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AULA 5 VIOLÊNCIA NAS RELAÇÕES INTERPESSOAIS E SOCIAIS Prof.ª Andressa Ignácio da Silva 2 INTRODUÇÃO O desenvolvimento do ser humano em suas potencialidades se relaciona diretamente com sua interação social. A caracterização da especificidade da espécie humana é tema de diferentes áreas do conhecimento, como filosofia, antropologia, sociologia, psicologia, entre outras, as quais buscam por diferentes perspectivas explicar o processo de desenvolvimento dos seres humanos. Em que pesem as múltiplas abordagens e vertentes, é possível afirmar que as diferentes áreas do conhecimento citadas apontam o ser humano como um ser social e reconhecem a cultura como um fator relevante para a compreensão do ser humano em suas especificidades e diversidade. Entretanto, as diferenças culturais podem também ser lócus de conflitos e até gerar violência. Ao longo de diferentes períodos históricos, as formas de tratar as diferenças foram diversas, seja no campo das relações sociais, seja no campo das ciências. Diante disso, esta aula vai abordar algumas contribuições, especialmente da antropologia, para as reflexões sobre a diversidade cultural. Serão estudadas ainda as diferenças conceituais entre preconceito, discriminação e intolerância, suas múltiplas manifestações e suas relações com o fenômeno da violência. TEMA 1 – CULTURA E DIVERSIDADE CULTURAL O contato entre seres humanos de diferentes culturas é fato recorrente ao longo da História. As transações comerciais, as expedições, as conquistas territoriais e as guerras têm colocado diferentes culturas em contato desde a Antiguidade. De acordo com Ribeiro (2005), as diferenças culturais já eram objeto de reflexão desde Confúcio, no século IV a.C., e diferentes sociedades produziram registros sobre suas observações acerca das diferenças observadas entre os povos. Entretanto, a autora destaca que as grandes navegações, a partir do século XVI, têm uma importância significativa para o campo das ciências humanas, na medida em que o contato entre europeus e os diferentes povos das Américas, África e Ásia contribuíram para o surgimento das ciências sociais, em especial a antropologia. Ainda segundo Ribeiro (2005), o contato dos europeus com os habitantes do chamado Novo Mundo fomentou o questionamento sobre as diferenças entre 3 os povos. Diante de aparência, hábitos, costumes, línguas e tradições distintos, em um primeiro momento os europeus se questionavam sobre a humanidade dos conquistados, ou seja, se os povos conquistados eram humanos ou não. Porém, a simples resposta a essa pergunta implicava em novos questionamentos, pois, se não fossem humanos, o que seriam as criaturas tão diferentes? Por outro lado, se eram seres humanos, como explicar as diferenças tão significativas entre esses povos e os europeus? A antropologia se desenvolveu como ciência com o objetivo de explicar as diferenças e suas origens. Nesse sentido, como aponta Michaliszyn (2010), teóricos em diversos períodos desenvolveram explicações distintas para as diferenças entre os povos. Algumas dessas concepções ainda influenciam modos de pensar e agir na atualidade. Dentre as perspectivas desenvolvidas, podemos destacar o evolucionismo cultural. De acordo com Castro (2005), essa perspectiva tem como principais representantes os autores: Henry Morgan (1818-1881), Edward B. Tylor (1832- 1917) e James George Frazer (1854-1941). O autor complementa: O postulado básico do evolucionismo em sua fase clássica era, portanto, que, em todas as partes do mundo, a sociedade humana teria se desenvolvido em estágios sucessivos e obrigatórios, numa trajetória basicamente unilinear e ascendente. [...] Toda a humanidade deveria passar pelos mesmos estágios, seguindo uma direção que ia do mais simples ao mais complexo, do mais indiferenciado ao mais diferenciado. (Castro, 2005, p. 14) Nessa perspectiva, as diferenças entre os povos expressavam que eles se encontravam em diferentes estágios da evolução. Para os evolucionistas, como citado anteriormente, o desenvolvimento se dava em um único sentido: dos povos primitivos até a civilização, sendo os europeus considerados os mais civilizados e representantes da mais alta escala do desenvolvimento, e os demais povos considerados primitivos e atrasados. O evolucionismo cultural foi superado no campo da antropologia por outras perspectivas teóricas no final do século XIX. Diferentes autores vão demonstrar os equívocos, as limitações e as implicações daquela perspectiva, que não é mais aceita nas ciências sociais desde então. Entretanto, as concepções evolucionistas, fortemente marcadas pelo etnocentrismo, foram utilizadas para justificar práticas violentas, genocídios, massacres, escravização e exploração ao longo de diferentes períodos históricos 4 e ainda influenciam pensamentos e práticas cotidianas nas sociedades contemporâneas. TEMA 2 – ETNOCENTRISMO E SUAS MANIFESTAÇÕES Os diferentes grupos humanos possuem culturas distintas, sendo o conceito de cultura central na antropologia. Apesar das múltiplas definições, esse conceito pode ser compreendido de modo geral como: Modo de vida, incluindo conhecimento, hábitos, regras, leis e crenças, que caracteriza determinada sociedade ou determinado grupo social. [...] cultura se refere a todos os elementos do modo de vida de uma sociedade que podem ser aprendidos, como idioma, valores, regras sociais, crenças, hábitos e leis. (Giddens, 2017, p. 213) O interesse pelos hábitos de outros povos pode ser observado em diferentes períodos históricos, porém é com a consolidação da antropologia como ciência que as diferenças culturais passam a ser objeto de análise cientifica. O processo de desenvolvimento da antropologia é marcado também, como aponta Rocha (1988), pela superação do etnocentrismo. O etnocentrismo pode ser definido como: Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade, etc. (Rocha, 1988, p. 5) Cabe destacar, com base em Neves (2017), que o surgimento da antropologia esteve intimamente relacionado ao colonialismo. Neste sentido, o evolucionismo cultural e as perspectivas etnocêntricas foram utilizados como forma de explicação das diferenças culturais, mas também como maneira de justificar o processo de dominação dos europeus sobre os povos colonizados. Como dito anteriormente, o etnocentrismo foi duramente criticado, e as correntes antropológicas posteriores ao evolucionismo romperam com essa perspectiva. Entretanto, como afirma Meneses (2000), suas manifestações no cotidiano ainda permanecem em diferentes sociedades. Etnocentrismo é um preconceito que cada sociedade ou cada cultura produz, ao mesmo tempo que procura incutir em seus membros normas e valores peculiares. Se sua maneira de ser e de proceder é a certa, então as outras estão erradas, e as sociedades que as adotam constituem "aberrações". Assim o etnocentrismo julga os outros povos e culturas pelos padrões da própria sociedade, que servem para aferir até que ponto são corretos e humanos os costumes alheios. Desse modo, a 5 identificação de um indivíduo com sua sociedade induz à rejeição das outras. O idioma estrangeiro parece "enrolado" e ridículo; seus alimentos, asquerosos; sua maneira de trajar, extravagante ou indecente; seus deuses, demônios; seus cultos, abominações; sua moral, uma perversão, etc. (Meneses, 2000, p. 245) O etnocentrismo pode se manifestar como um sentimento de superioridade em relação àquelesque são vistos como inferiores. Nesse sentido, ainda de acordo com Meneses (2000), o etnocentrismo pode fomentar práticas de violência, genocídios e massacres contra grupos étnicos. O processo de escravização de africanos, o massacre dos povos nativos nas Américas, o holocausto, entre outros, podem ser compreendidos como manifestações do etnocentrismo, assim como perspectivas que defendem supremacias de povos, religiões ou raças. Outra manifestação do etnocentrismo destacada por Meneses (2000) é a ridicularização e exotização dos hábitos de outros grupos ou povos. A difusão dos discursos etnocêntricos pode ocorrer por diferentes meios, entre os quais podemos destacar as mídias e os processos educacionais. Em fotografias, filmes, reportagens, textos e nas redes sociais, é possível encontrar representações sobre as diferenças culturais. Em estudo realizado por Siqueira e Siqueira (2016), foram analisadas representações sobre o Brasil e os brasileiros na publicidade no Uruguai. Os autores identificaram representações estereotipadas e etnocêntricas sobre a cultura brasileira. No âmbito educacional, por sua vez, é preciso considerar que a escola reúne indivíduos de diferentes grupos, hábitos, costumes e crenças, condições passiveis de gerarem manifestações etnocêntricas, conflitos e violência. Por outro lado, como aponta Candau (2008), a educação pode ser um importante meio de enfrentamento ao etnocentrismo, aos preconceitos e às discriminações. Para tanto: [...] é necessário penetrar no universo de preconceitos e discriminações que impregna – muitas vezes com caráter difuso, fluido e sutil – todas as relações sociais que configuram os contextos em que vivemos. A “naturalização” é um componente que faz em grande parte invisível e especialmente complexa essa problemática. Promover processos de desnaturalização e explicitação da rede de estereótipos e preconceitos que povoam nossos imaginários individuais e sociais em relação aos diferentes grupos socioculturais é um elemento fundamental sem o qual é impossível caminhar. Outro aspecto imprescindível é questionar o caráter monocultural e o etnocentrismo que, explícita ou implicitamente, estão presentes na escola e nas políticas educativas e impregnam os currículos escolares. (Candau, 2008, p. 53) 6 O etnocentrismo está diretamente relacionado ao preconceito, à discriminação e à intolerância em suas múltiplas manifestações, e o enfretamento a esses fenômenos é essencial para a efetivação dos direitos humanos. TEMA 3 – CONCEITO DE INTOLERÂNCIA E SUAS MANIFESTAÇÕES De acordo com Cardoso (2003), o conceito de intolerância está relacionado ao seu oposto, ou seja, a tolerância. O conceito de tolerância é objeto de debate entre autores clássicos da filosofia, como Sócrates e Platão, no bojo de suas reflexões sobre a vida em sociedade e os princípios democráticos. Esses autores estão na base da construção do pensamento ocidental, no qual, ao menos teoricamente, o respeito, a diferença e a igualdade são aspectos centrais. Tal perspectiva se perpetua no pensamento ocidental moderno, influenciada especialmente pelos ideais iluministas (Cardoso, 2003). Entretanto, como aponta Santos (2009), o pensamento ocidental moderno, embora pautado nos ideais de igualdade, tolerância e garantia de direitos, não garante a efetivação desses princípios. Para o autor, pode-se verificar um abismo entre os valores pregados pelo pensamento ocidental modernos e as práticas sociais, bem como há, em especial no contexto da colonização, a negação de direitos e liberdades e o desrespeito à diversidade cultural dos povos conquistados. Nesse sentido, ainda de acordo com Santos (2009), o pensamento ocidental moderno carrega também forte caráter etnocêntrico, justificando processos de opressão entre as nações europeias e as populações conquistadas, ou seja, o pensamento ocidental moderno convive com práticas sociais de intolerância. A intolerância é um conceito de difícil definição, entretanto pode ser caracterizada como falta de aceitação, reconhecimento ou respeito às diferenças. Ela pode levar à discriminação de indivíduos ou grupos sociais e étnicos e ao preconceito. Segundo Savazzoni (2015), enquanto o preconceito é uma opinião formada a respeito de alguém, um julgamento precipitado que provoca aversão, a discriminação diz respeito a estabelecer diferenças entre os seres com prejuízo à parte inferiorizada. A autora esclarece: [...] a discriminação constitui uma violação dos direitos enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem, assim define 7 discriminação: Toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão. (Art. 1º, a). (Savazzoni, 2015, p. 45) Entre as formas de discriminação apontadas por Savazzoni (2015), podemos destacar: de gênero, em razão de orientação sexual e em razão de raça, cor ou etnia. A discriminação de gênero, de acordo com Savazzoni (2015), é aquela pautada no sexo ou gênero de uma pessoa, a qual pode se manifestar em visões depreciativas ou que inferiorizem as mulheres. Esse tipo de discriminação pode impedir a efetivação de direitos, relacionando-se diretamente com a violência de gênero e a violência contra a mulher, conforme abordado anteriormente. A discriminação em função da orientação sexual diz respeito a visões depreciativas ou que inferiorizem gays, lésbicas e bissexuais em função de sua orientação sexual. [...] a orientação sexual é “a atração emocional, sexual ou afetiva contínua por outra pessoa” e pode ser distinguida dos outros aspectos da sexualidade, incluindo o sexo biológico, identidade de gênero e o papel social de gênero, divergindo do comportamento sexual, “porque diz respeito aos sentimentos e autodeterminação”. (Savazzoni, 2015, p. 48) Por fim, a discriminação por raça, cor ou etnia diz respeito a visões depreciativas ou que inferiorizem indivíduos em função de aspectos físicos, biológicos ou fenotípicos. Para Campos (2017), esse tipo de discriminação relaciona-se ao racismo, o qual pode ser compreendido como “um fenômeno enraizado em ideologias, doutrinas ou conjuntos de ideias que atribuem uma inferioridade natural a determinados grupos com origens ou marcas adstritas específicas” (2017, p. 1). Embora, como dito anteriormente, a tolerância e o respeito aos diferentes indivíduos que vivem em sociedade sejam uma das bases dos princípios democráticos, bem como objeto de reflexões desde a Antiguidade Clássica, a efetivação desse princípio ainda é um desafio. Em que pesem os avanços, como as múltiplas garantias legais, entre a quais podemos destacar os direitos humanos, as manifestações de intolerância e violência ainda são recorrentes em diferentes sociedades, entre as quais a brasileira. 8 TEMA 4 – INTOLERÂNCIA E VIOLÊNCIA NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA De acordo com Künh (2000), a escravização de africanos e seus descendentes e o extermínio das populações indígenas são alguns dos exemplos do etnocentrismo, da intolerância e da violência presentes historicamente no Brasil, desde o processo de colonização, e seus resultados ainda se fazem sentir na sociedade brasileira contemporânea. Entre os efeitos dos processos de violência e etnocentrismo na formação histórica do Brasil, temos as violações aos direitos dos povos indígenas. No ano de 2017, foram registrados 18 casos de discriminação contra indígenas no Brasil. Os dados levantados pelo CIMI (2018) incluem situações ocorridas em universidades, escolas, postos de saúde e nas redes sociais. Ainda de acordo com o Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil (CIMI, 2018), no ano de 2017, ocorreram 111 assassinatosde indígenas no Brasil. A intolerância e a violência também se manifestam em função das crenças religiosas. De acordo com Santos et al. (2016), de 2011 a 2015 foram registrados 697 casos de intolerância religiosa. Estes números dizem respeito aos casos registrados no Disque 100. Ainda segundo Santos et al. (2016), dos casos registrados no estado do Rio de Janeiro, 71% foram contra adeptos de religiões de matriz africana, 32% contra muçulmanos e 6% contra indígenas. No Brasil, a intolerância religiosa não é tipificada como crime no Código Penal. Sendo assim, costuma-se aplicar nestes casos a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, a qual, em seu art. 1º, define que serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional (Brasil, 1989). Uma das manifestações mais recorrentes de intolerância e violência na sociedade brasileira é a violência contra a mulher. De acordo com dados do Atlas da Violência 2019 (IPEA, 2019), no ano de 2017, cerca de 13 mulheres foram assassinadas por dia no Brasil. Além da violência letal, outros tipos de violência contra a mulher ocorrem em números expressivos: de janeiro a julho de 2018, 79.661 casos de violência contra a mulher foram registrados pelo Disque 100 (Brasil, 2018). Neste sentido, como abordado anteriormente, destaca-se a relevância da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio para o enfrentamento a esse tipo de violência. 9 A homofobia pode ser compreendida como uma manifestação de intolerância e discriminação contra a população LGBT. Costa (2012, p. 585) define a homofobia como “uma forma de inferiorizar, desumanizar, diferenciar e distanciar o indivíduo homossexual [...] ao mesmo tempo que transforma o homossexual naquele com quem não se deve identificar e que não deve ter plenos direitos”. Dados do Atlas da Violência – 2019, de 2011 a 2017, apontam que cerca de 12.470 casos de violências contra a população LGBT foram registrados por meio do Disque 100 (Ipea, 2019). O Atlas destaca ainda a necessidade de aprimoramento dos mecanismos de coleta de dados sobre essa população. Por fim, as desigualdades nos indicadores sociais da população negra no Brasil podem ser consideradas indicadores dos efeitos da intolerância e da discriminação por raça, cor ou etnia. Gomes e Marli (2018) trazem que a taxa de analfabetismo entre a população negra em 2017 era de 9,9%, representando o dobro da taxa observada entre a população branca. No campo do trabalho, a renda média dos trabalhadores brancos em 2017 era de cerca de R$ 2.814, já entre os trabalhadores pretos a média era de R$ 1.570. Cabe destacar que os dados apresentados representam apenas algumas das múltiplas formas de manifestações da violência na sociedade brasileira contemporânea, bem como que diferentes indivíduos em situações distintas podem vivenciar a intolerância. Neste sentido, cabe ressaltar o meio virtual e as redes sociais como espaços nos quais discursos intolerantes, discriminatórios e preconceituosos têm se manifestado. Entretanto, é necessário observar também as transformações e os avanços que têm sido realizados no sentido de combater a intolerância, a discriminação, o preconceito e a violência no âmbito internacional e nacional, assim como as transformações no campo teórico e as contribuições das ciências sociais para essas reflexões. TEMA 5 – MULTICULTURALISMO E RELATIVISMO CULTURAL NO ENFRENTAMENTO À INTOLERÂNCIA E À VIOLÊNCIA O desenvolvimento das ciências sociais, em especial da antropologia, é perpassado pelo desenvolvimento do conceito de cultura. Mais do que isso, como afirma Rocha (1988), a antropologia buscou se distanciar das análises e práticas etnocêntricas. 10 Neste sentido, o desenvolvimento do conceito de cultura tem um importante papel. Enquanto o evolucionismo predominante no início da antropologia se pautava no conceito de civilização, e com base neste propunha uma classifica hierárquica das sociedades e grupos étnicos, as correntes de pensamento posteriores centraram suas análises no conceito de cultura. Destaca-se nesse campo, conforme Michaliszyn (2010), a corrente de pensamento denominada culturalismo, cujo principal representante foi Franz Boas (1858-1942), o qual: Foi o primeiro a perceber a importância de estudar as culturas humanas nos seus particulares. Cada grupo produzia, a partir de suas condições históricas, climáticas, linguísticas, etc., uma determinada cultura que se caracterizava, então, por ser única, específica. Este relativismo cultural, essa pluralidade de culturas diferentes, visto por Boas é, se compararmos, uma ruptura importante do centramento, da absolutização da cultura do “eu”, no pensamento evolucionista. É claro, o resultado disso só podia ser um: tudo passa a ser infinitamente mais complicado no estudo das culturas. (Rocha, 1988, p. 16) A compreensão das culturas como plurais, como citado, rompe, portanto, com as perspectivas hierárquicas típicas do evolucionismo. Ou seja, cada cultura passa a ser pensada em suas especificidades, valor e funcionamento específico. Além disso, como aponta Michaliszyn (2010) na perspectiva culturalista proposta por Boas, as diferenças culturais são compreendidas como frutos dos diferentes desafios e necessidades enfrentados pelos grupos humanos em condições históricas, geográficas climáticas etc. Assim, não há, na perspectiva culturalista, hierarquia ou classificação das culturas. Nesse sentido, Boas inaugurou uma concepção que se tornou fundamental para a antropologia, o relativismo cultura. Este, de acordo com Meneses (2000), baseia-se em três concepções básicas. A primeira é que um elemento de determinada cultura tem sentido e deve ser compreendido em seu contexto de origem. A segunda é que não há cultura absoluta, padrão ou que possa ser usada como medida para as demais, pois cada cultura tem sua própria dinâmica. Por fim, que não há hierarquia entre as culturas. Tendo em vista essas características, o relativismo cultural pode ser compreendido como oposto ao etnocentrismo, na medida em que pressupõe a valorização e o respeito às diferenças culturais. Como já citado, práticas etnocêntricas, intolerantes, discriminatórias e preconceituosas estão relacionadas a supostas noções de “hierarquia”, “superioridade” e “inferioridade” de grupos, povos ou indivíduos em função de suas práticas, hábitos, costumes, crenças, 11 nacionalidade, etnia, entre outros. Neste sentido, o relativismo cultural e a valorização da diversidade cultural e do multiculturalismo são concepções e posturas que podem favorecer o respeito aos direitos humanos e a promoção da cidadania. Para tal, diferentes agentes e instituições devem atuar, entre as quais a família, a escola e o Estado, destacando-se dos processos educativos no sentido da promoção do respeito às diferenças. Como afirma Candau: Vivemos em sociedades multiculturais. Podemos afirmar que as configurações multiculturais dependem de cada contexto histórico, político e sociocultural. [...]. Nesse sentido [...] entende o multiculturalismo não simplesmente como um dado da realidade, mas como uma maneira de atuar, de intervir, de transformar a dinâmica social. Trata-se de um projeto, de um modo de trabalhar as relações culturais numa determinada sociedade. (2008, p. 50) Conforme abordado ao longo desta aula, as formas de compreensão das diferenças culturais se alteram ao longo do desenvolvimento da antropologia. No âmbito dessa área do conhecimento, o etnocentrismo e as perspectivas hierárquicas e preconceituosas foram superadas, predominando contemporaneamente perspectivas que prezam pelo relativismo cultural e o multiculturalismo. Entretanto, as perspectivas hierarquizantes, etnocêntricas e preconceituosas ainda persistem nas práticas cotidianas e nas relações sociais,sendo, inclusive, o mote de conflitos e práticas violentas diante das quais a sociedade civil, bem como o Estado, tem atuado no sentido de superá-las. Neste sentido, ganham relevância políticas públicas de enfrentamento às desigualdades e violências, bem como práticas educativas que visam a formação de cidadãos que atuem no sentido do respeito e da valorização das diferenças e das diversidades. 12 REFERÊNCIAS BRASIL. Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989. 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