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A Indignidade e a Deserdacã̧o Nelson Rosenvald Nocõ̧es gerais e lineamento histórico sobre a indignidade e a deserdacã̧o Aberta a sucessão, com o óbito do titular do patrimônio, transmitem-se para os seus herdeiros a titularidade de todas as relações (ativas e passivas), por conta da regra de saisine (CC, art. 1.784). A regra da transmissão automática não perquire da existência, ou não, de uma relação afetiva, sentimental, entre o falecido e o seu herdeiro. Tampouco questiona sobre o grau de merecimento do beneficiário, a partir de seu comportamento pregresso em relação ao extinto. Sem dúvida, reconhecida a existência de um ponto de interseção entre o Direito das Sucessões e o das Famiĺias, nota-se uma presuncã̧o de afeto, solidariedade e estima entre o sucessor e o sucedido. Não se pode ignorar, todavia, que a prática de algumas condutas pelo beneficiário (herdeiro ou legatário) pode estar revestida de particular reprovabilidade pelo sistema jurid́ico – independentemente da sua conotação moral. Condutas ofensivas, desabonadoras e, até mesmo, criminógenas podem ter sido levadas a efeito pelo sucessor em prejuiźo daquele que lhe está a transmitir o patrimônio. E ́nessa ambiência que figuram os institutos da indignidade e da deserdação. São condutas ignóbeis praticadas em detrimento do autor da heranca̧ e que podem, por conta do grau de reprovação jurid́ica, propiciar a exclusão do herdeiro ou legataŕio do âmbito sucessório, privando o recebimento, a partir de um juiźo de razoabilidade e de justiça distributiva. Conquanto o Código Civil brasileiro tenha optado por conferir um tratamento binário, dualista, aos institutos em apreço, posicionando topologicamente a indignidade no âmbito da sucessão em geral e a deserdação no campo da sucessão testamentária, as suas raiźes, fundamentos e consequências são as mesmas. Enfim, possuem um denominador comum. Bem por isso, inclusive, as legislações mais recentes de alguns paiśes, como a Bélgica e a Itália, tratam dos institutos conjuntamente. Nesse ponto, parece que melhor teria sido o codificador ter apreciado a indignidade e a deserdação a um só tempo, até mesmo porque os casos deflagradores são muito aproximados. O Código Civil em vigor cuida da indignidade e da deserdação como causas excludentes da sucessão, seguindo o modelo em vigor na Itália, no Chile e no Peru, conforme o translúcido art. 1.814, que dispara “são excluídos da sucessão”. Cuidam-se, pois, de categorias jurid́icas destinadas a excluir alguém que figura na ordem de vocacã̧o sucessória do efetivo recebimento do patrimônio transmitido. Não há que se confundir, destarte, a indignidade e a deserdação com a incapacidade (rectius, falta de legitimação) sucessória. Com efeito, o indigno e o deserdado possuem legitimação sucessória e figuram na ordem de vocação sucessória, beneficiados pela transmissão automática de saisine. Contudo, em face de sua conduta em relacã̧o ao de cujus, o sistema jurid́ico o priva do efetivo recebimento do patrimônio transferido. Impede-se, pois, o recebimento da herança ou legado, sem afetar a sua legitimação sucessória. Enfim, a falta de legitimação é um fato, enquanto a indignidade e a deserdação constituem uma pena, uma sanção civil, imposta ao herdeiro ou legatário. Vale a pena conferir a explicação de Luiz Paulo Vieira de Carvalho: “a falta de legitimação passiva sucessória impede o recebimento e o exercićio do direito à sucessão, enquanto na indignidade, tal direito é recebido e permitido o seu exercićio até o trânsito em julgado da sentença que aplique a pena de exclusão, produzindo esta, em regra, efeitos retroativos à data do óbito do hereditando”. Prova disso é que faltando legitimação sucessória, não ha ́ o reconhecimento de qualquer direito, estando a pessoa inapta ao recebimento da herança ou legado, independentemente de seu mérito ou demérito. Em situação diametralmente oposta, na indignidade e na deserdação, a pessoa que consta na ordem de vocação sucessória não poderá receber pessoalmente o patrimônio transmitido por conta do seu demérito, em relação ao titular. Natureza jurid́ica da indignidade e da deserdacã̧o Tanto na doutrina brasileira, quanto entre os estudiosos alienígenas, reina um tranquilo e absoluto consenso de que a indignidade e a deserdação constituem uma sancã̧o civil, uma pena de natureza civ́el, aplicada àquele que se comportou mal em relacã̧o ao autor da heranca̧, impondo como consequência a perda do direito subjetivo de receber o patrimônio transferido pelo passamento do titular. Necessidade de reconhecimento judicial Em se tratando de institutos de natureza sancionatória, sobreleva reconhecer a premente necessidade de decisão judicial, respeitado o devido processo legal (assegurado constitucionalmente – CF, art. 5o, LV) para que o herdeiro ou legatário seja privado do recebimento da herança ou legado. Isso porque em se tratando de sanção civil, com graves efeitos jurid́icos, obstacularizando o efetivo recebimento do patrimônio pelo sucessor, somente com a prolação de uma decisão judicial em ação especif́ica, com objeto delimitado, será possiv́el reconhecer a indignidade ou a deserdação. Com isso, nota-se que o indigno ou deserdado mantém a sua qualidade sucessória até que venha a transitar em julgado o provimento jurisdicional. É necessária a propositura de uma ação civil (de indignidade ou de deserdação) para a desconstituição do direito de recebimento do patrimônio. Não é bastante a condenacã̧o criminal (para a indignidade) ou a lavratura do testamento (para a deserdacã̧o). Por igual, não é possiv́el discutir a exclusão da herança incidentalmente em uma outra ação, mesmo de natureza civil, com objeto distinto. Sequer nos autos do inventário será possiv́el discutir a matéria, em face de sua estreita delimitação, não comportando discussões de alta indagação. Exige-se uma acã̧o própria, com objeto especif́ico, na qual se discutirá a exclusão da heranca̧. Trata-se de demanda submetida ao procedimento comum ordinário, com o intuito de garantir ao demandado uma cognição mais ampla, facultando-lhe todos os mecanismos probatórios e temporais para a sua ampla defesa. Até porque não seria criv́el retirar de uma pessoa o direito à herança sem a ampla defesa e o contraditório. Demais disso, a ação tem de ser ajuizada no prazo decadencial de quatro anos, computados a partir da abertura da sucessão, apesar da indevida redação do Parágrafo único do art. 1.965 do Codex que, lamentavelmente, confundiu a abertura da sucessão com a abertura do testamento, esquecendo que somente o testamento cerrado precisa ser aberto. Justificam-se, pois, as disposições legais a exigir a comprovacã̧o judicial para que a sanção civil aplicada surta efeitos: Art. 1.815, Código Civil: “A exclusão do herdeiro ou legataŕio, em qualquer desses casos de indignidade, será declarada por sentenca̧.” Art. 1.965, Código Civil: “Ao herdeiro instituid́o, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador. Parágrafo único. O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento.” Enquanto não transitar em julgado a sentença civil de indignidade ou de deserdação, o sucessor exercerá o seu direito plenamente, com todas as consequências naturais reconhecidas a qualquer herdeiro ou legataŕio. Dessa maneira, mesmo que a conduta caracterizadora da indignidade ou da deserdação esteja reconhecida por sentença penal condenatória, proferida pelo juiz penal, em processo válido, com trânsito em julgado, não ha ́ uma exclusão automáticado recebimento da herança. Exempli gratia: se um filho assassinou o pai e veio a ser condenado criminalmente, com trânsito em julgado, não perde automaticamente o direito ao recebimento da herança, sendo necessária uma decisão civil, em ação própria de indignidade ou de deserdação. E ́ a independência das instâncias, exigindo uma cognição especif́ica para a exclusão da sucessão. Aliás, o próprio art. 92 do Código Penal, em seu Paraǵrafo único, dispõe que outros efeitos anexos da condenação penal (civis, administrativos, polit́icos...), como, por exemplo, a perda de cargo ou função pública, perda de mandato eletivo ou a destituição do poder familiar, “não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença”. No caso especif́ico da indignidade e da deserdação, somente o juiz civil pode aplicar a sanção, não podendo decorrer da sentença penal. Hipoteticamente, portanto, é possiv́el a ocorrência de decisões conflitantes, com uma decisão penal condenatória e uma outra civil de improcedência da exclusão da sucessão. Em razão dessa autonomia de instâncias, duas notas conclusivas se impõem: i) a ação de indignidade ou de deserdação pode ser ajuizada independentemente da existência de ação penal e de seu eventual andamento; ii) não poderá o juiz civil suspender o andamento do processo para aguardar a sentença penal, uma vez que esta não influenciará a deliberação sobre a indignidade ou deserdação. Com vistas a assegurar o resultado útil do futuro provimento jurisdicional a ser proferido na ação civil, pode o magistrado, de ofićio ou a requerimento da parte (ou do Ministério Público, se atuar no processo, por conta da presença eventual de um incapaz), determinar medidas cautelares. Assim, exemplificativamente, enquanto é processada a ação, é possiv́el imaginar uma medida assecuratória incidental para obstar que o réu da ação (de quem se pretende provar a prática do ato indigitado) venha a alienar o patrimônio, transferindo a terceiros, ou mesmo que deposite em juiźo os frutos colhidos de determinados bens. Nota-se, aqui, uma clara incidência do garantismo constitucional, com uma visão da pena civil a partir dos direitos e garantias fundamentais da Lex Legum. Considerando que o direito à herança é uma garantia constitucional (CF, art. 5o, XXX) e, por conseguinte, uma cláusula pétrea, somente uma decisão judicial civil, prolatada em uma ação deflagrada com a finalidade especif́ica de discutir a matéria, poderá excluir da herança um sucessor. De fato, consoante a cátedra de Konrad Hesse, a Constituição impõe tarefas ao ordenamento infraconstitucional. E a “Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida”. E, nessa trilha, parece que a prudência recomenda exigir uma sentença civil para excluir alguém da sucessão, mesmo que já exista uma decisão penal condenatória. Além disso, a partir de uma imperiosa interpretação sistêmica do ordenamento jurid́ico, com um fecundo diálogo entre o Direito Civil e Direito Processual Penal, justifica- se perfeitamente a exigência de decisão especif́ica do juiźo civ́el. E ́ que, em se tratando de indignidade ou deserdação derivada da prat́ica de um crime contra a vida, como no caso de homicid́io doloso, a decisão penal competirá ao Tribunal de Júri. E, conforme a legislação processual penal (CPP, art. 593, 3o, in fine), a segunda decisão daquele Colegiado contrária à prova dos autos é irrecorrível, não comportando impugnação. Assim, considerando que a decisão do Tribunal Popular pode ter sido contrária à prova dos autos, justifica-se a exigência de uma decisão civil que aprecie verticalmente os fatos, baseada em juiźo técnico e exauriente. Sem dúvida, mostrar-se-ia imprudente e temeraŕio excluir uma pessoa da sucessão – retirando-lhe uma garantia constitucional – por efeito decorrente de uma decisão do Tribunal do Júri que pode ter sido prolatada contrariamente à prova dos autos. De qualquer sorte, releva perceber que a decisão judicial produzirá efeitos retroativos, ex tunc, volvendo até a data da abertura da sucessão. Por conta dessa retroatividade eficacial da decisão judicial que reconhece a indignidade ou a deserdacã̧o, o excluid́o da sucessão terá de devolver os frutos e rendimentos auferidos até o advento da deliberação do juiz. Equipara-se, portanto, a um possuidor de má-fé, por conta dos efeitos retrooperantes. De qualquer maneira, terá direito ao ressarcimento das despesas com a manutenção dos bens e à restituição dos tributos pagos, com vistas a evitar um enriquecimento sem causa dos herdeiros. Efeitos jurid́icos decorrentes do reconhecimento da indignidade e da deserdacã̧o Reconhecida a indignidade ou deserdação por sentença transitada em julgado, é natural que a exclusão da sucessão traga consigo a produção de efeitos na seara jurid́ica, atingindo o sancionado, bem como terceiros. O efeito jurid́ico imediato decorrente é a exclusão do indigno ou deserdado da sucessão com efeitos retroativos à data da abertura da sucessão, passando a ser tratado como se morto fosse, tornando ineficaz a sua vocação sucessória por conta da punição que lhe foi aplicada, decorrente de seu comportamento ignóbil contra o autor da herança. Entrementes, considerada a natureza punitiva da exclusão da sucessão, há de incidir o princiṕio da intranscendência da pena. De acordo com esse postulado, norteador do sistema jurid́ico punitivo, contrariaria a razoabilidade e a pessoalidade da pena permitir que um terceiro seja atingido pela sanção imposta a outrem. Consistiria em uma injustificável severidade. Seguramente, a pena não pode perpassar a pessoa do apenado. Por conta disso, os descendentes do indigno ou do deserdado recebem o patrimônio que caberia a ele, como se morto já estivesse. E ́um caso tiṕico de sucessão por representacã̧o (por estirpe). Cria o sistema jurid́ico uma ficção, por meio da qual o descendente do indigno ou deserdado assume o seu posto, recolhendo a parte que lhe caberia como se já estivesse morto o punido. Ressalte-se, no ponto, que somente os descendentes do indigno ou deserdado podem representá-lo, por conta do caráter extraordinário dessa representacã̧o sucessória, diferentemente do que ocorre na representacã̧o sucessória por pré-morte. No caso especif́ico da sucessão testamentaŕia, a exclusão do herdeiro ou legatário não induz a sucessão por estirpe, afastados também os descendentes do sancionado. Nessa hipótese, a parte que caberia ao excluid́o ficara ́para a massa hereditária, salvo se havia substituto indicado no próprio testamento. Significa, portanto, que a indignidade ou a deserdação produzem efeitos punitivos somente em relação à pessoa do apenado, não prejudicando os seus sucessores. Torna- se, assim, o indigno ou deserdado incompativ́el com o patrimônio transmitido, autorizando os seus descendentes a suceder em seu lugar, como se morto fosse (sucessão por representacã̧o). É relevante repetir à exaustão e desdobrar o raciocińio: a indignidade e a deserdação tornam o herdeiro ou legatário incompativ́el com o patrimônio transmitido. Em sendo assim, o sancionado não pode ter o usufruto ou a administracã̧o dos bens que foram transmitidos aos seus descendentes, em seu lugar, mesmo que sejam incapazes. Trata- se de uma preocupação moral do sistema jurid́ico, evitando que seja aviltada a memória do autor da herança, vitimado pela ingratidão do sucessor. Por absoluta lógica, o indigno e o deserdado também não podem suceder os seus descendentes (que, eventualmente, receberamo patrimônio em seu lugar, por representacã̧o) quando falecerem sem deixar novos descendentes, no que tange aos bens com os quais se tornou incompativ́el. Note-se, todavia, que poderão suceder o seu descendente em relação a outros bens, adquiridos livremente e sem qualquer vinculação com o patrimônio do autor da herança. Exemplificando: no caso de morte do filho que recolheu a herança no lugar do seu pai (indigno ou deserdado), sem deixar netos, o ascendente punido não pode suceder no que tange aos bens transmitidos por força da sentença; mas poderá receber outros bens, adquiridos em vida pelo seu filho, sem qualquer relação com o patrimônio transmitido. Outrossim, por conta da retroação eficacial da decisão judicial que puniu o indigno ou o deserdado, o sucessor passa a ser tratado como um possuidor de ma-́fé, devendo restituir, com juros e correção monetária, todos os frutos e rendimentos recebidos, com ressalva das despesas de conservacã̧o do acervo hereditário e das benfeitorias necessárias – que precisam ser indenizadas, sob pena de enriquecimento sem causa. Havendo eventual depreciação do patrimônio, será caso de indenização em favor dos herdeiros, inclusive por lucros cessantes e perda de uma chance. Ademais, em se tratando da sanção aplicada ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, impede-se o exercićio do direito real de habitação, obstando que tenha o direito de continuar residindo no imóvel que servia de lar para o casal, salvo se o bem lhe couber por direito próprio. Todavia, o cônjuge ou o companheiro reputado indigno ou deserdado não perde o direito à meação, a depender do regime de bens da relação conjugal ou convivencial. Isso porque a meação é direito próprio, pertencente diretamente à parte, não havendo transmissão sucessória. A incompatibilidade do sancionado com o patrimônio do autor da herança, inclusive, conduz à impossibilidade de recebimento de eventual indenização decorrente de seguro de vida deixado pelo extinto, impedindo que ocorra um benefićio indireto. A outro giro, o Superior Tribunal de Justiça vem entendendo que pode o indigno ou deserdado ser beneficiário de eventual pensão previdenciaŕia deixada pelo falecido, uma vez que está submetida a regras próprias do Direito Previdenciário, sendo paga pelo INSS, sem qualquer vinculacã̧o com a herança transmitida. O indigno ou deserdado como um herdeiro aparente e a protecã̧o de terceiros de boa-fé Baseado na teoria da aparência (que serve de fundamento para a proteção de terceiros de boa-fé que celebram negócios jurid́icos com pessoas que, aparentemente, aos olhos dos homens comuns, são titulares de determinados direitos), é fundamental proteger o terceiro de boa-fé que adquiriu, onerosamente, bens e direitos do indigno ou do deserdado, antes do trânsito em julgado da decisão judicial. E ́o caso do herdeiro que, antes do reconhecimento de sua indignidade ou deserdação, alienou onerosamente (vendeu) um bem pertencente ao espólio a um terceiro que, desconhecendo a situação, acreditava tratar-se, efetivamente, do beneficiaŕio do espólio. Nessa hipótese, o terceiro-adquirente tera ́proteção, em face de sua boa- fé. Diz, a respeito do tema, o art. 1.817 da Codificação Reale: Art. 1.817, Código Civil: “São válidas as alienações onerosas de bens hereditaŕios a terceiros de boa-fé, e os atos de administração legalmente praticados pelo herdeiro, antes da sentença de exclusão; mas aos herdeiros subsiste, quando prejudicados, o direito de demandar-lhe perdas e danos.” Nota-se, no ponto, a caracterização do indigno ou do deserdado como um herdeiro aparente, variação típica da teoria do proprietário aparente. O sucessor aparente é aquele que aparenta ser o legitimo titular do direito sucessório, se apresentando perante todos como se, efetivamente, fosse o herdeiro ou legataŕio, vindo, eventualmente, a praticar atos de disposição dos bens hereditaŕios. Para efeito de proteção do terceiro que, de boa-fé, negociou com o sucessor aparente, é irrelevante que este saiba, ou não, da condição que lhe exclui da sucessão. Importa é a proteção do terceiro que acreditou na situação que aparentava ser verdadeira. Fundamenta-se, a toda evidência, na segurança necessária aos negócios jurid́icos em geral. Considerando que o terceiro adquirente estará protegido e, por conta disso, preservado o negócio jurid́ico celebrado, resta aos herdeiros prejudicados pela alienação do bem pleitear perdas e danos, através do direito de regresso contra o indigno ou o deserdado que se apresentava como um herdeiro aparente. Sob o prisma processual, este regresso pode se efetivar por meio de uma ação autônoma ou através de denunciação da lide nos autos de uma outra relação processual. Por evidente, em se tratando de alienações gratuitas (por exemplo, doacã̧o), não se justifica a proteção do terceiro, em face da inexistência de boa-fé, por conta da presunção de fraude contra credores decorrente da prat́ica de atos gratuitos, consoante a previsão do art. 158 do próprio Código. Isso porque, em se tratando de ato gratuito, “é o próprio sistema de Direito Civil que revela sua intolerância com o enriquecimento de terceiros, beneficiados por atos gratuitos do devedor, em detrimento de credores, e isso independentemente de suposições acerca da ma-́fé dos donatários”, conforme a lúcida compreensão da jurisprudência superior. A indignidade A expressão indignidade, originada da raiz etimológica latina indignitas, diz respeito, a toda evidência, à falta de dignidade, ao demérito de alguém por conta da prática de determinados atos, reputados vis, injuriosos, desrespeitosos em relação a uma pessoa ou a determinados valores que devem permear as relações pessoais. Em visão jurid́ica, de forma mais restrita, a indignidade revela uma pena privada imposta a quem incorre em determinados atos. Por isso, não é apenas no âmbito sucessório que se trata de indignidade. No campo das relações familiares, a indignidade pode ocasionar a perda do direito aos alimentos, consoante disposição do Parágrafo único do art. 1.708 da Lei Civil. Trata-se de dispositivo centrado, a toda evidência, na boa-fé objetiva, incorporando o paradigma da eticidade que permeia as relações civis, impondo ao credor alimentar um comportamento compativ́el com a própria solidariedade familiar. A indignidade do credor de alimentos consiste em uma ofensa grave dirigida ao devedor da pensão, atingindo a sua dignidade. Trata-se de um comportamento ignóbil, destruidor da solidariedade familiar, com o mesmo lastro ético da indignidade – aliás, vem se entendendo, corretamente, que as causas de indignidade servem de balizamento para o reconhecimento do comporta- mento indigno para fins de extinção da obrigação alimentićia. Por igual, no campo da doação, o art. 557 do Codex resguarda a possibilidade de revogação do contrato por ingratidão do donatário em relação ao doador, utilizando a mesma filosofia da indignidade sucessória. Assim, a indignidade sucessória consiste na sancã̧o imputada a um herdeiro ou legatário, por conta do alto grau de reprovabilidade, jurid́ica e social, de uma determinada conduta praticada, revelando um desafeto evidente em relacã̧o ao titular do patrimônio transmitido por conta de seu falecimento. E ́imprescindiv́el chamar a atenção para a impossibilidade de se admitir como causa de indignidade de alguém o exercićio de sua liberdade afetiva ou sexual. Com efeito, não se pode enquadrar como indigna a conduta do sucessor (herdeiro ou legatário) que mantém vińculo amoroso com outra pessoa (ou mesmo com várias outras pessoas), de natureza heteroafetiva ou homoafetiva. Com isso, impede-sealguma interpretação moralista (e excessivamente ampliativa) da norma legal, com o objetivo de estabelecer uma parametrização dos comportamentos amoroso e sexual, o que, inclusive, afrontaria a privacidade e a liberdade, constitucionalmente asseguradas. Pontos de afinidade entre a indignidade e a deserdacã̧o Malgrado não se confundam ontologicamente, possuindo regulamentação próprias, a indignidade e a deserdação estão ancoradas no mesmo fundamento, finalidade e natureza, possuindo um visível carat́er punitivo. Em sendo assim, a indignidade e a deserdação se aproximam, a partir de pontos de interseção: ostentam uma natureza sancionatória comum, destinando-se a punir quem se comportou mal para em relação ao autor da herança, privando o recebimento do patrimônio (bens ereptićios), como se morto fosse. A eficácia decorrente do reconhecimento de ambas as figuras é, rigorosamente, a mesma: tratar o indigno ou deserdado como se morto fosse, incompatibilizando-o com o patrimônio transmitido e transmitindo os bens para os seus descendentes. Exatamente por isso, em ambos os casos, deflagra-se: uma sucessão por representação (por estirpe), com a convocação dos descendentes do indigno ou do deserdado para sucederem em seu lugar. Distincã̧o comparativa entre indignidade e deserdacã̧o A outro giro, apesar dos pontos de interseção evidentes, mencionados alhures, não se pode confundir os institutos por conta de suas especificidades. São, portanto, institutos distintos, muito embora decorrentes de uma mesma raiz finaliśtica. Distinguem-se, portanto, a partir de percepções relevantes, a seguir delineadas: i) quanto ao sujeito apenado Há uma diferença entre a indignidade e a deserdação no que diz respeito ao sujeito sancionado com a exclusão da sucessão. Enquanto qualquer sucessor (herdeiro ou legatário) pode ser reputado indigno, somente os herdeiros necessários (CC, art. 1.845) podem sofrer a deserdacã̧o. Aliás, afirma-se que até mesmo pessoas não legitimadas a suceder diretamente podem ser reputadas indignas para evitar que se beneficiem do patrimônio transmitido. Seria o exemplo da viúva que, mesmo não possuindo, por algum motivo, direito hereditário, pode ter reconhecida a sua indignidade para não exercer direitos sobre o espólio, como o direito real de habitação. Por outro lado, somente os herdeiros necessários podem ser deserdados porque os herdeiros facultativos podem ser excluídos da sucessão pela simples lavratura de um testamento, pelo autor da herança, dispondo da integralidade do seu patrimônio em favor de um terceiro. Não há, pois, necessidade de um ato dissertativo de herdeiro facultativo em razão da possibilidade de disposição patrimonial integral, privando-o do recebimento de qualquer vantagem patrimonial. ii) quanto ao momento da prática do ato justificador da sancã̧o A indignidade pode se decorrer da prat́ica de atos previstos em lei, em momento anterior ou posterior à abertura da sucessão – que se efetiva no instante da morte. Por outro lado, a deserdação diz respeito, sempre, à prática de atos anteriores à abertura da sucessão e que chegaram ao conhecimento do autor da herança. Até mesmo porque a deserdação é efetivada por meio de testamento, lavrado pelo próprio autor da herança, razão pela qual o ato tem de ser praticado antes da sua morte. Não é admissiv́el, naturalmente, uma deserdação baseada em fato futuro, de ocorrência incerta. iii) quanto ao instrumento cabível para a exclusão da sucessão A indignidade tem de ser reconhecida judicialmente, por meio de uma ação, submetida ao procedimento comum ordinaŕio, proposta pelo interessado, no prazo decadencial de quatro anos, contados após a abertura da sucessão. Em diferente situação, a deserdação é realizada pelo próprio autor da herança, por meio de um testamento – que necessita de uma posterior confirmação judicial, no prazo decadencial de quatro anos, contados após o seu falecimento (abertura da sucessão). A deserdacã̧o, assim, depende de um testamento, enquanto para a indignidade é indiferente a existência, ou não, de declaração de última vontade. À guisa de arremate, apresenta-se, agora, uma tabela distintiva entre os institutos com vistas à fixação didat́ica da matéria: Indignidade Deserdação Qualquer sucessor (herdeiro ou legatário) pode ser reputado indigno Somente os herdeiros necessários (CC, art. 1.845) Motivo correspondente a um ato praticado antes ou depois da abertura da sucessão Motivo correspondente a um ato praticado necessariamente antes da abertura da sucessão Provocação por qualquer interessado (herdeiro, legatário, interessado indireto) ̧a Provocação exclusivamente pelo autor da herança. Ação de indignidade (procedimento comum ordinário). Prazo decadencial de quatro anos Ato praticado em um testamento pelo próprio titular do patrimônio, com posterior confirmação judicial, no prazo decadencial de quatro anos Decorre do trânsito em julgado da ação de indignidade Decorre do testamento celebrado pelo autor da herança com posterior homologação judicial. Hipóteses de cabimento: CC, art. 1.814 Hipóteses de cabimento: CC, arts. 1.814 + 1.961 a 1.963 A (não) taxatividade das hipóteses de indignidade previstas em lei (CC, art. 1.814 Hipóteses de cabimento A partir do balizamento do artigo em referência (CC, art. 1.814), quatro são as hipóteses básicas de incidência da indignidade, organizadas em três diferentes incisos: i) homicid́io doloso, tentado ou consumado, contra o autor da herança, seu cônjuge ou companheiro, ascendente ou descendente; ii) crime contra a honra ou denunciação caluniosa contra o autor da herança, seu cônjuge ou companheiro; iii) ato que, por violência ou fraude, impeça a livre disposição dos bens. Reabilitacã̧o do indigno Considerado o forte carat́er moral da indignidade, despertando um interesse particular e patrimonial, destinada, fundamentalmente, à proteção do autor da herança, admite-se o perdão do ofendido para reabilitar o indigno, garantindo-lhe o recebimento do patrimônio. Sobre a importância do perdão, disseram alguns que “o perdão é próprio da natureza humana”. Outros, preferem afirmar que “somente os espíritos nobres possuem a capacidade para o perdão”. O conhecido trecho de uma importante manifestação de fé afirma “Senhor, fazei que eu procure mais perdoar do que ser perdoado, compreender do que ser compreendido, amar do que ser amado”. Juridicamente, porém, o perdão não se prende a qualquer valoração ińtima. Para o sistema jurid́ico a concessão do perdão é uma manifestação de vontade desatrelada de motivos e fundamentos. Se decorrente de simples ato de desapego, de nobreza, ou se motivado por escusos sentimentos, o perdão produz o mesmo efeito. Trata-se de manifestação personalíssima (intuito personae), não submetida a qualquer elemento acidental (como condição ou termo), permitida pelo sistema e direcionada a evitar a exclusão do sucessor que havia se comportado mal contra quem o profere. De fato, o sistema jurid́ico não poderia calar-se ou mostrar-se indiferente “diante da vontade de o testador indultar o indigno, até porque só ele é árbitro dessa atitude, em extremo pessoal”. Assim, reza, in litteris, o art. 1.818 do Codex: Art. 1.818, Código Civil: “Aquele que incorreu em atos que determinem a exclusão da herança será admitido a suceder, se o ofendido o tiver expressamente reabilitado em testamento, ou em outro ato autêntico. Parágrafo único. Não havendo reabilitação expressa, o indigno, contemplado em testamento do ofendido, quando o testador, ao testar, ja ́ conheciaa causa da indignidade, pode suceder no limite da disposição testamentária.” A reabilitacã̧o do indigno, ou purgação da indignidade (como se prefere em língua espanhola), ou ainda riabilitazione (na expressão usada pelo art. 466 do Código da Itália), é ato exclusivo do autor da herança, em razão de seu caráter personalíssimo, obstando a eficaćia da indignidade que venha a ser reconhecida. Por meio do perdão, impõe-se uma trava ao reconhecimento da indignidade, garantindo o recebimento do benefićio patrimonial. Pouco interessa o clamor, revolta ou insatisfação da famiĺia ou da sociedade para a reabilitação do indigno. Por mais que a conduta se mostre aviltante para uma pessoa, o perdão é de interesse exclusivamente privado, não interessando qualquer valoração exógena do ato desculpado. Bem por isso, independe de homologação judicial. Demonstra-se, com isso, o carat́er privado da pena civil de indignidade, evidenciando não se tratar de uma sanção imposta em atendimento a interesses coletivos ou sociais, mas, ao revés, estritamente particulares. Não é uma intervenção imperativa. Não ha ́interesse público. Por isso, a vontade do titular afasta a eficácia da indignidade – o que ressalta o interesse privado que aqui reside. Não se admite o perdão efetivado pelo incapaz, estando viciado pela nulidade ou anulabilidade. Mais ainda: para que o perdão do ofendido tenha o condão de reabilitar o indigno à participação sucessória, impedindo a procedência de um pedido de indignidade formulado posteriormente, deve ser ele expresso e escrito, conforme a dicção legal, sob pena de nulidade. Não se tolera um perdão taćito ou por declarações verbais. Contudo, havendo simples alusão à expressão “ato autêntico” no dispositivo legal citado, não se impõe a prática por escritura pública, sendo admissiv́el o perdão por instrumento particular, desde que seja possiv́el atestar a sua autenticidade. Efetivamente, não se pode assumir uma postura mais realista do que o próprio rei. Assim, inexistindo disposição legal expressa, a exigir instrumento público para o perdão, tem de ser admitida a prática misericordiosa por instrumento particular, desde que o ato seja autêntico, estreme de dúvidas. Vislumbramos, assim, a possibilidade de concessão do perdão por meio de cartas, declarações escritas e, até mesmo, por e-mail’s (cuja veracidade se pode aferir com segurança, hodiernamente). Trata-se de aplicação do paradigma da operabilidade, uma das diretrizes do Código de 2002. Naturalmente, o perdão pode ser concedido por meio de testamento, qualquer que seja a sua forma. Curiosamente, vindo a disposição de última vontade a ser invalidada ou a caducar, a cláusula de misericórdia não será atingida, mantendo a sua plena validade e eficácia. A purgação da indignidade é a consequência direta do perdão do ofendido. Com isso, o direito ao recebimento da herança ou do legado será reconstituído. Sob o ponto de vista processual, a existência de perdão do ofendido gera o esvaziamento do pedido formulado na ação de indignidade, na medida em que o réu da ação recupera, por ato expresso de vontade do autor da herança, o seu direito à participação sucessória. Nenhum efeito projetará, no entanto, no âmbito de eventual ação penal, por conta da independência das instâncias. O ônus de prova da existência e validade do perdão do ofendido é do próprio indigno, como regra geral. Naturalmente, a depender da situação, é possiv́el imaginar uma redistribuição desse ônus de prova, com base na teoria da carga dinâmica do processo, quando, verbi gratia, o documento comprobatório da reabilitação estiver sob a posse de um outro herdeiro. Por óbvio, o perdão somente é possiv́el para os atos praticados até a abertura da sucessão. Ou seja, até o limite da morte do autor da herança. Não se pode admitir um perdão antecipado por atos que, eventualmente, vierem a ser praticados depois da abertura da sucessão. Por exemplo, não pode o autor da herança perdoar uma futura tentativa de homicid́io de um dos seus filhos contra a viúva ou contra um outro filho seu. Conquanto seja indivisiv́el o perdão, se o autor da herança não perdoou expressamente o seu herdeiro legit́imo indigno, mas, tendo ciência do ato ignóbil por ele praticado, posteriormente veio a beneficiá-lo em testamento, será garantido o direito de participar exclusivamente da sucessão testamentaŕia. No que tange à sucessão legit́ima, poderá perfeitamente ser excluid́o, se vier a ser reputado indigno. Por derradeiro, destaque-se que tendo o perdão natureza de um ato jurid́ico em sentido estrito, sera ́ irretratável e irrevogável, uma vez que os seus efeitos estão previstos em lei, sendo insuscetível de arrependimento. E, de fato, o pressuposto do perdão é o esquecimento. Contudo, nada impede que o perdoado venha a ser reputado indigno por outro ato praticado após a reabilitação concedida pelo autor da herança ou mesmo por ele deserdado, em razão de conduta diversa superveniente. Por evidente, o perdão concedido há de ser interpretado restritivamente no que diz respeito à conduta caracterizadora. A deserdacã̧o Nocõ̧es gerais Sob o ponto de vista linguístico, a própria expressão deserdação carrega consigo uma etimologia indicativa do seu sentido: des + herdar, significando excluir, retirar, o direito à herança. Nessa ambiência, a deserdação é o ato privativo do autor da herança, por declaração expressa de vontade, através de testamento, que exclui da sua sucessão um herdeiro necessário (descendentes, ascendentes ou cônjuge, na forma do art. 1.845 do Codex), por conta de um ato repugnante que lhe ultrajou, posteriormente confirmado pelo juiz. O ato dissertativo alcança, apenas e tão somente, os herdeiros necessários. Isso por- que somente os herdeiros necessários fazem jus à legit́ima, correspondente à porção indisponiv́el à vontade do autor da herança, consistente em cinquenta por cento do seu patrimônio liq́uido no momento da abertura da sucessão. Havendo herdeiro necessário, não pode o titular do patrimônio dele dispor integralmente. Assim, impõe-se a deserdação do herdeiro necessário para que ele seja privado do recebimento hereditário. A outro giro, havendo apenas herdeiros facultativos, não há que se falar em legit́ima e, consequentemente, poderá o autor da herança dispor integralmente do seu patrimônio por meio de testamento, privando aquele do recebimento de qualquer vantagem. Por igual, no caso de beneficiário por testamento, herdeiro ou legataŕio, basta ao hereditando revogar o testamento ou editar uma nova declaração de vontade, substituindo o sucessor para que se lhe afaste do patrimônio. Em ambas as hipóteses, portanto, vê-se a desnecessidade de deserdação, bastando a declaração de vontade do próprio titular. Alcance subjetivo da deserdacã̧o: os herdeiros necessários Como visto, somente os herdeiros necessários podem ser deserdados, não havendo interesse (prático ou jurid́ico) na deserdação dos demais sucessores, que podem ser privados do recebimento da herança por simples declaração de vontade do titular. Para eles (demais sucessores, não necessários), inclusive, é irrelevante a eventual motivação da privação. Sob a égide da nova Codificação, consta dos arts. 1.961 a 1.963: Art. 1.961, Código Civil: “Os herdeiros necessários podem ser privados de sua legit́ima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão.” Art. 1.962, Código Civil: “Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I – ofensa fiśica; II – injúria grave; III – relaçõesilićitas com a madrasta ou com o padrasto; IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.” Art. 1.963, Código Civil: “Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I – ofensa fiśica; II – injúria grave; III – relações ilićitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.” Ora, a diccã̧o dos referidos dispositivos insinua, portanto, que os herdeiros necessários como um todo (descendentes, ascendentes, cônjuge e companheiro) podem ser deserdados nas mesmas hipóteses em que podem ser considerados indignos: homicid́io doloso tentado ou consumado contra o autor da herança, seu cônjuge ou companheiro, ascendentes ou descendentes; acusação caluniosa em juiźo ou crime contra a honra do autor da herança ou de seu cônjuge ou companheiro; e ato que impeça a manifestação da última vontade do autor da herança (CC, art. 1.814). Isso porque observando, em seguida, o caput dos arts. 1.962 e 1.963 do mesmo Código, consta ser possiv́el, nas hipóteses especif́icas que são apresentadas, a deserdação dos “descendentes por seus ascendentes” e dos “ascendentes pelos descendentes”, deixando de fora o cônjuge. E ́ indiscutível, pela clareza solar do disposto no art. 1.961 da Codificacã̧o, a possibilidade de exclusão de todos os herdeiros necessários nas hipóteses caracterizadoras de indignidade. Pressupostos da deserdacã̧o Sem perder de vista que o direito à herança constitui garantia fundamental (CF, art. 5o, XXX), é faćil depreender a necessidade de estabelecer condições mińimas para a privação da heranca̧ por um herdeiro necessário. Evita-se, assim, que por vingança ou por motivo torpe o autor da herança prive o seu herdeiro necessário de recolher a sua herança. São conditios sine qua non para a exclusão do herdeiro necessário. E ́dizer, ausente qualquer desses pressupostos, a deserdação é reputada inexistente e, por conseguinte, não surtirá qualquer efeito, mantido o recebimento patrimonial. São pressupostos da deserdação: i) a declaração de vontade do autor da herança, privando herdeiro necessário por meio de testamento; ii) indicação do motivo deserdativo na própria declaração de vontade, dentre as causas previstas em lei; iii) confirmação judicial, em ação submetida ao procedimento comum ordinaŕio. Vejamos minudentemente cada um dos pressupostos. i) testamento válido Enquanto a indignidade é efetivada por meio de uma ação promovida pelos interessados, a deserdação é ato privativo do autor da herança, através de um testamento. Não se admite o uso de outro instrumento para efetiva-́la, mesmo que seja escritura pública ou termo judicial. Consta, verbum ad verbo, do caput do art. 1.964 do Código Civil que somente “pode a deserdação ser ordenada em testamento”, colocando dies cedit em qualquer dúvida por ventura existente. Para a deserdacã̧o do herdeiro necessário, portanto, exige- se uma declaração volitiva em testamento, seja público, cerrado ou particular, evidenciando que se trata de um ato formal e solene, não se tolerando outro meio de exteriorização da vontade de privar o herdeiro necessário. Uma vez efetivada por meio de testamento, não se exige o uso de expressões sacra- mentais, técnicas ou especif́icas para a deserdacã̧o. Exige-se, ademais, a validade do testamento que contém a declaração adeserdativa. Isso porque se nula, ou anulav́el, a declaração de última vontade, igualmente invalidada estara ́ a deserdação, por conta do comprometimento da vontade manifestada. ii) indicação da tipicidade da conduta deserdativa (claúsula expressa com fundamentação legal) Não basta a pratica do ato deserdativo por meio de testamento. Para além disso, o legislador exige a indicação da motivação do testador, revelando, expressamente e por escrito, a causa prevista em lei ensejadora da punição do agente, com a privação da herança. O motivo, portanto, não pode constar implicitamente do testamento ou ser subentendido, tácito ou virtual. O Código Civil é de clareza meridiana: “somente com expressa declaração de causa pode a deserdação ser ordenada em testamento” (art. 1.964). Trata-se de limitação imposta pelo sistema jurid́ico ao arbit́rio do testador, evitando que a deserdação seja praticada como uma espada decorrente de vingança, ódio ou desafeto. Certamente, não é qualquer motivo que pode ensejar a privação da herança pelo herdeiro necessário, até mesmo porque o recebimento da herança é garantia constitucional, somente afastav́el nos casos previstos em lei (indignidade e deserdação). A deserdação não pode se prestar a um arbit́rio despótico do hereditando, afrontando a garantia de recebimento do patrimônio, por capricho. Naturalmente, o motivo da deserdação tem de existir previamente à celebracã̧o do testamento, não podendo se contemplar situações incertas e não concretizadas. A outro giro, a deserdação permite ao titular do patrimônio impedir que o seu herdeiro que lhe foi ingrato venha a ser beneficiado com o seu óbito. Vislumbramos o caso do pai que deserda o filho que assassinou sua esposa ou um outro filho seu. Também se vê o filho que deserda o pai que, durante toda a sua vida, se negou a lhe prestar ali- mentos, apesar de possuir condições econômicas para a mantença da prole, deixando-o em completo abandono material. Ressalte-se, por oportuno, que a interpretação do rol das hipóteses de deserdação (CC, arts. 1.961 a 1.963) não se submete à taxatividade. A eventual deserdação sem indicação da justa motivação correspondente será nula, não podendo ser homologada pelo juiz. Com isso, mantém a inteireza do direito sucessório do herdeiro necessário que se pretendia excluir da sucessão. iii) comprovacã̧o judicial em ação ordinária de deserdação Assim como a indignidade, a deserdação do herdeiro necessário reclama o reconhecimento por decisão judicial, prolatada em procedimento comum ordinário. Efetivamente, em se tratando de uma sanção civil, não seria razoável admitir a sua aplicação sem prévio provimento jurisdicional, após garantido o devido processo legal. A privação legitimária, portanto, não decorre do simples ato de imputação adeserdativa contida no testamento. Diferentemente do sistema espanhol e do suíço, entre nós, é necessária a comprovação judicial de sua veracidade, por meio de sentença prolatada pelo juiz das sucessões, em demanda promovida pelo interessado, a quem incumbe o ônus de prova do que se alega, com vistas à exclusão do réu da participação sucessória. Reza o art. 1.965 da Lei Civil: Art. 1.965, Código Civil: “Ao herdeiro instituid́o, ou àquele a quem aproveite a deserdacã̧o, incumbe provar a vera- cidade da causa alegada pelo testador.” A decisão judicial deve atentar para duas circunstâncias da mais alta relevância: i) a correspondência da conduta imputada ao herdeiro necessário e o tipo legal previsto no Código Civil; ii) a efetiva concretização da conduta imputada, tendo afrontado a dignidade do auctor hereditatis. Tendo sido imputada mais de uma conduta deserdativa ao réu, bastará a comprovação de uma delas para a procedência do pedido. A ação de deserdação, que esta ́ submetida ao procedimento comum ordinaŕio, deve ser ajuizada após a homologação judicial do testamento – que, por seu turno, está submetida a um procedimento de jurisdição voluntária. O prazo decadencial para o aforamento da ação de deserdação é de quatro anos, contados, segundo o texto codificado, da abertura do testamento: “o direito de provara causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento” (CC, art. 1.965, Parágrafo único). Aqui, descortina-se um instigante problema: somente o testamento cerrado precisa ser aberto pelo juiz. Os testamentos público, particular e especiais (marit́imo/aeronáutico e militar) não trazem qualquer conteúdo secreto, não precisando de abertura pelo juiz, mas exigindo, de qualquer sorte, homologação para que sejam efetivados. Nota-se, assim, uma incoerência legislativa. Se o prazo de caducidade fluir a partir da abertura do testamento, restringir-se-ia ao testamento cerrado, uma vez que os demais ja ́estão abertos. A melhor solução para o problema, então, é entender que o prazo para a propositura da demanda é computado a partir da abertura da sucessão, afora no caso de testamento cerrado. Há quem entenda, noutra margem, que nos casos distintos do testamento cerrado, o prazo de caducidade deve ser computado a partir da apresentação do testamento em juiźo. Note-se, ainda, a impossibilidade de propositura da ação de deserdação antes da abertura da sucessão. Com isso, o próprio autor da herança é parte ilegítima para a demanda. A ele cabe a lavratura do testamento, mas não o aforamento de ação para a sua confirmação judicial. Caso a demanda não venha a ser ajuizada no prazo decadencial estampado no Código Civil ou não sendo comprovada a causa deserdativa invocada pelo autor da herança, a deserdação perde a sua eficaćia absolutamente, mantido o direito à herança. No ponto, urge um especial cuidado no que diz respeito à redução parcial da ineficácia (CC, art. 184): perdera ́a eficaćia, nos casos mencionados, a cláusula de deserdação, mantendo a sua integridade as demais claúsulas testamentária, como, por exemplo, o benefićio a terceiros ou o reconhecimento de um filho. Surge, então, uma instigante questão: decaindo o direito de propositura da acã̧o ou não comprovada a causa deserdativa, o herdeiro necessário mantém, também, o direito à sucessão testamentária ou somente o acesso à legit́ima? Tal o que ocorre na indignidade, o ônus de prova recai sobre o autor da demanda, a quem se impõe demonstrar a existência do testamento deserdativo, bem como a efetiva ocorrência da causa apontada. Relembre-se que somente o trânsito em julgado da sentença de deserdação priva o herdeiro necessaŕio do recebimento patrimonial. Antes disso, pode se justificar o uso de medidas cautelares, com vistas a salvaguardar o resultado útil do processo, assegurando direitos. Causas deserdativas dos herdeiros necessários Em conformidade com o disposto nos arts. 1.961 a 1.963, a deserdacã̧o pode estar baseada nas causas de indignidade, previstas no art. 1.814, e em causas especif́icas, mencionadas nos arts. 1.962 e 1.963. Quanto à deserdação com base nas causas genéricas de indignidade, vale notar a clareza meridiana do texto legal: “os herdeiros necessários podem ser privados de sua legit́ima, ou deserdados, em todos os casos em que podem ser excluídos da sucessão.” Assim, todos os herdeiros necessaŕios (descendentes, ascendentes, cônjuge e companheiro) podem ser deserdados por conta de i) homicid́io doloso, tentado ou consumado, contra o autor da herança, o seu cônjuge ou companheiro, o seu ascendente ou descendente; ii) acusação caluniosa em juiźo ou crime contra a honra contra o autor da herança, o seu cônjuge ou companheiro; iii) ato que impeça a declaração de última vontade, ou a sua execução, do autor da herança. Cometido qualquer dos atos de indignidade pelo herdeiro necessário, poderá o auc- tor hereditatis deserda-́lo, por testamento. Porém, não o fazendo, poderão os interessa- dos, depois da morte do titular, buscar o reconhecimento da indignidade, por meio da ação cabível. Para além desses tipos, que servem para a indignidade, entende-se que a deserdação, por defluir diretamente da vontade do próprio titular do patrimônio, pode estar lastreada em outras causas, ampliando a possibilidade de exclusão do herdeiro necessaŕio. Os arts. 1.962 e 1.963 vislumbram: Art. 1.962, Código Civil: “Além das causas mencionadas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos descendentes por seus ascendentes: I – ofensa fiśica; II – injúria grave; III – relações ilićitas com a madrasta ou com o padrasto; IV – desamparo do ascendente em alienação mental ou grave enfermidade.” Art. 1.963, Código Civil: “Além das causas enumeradas no art. 1.814, autorizam a deserdação dos ascendentes pelos descendentes: I – ofensa fiśica; II – injúria grave; III – relações ilićitas com a mulher ou companheira do filho ou a do neto, ou com o marido ou companheiro da filha ou o da neta; IV – desamparo do filho ou neto com deficiência mental ou grave enfermidade.” O perdão do ofendido (reabilitacã̧o do deserdado) Apesar do absoluto silêncio do legislador, dúvida não há quanto à efetiva possibilidade de perdão pelo titular do patrimônio em relação ao deserdado, reabilitando-o ao recebimento da legit́ima. Através da simples utilização da analogia legis em relação ao art. 1.818 do Código Civil, que reconhece a reabilitação do indigno, infere-se, com tranquilidade e segurança, a possibilidade de perdão manifestado pelo auctor hereditatis, em face da inescondiv́el similitude entre os institutos. Por evidente, a reabilitação deve decorrer de declaração de vontade expressa, com indiscutível conteúdo, mas não necessariamente deve defluir de instrumento público.
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