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Mauro Gaglietti | 235 necessitando, dessa maneira, envolver os mais diversos elementos da natureza na construção de uma justificativa para os fenômenos. Desse modo, do surgimento de novas doenças à ocorrência de epidemias, à dor, ao sofrimento, às impressões de desgaste físico e mental, à visão da deterioração dos corpos e à perspectiva da morte, tudo levava à elaboração de um discurso que tentasse explicar as causas destes fenômenos caracterizados como “doenças”. Assinala-se, outrossim que os sentimentos de medo e de culpabilidade sempre participaram da relação do ser humano com a doença, conformando permanências culturais de longa duração. Nesse sentido, houve, logo após a livre associação entre doença\saúde aos elementos da natureza, a construção de uma explicação segundo a qual a doença, independente do comportamento humano, era obra do humor divido21. Outra representação também religiosa, mais elaborada em função do seu caráter relacional é àquela que constrói associações com as consequências necessárias provocadas pelo indivíduo ou pelo grupo na medida em que se transforma em doença-punição (LAPLANTINE, 1991). Certos aspectos de caráter religioso, maldições ou castigos divinos, ainda hoje em pleno século XXI revestem as representações de saúde\doença22. Nesse caso, verifica-se a vigência de uma certa naturalização da saúde e da doença junto às crenças sobrenaturais, mágicas e religiosas presentes no cotidiano - há 5.000 anos - no Egito23. 21 Faz parte, esta visão, das “interpretações religiosas da doença como consequência da fatalidade (...) a doença-maldição” (Laplantine, 1991). 22 A sífilis, com seu caráter venéreo, na primeira metade do século XX, e a presente epidemia de AIDS, inicialmente entre pessoas homoafetivas e usuários de drogas endovenosas, trouxeram à tona uma série de preconceitos morais. Hoje, em todo o mundo, os xamãs continuam exercendo sua função, realizando curas por intermédio de rituais, expulsando coisas e espíritos que invadem os corpos das vítimas e os sacerdotes ainda exorcizam os demônios. Gonçalves (1990), por sua vez, chama a atenção para o fato de que as manifestações clínicas e entidades mórbidas, de inspiração notadamente sobrenatural, integram o jargão médico moderno, referindo-se aos sintomas e doenças. 23 Os egípcios admitiam a existência de um princípio, o whdw, que aderido à matéria fecal poderia chegar ao sangue, coagulando-o e levando ao apodrecimento do corpo, provocando o aparecimento de supurações e abcessos. Segundo Tamayo (1988), a noção do whdw pode ter se originado de interpretações religiosas associadas à mumificação, à conservação dos corpos. Os egípcios acreditavam 236 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura Embora no Oriente, chineses e hindus já relacionassem elementos da natureza ao corpo humano, foram Hipócrates e seus seguidores, com sua perspectiva humoral, que estabeleceram de modo mais evidente no Ocidente uma passagem do sobrenatural para o natural no que diz respeito às representações de saúde/doença. Assim, as concepções dos gregos quanto às enfermidades foram anteriormente mágicas e religiosas nas quais atuavam os templos e sacerdotes do deus da medicina24. Já no âmago da escola hipocrática do século V a.C., está, na observação de Capra (1982), “a convicção de que as doenças não são causadas por demônios ou forças sobrenaturais, mas por fenômenos naturais...” A interpretação da saúde e da enfermidade pela concepção humoral está apoiada em dois postulados básicos (TAMAYO, 1988). O corpo humano é formado por um número variável de líquidos, e a saúde é o equilíbrio entre os humores, enquanto a doença é o desequilíbrio, o predomínio de algum dos humores sobre os demais. Mossé (1991) percebe que do mesmo modo que o desequilíbrio entre os vários elementos que constituem a cidade grega25 é fonte de perturbação e só pode ser ultrapassado pela igualdade perante a lei (isonomia), também a cura do corpo está ligada a um regresso ao equilíbrio. Destaca-se, diante do exposto, que os seguidores de Hipócrates, os chineses e hindus em outros contextos e com complexidades diversas, acreditavam em certos sistemas de correspondência entre elementos do corpo e elementos fundamentais da natureza. Para os gregos, quatro humores corporais correspondiam à água, à terra, ao fogo e ao ar, sendo o que o whdw, a partir do intestino, causava a putrefação dos corpos e o mau cheiro. Na velhice, haveria uma absorção cada vez maior do whdw. Esta naturalização da saúde e da doença foi passada aos gregos, por intermédio do Mar Mediterrâneo. 24 O termo pharmakon do grego arcaico, para se contar com um exemplo tão somente, significava sacrifícios feitos aos deuses em busca de curas. Asclépio, pai de Hygieia, deusa da saúde, e Panakeia, que dominava as artes dos remédios das plantas e da terra 25 Ver SEVALHO, 1992.
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