoria Geral do Estado e Filosofia do Direito, na Unisinos, RS. 1 Kaplan, Marcos T. Formação do Estado nacional na América Latina. Rio de Janeiro, Eldorado, 1974. p. 9-41. R. C. pol., Rio de Janeiro, 26(3):36-45, set./ dez. 1983 por natureza, será bom, social e racional, ou mau, egoísta e destruidor. E a sociedade? Expressa uma realidade racional, fruto da cooperação natural dos homens que buscam a realização de fins que satisfazem suas necessidades, ou uma realidade artificial e fictícia, resultado não de uma associação natural, mas do acordo de vontades. Quanto ao Estado, poder-se-á questionar sobre seu sentido, sua natureza e finalidade. O Estado pode ser definido ora como um jogo de papéis e funções que se interligam e se complementam na esfera de uma estrutura sistêmica, ora como um aparelho repressivo que tende a defender os interesses das classes dominantl?s no bloco hegemônico de forças. Indiscutivelmente, o problema que abrange a relação do indivíduo com o Estado mereceu sempre o mais vivo interesse de antigos pensadores, desde autores greco-romanos até escolásticos medievais. O pensamento escolástico apresentou duas tendências doutrinárias distintas, através do que pode ser denominado de nominalismo e realismo. Os nominalistas observavám que a verdadeira realidade estava no indivíduo e não no Estado; este não passava de mero agregado, sem realidade pr6pria, fora daquela de seus componentes. Já os realistas afirmavam que o Estado era a única realidade, pois seus componentes eram apenas unidades ou partes sem realidade pr6pria· alguma.2 Disto pode-se depreender que, em certos períodos da Hist6ria, o indivíduo, coryorificado na idéia de sociedade, esteve acima do Estado, ou seja, o Es tado estava em função do indivíduo. Esta tendência era defendida por um certo grupo de autores cristão-liberais, individualistas, naturalistas, bem como, num posicionamento mais radical, pelos anarquistas. Sob um outro. aspecto, como quer o hegelianismo e todo o formalismo coletivista, pode-se colocar o Estado acima da sociedade e dos indivíduos: o indivíduo em função do Es tado. Na primeira abordagem, acentuando o poder do indivíduo e. da socie dade, o Estado constitui-se num instrumento, no mais valioso meio para a realização dos fins do grupo social. Já a segunda proposição ressalta o fim último do Estado. Este nada mais é do que um fim em si mesmo. O individualismo estabelece, portanto, a supremacia do indivíduo, enquanto o coletivismo não reconhece os direitos individuais contra a sociedade política. 1.1 Concepções doutrinárias sobre a supremacia do indivíduo Num primeiro plano, identificaremos a concepção individualista de socie dade e de Estado, que rompe definitivamente com as proposições tradicionais da Idade Média. Neste contexto, a sociedade se fundamentava num direito natural racional que pressupunha um status naturalis dos indivíduos; estes, - por vontade pr6pria, uniam-se mediante um contrato, que os qualificavam para um status civilis. A característica e a tipificação da natureza assume um papel fundamental para determinar o grau de tranqüilidade e bondade ou egoísmo e bestialidade do homem. O homem poderá ser bom (Locke, Rousseau) ou mau (Hobbes) numa condição de plena liberdade em que o vínculo que_ o une é essencialmente racional. 2 Frost Jr., S. E. Ensinamentos básicos dos grandes filósofos. São Paulo, Cultrix, 1968. p. 193; Wolkmer, Antonio Carlos. Ensaio histórico sobre o jusnaturalismo. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo, (23): 104, 1978. Estado e direito 37 Hobbes alertava para o fato de que somente a autoridade e a razão re freariam o impulso agressivo, insaciável e egoísta do homem em seu estado natural, e, em assim sendo, imperiosa seria a organização política de uma sociedade em que o governo, visando à segurança e ao bem-estar do todo, não encontraria limites de poder. Uma reação clara e sistematizada ao absolutismo hobbesiano é encontrada em Locke, para quem o estado natural do homem é demarcado pela soli dariedade e perfeita igualdade. No liberalismo político de Locke, o Estado representa a instituição incumbida, por vontade expressa dos indivíduos, de manter a ordem e o equilíbrio no jogo de interesses e necessidades dos ele mentos constituídos. A concepção do homem livre a racionalmente político possibilita substrato para a ideologia do iluminismo político e do laissez-faire econômico, onde a interferência do Estado é mínima. O contratualismo teve, em Rousseau, a determinação incisiva, complexa e difusa, na medida em que, influenciando diretamente a Revolução Francesa, demarca, como ponto basilar, os chamados direitos e as garantias naturais da pessoa humana. A base da sociedade não está exatamente numa natureza boa ou egoísta, mas em uma volonté génerale, que expresse o livre acordo de direitos naturais e indivi duais por direitos civis. O poder que representa esta vontade geral se cons titui numa instituição (Estado) moral e política que dá execução às decisões do todo. O poder constituído, por se originar e pertencer ao interesse comum, não poderá ser divisível e alienável. O estado da natureza não é, para Rous seau, uma luta e choques de egoísmo. Para ele, o homem, em seu estado primitivo, é bom; a sociedade é que o desvirtua com seu artificialismo. Assim sendo, a sociedade deveria ser modelada de acordo com princípios e leis da própria natureza.3 Em uma outra perspectiva, aproximamo-nos dos anarquistas, que não só formaram um dos mais importantes movimentos ideológicos do século XIX, como também representaram a forma mais extremada de ideologia individua lista. Não obstante seu caráter tendenciosoe o exacerbado individualismo, o anarquismo, muitas vezes, apresentou tendências nem sempre homogêneas en tre seus principais corifeus, tais como Godwin, Stirner, Proudhon, Bakunin ou até mesmo Kropotkine. Godwin reconhece uma bondade natural no homem, mas observa que nem sempre o homem é justo e correto, pois a propriedade privada, fundamen tando toda a concepção de autoridade política, tem como objetivo manter, sob qualquer sentido, a institucionalização coercitiva. O anarquismo de Max Stirner assume contornos bem mais ortodoxos; prova disto é o sobejo misti cismo individualista. Todo valor é calcado na idéia de indivíduo em sua relação teleológica. Neste ponto, assevera Dallari, o Estado, para Stirner, é "mau, porque limita, reprime e submete o indivíduo, obrigando-o a se sacri ficar pela comunidade. Assim, o terrorismo e a insurreição devem ser consi derados justos, porque visam eliminar as injustiças que o Estado comete".4 3 Dallari, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo, Saraiva, 1971. p. 7-15; Schaar, John H. O Mundo de Erich Fromm. Rio de Janeiro, Zahar, 1965. p. 23; Frost Jr., S. E. op. cit. p. 193-202. 4 Dallari, Dalmo de Abreu. op. cit. p. 33-5; Maluf, Sahid. Teoria do Estado. 9. ed. São Paulo, Sugestões Literárias, 1978. p. 330-1. 38 R.C.P. 3/83 Partindo do pressuposto de que o indivíduo é a forma mais expressiva da realidade existente, a sociedade constituiria uma irrealidade. Contudo, a fi gura mais ilustrativa do anarquismo militante e revolucionário é Mikhail Ba kunin. Bakunin prega a eliminação da religião, da propriedade privada e do Estado. Para que isto ocorra, é necessária a utilização de todos os modos revolucionários, mesmo que isto sacrifique a ordem pública. A solidariedade e a livre associação seriam as formas de reações mais comuns e necessárias, quando da destruição das organizações estatais burguesas. Dentro do anar quismo, outro teórico que não se pode olvidar é Kropotkine, que não só se opôs a Marx, como também ao próprio Bakunin. Kropotkine acreditava não só no método pacífico para chegar-se ao anarquismo, como também tinha profunda crença no ser humano, através da assistência e cooperação recíproca. 1.2 Concepção doutrinária da supremacia estatal As doutrinas coletivas consideram a subordinação do indivíduo ao poder exclusivo e total do Estado. O indivíduo perde sua identidade real em função de universalidade em progressão. O coletivismo, em seu aspecto genérico, tende a compartilhar da concepção hegeliana de que o Estado está acima do in divíduo e da sociedade. A concepção hegeliana assume um caráter conser vador, na medida em que considera o Estado como razão absoluta, distante da apreciação feita pela tradição de identificar Estado com a totalidade do social. Neste sentido, Georges Gurvitch assevera que "toda a 'Filosofia do di reito' de Hegel não passa de uma construção artificial dirigida à glória do Estado, que encama não só a síntese estática da família e da sociedade civil, e mais ainda do direito e da moralidade, mas ainda a síntese da 'idéia' e da realidade social, da razão e da história, do destino místico coletivo e do movimento do tempo."5 O Estado, para Hegel, ultrapassa a realidade social concreta para se alojar na categoria de "moralidade concreta absoluta". As variáveis estabelecidas dimensionalizam o jogo da tese e antítese que perfazem, de um lado, o elo de junção, configurado na família e, de outro lado, a dispersão das relações, representada pela sociedade civil. Ambas - família e sociedade civil - não passam de meros esquemas abstratos e quase inexistentes em face da umca realidade materializada, a verdadeira expressão do "espírito objetivo" - o Estado. A concepção hegeliana de Estado, assevera com propriedade Gurvitch, en cama "a realidade de idéia moral, a totalidade ética, a realização da liber dade, o verdadeiro organismo, o infinito real, o espírito na sua racionalidade absoluta e na sua realidade imediata".6 No bojo destas considerações, a liber dade real é a subordinação e a participação individual na esfera da liber dade estatal. A felicidade da pessoa está intimamente vinculada à totalidade moral do Estado; a essência reside na idéia do todo racional e místico, e não na individualidade, pois esta só se realiza mediante aquela. Isto, contudo, po deria conduzir à falsa proposição de que a oposição entre Estado e sociedade 5 Gurvitch, Georges. Dialética e sociologia. Lisboa, Dom Quixote, 1971. p. 126-7. 6 Id. ibid. p. 129; Hegel. Principes de philosophie du droit. Paris, Gallimard, 1940. p. 217-70; Cassirer, Emest. O Mito do Estado. Rio de Janeiro, Zahar, 1976. p. 281-94. Estado e direito 39 civil assume demarcações rigidamente ortodoxas. Pode-se perceber, no entanto, a efêmera aparência de uma hipotética desvinculação entre ambas ou do erro de uma total subordinação da sociedade civil ao Estado. Mesmo que a autoridade do Estado reine de modo absoluto, tipificando uma relação de superioridade, a tramitação entre Estado e sociedade civil envolve uma certa dosagem recíproca de interesses. A este respeito, Sabine observa que "a superioridade moral, atribuída ao Estado, não implica desprezo pela sociedade civil e suas instituições, mas, em certo sentido, exatamente o oposto". Ora, Sauine reconhece na proposição hegeliana o fato de que, em bora Estado e sociedade civil sejam mutuamente dependentes, ambos estão localizados em níveis dialéticos opostos, pois o primeiro conduzir-se-ia "em obediência a fins conscientes, princípios e leis conhecidos, que não estão mera mente implícitos, mas expressos diante de sua consciência". Já a segunda refletiria a "esfera das inclinações cegas e da necessidade casual".7 A depen dência da sociedade pode ser explicada pelo fato de que, uma vez isolada, ela seria dirigida por regras e normas mecânicas, fruto da interação de in divíduos egoístas, incapazes e corruptos. Já o Estado dependeria da socie dade na medida em que seus interesses recairiam sobre os meios próprios desta mesma sociedade, o que possibilitaria a realização dos fins morais idea lizados. O Estado não chega a ser um meio, pois é essencialmente um fim. Neste sentido se explicaria o surgimento da sociedade civil como um meio de que se vale o Estado para a realização de seus fins específicos, enquanto ideal racional em progressão.8 E oportuno lembrar que Marx, em sua Crítica da filosofia do direito de Hegel, de um lado, encara a integração da sociedade burguesa histórica com o Estado, visualizada em Hegel, como o eixo basilar de todo o movimento dialético concreto que se manifesta no mundo social; mas, por outrú lado, Marx aponta o fracasso de Hegel, pois, "em toda parte, Hegel cai do seu espiritualismo político no materialismo mais grosseiro".9 Ora, Marx não deixa de reconhecer, contudo, que o mérito de Hegel "está em ver que a separação enfre sociedade civil e política é uma contradição. Mas está errado em con tentar-se com a aparência de sua solução, e apresenta a aparência como coisa real".lO O Estado hegeliano não só idealiza um valor de hierarquia racionalizada, representativo da monarquia prussiana, como também incorpora um modelo que se aproxima, em muito, da organização estatal burguesa. Mais recente mente, a propósito desta questão, Bobbio Norberto desencadeia uma brilhante polêmica através da publicação de dois ensaios no Mondoperaio sobre a con cepção dialética do Estado e a democracia representativa. Bobbio ataca os marxistas mais ortodoxos que se alinham ao lado das tradicionais críticas de Marx à teoria hegeliana, considerando Hegel o maior representante da teoria burguesa do Estado. Ora, para Bobbio, Hegel não pode ser considerado um teórico do Estado burguês, pois era um idealista que rejeitava as principais teses das revoluções políticas "burguesas", fundamentadas no individualismo e no contratualismo. Os autores liberais sempre tiveram a preocupação de 7 Sabine, George H.História das teorias políticas. Lisboa, Fundo e Cultura, p. 644·5. 1961. 8 Id. ibid. 9 Gurvitch, Georges. op. cit. p. 135. 10 Runciman, W. G. Ciência social e teoria política. Rio de Janeiro, Zahar, 1966. p. 39. 40 R.C.P. 3/83 defender a sociedade civil da ameaça e da intervenção estatal; neste contexto, argumenta Bobbio, "a teoria liberal-burguesa do Estado, traçada em uma fa mosa passagem de _ Ada~ Smith sobre os limites do poder do Estado, é a exata antítese da conceituaçãó hegeliana do Estado ético".l1 2. A sociedade civil e a sociedade política O presente estudo nos levou a duas proposições fundamentais nas relações entre Estado e indivíduo: os postulados liberais em que a sociedade civil estaria acima do Estado, e as variantes da supremacia estatal corporificada no hegelianismo. Transcendendo a esta clássica dicotomia, encontraremos algumas tentativas teóricas, contemporâneas, no âmbito das ciências sociais e políticas, de des fazer toda e qualquer separação extremada entre sociedade civil e Estado. Dentre as análises de maior significação no que se refere à originalidade e inovação, perfila-se o pensamento de Antonio Gramsci. Gramsci tende a situar as complexas esferas da sociedade civil e da socie dade política no âmbito de uma totalidade orgânica que ele chama de "superes trutura". As relações estruturais, ou seja, a infra-estrutura sócio-econômica e a superestrutura político-ideológica assumem, em Gramsci, uma nova demar cação histórica no chamado "bloco histórico". Grande parte dos autores· e intérpretes da obra gramsciana considera a noção de "bloco histórico" como o conceito-chave em todo o seu pensamento. Neste sentido, a idéia de "bloco histórico" reflete o conjunto de relações entre estrutura e superestrutura que se efetiva através de um vínculo orgânico. O "bloco histórico" não apresenta caráter perene, pois na medida em que a hegemonia da classe dominante se desagrega e um oytro sistema hegemônico se solidifica, um novo "bloco his tórico" também se estrutura. Gramsci, portanto, distingue no aparelho com plexo das superestruturas dois níveis de relações materiais: o primeiro, desig nado como "sociedade civil", que envolveria "o conjunto de organismos, habitualmente chamados 'internos e privados' ", abarcando a complexidade das atividades educativas e ideológicas. O segundo expressa a chamada "so ciedade política ou Estado", que corresponderia "à função de 'hegemonia' que o grupo dirigente exerce sobre o conjunto do corpo social e à da 'dominação direta' ou chamado, que se expressa por meio do Estado e do poder 'jurídico' "; abarcariam o presente nível os órgãos de força e de coerção.12 Em seu Gramsci e o bloco histórico, Portelli observa que a concepção gramsciana da sociedade civil se aproxima muito mais da de Hegel que da '\te Marx e Engels. Convém lembrar que em A I deologia alemã~ Marx e Engels ressaltam que a sociedade civil é "o verdadeiro centro da História, o palco das relações econômicas", enquanto que "o Estado, a ordem polí tica, é o elemento subordinado",!ll Entrando na abordagem configurada por Bobbio, assevera Portel1i14 que a análise gramsciana apóia-se em alguns tre- 11 Bobbio, Norberto et alii. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro, Graal, 1919. p. 21-2. 12 Macciocchi, Maria Antonietta. A favor de Gramsci. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p. 150-1. U Portelli, Hugues. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977. p. 20. 14 Id. ibid. p. 2. . Estado e direito 41 chos dos Princípios da filosofia do direito, e mesmo sendo um tanto "unila teral" diverge da rígida interpretação marxista. A visão gramsciana transcende ao mero conjunto estrutural sócio-econômico do marxismo ortodoxo, para se alojar na inovadora esfera superestrutural. A área de abrangência da sociedade civil é, para Gramsci, extremamente vasta; sua força motora delimita as categorias do bloco histórico, bem como manifesta a concepção de um mundo de teor eminentemente ideológico. Assim sendo, a sociedade civil, enquanto ideologia de uma classe dominante, tende a estender-se desde a arte, ciência, economia, direito e religião, pois o do mínio da sociedade civil é um domínio ideológico. A sociedade civil é per feitamente estruturada, de modo que a classe dirigente possa, através de orga nizações específicas, difundir sua ideologia. As principais formas de organi zações ideológicas estariam representadas pela Igreja, escola e pela imprensa. Escreve Portelli que a realidade político-militar em Gramsci, configurada como sõciedade política, é a seqüência e concretização natural do domínio econô mico e da ideologia de uma classe dominante. Assim, a sociedade política é caracterizada, no bojo da superestrutura, não só pelo seu papel de coerção, mas pelo papel de força de manutenção da ordem social e política. Pondera ainda Portelli que a idéia de sociedade política, bem como a de sociedade civil, não reflete, exclusivamente, uma organização estrutural, pois distingue se, fundamentalmente, pelo seu aspecto funcional. O exercício da função coercitiva é sedimentado pelo domínio militar e pelo grupo de administradores especificados: a burocracia. No contexto da totalidade dialética, a dicotomia funcional é distinguida pelo consenso e pela coerção. As relações entre sociedade civil e sociedade política apresentam constante e permanente interação, chegando, em determinado momento, a alcançar uma identificação própria e entrelaçada. Ora, se assim for estabelecida, a possível distinção entre uma e outra não é teoricamente de caráter orgânico, mas "meto dológico", na medida em que consideramos aspectos diversos da hegemonia da classe dominante. Uma vez que as relações entre sociedade civil e socie dade política, no seio da superestrutura, são cada vez mais profundas, o consenso e a coerção apresentam-se em ambas sob formas mais variadas. Inexiste, portanto, o domínio isolado e absoluto do "consenso" no âmbito da hegemonia da sociedade, assim como o domínio da coerção no âmbito da hege monia estatal. Apesar de o consenso ser identificado, normalmente, com a sociedade civil e a coerção com a sociedade política, existe uma certa ambi valência dos mesmos na esfera da superestrutura. Para Gramsci, a classe dominante utiliza ora determinados órgãos da sociedade civil (órgãos de opi nião pública) para sedimentar seu monopólio hegemônico na área do apa reTho coercitivo do Estado, ora órgãos da sociedade política (Parlamento) que traduzem a junção da coerção estatal com o consenso público. A força de perpetuação hegemônica da classe dominante repousa na vinculação orgânica e no desenvolvimento da sociedade civil e da sociedade política. A estreita ligação entre os múltiplos elementos da organização civil e da organização política revelam a complexidade de um novo conceito de Es tado, onde se alteram hegemonia de classe, formas de consciência e criações ideológicas. Além de expressar o poder de uma classe, esse conceito, observa Macciocchi, serve igualmente para explicar a relação dialética entre coerção e consenso. O Estado, portanto, em Gramsci, não é somente "sociedade 42 R.C.P. 3/83 política", mas também "sociedade civil", pois ele garantirá "ao proletariadu o papel hegemônico na conquista do consenso". A sociedade civil estará si· tuada entre a legislação do Estado e sua estrutura econômica. Logo, o Es tado, para Gramsci, "é a sociedade política mais sociedade civil, ou seja, uma hegemonia protegida pela coerção".ll1 Não obstante esta junção para o esboço de um conceito genérico de Estado, convém deixar claro a importância de uma distinção entre ambas, pois, assim, evitar-se-á o grave erro, já reconhecido pelo próprio Gramsci, da chamada "estadolatria". Neste sentido, comenta Portelli,16 a estatização não só evidencia absorção gradativa da cultura e da educação, como também faz transparecer o visível enfraquecimento dos órgãos tradicionais da sociedade civil em bene fícioimediato do aparelho político estatal. Momentaneamente, a "estadolatria" poderia ser justificada; quando "alguns grupos sociais, antes da tomada do poder, não viveram um largo período de desenvolvimento cultural e moral independente (. .. ), um período de estadolatria é necessário, e mesmo opor tuno".11 Contudo, este domínio provisório do aparelho estatal cederá lugar para a hegemonia da sociedade civil. Escreve Portelli que o domínio de sociedade civil possibilitaria a Gramsci visualizar todo o "grau de evolução de um bloco histórico em um sistema hegemônico progressivo". A primazia da so ciedade civil corresponderá não só à extinção do Estado, mas igualmente à implantação de um novo sistema hegemônico, tipificado pela reabsorção da sociedade política pela sociedade civil, numa superestrutura sem classes.18 3. O poder, o Estado e o direito As relações entre Estado e direito têm-se constituído numa da:! mais im portantes questões teóricas no âmbito da ciência jurídica positiva. As interações entre o ordenamento e a ordem estatal originaram, histori camente, algumas posições clássicas, tais como o dualismo tradicional, de um lado, e o monismo jurídico, de outro. A teoria dualista, além de apregoar que o Estado e o direito são reali daaes distintas, tende a fixar os limites de extensão real de cada uma das áreas. Considerações de natureza sócio-política comprovam a existência pri meira do fenômeno jurídico sobre o fenômeno estatal, pois a passagem da "sociedade natural" para uma forma complexa de "associação política" se efetiva com a conservação dos direitos naturais e com a autolimitação da ordem coercitiva estatal. Ainda dentro da doutrina tradicional, surge a variante da prioridade lógica do Estado sobre o direito; neste sentido, o Estado é o criador do direito, pois este está subordinado àquele, e assim, mesmo que as normas não sejam estabelecidas pelo Estado, teriam sua sanção a posteriori. T á para os adeptos da supremacia estatal, o Estado viria a ser a fonte mais importante do direito. Quando da infração ou do descumprimento da ordem ti Macciocchi, Maria AntonieUa. op. cito p. 151-2. 16 Portelli, Hugues. op. cit. p. 34-8. 17 Gramsci, Antonio. Apud Portelli, Hugues. op. cit. p. 38. 18 Portelli, Hugues. op. cit. p. 32-43. Estado e direito 43 jurídica, o Estado entraria em ação, dando aplicação e sentido ao elemento normativo, garantindo e assegurando a coesão da ordem sócio-política. O dualismo direito e Estado tem sido alvo dos mais vigorosos ataques por parte dos chamados monistas, que têm como insigne representante o próprio Kersen. Observa com p,ropriedade Campos Batalha que o dualismo direito e Estado, em Kelsen, assume um caráter eminentemente ideológico, pois: "B necessário representar o Estado como uma pessoa diferente do direito para que o direito possa justificar o Estado, que o produz e se lhe submete. E o direito só pode justificar o Estado se é contraposto como uma ordem essencialmente diierente do Estado - cuja natureza original é o poder - e é por ele suporte em algum sentido como ordem reta e justa. O Estado converte-se, pois, de mero factum de poder, em Estado de direito, que se justifica porque elabora o direito. "19 A concepção monista, baseada fundamentalmente no extremismo lógico da teoria pura do direito, tende a eliminar o dualismo jurídico-estatal, na perspec tiva de que o Estado é identificado com a própria ordem jurídica, ou seja, o Estado encarna o próprio direito em determinado nível de centralização. Ora, para Kelsen, o Estado é o próprio Estado de direito, na medida em que personalidade jurídica do -Estado é apenas a expressão da unidade de uma ordem jurídica, um ponto de imputação "que o espírito do homem cognos cente, premido pela instituição, está demasiadamente inclinado a hipostasiar , a supor real, para representar-se, atrás da ordem jurídica, o Estado comó _pm ser diferente daquela".2Q O Estado configura-se como uma organização de caráter político que visa não só a manutenção e coesão, mas a regulamentação da força em uma forma ção social determinada. Esta força está alicerçada, por sua vez, em uma ordem coercitiva, tipificada pelo invólucro jurídico. O Estado legitima seu poder pela eficácia e pela validade oferecida pelo direito, que, por sua vez, adquire força no respaldo proporcionado pelo Estado. Partindo destas proposições, pode-se claramente asseverar que a percepção do poder está delimitada aos marcos de uma ordem normativa harmoniza dor a de conduta. A este propósito, assevera Campos Batalha que "o poder social é sempre um poder que se acha organizado". O poder estatal reflete a eficácia de uma ordem jurídica positiva, pois a ordem política é um poder jurídico organizado. Neste contexto, o poder político "é a eficácia de uma on~em coa tiva que se reconhece como direito",21 A coerção compreendida como força e violência está estreitamente ligada com o poder. Para Schermerhorn, o poder legítimo é aquele tipo de poder "que se exercita enquanto função dos valores e normas aceitáveis para a so ciedade"; conseqüentemente, o poder será ilegítimo quando violar esses valores dominantes. Assim sendo, o poder, nas sociedades diversificadas ou complexas, pode abranger formas legítimas e ilegítimas.22 As diversas formas de poder, difusas na sociedade - como o poder ideológico, econômico, militar, político 19 Campos Batalha, Wilson de Souza. Introdução ao direito. São Paulo, Revista dos Tri bunais, 1968. p. 783. 20 Id. ibid. p. 779. 21 Id. ibid. p. 782. 22 Schermerhorn, Richard A. El Poder y la sociedad. Buenos Ayres, Pai dós, 1963. p. 55-6; 62-4. 44 R.C.P. 3/83 - são todos estruturados na idéia de Estado. A ação estatal incorporada no p;:,der exercido pelo Estado estabelece um poder político específico. Uma concepção revolucionária do poder é visualizada por Michel Foucault, em La Volonté de savoir. Foucault insurge-se contra a idéia de um poder geral e unitário ligado exclusivamente ao Estado, em que toda a gama de poderes existentes na sociedade derivam do Estado. As diversas formas de poder ultra passam a ordem estatal, estendendo-se e difundindo-se aos graus mais elemen tares da estrutura social. O poder, para Foucault, não é uma propriedade ou coisa natural, mas envolve formas distintas, relações heterogêneas em contínua transformação. A este propósito, escreve Roberto Machado: "A idéia básica de Foucault é de mostrar que as relações de poder não se passam fundamen talmente nem ao nível do direito, nem ao nível da violência; nem são basica mente contratuais nem unicamente repressivas."23 Foucault, criticando toda aquela concepção negativa de poder que tende a associar-se com o aparelho repressivo de Estado, expressão da violência e da opressão, estabelece uma idéia positiva de poder que visa dissociar historica mente os termos "dominação" e "repressão": "Par pouvoir, je de veux pas dire 'le pouvoir', comme ensemble d'institutions et d'appareils qui garantissent la sujétion des citoyens dans un ~tat donné. Par pouvoir, je n'entends pas non plus un mode d'assujettissement, qui par opposition à la violence, aurait la forme de la regle. Enfin, je n'entends pas un systeme général de domination exercée par un élément ou un group sur un autre, et dont les effets, par dérivations successives, traverseraient le corps social tout entier. Par pouvoir, il me semble qu'il faut comprendre 'abord la multiplicité des rapports de force qui sont immânerftes ai domaine ou ils s'exercent, et sont constitutifs de leur organization ( ... ) c'est le socle mouvant des rapports de force qui induisent sans cesse, par leur inégalité, des états de pouvoir, mas toujours locaux et instables. Omniprésence du pouvoir: non point parce qu'il aurait le privilége de tout regrouper sous son invencible unité, mais parce qu'il se produit à chaque instant, en tout point, ou plutôt dans toute relation d'un point à un autre. Le pouvoir est partout; ce n'estpas qu'il englobe tout, c'est qu'il vient de partout (. .. )."24 É perceptível que a eficácia do poder público está diretamente vinculada a um sistema jurídico, que disciplina o exercício da propriedade, bem como assegura a reprodução das relações de produção. Por sua vez, se concebermos a perspectiva de Poulantzas, veremos que, enquanto o direito for compreendido como perpetuação do poder político de classes, poderá regular "o exercício do poder político pelos aparelhos de Estado e o acesso a estes aparelhos, por meio de um sistema de normas gerais, formais, abstratas, estritamente regula mentadas, fixadas explicitamente de modo a permitir a previsão", bem como estabelecer "os limites do exercício do poder de Estado, ou seja, da intervenção dos aparelhos de Estado".u 23 Foucault, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. XVII. 24 _-o La Volonté de savoir. Paris, Gallimard, 1976. p. 121-5. 2S Poulantzas, Nicos. Fascismo e ditadura. São Paulo, Martins Fontes, 1978. p. 343-4. Estado e direito 45
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