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Cognitivismo e Aquisição de Linguagem Conteudista Prof. Dr. Carlos Eduardo Borges Dias Revisão Textual Esp. Pérola Damasceno 2 OBJETIVO DA UNIDADE Atenção, estudante! Aqui, reforçamos o acesso ao conteúdo on-line para que você assista à videoaula. Será muito importante para o entendimento do conteúdo. Este arquivo PDF contém o mesmo conteúdo visto on-line. Sua dis- ponibilização é para consulta off-line e possibilidade de impressão. No entanto, recomendamos que acesse o conteúdo on-line para melhor aproveitamento. • Entender a emergência da linguagem na perspectiva solipsista de Piaget: a relação entre o desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimen- to da linguagem: os principais estudos. 3 Introdução Jean Piaget estudou pouco a própria linguagem e não tratou muito do problema de sua aquisição. Ele reservou a maior parte de seu interesse às relações entre linguagem e estruturas operacionais. No entanto, entre seus primeiros traba- lhos estão A linguagem e o pensamento na criança (1923) e O raciocínio da criança (1924). No primeiro, Piaget analisa, antes da era do computador, nada menos que 12.000 enunciados de crianças pequenas com o objetivo de respon- der, entre outras coisas, a questões funcionais, que hoje identificaríamos como de natureza pragmática. Figura 1 – Jean Piaget Fonte: Wikimedia Commons #ParaTodosVerem: fotografia em preto e branco de Jean Piaget, usando terno. Fim da descrição. 4 Com qual objetivo as crianças falam? Elas exprimem funções diferentes confor- me se dirigem a outra criança ou a um adulto? Neste estudo, pode-se detectar três preocupações que, posteriormente, se tornaram centrais para a pesquisa em aquisição da linguagem: primeiro, o interesse pela pragmática; em segundo lugar, o estudo da linguagem no seu contexto natural, tendo em conta a sequ- ência conversacional em que se inserem os enunciados da criança (Piaget con- sidera a presença ou não de uma resposta e o tipo de resposta, bem como o enunciado que precede aquele que está a ser analisado); por fim, a comparação das diferentes formas de uso da linguagem de acordo com o interlocutor com quem a criança está falando (Piaget discute as trocas conversacionais entre uma criança e outras de mesma idade, bem como entre a mesma criança e sua mãe, destacando suas diferenças). Embora seja difícil estimar até que ponto essas obras realmente influenciaram as pesquisas posteriores sobre o funcionamento da linguagem, elas testemunham, mais uma vez, a originalidade do pensamento de Piaget, que conseguiu se con- centrar em questões importantes, e isso em um momento em que se prestava pouca atenção a isso. Com efeito, se naquela época era comum a coleta de dados espontâneos (através de apontamentos feitos em forma de diário), questões re- lativas à função da linguagem e às relações discursivas que os enunciados man- têm entre si eram pouco estudados. Além disso, quando o contexto em que um enunciado foi produzido era levado em consideração, isso era principalmente para fixar a semântica das palavras. Foi vinte anos depois, com a publicação de A Formação do Símbolo na Criança (1945), que encontramos em Piaget um interesse pela linguagem a partir do qual ele passa a fornecer alguns detalhes factuais sobre o início de sua aquisição. Note-se, porém, que subcapítulos como "os primeiros esquemas verbais" fazem parte de um momento em que Piaget tenta, sobretudo, responder à questão da passagem dos esquemas sensório-motores para esquemas conceituais. Ele, então, tenta mostrar que os primeiros padrões verbais são "móveis" porque são usados em situações nas quais é difícil encontrar um denominador comum entre as propriedades objetivas dos "objetos" que, acima de tudo, refletem uma mistu- ra de características objetivas e subjetivas. A ideia principal que Piaget desenvolve nesse momento é que as primeiras pa- lavras são comportamentos de transição entre esquemas sensório-motores e os conceitos. Com os esquemas sensório-motores, eles compartilham o aspecto generalizante; com os conceitos, eles compartilham um início de distanciamento da ação pura para ir em direção aos julgamentos de constatação. No entanto, ainda lhes falta o caráter estável e objetivo do conceito. 5 Figura 2 – Bebê “falando” Fonte: Adaptada de Freepik #ParaTodosVerem: fotografia em preto e branco de uma criança “falando” em um microfone. Fim da descrição. Parece que Piaget se interessa aqui apenas no aspecto referencial das produções de linguagem da criança e que ele negligencia sua função comunicativa, um dos aspectos que ele estudou na obra de 1923. Com efeito, é no âmbito de uma inter- pretação denominativa do uso de palavras que pode ser desenvolvida a ideia de que as primeiras palavras subsumem “objetos” parcialmente ligados uns aos ou- tros por vários critérios. Mas essa afirmação merece uma ressalva de imediato, pois logo depois Piaget explica que a linguagem inicial é constituída sobretudo de ordens e expressões de desejo, e que a nomeação é o enunciado de uma ação possível, uma afirmação coerente com a progressão esboçada de que o desen- volvimento vai de padrões verbais infundidos de ação para uma linguagem que serve para fazer juízos de constatação. A ideia de uma linguagem se construindo gradativamente como entidade distanciada da realidade e objetificável pode ser vinculada a duas questões amplamente debatidas no campo da aquisição da linguagem. Estas questões permanecem difíceis de definir empiricamente de forma clara: uma diz res- peito ao uso referencial das palavras; a outra, seu uso sintagmático, ou seja, um uso articulado onde se constroem relações não só entre as palavras e seus referentes, mas também entre as próprias palavras, ou seja, a ligação que une as palavras. 6 Sobre a Aquisição da Linguagem De fato, raramente encontramos escritos de Piaget tratando especificamente da aquisição da linguagem. No capítulo "Esquemas de ação e aprendizagem da lin- guagem" (1975), ele considera que o aparecimento da linguagem se baseia nas aquisições da lógica sensório-motora e da função simbólica, e que essa última, que seria um derivado necessário da inteligência sensório-motora, é o que per- mite a aquisição da linguagem. Ele recusa, muito claramente, a ideia de inatismo chomskiano e isso não ape- nas com base em argumentos teóricos relativos à inteligência sensório-motora, mas também com base em argumentos empíricos: por um lado, baseia-se na sincronização entre o aparecimento da linguagem e o de outras manifestações da função semiótica; por outro lado, na descoberta de comportamentos não convencionais que testemunham a existência de sucessivas e laboriosas ela- borações que dependem de regulações progressivas muito mais do que nos desdobramentos predeterminados que se esperaria de uma programação he- reditária, como pretende Chomsky. Ao discutir mais especificamente a relação entre as operações cognitivas e a aquisição da linguagem, Piaget opta não por uma solução em que as primeiras orientariam as segundas, nem pelo contrário, mas por uma visão em que os progressos da linguagem são devidos a um mecanismo regula- tório tanto interno quanto solidário a outras formas do mesmo processo atuando no mesmo nível em outros domínios. Para Piaget, a aquisição de estruturas particulares da linguagem se enquadraria em uma construção cognitiva ampla realizada pelos mesmos mecanismos gerais de construção do conhecimento. O Papel da Linguagem na Construção das Operações Lógicas A maioria dos escritos de Piaget sobre a linguagem concentra-se na relação entre linguagem e pensamento, e aborda mais especificamente a questão do papel da linguagem na construção das operações lógicas fundamentais. Piaget, embora 7 frequentemente reconheça a importância da linguagem, na maioria das vezes sustenta que sua presença não garante a presença das operações lógicas que poderiam parecer subjacentes a tal ou tal expressão verbal. No final do artigo Linguageme pensamento do ponto de vista genético (1954), no qual Piaget sintetiza com bastante clareza sua posição sobre o assunto, ele conclui que a linguagem é uma condição necessária, mas não suficiente, para a construção de operações lógicas. O que exatamente ele quer dizer com essa afir- mação e em que ela se baseia? Para entender melhor essa afirmação, devemos começar distinguindo a lingua- gem como um sistema de representação da linguagem como um dos meios de comunicação e interação social. Além disso, para o aspecto representacional, ainda é preciso distinguir o sentido geral – a linguagem como um dos vários meios de representação – do específico – a linguagem como um sistema orga- nizado de signos, constituído por um léxico que carrega em si os traços de uma organização hierárquica de classes e estruturas morfossintáticas e predicativas, e que se encontra em línguas particulares. É especialmente neste último sentido que a linguagem pode parecer suficiente para a construção de certas noções e operações lógicas, como a de classes, sua inclusão e relações de ordem. De fato, as palavras referem-se a conjuntos que possuem ao mesmo tempo uma compreensão e uma extensão; além disso, em alguns domínios, o significado das palavras é organizado de maneira hierarqui- camente inclusiva (por exemplo, gatos são animais de estimação, e esses, por sua vez, são animais), e há expressões para comparar e ordenar itens um a um (por exemplo, “seu bolo é maior que o meu”). Porém, em nenhum dos sentidos mencionados Piaget considera a linguagem como suficiente para a construção das operações lógicas fundamentais, já que acredita que as estruturas que caracterizam o pensamento têm suas raízes na ação e em mecanismos sensório-motores mais profundos do que o fato lin- guístico. A linguagem pode, no entanto, ser necessária para completar a ela- boração das estruturas do pensamento, como meio de representação geral e como meio de comunicação. A Linguagem não é a Fonte do Pensamento Quatro argumentos que apoiam essa posição podem ser encontrados em Piaget: 8 Linguagem como um Caso Particular da Função Semiótica Em primeiro lugar, Piaget relativiza o papel da linguagem ao argumentar que uma de suas propriedades relevantes para o desenvolvimento do pensamento, seu aspecto representacional, também se expressa em outros comportamen- tos. Antes ou ao mesmo tempo em que a criança começa a usar signos linguís- ticos, ela também usa em brincadeiras símbolos que podem ser construídos por ela (o que Piaget chama de símbolos ‘individuais’), quando ela tenta evo- car ou reproduzir eventos passados e em geral quando ela usa imagens men- tais, visuais ou auditivas. A linguagem, portanto, não tem a função exclusiva de representação. Ao contrário, há uma função semiótica mais fundamental e ao mesmo tempo mais ampla (abarcando símbolos motivados – onde há uma semelhança entre o significante e o significado – e signos – onde a relação é, por outro lado, arbitrária e convencional). É esta função geral, e com ela a ca- pacidade de representação, que para Piaget está ligada ao desenvolvimento do pensamento. Isso pode ser entendido pelo poder que a representação tem de ir além da situação imediata – permitindo considerar o não imediatamente perceptível e o imaginado – e de tornar simultâneas situações temporalmente sucessivas ou simplesmente possíveis. Piaget considera que a fonte comum dessa habilidade deve ser encontrada no desenvolvimento da imitação. A imitação – de ações, gestos, expressões faciais, eventos, mas também de produções verbais – é, antes de tudo, imediata e, uma vez que visa reproduzir um modelo, representa-o em ação. Com o desenvol- vimento dos próprios esquemas, a imitação pode ocorrer internamente e ser utilizada posteriormente como um significante diferenciado de seu significado para evocá-lo em sua ausência. Segundo Piaget, a linguagem, embora importante entre os meios semióti- cos, não pode ser considerada fundamental. Além disso, em última análise, o desenvolvimento da capacidade de representação pode ser atribuído ao próprio funcionamento da inteligência, ou seja, à elaboração e coordenação de planos de ação. 9 A Expressão Linguística das Relações e Operações não Garante a Presença das Noções Correspondentes Piaget observa que mesmo uma inspeção superficial da linguagem mostra que ela contém estruturas semânticas e estruturais que refletem estruturas concei- tuais e operatórias. Algumas palavras são organizadas de forma hierárquica de modo que podem ser descritas em termos de classes interligadas, e a linguagem permite facilmente a expressão de interseções de classes (por exemplo, baleias são mamíferos e animais aquáticos). Além disso, é fácil falar de quantificação (“todos”, “alguns”, “mais e menos”), fazer disjunções (ou isso ou aquilo) e afir- mações predicativas, colocar-se num mundo hipotético pelo uso de estruturas do tipo “se... então”, etc. Assim, pareceria natural ver na prática da linguagem a fonte das operações lógicas. No entanto, ainda que Piaget reconheça que o signo linguístico, pelo seu grau de abstração, é um significante mais poderoso que os outros, ele não pensa que o simples fato de usar determinadas palavras e estruturas morfossintáticas possa ser suficiente para a compreensão e apropriação pela criança de noções e ope- rações lógicas correspondentes. Num artigo em que Piaget discute a posição preeminente que Vygotsky atribui ao significado da palavra como um microcosmo de generalização (porque, para ele, a palavra sempre se refere não a um único objeto, mas a todo um grupo ou clas- se de objetos) e organização de um mundo que pré-existe ao indivíduo, Piaget explica que, para Vygotsky, a criança descobre a inclusão de classes através de uma combinação de generalização e aprendizado: aprendendo a usar a palavra 'rosa' depois a palavra 'flor', bastará a ela generalizar “todas as rosas são flores” para chegar à inclusão “rosas incluídas nas flores”. Referindo-se ao seu próprio trabalho de classificação, Piaget passa a afirmar claramente que não é assim que as coisas acontecem: a criança, mesmo que saiba usar as palavras "rosas" e "flo- res", e ainda que afirme que "todas as rosas são flores e que nem todas as flores são rosas”, não poderá concluir que existem mais flores do que rosas. Da mesma forma, a prática da numeração falada também não é suficiente para assegurar a conservação dos conjuntos numéricos. Um exemplo é o das conservações em que observamos os conhecidos e ampla- mente discutidos “deslocamentos” de acordo com o conteúdo da conservação em questão. Piaget observa que quando a criança usa expressões como "é mais comprido, mas mais fino" para justificar a conservação da substância, ela pode não estar demonstrando a conservação do peso. 10 Figura 3 – Hermine Sinclair Fonte: piaget.org #ParaTodosVerem: fotografia de Hermine Sinclair poucos anos antes de seu falecimento, em 1997. Fim da descrição. As pesquisas de Hermine Sinclair sobre a relação entre expressão linguística e nível operacional levaram Piaget a supor certa correspondência entre o nível operacio- nal das crianças e suas preferências linguísticas. Elas mostraram que em situações diferentes das situações de conservação, as crianças não conservativas usam um léxico e estruturas diferentes daquelas usadas pelas crianças conservativas. Em situações em que se tratava de comparar, por exemplo, um lápis grande e curto com um lápis comprido e fino, apenas as crianças conservativas privi- legiavam termos diferenciados para referir as diferentes dimensões (grande/ pequeno e grande/fino), expressões comparativas (este é mais longo) e frases que usam "estruturas bipartidas", ou seja, que comparam objetos coordenan- do as diferenças das duas dimensões (este lápis é mais longo, mas mais fino; o outro é curto, mas grosso). Estimular as crianças a usar essas expressões pode influenciar no seu nível operacional? Crianças não conservativassão boas em apropriar-se do léxico; alguns também conseguem usar as estruturas lin- guísticas e produzi-las mesmo na situação de conservação líquida, mostrando nisso que podem atentar para a covariação nas dimensões. No entanto, entre os sujeitos que fizeram mudanças na expressão verbal, poucos progrediram também no nível operatório. 11 As Operações Fundamentais do Pensamento são Construídas Mesmo na Ausência de uma Língua Outro argumento apresentado por Piaget para mostrar que a linguagem não é necessária para a construção das operações lógicas fundamentais envolve os resultados de pesquisas realizadas com crianças surdas. Piaget cita os resulta- dos obtidos por Vincent-Borelli, publicados em 1951 e em 1956, bem como os de Oléron e Herren, publicados em 1961, indicando que as crianças surdas apresen- tam os mesmos estágios de desenvolvimento das crianças ouvintes, com atrasos simples que, nos campos de classificação, seriação e relações espaciais, se situ- am entre um e dois anos. Notam-se atrasos mais significativos para a noção de conservação, atrasos que Piaget atribui a dificuldades na administração das instruções. Outros estudos confirmaram os primeiros resultados desses autores e mostraram que, com téc- nica adequada, crianças surdas que não tiveram uma educação específica em linguagem (nem em linguagem oral, nem em linguagem de sinais) passaram em testes de conservação com o mesmo tipo de atraso que nos outros domínios. O atraso é explicado pelo fato de que as trocas entre as pessoas e, consequente- mente, o confronto dos pontos de vista, foram menores para essas crianças. No entanto, pode-se supor que mesmo as crianças surdas não reabilitadas estu- dadas possuíam um sistema de comunicação gestual, embora de convencionali- dade limitada. Assim, o próprio Piaget observa que a influência de uma forma de linguagem não pode ser excluída desses resultados. O Pensamento tem sua Fonte na Inteligência Sensório-Motora Se não é a linguagem, o que leva então às operações lógico-matemáticas funda- mentais? Piaget responde a essa questão introduzindo no debate sua ideia prin- cipal segundo a qual as operações têm origem no funcionamento de esquemas sensório-motores. Os esquemas e suas coordenações são considerados como equivalentes funcionais de operações lógicas e noções de conceito e classe. Assim, os esquemas de assimilação permitem agrupar objetos de acordo com os esque- mas de ação que podem ser operados sobre eles: são espécies de conceitos prá- ticos; mais tarde, no nível do pensamento, os conceitos unirão os objetos entre si por suas propriedades comuns. No nível sensório-motor, os conceitos práticos carecem de “extensão”, pois a criança ainda não pode evocar, simultaneamente, 12 por meio da representação, todos os objetos que possuem a mesma qualidade (compreensão). No funcionamento dos esquemas sensório-motores, pode-se encontrar também o equivalente das operações de reunião, de dissociação (por exemplo, juntar objetos em uma caixa e depois retirar alguns), e de transitivida- de, de estruturas de encadeamento e de ordem, bem como as futuras noções de conservação e reversibilidade operatória. A construção da permanência do objeto é uma forma elementar de conservação na qual o objeto é o invariante de um con- junto de deslocamentos espaciais relacionados entre si. Assim, antes que a criança comece a adquirir o significado das palavras da língua, suas ações sensoriais já apresentam funcionamentos e coordenações análogas às operações lógicas futuras, a primeira expressando-se no nível da ação, a se- gunda no da representação. A Linguagem Pode ser Necessária para Completar o Desenvolvimento das Operações no Nível Formal Piaget reconhece um papel para a linguagem na conclusão das operações no nível formal. Ele aponta que um componente puramente verbal está intimamen- te envolvido no exercício das operações proposicionais que são elaboradas no período formal e, segundo ele, é difícil compreender como elas completariam seu desenvolvimento sem o uso da linguagem. Essa forte afirmação deve, no entanto, ser colocada em perspectiva porque, como ele se apressa em especifi- car logo depois, as operações proposicionais não se inscrevem “como sistemas” na linguagem; consistem em mudanças profundas na capacidade de combinar e operar sobre as operações que se manifestam em diferentes esferas do com- portamento da criança, operações que nem mesmo podem ser expressas na linguagem cotidiana (daí, o recurso ao simbolismo lógico para representá-las). É em seu aspecto representacional geral, bem como em sua função comunicati- va, que a linguagem é vista por Piaget como um auxílio para a elaboração e com- plementação de estruturas operacionais. Como meio geral de representação, a linguagem permite a o que Piaget chama de “condensação simbólica” sem a qual, segundo ele, as operações permaneceriam no estado de ações sucessivas; como meio de comunicação e interação social, de acordo com Piaget, sem linguagem as operações permaneceriam individuais e, portanto, ignorariam o ajuste que resulta da troca e cooperação interindividuais. Assim, a representação permite a interiorização das ações sensório-motoras e sua coordenação; permite ultrapassar os limites do campo perceptivo e 13 evocar situações não atuais, abarcando ações e acontecimentos que podem então ser considerados de maneira simultâneo e integrados em sistemas glo- bais. Mas, como observado anteriormente, para Piaget, a representação não é específica da linguagem; além disso, seu desenvolvimento está ligado ao desenvolvimento da própria inteligência e, em particular, ao progresso no funcionamento da imitação. No que diz respeito ao seu aspecto comunicativo, Piaget observa que, através do diálogo e da discussão, pode surgir um confronto de pontos de vista, daí a ne- cessidade de uma argumentação que socialize o pensamento individual e possa esperar tender para a objetividade do conhecimento. Além disso, em seu aspec- to conversacional, mais especificamente ligado aos meios linguísticos de comuni- cação, há um isomorfismo estrutural entre as operações intra e interindividuais. Na troca verbal, encontramos coordenações de ações que são interindividuais: “o que um faz se completa pelo que o outro faz” ou lhe corresponde; “ou mesmo o que um faz difere do que os outros fazem”. Além disso, “as oposições envol- vem negações e operações inversas”. Piaget conclui que existe uma “identidade fundamental” entre as operações interindividuais e intraindividuais, as duas pro- gredindo juntas de acordo com a espiral específica do desenvolvimento genético. A ideia de que o funcionamento comunicativo e conversacional são particularmen- te importantes é encontrada em uma passagem de A psicologia da Inteligência (1947), onde Piaget diz que as relações “sincrônicas” que a criança mantém com o ambiente são os elementos essenciais. Segundo ele, conversando com as pes- soas próximas, a criança verá seus pensamentos aprovados ou contrariados a cada momento, e descobrirá um imenso mundo de pensamentos externos a ela, que a instruirão ou impressionarão de várias maneiras. Piaget não está pensan- do nas estruturas semânticas e morfossintáticas da linguagem: ele refere-se ao conteúdo do que é dito, bem como aos processos pelos quais os conteúdos do próprio pensamento são confrontados com os dos outros. E é sobretudo neste processo que a linguagem pode ser uma ajuda ao progresso, já que, para o autor, é precisamente a constante troca de pensamentos com os outros que nos permi- te descentrar-nos e nos assegura a possibilidade de coordenar internamente as relações que emanam de distintos pontos de vista. Mas, de acordo com Piaget, se o agrupamento operatório pressupõe a troca de pensamentos e a cooperação com os outros, as próprias trocas de pensamentos obedecem a uma lei de equi- líbrio que, novamente, só pode ser um agrupamento operacional. Em última análise, a atividade operacional internae a cooperação externa como sistema de operações realizadas em comum, são, de acordo com o autor, apenas os dois aspectos complementares de um e do mesmo todo, pois o equilíbrio de um depende do equilíbrio do outro. 14 Uma questão que Piaget não se colocou diretamente é a da relação entre falar uma língua particular e os conteúdos da cognição. Essa é a pergunta que Humboldt e, mais tarde, Whorf se colocaram há muito tempo e que ressurgiram em novas formas mais nuançadas: falar uma língua específica influencia a maneira como organizamos o mundo e apreendemos as relações entre os eventos? Falar uma língua que obriga os falantes, por exemplo, a fazerem escolhas morfológicas com base na forma dos objetos ou no tipo de relação espacial que eles apresentam pode levar as crianças expostas a essa língua a dar mais atenção a essas proprie- dades e relações do que os falantes de uma língua que não exige que escolhas linguísticas específicas sejam feitas de forma obrigatória? Pelo que precede, deve-se supor que para Piaget as operações fundamentais da lógica são insensíveis a tal influência, mas que, dadas todas as ressalvas mencio- nadas (em particular a necessidade de uma assimilação individual das noções correspondentes), ele poderia admitir uma centralidade das propriedades e rela- ções cristalizadas na linguagem em relação às quais a criança deve prestar espe- cial atenção para escolher as formas adequadas, especialmente em um momen- to de desenvolvimento em que essas formas estão sendo adquiridas. As várias afirmações de Piaget sobre o papel da linguagem no desenvolvimento de operações lógicas fundamentais podem parecer menos contraditórias se le- varmos em conta, por um lado, os diferentes significados em que o termo lingua- gem tem, e por outro lado, se colocarmos essas afirmações no contexto de sua obra como um todo, tendo em mente que quando Piaget fala de inteligência ele se refere essencialmente às operações lógico-matemáticas fundamentais que fundamentam os raciocínios. Quando Piaget diz que a linguagem não é necessária para poder acessar as operações lógicas, ele pensa, sobretudo, no fato de que essas têm sua origem nos esquemas de ação e na sua organização progressiva, atividade que já está muito presente antes dos primórdios da linguagem e que pode ocorrer posteriormente independentemente de qualquer verbalização. No entanto, a linguagem não é completamente desprezível, mesmo nesse primeiro nível, como sistema de representação. Com efeito, o desenvolvimento da represen- tação é muito importante para poder aceder às operações lógicas, pelo seu poder de ir além do perceptível e de simular experiências sucessivas. E para Piaget os signos verbais, embora sejam apenas um meio de representação entre outros, são meios de representação privilegiados pelo fato de serem arbitrários e convencionais. Quando Piaget afirma que a linguagem não é suficiente, ele está, ao mesmo tempo, contestando a corrente filosófica que via a lógica como sendo refle- tida, e até mesmo engendrada, pela linguagem. Assim, ele insiste no fato de 15 que a produção de palavras ou construções particulares por parte da criança não significa que ela tenha adquirido as noções lógicas que poderiam corres- ponder a elas. Da mesma forma, o fato de o ambiente utilizar a linguagem para “explicar” certas noções à criança não pode levá-la a adotá-las fora de uma atividade interna de assimilação, que, por sua vez, depende de seu nível de desenvolvimento. Mas o desenvolvimento das operações lógicas estende-se ao longo do tempo, quer se trate do seu conteúdo, das suas relações e organização global, quer ao nível da sua elaboração (desde o sensório-motor ao da formalização). Assim, quando Piaget diz que a linguagem pode, no entanto, ser necessária, até mesmo decisiva, para a finalização das operações formais, é a formalização dessas mes- mas operações, consideradas isomórficas às operações proposicionais, e o papel da linguagem na tematização no nível metacognitivo que estão envolvidos. Ele também considera a linguagem como um meio de comunicação pelo qual se pode confrontar as opiniões dos outros. Além disso, como Piaget e Garcia explicam em Psicogênese e história das ci- ências (1983), a linguagem é um meio poderoso para subordinar a experiência direta dos objetos ao sistema de significados que a sociedade e a cultura lhes conferem. Mas se os significados podem ser modificados pelo contexto social, a forma como são adquiridos depende dos mecanismos cognitivos do sujeito e não daquilo que o grupo social pode trazer. Dessa forma, pode-se concluir que para Piaget a linguagem era apenas um pro- duto da inteligência, ou um produto das operações lógico-matemáticas funda- mentais que subjazem ao raciocínio, mas de fato ele mal analisou o estatuto dessa mesma linguagem, e só incidentalmente ou secundariamente se interes- sou pela questão das condições de seu surgimento e desenvolvimento. No en- tanto, cabe agora reformular as várias teses formuladas por Piaget sobre o tema das relações linguagem-pensamento-inteligência, e compreender as razões das mesmas, evocando, brevemente, os objetivos, os postulados e as fases de opera- cionalização da obra piagetiana. Então, poderemos discutir melhor as propriedades funcionais e estruturais das línguas naturais, bem como as condições de transmissão-reprodução des- sas línguas nas sociedades humanas e, com base nisso, rediscutir as teses de Piaget, enfocando particularmente, por um lado, o papel desempenhado pela aquisição da linguagem na constituição do pensamento consciente e, por outro, a natureza das interações entre o desenvolvimento da linguagem e o desenvol- vimento cognitivo. 16 As Teses Piagetianas e seus Antecedentes Em relação às cinco teses piagetianas apresentadas, pode-se dizer que as duas primeiras dizem respeito às condições de aquisição e desenvolvimento da lin- guagem, e as outras três ao papel desempenhado por esta última na constituição e desenvolvimento do pensamento-inteligência. Vamos reformulá-las e comen- tá-las da seguinte maneira: • “O aparecimento da linguagem se assenta nas aquisições da lógica sen- sório-motora, e mais particularmente da função simbólica, que é uma ‘derivada necessária’ dessa mesma lógica”. Esta tese implica antes de tudo que a emergência da linguagem é fundamental- mente condicionada pelo desenvolvimento de mecanismos cognitivos internos ao sujeito e que, consequentemente, os fatores de transmissão social e de me- diação formativa desempenham apenas um papel acessório. Ela implica, então, que se esses mecanismos são eles próprios biologicamente fundados, esse fun- damento é de ordem funcional (aplicação recursiva dos mecanismos de assimila- ção, acomodação e equilíbrio), e não de ordem estrutural (desafiando o inatismo da estrutura postulada em particular por Chomsky). • “A linguagem se desenvolve em relação com a construção de operações cognitivas segundo as quais nenhuma dessas duas ordens de desenvol- vimento condicionaria unilateralmente a outra, mas ambas depende- riam de um ‘mecanismo regulador’ mais geral ou de uma ‘construção cognitiva mais ampla’. Note-se que esta tese introduz dois níveis de análise, um relativo aos ‘domínios’ do desenvolvimento (operações cognitivas, linguagem, funcionamento social etc.), o outro aos mecanismos gerais comumente aplicados a essas diferentes áreas. O termo ‘cognitivo’ tem nesta passagem dois significados distintos: um re- lativo a um domínio particular; outro aos mecanismos gerais que lhe são aplicá- veis, e, por falta de clarificação da relação entre esses dois significados, a citação de Piaget pode parecer contraditória: o que é essa “construção cognitiva mais ampla”, ou ainda, quais são as propriedades que a distinguiriam de operações tais como são definidas no âmbito estritamente cognitivo domínio? A explicação de Piaget faz parte de um episódio da história da constituição da psico- linguística genebrina. O trabalhode Hermine Sinclair, sob orientação de Piaget, teve como objetivo inicial demonstrar que o desenvolvimento da linguagem ‘depende’ do 17 desenvolvimento cognitivo ‘estrito’ (neste caso, da construção de operações concre- tas), e concluiu que de fato, para o subsistema linguístico analisado (uso de termos, objetivos, subjetivos, comparação etc.), o modelo operacional, envolvendo os proces- sos de coordenação, multiplicação e reversibilidade, explica as aquisições verbais da criança nesta área de uma forma mais profunda do que um modelo probabilístico ou associacionista. Mas as conclusões de Sinclair também atestam muita cautela, e subli- nham a necessidade de continuar a análise, estudando as condições de desenvolvi- mento, não mais das estruturas lexicais, mas dos aspectos morfossintáticos da língua. Figura 4 – Emilia Ferreiro Fonte: Reprodução #ParaTodosVerem: fotografia de Emilia Ferreiro de óculos e com uma camisa branca. Fim da descrição. A tese de Emília Ferreiro sobre a aquisição de estruturas temporais foi empreen- dida para esse objetivo, e se ela mostrou que as etapas de compreensão dessas estruturas podiam ser colocadas em correspondência com as de desenvolvimen- to operacional, mostrou também que a evolução da produção dessas estruturas não poderia resultar diretamente do operatório (certas estruturas linguísticas fundamentais sendo adquiridas antes do surgimento da reversibilidade opera- tiva). E foi para dar conta desse tipo de deslocamento que Piaget, no Prefácio à tese de Ferreiro, que atenuou sua tese inicial, e postulou a distinção de níveis mencionados. Mas, até onde se sabe, as relações entre os níveis cognitivos “ge- rais” e cognitivos “específicos” ainda não foram esclarecidas. • “A linguagem não é a fonte do pensamento, porque não existe uma 'exclu- sividade da função de representação', estando essa função ligada a uma ca- pacidade semiótica mais ampla, da qual a linguagem é apenas um aspecto”. 18 A elucidação desta tese parece, antes de mais nada, exigir uma distinção entre “fun- ção representativa” e “pensamento”. É indiscutível que os mamíferos superiores, como as crianças no estágio sensório-motor, têm uma função de representação: em suas interações com o meio, constroem traços internos dos objetos encontra- dos (que podem ser qualificados como imagens mentais), bem como vestígios dos comportamentos reais de encontro, que permitem a combinação dessas imagens, ou mesmo operações com e sobre essas imagens; e é essa operacionalidade que ex- plica seu comportamento inteligente. Mas essas imagens e operações mentais per- manecem dependentes das atividades a que servem; permanecem sob o controle de estímulos e reforços externos e, se não forem mais úteis e eficazes, desaparecem (processo de extinção ou inibição correlacionado com a não permanência). Por fim, nada indica que nesse estágio os indivíduos tenham acesso pessoal às suas operações mentais, que as conheçam e possam, portanto, gerenciá-las. É por isso que Piaget qualifica esse funcionamento representativo como prática, ou ainda como inteligência prática. Quanto ao pensamento humano, ele difere desse funcionamento prático em pelo menos três aspectos: a) ele mobiliza imagens e operações mentais que, uma vez constituídas, são em princípio estáveis e permanentes (ou seja, são potencialmen- te permanentes, mesmo que às vezes possam ser esquecidos); b) essas imagens e operações podem subsistir independentemente das características e circuns- tâncias das atividades realizadas. Em outras palavras, a atividade mental pode se desenvolver por si mesma, na ausência de todo estímulo e todo reforço; c) o processo de pensamento é potencialmente acessível ao indivíduo em que ele se assenta, ou seja, o indivíduo tem consciência da sua atividade mental e pode, con- sequentemente, gerenciá-la e controlá-la. Admitidas as diferenças entre esses dois funcionamentos e o fato de que a representação prática preexiste ao surgimento do próprio pensamento, a questão é saber quais são os mecanismos que explicam a passagem de um para o outro, ou ainda que estão “na origem do pensamento”. A resposta de Piaget envolve dois fatores: por um lado, a emergência de uma função semiótica geral decorreria linearmente do funcionamento representativo prático e se caracterizaria por uma capacidade de associar entidades operativas a elementos figurativos capazes de expressá-las; por outro lado, as habilidades de imitação su- prem essa função, de certa forma, com entidades expressivas encontradas no meio: primeiro em índices e em símbolos motivados extraídos da experiência ativa, depois em signos arbitrários e imotivados extraídos da linguagem circundante. Se ninguém contesta que a absorção (por imitação-apropriação e depois inter- nalização) de elementos figurativos/semióticos é uma condição para a emergên- cia do pensamento, algumas questões continuam a surgir: a) a função semiótica se manifesta em comportamentos (jogo simbólico em particular) que não têm 19 equivalente estrito em espécies não humanas; Por quê? b) Como interpretar em outros termos a coincidência cronológica entre o surgimento dessa função e as primeiras formas de interação linguística com o meio: a entrada na linguagem é causa ou consequência da função semiótica? c) A absorção de signos imotiva- dos e arbitrários de uma língua apenas confere um acréscimo de autonomia ao funcionamento mental, ou, pelo contrário, transforma radicalmente as próprias condições desse funcionamento? • “A expressão linguística das relações e operações não garante a presen- ça das noções cognitivas correspondentes”. Devido à diversidade das estruturas morfossintáticas das línguas, uma expres- são linguística não pode garantir a tradução fiel de qualquer operação lógica. • “A linguagem é condição necessária, mas não suficiente para a constru- ção das operações lógicas”. Observe que, na obra de Piaget, essa fórmula convive com outras afirmações que parecem contradizê-la. Assim, com base nos estudos do desenvolvimento cognitivo de crianças surdas, Piaget também sustenta que a linguagem não é ne- cessária para a construção de operações lógicas básicas. Por “operações lógicas básicas” Piaget não quer dizer aqui os mecanismos práticos no estágio sensó- rio-motor, mas sim as operações em funcionamento no estágio do pensamen- to concreto: na seriação, na conservação etc., que a linguagem tem um signi- ficado fundamentalmente decisivo para a conclusão dessas estruturas lógicas. Observamos, portanto, uma verdadeira ambiguidade sobre este tema. Apesar dessas dificuldades, porém, reteremos o que parece constituir a posição central de Piaget nesse campo: a) nas primeiras fases da construção do pensa- mento (pré-operações e operações concretas), são os mecanismos funcionais (equilíbrio e abstração reflexiva em particular) que constituem os principais fa- tores de desenvolvimento, a linguagem verbal desempenhando apenas o papel secundário de um instrumento simbólico entre outros; b) essa linguagem, por outro lado, desempenha um papel importante, até mesmo decisivo, no estabele- cimento e funcionamento das operações lógico-matemáticas do estágio formal. Para entender o estatuto e o significado dessas teses, é necessário reposicio- ná-las na perspectiva geral de toda a obra de Piaget. Ele empreendeu uma abordagem cujo objetivo era fundamentalmente epistemológico: tratava-se de analisar cientificamente os mecanismos de evolução dos seres vivos, em suas diversas formas, em particular de compreender as condições de surgimento dessas ferramentas de adaptação que constituem o conhecimento, e em parti- cular o conhecimento humano. 20 Para ele, a pesquisa psicológica tinha, portanto, apenas o estatuto de método a serviço desse projeto, e coexistia com outros trabalhos, em Biologia, Botânica, Lógica e História da Ciência. Deste ângulo, o projeto piagetiano inscreve-se numa perspectiva monista, materialista e evolutiva, na medida em que procuraeviden- ciar a comunidade e a continuidade dos processos que organizam as interações entre os organismos vivos e o seu ambiente, ao mesmo tempo que a evolução das formas representativas resultantes dessas interações. Atendo-nos às condições de construção do conhecimento humano, podemos considerar a abordagem piagetiana como uma tentativa de retomar a proble- mática da razão pura de Kant, não mais sob o ângulo da crítica filosófica, mas numa perspectiva de elucidação positiva ou científico-empírica das condições do seu funcionamento. Por um lado, Piaget rejeita, como Kant, as formas extremas do empirismo (deter- minismo unilateral das propriedades do meio) e do racionalismo (determinismo exclusivo das propriedades da mente), a fim de elaborar uma síntese articulando o papel das propriedades dos dados oriundos do ambiente (abstração empírica) às dos mecanismos provenientes do próprio organismo, que têm a capacida- de de organizar esses dados em formas de raciocínio (abstração reflexiva). Por outro lado, seu programa de pesquisa incide, como em Kant, nas categorias im- plementadas por esses raciocínios; consiste neste caso em compreender as con- dições de construção e funcionamento das categorias de qualidade, quantidade, número, classes, tempo, espaço etc. Mas, além de relacionadas, essas duas abordagens também se sustentam no mesmo postulado, em si, não necessário, mas que condiciona radicalmente tanto a análise crítica quanto a análise genética empírica: o da primazia e da preeminência da noese sobre a semiose. Se o silêncio de Kant sobre a questão da linguagem é “ensurdecedor”, e se Piaget abordou esse domínio apenas com relutância, é porque ambos consideram que os processos do pensamento puro são primários e autônomos em relação aos processos linguísticos e/ou semi- óticos; consequentemente, o pensamento é construído primeiro e só então, e secundariamente, é expresso ou “traduzido” por instrumentos semióticos; esses últimos, portanto, não desempenham nenhum papel em sua constituição ou em sua formatação. Todas as teses piagetianas citadas decorrem desse postulado: trata-se de mos- trar que as estruturas do pensamento têm seu fundamento nas estruturas sen- sório-motoras que preexistem à linguagem e que não seriam afetadas pelas me- diações sociais, e que a objetividade-racionalidade do pensamento é apenas o produto de uma transposição da objetividade de esquemas biologicamente e individualmente construídos. 21 Em seus objetivos e em sua metodologia, as obras de Piaget caracterizaram-se por uma progressiva radicalização dessa postura. Nas obras do período habitual- mente designado por psicologia infantil (de 1923 a 1932), o autor procurou anali- sar os processos de progressiva autonomização do pensamento, sob o efeito de sucessivas descentrações. Para isso, constituiu um corpus de dados interacionais, essencialmente verbais, e efetivamente analisou esses dados levando em conta certas propriedades estruturais ou pragmáticas dos enunciados das crianças, e o papel das interações sociais em que esses mesmos enunciados foram formulados. Mas a partir do período da Psicologia Genética (de 1936 a 1955), a abordagem foi profundamente modificada. Por um lado, criaram-se condições de observação: as (puras) entrevistas das primeiras obras deram lugar a engenhosos problemas de manipulação de objetos (incluindo os famosos testes de conservação). Por outro lado e, sobretudo, se a leitura e a interpretação dos dados se basearam no comportamento objetivo da criança e nas suas justificações verbais, as dimen- sões linguísticas dessas justificações, bem como o papel das mediações praxeo- lógicas (ações conjuntas) e comentários verbais das pessoas ao seu redor, foram sistematicamente excluídos da análise. Em A Formação do Símbolo (1945), Piaget apenas comenta as interações soli- tárias de seus próprios filhos com o ambiente circundante e negligencia total- mente o papel das intervenções sociais (neste caso as suas próprias) que ali são massivas: suas etapas de “preparação” das situações e integração da criança nas atividades oferecidas, sua obstinação e perguntas verbais repetitivas e lembretes etc. Nessas condições, o desenvolvimento observado só pode efetivamente ser atribuído à evolução dos processos cognitivos internos do sujeito, mas se lermos a totalidade dos dados (incluindo, portanto, os processos de mediação ativa e linguagem), podemos, legitimamente, fornecer uma interpretação de inspiração vygotskiana, ou interacionista social. Também deve ser notado que o terceiro período do trabalho, que começou com a criação do Centro Internacional de Epistemologia Genética (1955), consistiu em rein- tegrar as conquistas da Psicologia Genética no quadro problemático mais amplo (e fundador) de uma epistemologia do conhecimento. Os mecanismos de construção pela criança das principais categorias de pensamento foram ali reexaminados e con- frontados com os dados da evolução histórica das disciplinas científicas, de modo a elaborar uma teoria geral que destacasse em particular as semelhanças e as diferen- ças entre a antropogênese e a ontogenia do conhecimento humano. Desde o período da Psicologia Genética, para estabelecer sua tese central, Piaget interpretou seus dados empíricos não levando em conta nem as inter- venções formativas do meio social, nem as propriedades da linguagem dos in- teragentes, e não se aproximou dessas duas últimas dimensões apenas em 22 obras destinadas a justificar sua abordagem e a posição que o orienta. É por isso que, se em todas as outras áreas que abordou as suas propostas concep- tuais, são de excepcional coerência e rigor, nestas matérias as suas afirmações carecem no mínimo de precisão. Basta confrontar as afirmações sucessivas do papel “não necessário”, “necessário, mas não suficiente" ou "finalmente decisi- vo" da linguagem no desenvolvimento do pensamento para encontrar dificul- dades equivalentes em muitos outros lugares, por exemplo, ao confrontar a citação anterior com as afirmações segundo as quais a passagem de um pensa- mento subjetivo a um pensamento objetivo só se faz por meio de interações e de cooperação social, ou que o acesso a objetividade requer um mecanismo de compreensão social e linguística. Em outras palavras, o postulado fundamental de Piaget é que os mecanismos biológicos são as causas do surgimento do pensamento, e que a própria constru- ção do pensamento é a causa do desenvolvimento do pensamento, linguagem e todos os aspectos do funcionamento psicológico (particularmente relacional e funcionamento social). E quando o autor não parece excluir a ideia de que a lin- guagem e as interações sociais tenham não apenas o estatuto de produtos, mas também de fatores (secundários) de desenvolvimento, fica difícil compreender o papel efetivo destes últimos, e mais largamente a forma como se concebe a articulação entre os fundamentos “naturais” indiscutíveis do pensamento e os fundamentos histórico-socio-semióticos, igualmente indiscutíveis. MATERIAL COMPLEMENTAR Vídeos JEAN PIAGET: Teorias Psicogenéticas em Discussão – Yves de La Taille https://youtu.be/o0soZkcaj1c Psicologia da Educação – Teoria do Desenvolvimento Cognitivo de Jean Piaget https://youtu.be/m7eaxOgn_Ng Jean Piaget: Linguagem e Pensamento/Adrian Montoya https://youtu.be/CfgiVxN5vv0 Jean Piaget: Linguagem e Pensamento 1/Jean Marie Dolle https://youtu.be/fUZeMPaV3FM Leitura Pensamento e Linguagem: Percurso Piagetiano de Investigação https://bit.ly/3QH1UGM https://youtu.be/o0soZkcaj1c https://youtu.be/m7eaxOgn_Ng https://youtu.be/CfgiVxN5vv0 https://youtu.be/fUZeMPaV3FM https://bit.ly/3QH1UGM REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANKS-LEITE, L. As questões linguísticas na obra de Piaget: apontamentos para uma reflexão crítica. In: BANKS-LEITE, L. Percursos piagetianos, pp. 207-223, São Paulo: Cortez, 1997. BRONCKART, J. P. Commentaires à propos du texte. Langage et pensée. In: Intellectica. Revue de l'Association pourla Recherche Cognitive, n. 33, 2001. FERREIRO, E. 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