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95 M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. A arte contemporânea apresenta desafios inéditos para o arte-e- ducador. Vivemos um momento de indefinição, no qual as regras de outrora não valem mais. A ideia de arte se encontra indefinida, as lin- guagens têm limites fluidos e muitas obras são de difícil classificação a partir dos parâmetros existentes. Cada vez mais, estamos rodeados por uma arte que não tem nome, com experiências que desafiam nossa percepção e nosso conhecimento. Este capítulo é dedicado a algumas manifestações que até pouco tempo não existiam ou não eram consideradas dignas de entrar em um currículo. A primeira delas é a performance, arte viva que subverte as expectativas do comportamento cotidiano, estimulando-nos a pensar de modo diferente ou a notar padrões e normas dos quais não tínhamos consciência. Originada no início do século XX, a performance ganhou notoriedade sobretudo nos anos 1970, época em que passou a ter um campo disciplinar específico. Capítulo 7 Linguagens híbridas e contemporâneas 96 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .Decorar a cidade com obras de arte é algo tão antigo quanto as pri- meiras civilizações. Na contemporaneidade, porém, as obras de arte urbana adquirem um caráter contestatório nunca visto antes. Neste capítulo, o grafite e as intervenções site specific são apresentados como expoentes desse momento, abrindo espaço para abordagens e metodologias potentes pelo arte-educador. O audiovisual, por sua vez, desde a primeira apresentação pública de cinema em 1895, está cada vez mais ao nosso redor. Logo de início, a invenção dos irmãos Lumière interessou aos educadores. Hoje, mais do que nunca, educar para o audiovisual se faz necessário para uma educação ampla, cidadã e inclusiva. Fechamos, com este capítulo, um leque bastante amplo de lingua- gens que podem ser abordadas e desenvolvidas pelos arte-educado- res. Do pioneirismo do ensino de artes plásticas e do teatro-educação, passando pela dança e pela música, chegamos, por fim, às linguagens mais atuais e suas aplicações na escola ou em qualquer ambiente edu- cativo, formal ou não formal. 1 A performance e a educação Uma das linguagens mais controversas da arte contemporânea, a performance já tem seu espaço na arte-educação, e cada vez sur- gem mais experiências e estudos sobre essa arte no ensino básico. A origem da performance é incerta, mas data do início do século XX. Mesmo sem usar o termo “performance”, artistas como Marcel Duchamp e movimentos como o Dadaísmo realizaram ações que são vistas como tal. Duchamp, por exemplo, criou um alter ego feminino que chamou de Rrose Sélavy, nome que, ao ser lido em francês, pode ser entendido como “Eros é a vida”. Vestido com roupas femininas, Duchamp se tornou, com essa ação, um precursor da performance arte. Mesmo seu gesto mais conhecido, o de exibir um urinol como obra de arte, pode ser considerado performativo. 97Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. A palavra “performance” possui acepções diferentes e, antes de tor- nar-se conhecida na língua portuguesa, era amplamente usada em paí- ses anglo-saxões com o significado de “desempenho” e “habilidade”. A partir de meados do século XX, passou a designar expressões artísticas nas quais o corpo se faz presente, sem se tratar de teatro ou dança. Foi o caso de Yves Klein, artista francês que em 1960 realizou a ação Antropometria, na qual modelos nuas besuntavam-se com tinta azul e “imprimiam” seus corpos em telas. O mesmo artista realizou nessa época a venda de obras de arte invisíveis, ação que chamou de Zona de sensibilidade pictórica imaterial. A ação consistia em receber um pagamento em ouro pelas supostas obras, entregar o recibo ao com- prador, despejar o ouro no rio Sena, em Paris, e queimar o comprovante. Segundo Klein, essa ação reequilibrava a ordem natural entre artista e comprador. Poucos recibos não foram queimados nessa performance. Em 2022, um deles chegou a ser vendido por US$ 1,2 milhão na casa de leilões Sotheby’s, em Londres. Entre as décadas de 1960 e 1980, várias ações dessa natureza foram realizadas em cidades como Nova York, Los Angeles, Buenos Aires, Rio de Janeiro e São Paulo. Como vimos no capítulo 6, em Nova York, a coreógrafa Trisha Brown colocou um homem descendo a parede lateral de um prédio como se estivesse caminhando. Já no capítulo 3, vimos que, em Los Angeles, Chris Burden pediu que um atirador profissional atirasse em seu ombro, na performance Shoot. Em Buenos Aires, jovens artistas do Instituto Di Tella provocavam a sociedade até mesmo com ações simples, como a performance Urbana manzana, na qual a per- former Narcisa Hirsch distribuía maçãs em uma esquina movimentada do centro da cidade. No Rio de Janeiro, Hélio Oiticica fazia as pessoas ativarem seus parangolés dançando, e Lygia Clark propunha estímulos sensoriais e manipulação de objetos nas obras Bichos e Baba antropo- fágica. Em São Paulo, Wesley Duke Lee escandalizava o público com O grande espetáculo das artes no Brasil, no qual exibia uma série de gra- vuras eróticas iluminadas por lanternas durante um show de striptease. 98 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .O que seria a especificidade dessas manifestações, agrupadas hoje sob o nome de performance? Richard Schechner, artista e professor da Universidade de Nova York, propôs a criação de uma área independente chamada “estudos da performance”, ligada às artes, à antropologia e à sociologia. Influenciado pela filosofia da linguagem de John Austin e J. R. Searle e pelos estudos etnográficos de Victor Turner, Schechner cria a ideia de que tudo o que fazemos é performance, pois estamos o tempo todo repetindo comportamentos aprendidos em gestos, rituais, esportes, maneiras de falar, regras de etiqueta, práticas profissionais, etc. Quando os pais ensinam algo para a criança, estão citando perfor- mances partilhadas socialmente. O que diferenciaria a performance cotidiana da performance artís- tica seria seu caráter transgressor. Um performer subverte as expec- tativas de um procedimento comum para colocar em evidência formas reprimidas de dominação, ocultas pelas normas sociais. É o caso da performance Viva España, de Pilar Albarracín, na qual a artista cami- nha pelas ruas de Madrid rodeada por uma banda que toca canções alegres. Todas as vezes que ela tenta sair de perto dos músicos, é sutil- mente impedida, levando o público a ter uma sensação claustrofóbica e desesperada. O que a performance coloca em evidência são as muitas formas de assédio sofridas cotidianamente pelas mulheres, violências disfarçadas de elogios e galanteios, aparentemente inofensivos como uma banda de músicos idosos, mas que na verdade incomodam e cer- ceiam a liberdade. PARA SABER MAIS Coralidades performativasMuitas vezes, uma performance é realizada coletivamente, e pessoas, artistas ou não, são convidadas a participar. Chamadas de “coralidades performativas”, essas ações se convertem em manifestações potentes que são replicadas em várias cidades do mundo. 99Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. É o caso da performance Un violador en tu camino, do coletivo chileno Las Tesis, na qual mulheres reproduzem uma coreografia criada para ser executada enquanto cantam uma música denunciando a violência sexual e o feminicídio. A letra diz: “E a culpa não era minha/Nem onde eu estava/Nem como me vestia/O agressor é você”. A performance foi reproduzida em várias partes do mundo e viralizou nas redes sociais a partir do final de 2019. A artista indiana Mallika Taneja, em Caminhada noturna, convida mu- lheres para iniciar uma caminhada à meia-noite. Executada em várias cidades, essa performance mostra que uma ação simples como andar à noite pode representar um risco maior para o gênero feminino do que para o gênero masculino. Os brasileiros do Desvio Coletivo executaram em mais de 40 países a performance Cegos, idealizada pelos artistas Marcos Bulhões e Marce- lo Denny. Nela, pessoas cobertas de barro caminham lentamente pelas ruas das cidades, silenciosamente denunciando o consumismo, a cor- rupção e outras formas de violência. Em São Paulo, o Coletivo Pi conduzia mulheres trajando vestidos e acessórios vermelhos em uma deriva pelas ruas, todas elas calçando somente um sapato de salto alto, claudicando. Esse ato criticava o ex- cesso de cuidados relacionados aos padrões de feminilidade. Não por acaso, a performance arte tornou-se um meio potente para tratar de questões polêmicas e demandas identitárias como o combate ao racismo, ao machismo, à homofobia, à transfobia e ao capacitismo. A performer Priscila Rezende, por exemplo, lava louças em público, uti- lizando seu próprio cabelo como esponja. Esse gesto mostra o racismo sofrido por pessoas pretas, que têm seus cabelos ridicularizados e cha- mados pelo nome de uma marca de produtos de limpeza. Lucimélia Romão convidou o coletivo Mães de Maio para a performance Mil litros de preto, que denuncia a violência de Estado. 100 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .PARA SABER MAIS Mulheres e performance Colocar em tela o machismo, o feminicídio e a violência doméstica, reivindicar a descriminalização do aborto ou denunciar desigualdades históricas são temas recorrentes na performance feminista. Mudanças simples que quebram as expectativas de comportamentos reiterados e utilizam a arte como forma de combater opressões. Nos Estados Unidos, Karen Finley criou, em It’s my body, um discurso que trata de políticas contrárias aos direitos das mulheres defendidas pelo presidente George W. Bush. O discurso é declamado por ela com uma voz masculinizada e caricatural, imitando o tom usual de pronun- ciamentos de políticos homens. Em Fortaleza (CE), Marcelle Louzada e Natalia Coehl caminharam um longo percurso pela cidade carregando pesados blocos de pedra, na performance A morte da bonitinha. Constantemente interrompidas por transeuntes que se prontificavam a ajudar ou diziam que levar peso não é coisa de mulher, elas colocaram em evidência papéis de gênero, chegando a ser hostilizadas por isso. A mexicana Violeta Luna e o coletivo brasileiro Rubro Obsceno realiza- ram um velório simbólico na performance Para aquelas que não mais estão, em que citam o nome e acendem velas para mulheres vítimas de feminicídio, para que esses crimes não caiam no esquecimento e na im- punidade. Por ser uma linguagem flexível e trazer em sua realização aspectos sociais e históricos, a performance tem sido explorada em diferentes espaços de ensino, tornando-se uma prática relevante de arte-educa- ção, tanto no trabalho com alunos quanto na formação de professores. A performer Eleonora Fabião (2009, p. 66) declara: [...] considero a inserção da prática e da teoria da performance no circuito pedagógico teatral estimulante por vários motivos e destaco alguns dos principais: 1) sofisticação de pesquisas cor- porais; 2) ampliação do repertório de métodos composicionais; 3) investigação de linguagens e dramaturgias não convencionais e hibridação de gêneros artísticos; 4) discussão de questões cê- nicas através de outro viés que não o da teoria do drama ou das 101Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. histórias e poéticas espetaculares; 5) aprofundamento de deba- tes e práticas teatrais focados em políticas de identidade e em políticas de produção e recepção cada vez mais articuladas e acutilantes; 6) valorização da investigação sobre dramaturgia do espectador. O arte-educador Tiago Camacho Teixeira (2019, p. 8) destaca que, no ambiente escolar, a performance é uma atividade simbólica de ocu- pação e expressão. Para ele, contextualizar o surgimento das perfor- mances e analisá-las é um ponto de partida para conversas sobre o que é arte e qual o cenário contemporâneo das expressões artísticas. As caixas “Para saber mais” deste capítulo apresentam sugestões de conteúdos para tratar de coralidades performativas e questões relacio- nadas ao feminino. A partir disso, é possível que cada aluno desenvolva e apresente suas próprias performances, que podem ser registradas e exibidas em fotografias e exposições reais ou virtuais. A pedagogia da performance é um campo em expansão, sobre o qual muito material está sendo produzido. 2 Intervenções artísticas e arte urbana Outras formas contemporâneas de manifestação artística são as intervenções e a arte urbana. Nesse grupo, podemos incluir o grafite e as intervenções site specific. O grafite surgiu na década de 1970, em Nova York, e no princípio era uma arte que se definia anônima, contestadora e subversiva. Hoje, a estética do grafite, facilmente reconhecível nos muros das grandes cidades, estende-se a obras autorais, assinadas, feitas com autoriza- ção e, muitas vezes, solicitadas e patrocinadas por grandes empresas e corporações. As temáticas de contestação e protesto passaram a con- viver com outras, mais alinhadas ao mainstream. Nomes como Jean- Michel Basquiat e Keith Haring ajudaram a tornar o grafite conhecido e celebrado pela crítica e pelas galerias de arte. 102 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo . Figura 1 – Autorretrato com Andy Warhol, Michel Basquiat Fonte: Carpentier (2018). No Brasil, a dupla Os Gêmeos, formada pelos irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo, vem se destacando com grafite há duas décadas. Figura 2 – Grafite da dupla Os Gêmeos Fonte: Arte Fora do Museu (2011). 103Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede SenacEAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. Trazer a discussão sobre o grafite para a sala de aula abre a possibili- dade de rever criticamente os conteúdos ministrados sobre a história da arte, os sistemas de legitimação e o desenvolvimento do campo artís- tico no Ocidente. Reabre a reflexão sobre artes plásticas e artes visuais desenvolvida no capítulo 3 e o surgimento de expressões artísticas que não se encaixam nos padrões acadêmicos. Para algumas pessoas, o gra- fite se confunde com a pichação, ambos condenados como vandalismo. Cabe ao arte-educador propor questões que estimulem o debate crítico. Outra manifestação contemporânea é o site specific, termo vindo das artes visuais a partir dos anos 1960. Assim como o grafite e outras formas de arte urbana, o site specific tem como eixo a relação com o ambiente preexistente, sendo norteado pelo espaço ao redor. De acordo com Ilana Elkis (2020), a arte site specific exige a aproximação com o real e o ordinário do cotidiano, com um tempo que está aqui e agora. Nela, a relação entre o trabalho artístico e a localização é inseparável, assim como é necessária a presença do espectador. Trata-se, portanto, de uma arte que valoriza a presença do espectador no espaço, aproximando-o da performance (KWON, 2008). É o caso da intervenção feita pela artista Barbara Kruger no primeiro subsolo do Museu Hirshhorn, em Washington D.C. Conhecida por usar frases provocativas em seus trabalhos, Kruger escreveu frases do tipo em todos os espaços possíveis, da escada rolante até os banheiros e a loja do museu. O nome da intervenção, Belief + Doubt (Crença + Dúvida), coloca em perspectiva as certezas absolutas, fazendo o espec- tador refletir sobre suas crenças. Frases como “Dê para o seu cérebro a mesma atenção que você dá para seu cabelo”; “Qual foi a última vez que você sorriu?”; e “Quem dá o valor?” visam desestabilizar as convic- ções e instalar o pensamento crítico. 104 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo . Figura 3 – Belief + Doubt, Barbara Kruger No Brasil, um dos mais conhecidos artistas que trabalham com inter- venções dessa natureza é Eduardo Srur. Com a obra Sobrevivência, de 2008, Srur colocou coletes salva-vidas em dezesseis monumentos da cidade de São Paulo. O trabalho foi realizado em esculturas do século XX que glorificam heróis da história nacional. Com isso, ele chama a atenção para questões ambientais e de preservação do patrimônio, evi- denciando a situação de precariedade no ambiente urbano. Srur tam- bém é autor do livro Manual de intervenção urbana (2012), um rico mate- rial de referência para arte-educadores que desejam conhecer melhor essa manifestação e, até mesmo, pensar metodologias de ensino a par- tir das propostas do artista. As obras site specific aproximam os sujeitos das obras, a arte da vida cotidiana. Elas rompem com a tradição de lugares específicos para o fazer artístico, como o museu, a galeria, o teatro e a casa de ópera, possibilitando que qualquer espaço se converta em lugar para a 105Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. expressão e a experiência estéticas. Com isso, o site specific questiona as instituições legitimadoras da arte, fazendo com que nossa aprecia- ção seja deslocada. Para o arte-educador, o próprio espaço escolar é um ambiente para a realização de grafites e intervenções. Há muitos exemplos de escolas que convidaram artistas visuais para colorir seus muros com grafites, algumas delas criando comissões e envolvendo a comunidade nessa tarefa. Espaços coletivos podem servir para a criação de intervenções site specific, potencializadas por performances e registradas em audio- visual pelos próprios alunos. 3 Arte-educação e audiovisual É cada vez mais importante tratar de audiovisual na escola, pois, com as novas tecnologias, sons e imagens em movimento estão por toda parte, cabendo ao arte-educador fornecer uma formação midiá- tica que auxilie na interpretação das mensagens transmitidas por esses meios. Nesse bojo, podemos começar a pensar os usos do cinema na educação e nos estender a outros suportes, em especial o celular, que, antes visto como um vilão em sala de aula, tem se tornado cada vez mais um aliado dos professores. De acordo com Serrano e Venâncio Filho (1930, p. 27-28), o cinema educativo, ou cinema educador,1 surgiu logo após as primeiras apresen- tações dos irmãos Lumière, ainda no final do século XIX. Em 1898, em Paris, o médico e professor Doyen teve uma de suas cirurgias filmada para ser usada em sala de aula com os alunos. Ainda que questionemos se isso pode ou não ser chamado de cinema, é evidente que se trata de um recurso audiovisual utilizado com fins pedagógicos. 1 “Cinema educador”, aqui, se refere à inserção do cinema no campo educacional como mero ilustrador de conteúdo. 106 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .Nas primeiras décadas do século XX, houve debates inflamados sobre a possível influência, benéfica ou maléfica, do cinema sobre a educação. No Brasil, o Manifesto dos pioneiros da educação nova, de 1932, defendia o uso do cinema nas escolas, abrindo caminho para a criação, em 1937, do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince) (AZEVEDO et al., 2010). Um ponto importante a ser levantado é quanto à concepção de audio- visual que está sendo considerada ao pensar sua inserção no ambiente escolar. Em muitos casos, o audiovisual aparece como recurso comple- mentar ou ilustrativo do conteúdo de outras disciplinas. É o caso, muito comum em décadas recentes, da exibição do filme O nome da rosa (1986) por professores de história, supostamente para mostrar aspec- tos do cotidiano da Idade Média. No Brasil, filmes como Xica da Silva (1976), de Cacá Diegues, e Carlota Joaquina, princesa do Brazil (1995), de Carla Camurati, são de uso corrente em aulas sobre o período colonial ou o Brasil Império. Outra prática generalizada nas escolas é a utilização de filmes como instrumentos disciplinadores e moralizantes, como se pudessem modi- ficar o comportamento dos alunos. Filmes como Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída (1981) e Diários de um adolescente (1995) são empregados com o objetivo de afastar os alunos das drogas, igno- rando aspectos próprios do amadurecimento dos adolescentes, que têm na rebeldia e na atração pelo proibido um traço comum, e descon- siderando particularidades dos processos de comunicação, cuja recep- ção dificilmente pode ser controlada. No outro extremo, há propostas de ensino que enfatizam a expres- são artística e até mesmo profissionalizante, desconsiderando que, na formação básica, não se pretende oferecer um curso de cinema ou audiovisual, e sim criar um contexto escolar que inclui vários saberes e campos disciplinares. Há manuais de ensino de audiovisual que colo- cam o educador na posição de descobrir “novos talentos”. 107Linguagens híbridas e contemporâneas Material para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. De um lado, a abordagem que não prioriza o cinema como gênero artístico, tomando-o como ilustração de assuntos mais “nobres” do currículo. De outro, o ensino do cinema como instrumento de profissionalização (ou ainda, a proposta de fazer cinema na escola, “colocar a mão na massa”). Por consequência, de acordo com tais abordagens, o cinema promoveria o gosto, inclusive, pelos estudos, contribuindo para a mudança no quadro de indisciplina, fenômeno comum nas escolas brasileiras e, ao que tudo indica, também no mundo. Entre um e outro, a noção de cinema como entretenimento é a tônica. Essas vertentes parecem contribuir para a despoten- cialização do uso do cinema no Ensino Básico pela submissão da estrutura espectatorial do cinema ao conteúdo das disciplinas. No segundo caso, pelo excesso, em virtude de o professor transferir a condução da atividade fazer cinema para os alunos, supondo que essa participação se constitui em protagonismo juvenil, enfraque- cendo sua mediação e apequenando o papel da constituição de uma espectatorialidade. (SOUSA, 2017, p. 22) A Lei no 13.006, de 26 de junho de 2014, tornou obrigatória a exibição de filmes brasileiros nas escolas por, no mínimo, duas horas mensais, caracterizando essa atividade como um “[...] componente curricular complementar integrado à proposta pedagógica da escola” (BRASIL, 2014, [n. p.]). A Lei não define como será a atividade, nem os seus objeti- vos pedagógicos. Sousa (2017) questiona qual tipo de cinema será apre- sentado na escola e se o seu uso não constituirá um fim em si mesmo. 4 Estudos de caso: metodologias aplicadas no ensino das linguagens híbridas e contemporâneas 4.1 Contando a história do cinema Utilizando vídeos disponíveis na plataforma YouTube, é possível apresentar aos alunos a história dos primórdios do cinema, desde as 108 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .primeiras apresentações até sua transformação em indústria, seguindo o roteiro seguir: • A chegada de um trem à estação (1896), dos irmãos Lumière, foi o primeiro filme exibido na história do cinema. • No ano anterior (1895), os irmãos Lumière haviam filmado A saí- da dos operários da fábrica Lumière. Diferentemente de A chega- da de um trem à estação, a cena desse filme não foi espontânea, mas ensaiada e filmada em um domingo. Por isso os funcioná- rios saem todos bem-vestidos, sem aparência de cansaço, e de maneira elegante, sem correrias. Houve, portanto, um cuidado com o registro das imagens. • Os irmãos Lumière não acreditavam que o cinema se tornaria po- pular. Diziam que era somente uma diversão passageira, e que logo o público se enjoaria e o cinema ficaria restrito ao registro de imagens para pesquisas científicas. Foram dois cineastas, Georges Méliès e Edwin S. Porter, que mudaram essa história, transformando a técnica cinematográfica em uma linguagem, capaz de comunicar e contar histórias. Exemplo disso é Viagem à Lua (1902). • No ano seguinte, Porter fez O grande roubo do trem (1903), in- troduzindo novidades que aprimoraram a linguagem cinemato- gráfica. Em Viagem à Lua, Méliès usa duas câmeras, mas em posição fixa. Em O grande roubo do trem, Porter usa mais de uma câmera, chega a colocar uma delas em cima do trem e inventa o rapport, uma forma de conectar o espectador às ima- gens, com a câmera simulando a visão de um dos personagens da cena. Nota-se, também, que ele consegue comunicar que dois fatos ocorreram simultaneamente, ainda que tenham sido apresentados em sequência. • Logo os artistas visuais começaram a explorar o cinema em suas criações. Exemplos disso são Cinema anêmico (1926), de Marcel 109Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. Duchamp; os filmes de Man Ray, que jogava sal, pregos e ou- tros materiais na própria película, obtendo efeitos inéditos para a época; e o filme dadaísta Filmstudie (1926), de Hans Richter. Um clássico desse período é Um cão andaluz (1929), de Luis Buñuel, uma narrativa completa com estética surrealista. • Na União Soviética, Sergei Eisenstein desenvolveu a montagem (ou edição) cinematográfica, criando novas formas de mobilizar o espectador. Chamam a atenção os cortes e os movimentos de câ- mera na cena conhecida como “escadaria de Odessa”, no filme O encouraçado Potemkin (1925). • Nesses exemplos, percebemos como o cinema se transformou de técnica (irmãos Lumière) em linguagem. Outro passo impor- tante foi a transformação da linguagem em indústria, empreendi- da sobretudo nos Estados Unidos. Já em 1915, D. W. Griffith lan- çou O nascimento de uma nação, com grande aparato comercial, trailer de divulgação e outros recursos de marketing. É possível estender a reflexão até os dias atuais, pensando em formas contemporâneas do audiovisual. O importante é tratar essa expressão como arte em si mesma, e não como auxiliar e ilustrativa para outras disciplinas ou outros fins. 4.2 Usando o celular na sala de aula A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) publicou, em 2016, o manual Alfabetização midiática e informacional: diretrizes para a formulação de políticas e estratégias, cujo objetivo maior é fornecer subsídios para o ensino de audiovisual nas esco- las (GRIZZLE et al., 2016). Para a elaboração desse material, a Unesco contou com a colaboração de pesquisadores, críticos e professores de diversas partes do mundo. 110 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo .No Brasil, o Laboratório de Investigação e Crítica Audiovisual (Laica), da Universidade de São Paulo, ficou responsável por testar suas diretri- zes em situações reais de ensino. Para isso, em 2014, foi instalado um comitê que acompanhou o trabalho em três escolas da rede pública de ensino, envolvendo professores de diferentes disciplinas do ensino médio. Primeiramente, os professores ministravam aulas sem nenhuma orien- tação, apenas seguindo os passos do manual. Em uma segunda fase, eles recebiam um treinamento específico e eram orientados pelo comitê a seguir as modificações sugeridas para aprimorar os planos de aula. O comitê concluiu que havia a necessidade de centrar a metodologia na atuação do professor e de rever os conceitos a partir das experiên- cias empíricas. Notou-se que os professores, por serem de uma gera- ção anterior, não estavam familiarizados com a gramática do audio- visual, resultando em aulas centradas no texto e na linguagem verbal. Os alunos, ao contrário, já experientes no uso de câmeras de celular, demonstraram um conhecimento intuitivo. Havia, no entanto, uma predisposição de ambos os lados para realizar trabalhos audiovisuais. Concluiu-se que o manual funcionava mais como um estímulo para trocas entre as instituições de ensino, os docentes e os alunos. A experiência da aplicaçãodesse currículo confirma que abordar questões relacionadas à mídia – especialmente a mídia audiovisual – tem um enorme potencial para valorizar as escolas brasileiras. O Brasil ainda tem que lidar com o contraste entre ser uma das maiores eco- nomias do mundo e ter um sistema escolar pobre, que reproduz discri- minação social, econômica, racial, de gênero e cultural. A estratégia de usar o currículo para desenvolver atividades interdisciplinares e extra- classe parece promissora. O manual pode ser adaptado a diferentes metodologias e realidades do arte-educador. 111Linguagens híbridas e contemporâneas M aterial para uso exclusivo de aluno m atriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o com partilham ento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo. Considerações finais A arte se encontra em uma situação movediça, na qual os parâme- tros e as instituições que funcionaram por mais de 400 anos não são mais válidos ou não são capazes de dar conta das experiências estéticas propostas pelos artistas contemporâneos. Neste capítulo, tratamos de linguagens híbridas, como as instalações site specific e o cinema, e de linguagens novas, como a performance, os usos recentes do audiovisual e o grafite. Compete ao arte-educador estar atento a essas mudanças e ter confiança de que seu olhar é diferenciado, mesmo quando não tem certeza do que está acontecendo. As dúvidas e as perguntas precisam ser encaradas sem preconceito, e o professor deve deixar de ser aquele que tudo sabe para colocar-se como parte do processo de ensino-apren- dizado de maneira mais fluida e incompleta. Referências ARTE FORA DO MUSEU. “Eixo Leste-Oeste, osgemeos, Nina Pandolfo, Nunca, Finok, Zefix, Vitché e Herbert Baglione” by Arte Fora do Museu is licensed under CC BY 2.0. Disponível em: https://wordpress.org/openverse/image/491d5570- c9d6-42cd-9fde-6a522dceb5c0. Acesso em: 26 set. 2022. AZEVEDO, F. et al. Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959). Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 2010. BRASIL. Lei no 13.006, de 26 de junho de 2014. Acrescenta § 8o ao art. 26 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 1, 27 jun. 2014. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011- 2014/2014/lei/l13006.htm. Acesso em: 24 jul. 2022. CARPENTIER, M. “Basquiat + Warhol à la FLV” is licensed under CC BY 2.0. Disponível em: https://www.flickr.com/photos/154265517@ N03/32095183288. Acesso em: 15 set. 2022. 112 Metodologias em arte-educação M at er ia l p ar a us o ex cl us ivo d e al un o m at ric ul ad o em c ur so d e Ed uc aç ão a D is tâ nc ia d a Re de S en ac E AD , d a di sc ip lin a co rre sp on de nt e. P ro ib id a a re pr od uç ão e o c om pa rti lh am en to d ig ita l, s ob a s pe na s da L ei . © E di to ra S en ac S ão P au lo . ELKIS, I. C. Entre lugares. 2020. 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