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Simone Santos A. Silva; Sebastião Pimentel Franco | 53 
 
Talvez o estilo de vida do nosso narrador, marcado por 
trabalhos que demandavam frequentes deslocamentos regionais, 
tenha colaborado para que ele não fosse notado pelas agentes de 
controle e combate à doença. Mas é possível também, como 
apontamos, que Antônio M. Martins buscasse omitir alguns detalhes 
da sua trajetória como doente de lepra, amenizando as marcas do 
estigma, disfarçando sua condição de segregação e submissão a 
ordens de internamento. 
Antônio M. Martins delineia um cenário aparentemente 
ilusório, deixando ao leitor mais distraído, a sensação de que ele 
entrava e saia dos leprosários com certa liberdade de escolha. 
Seguindo a sua narrativa a partir desse cenário, quase que 
desenhado, com os dados fornecidos pelo autor, podemos conferir 
que seu retorno ao hospital dos Lázaros, durou cinco meses e que 
nesse período, ele conheceu uma interna, com que se casou em três 
meses. Após o casamento, Antônio narra a partida do casal para a 
Colônia de Curupaiti, em Jacarepaguá, onde diz ter conseguido uma 
residência, no entanto, sem nos oferecer mais detalhes de como teria 
conseguido tal transferência. 
Novamente nosso narrador passa-nos uma ideia de facilidade 
de circulação entre os hospitais e colônias asilares, e nos induz a 
pensar na disponibilidade desses locais, não mencionando às 
políticas de internamento compulsório e suas diferentes aplicações 
nos estados. Uma leitura apressada pode levar a conclusão de que as 
Colônias eram espaços autônomos de assistência aos doentes, 
desvinculados de uma política de combate à doença, ou descolada 
das orientações de isolamento compulsório. 
Com base nas ações que vigoram no país a partir dos anos 30 
é difícil crer que os internamentos de Antônio M. Martins 
transcorressem de forma amena, e passível aos desejos e 
necessidades do narrador. Ele mesmo destaca nas páginas seguintes 
a descrição de sua entrada em Curapaiti, as dificuldades diante da 
administração da Colônia. 
54 | Saúde e Doenças no Brasil: Perspectivas entre a História e a Literatura 
 
Conforme destaca Cunha, a década de 1930 foi marcada por 
um momento político autoritário de forte atuação pública frente ao 
problema sanitário da lepra. A construção de um grande número de 
estabelecimentos voltados para o isolamento dos doentes demonstra 
a força das políticas de isolamento dos doentes. (CUNHA, 2005, p. 
09). 
Novamente, é importante destacar que o provável clima de 
calmaria, delineado na obra, fosse uma tentativa de encobrir o 
aspecto submisso dos pacientes diante das leis que determinavam 
pelas internações. Talvez o autor de “Do outro lado da fronteira” 
buscasse evitar demonstrar aquilo que considerasse uma imagem 
de fragilidade perante a filha, como uma espécie de autodefesa. Ou 
mesmo buscasse evitar um perfil da figura paterna como vítima. A 
“fala” de Antônio que busca dar destaque a certa autonomia do 
paciente nos parece uma forma de resistir a realidades inegáveis 
como o fato de que o doente era estigmatizado, excluído pelos 
agentes de controle e pela sociedade. E para o doente de lepra, que 
vivia entre as décadas de 1930 e 1940 como no caso de Antônio, não 
havia outra opção, o internamento compulsório, o afastamento 
familiar eram realidades vivas. A Colônia era o único lugar para se 
viver, era “o outro lado”. Neste sentido a narrativa de Antônio, que 
valoriza suas experiências e vivências, e detrimento da exposição das 
ações de combate a lepra, nos mostra que a sua obra é acima de todo, 
uma escrita de si para si. 
 
Representações da doença, escrita de si, e literatura 
 
Após a leitura de “Do outro lado da fronteira” podemos 
escolher diversos vocábulos que se adequam a essência do texto. As 
palavras expectativas, decepções, recomeços, acomodações, 
persistências, e por fim resiliência demostram com fidelidade a 
trajetória do nosso narrador. 
Nas últimas décadas, principalmente sob o impacto das 
discussões da “história cultural” percebe-se maior ênfase na

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