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TECNOLOGIAS DIGITAIS 
PARA O ENSINO DE LÍNGUA 
PORTUGUESA
INTRODUÇÃO
Prezado aluno,
O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula 
presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a 
exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida 
sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem 
e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as 
perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em 
tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é 
preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A 
vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. 
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos 
definidos para as atividades.
 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
A ESCOLA E O ENSINO DA LEITURA1 
Sandra Patrícia Ataíde Ferreira* 
Maria da Graça Bompastor Borges Dias# 
RESUMO. O acesso ao aprendizado da leitura apresenta-se como um dos múltiplos desafios da escola e, talvez, como o mais 
valorizado e exigido pela sociedade. No presente artigo, primeiramente é discutida a necessidade de se proporem aos alunos 
atividades de leitura em que os mesmos possam evidenciar a idéia de que o significado do texto a ser construído depende 
tanto dos objetivos e das perguntas do leitor como da natureza do texto e de sua macro e superestrutura. Além disso, como 
insiste Solé, é importante e necessário que a criança aprenda a utilizar as estratégias de leitura usadas pelo leitor maduro, a fim 
de que se torne também um leitor eficiente e autônomo. Depois, continuando com algumas evidências empíricas, são tratadas 
as estratégias de compreensão e o lugar destas no processo de aprendizagem da leitura. 
Palavras-chaves: ensino de leitura; compreensão de leitura; escola. 
THE SCHOOL AND THE READING LEARNING PROCESS 
ABSTRACT. The access to the reading process comes as one of the various challenges to school and, perhaps, as the highly 
regarded and most claimed one by society. In the present article, what is firstly discussed is the need to propose students 
reading activities in which they can realise the idea that the meaning of the text to be built depends on the objectives and on 
the reader's questions, as well as on the nature of the text and its macro and super structure. Besides, as insisted by Solé, it is 
important and essential those children learn how to use the reading strategies used by the experienced reader, so that they also 
become efficient and independent readers. Then, carrying on with some empirical evidences, comprehension strategies are 
dealt with as well as the place they occupy in the reading learning process. 
Key words: reading teaching; reading comprehension; school.
1 Apoio da CAPES. 
* Mestre doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Endereço para correspondência: Av. Beira Mar, 520, ap. 81, 54400-010, Piedade Jaboatão, Penambuco. Email: mdias@npd.ufpe.br
# Doutora, professora da pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Pernambuco. 
INTRO DUÇÃO 
A relevância da escrita como um fator 
possibilitador do desenvolvimento cognitivo do 
indivíduo e da sua inserção social nas sociedades 
letradas, há muito tem sido identificada e discutida por 
pesquisadores e educadores. Neste cenário, o papel do 
ensino da leitura e da escrita destaca-se, já que é na 
escola que o contato com o sistema de escrita ocorre 
de forma sistematizada. Neste sentido, este trabalho 
tem como objetivo fazer uma revisão bibliográfica do 
tema ensino de leitura, a fim de se fazer uma reflexão 
sobre qual tem sido a contribuição desta instituição na 
formação de leitores críticos e reflexivos, na sociedade 
atual. Reflexão esta, norteada pela seguinte questão: 
será que a escola tem favorecido o desenvolvimento 
de sujeitos-leitores? 
Deste modo, serão tecidas breves considerações 
acerca do objetivo original do projeto de 
alfabetização nas sociedades industrializadas e suas 
implicações sobre o ensino de leitura na atualidade, 
discutindo-se o papel da sociedade, da escola e do 
professor na concretização de um projeto social de 
leitura à luz do confronto das concepções dos 
teóricos abordados. 
É partindo também dessas perspectivas teóricas 
que se tecem comentários sobre a formação de 
professores e suas condições de vida e trabalho, 
apontando-se a mudança de concepção de leitura por 
parte destes profissionais, aliada às mudanças destas 
outras duas variáveis acima citadas, como uma das 
40 Ferreira & Dias 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
saídas para a superação do problema da formação de 
leitores na escola. Por fim, com base nos resultados 
de estudos empíricos, questiona-se o alcance da escola 
para promover o desenvolvimento da competência 
leitora entre sujeitos alfabetizados. 
O ENSINO DA LEITURA 
O acesso ao aprendizado da leitura apresenta-se 
como um dos múltiplos desafios da escola e, talvez, 
como o mais valorizado e exigido pela sociedade. 
Como afirma Foucambert (1994, p.123), o acesso à 
escrita é o único meio de alcance da democracia e do 
poder individual, o qual ele define como “a 
capacidade de compreender por que as coisas são 
como são” e que não se confunde com os “poderes” 
permitidos ou facilitados pelo status social do 
indivíduo. Desta forma, ele diferencia o “Poder” dos 
“poderes”, dizendo que o primeiro permite ir além do 
que é evidente, possibilitando a descoberta das 
relações por detrás das circunstâncias, situações ou 
coisas, estando, portanto, ligado à transformação; 
enquanto os poderes encontram-se na reprodução e na 
compreensão estática e não reveladora do real. 
Ainda de acordo com Foucambert (1994), o 
acesso ao “Poder” só é possível a partir da reflexão, 
distanciamento e teorização do real. Ou seja, através 
de uma atitude científica frente ao mundo, a qual, nos 
moldes da própria Ciência, favorece a transformação 
da realidade. Contudo, segundo esse autor, isto só é 
possível através do acesso ao processo de produção 
do saber e não, apenas, por meio da transmissão dos 
saberes, os quais são imbuídos de neutralidade e se 
apresentam como objetos separados dos processos que 
os geram, promovendo a uniformidade entre os 
indivíduos que a eles têm acesso. 
Mas como, então, permitir o acesso ao poder e ao 
processo de produção dos saberes? Será que apenas o 
acesso à escola, tão enfatizado e buscado pelos 
projetos políticos atuais, tem garantido a possibilidade 
de acesso aos processos de transformação do real? De 
acordo também com Foucambert (1994), a escola atual 
continua pretendendo atingir o objetivo de 
alfabetização para aoqual foi idealizada no período de 
industrialização da sociedade e que tinha como 
propósito, apenas, favorecer o acesso dos 
trabalhadores aos procedimentos e técnicas de leitura 
e escrita, com vistas ao aperfeiçoamento em massa 
desta ferramenta de produção para atender às 
exigências do desenvolvimento do mundo do trabalho; 
exigências estas que se restringiam ao automatismo e à 
repetição das atividades, sem a necessária reflexão 
sobre elas ou sobre suas implicações e conseqüências. 
Deste modo, o acesso à escrita se deu estritamente 
por meio do ensino do código, negando-se uma 
relação laboriosa, complexa e de domínio do 
indivíduo com a escrita e a leitura, e privilegiando-se, 
em contrapartida, a homogeneidade dos alunos, que 
eram (são!) vistos como se estivessem todos em um 
mesmo estágio cognitivo e como se pudessem todos 
desenvolver a habilidade de leitura ao mesmo tempo, a 
partir do treino de suas diversas “habilidades 
componentes”, separadamente. Esta concepção de 
alfabetizaçãorejeitava e rejeita a idéia de que a leitura 
é uma atividade social e compartilhada, que se 
desenvolve por meio da própria atividade de leitura e 
através da participação de pessoas com competências 
variadas e com subjetividades diversificadas. 
Percebe-se, então, na proposta de alfabetização 
imposta à escola e à sociedade desde o século XIX, 
que são evitadas relações mais elaboradas entre o 
sujeito-leitor e a escrita, fazendo-se desta um 
privilégio social de poucos, que se tornam leitores em 
contraposição aos decifradores, que são vistos como 
os mal-sucedidos e academicamente fracassados. 
Apesar das exigências sociais neste século XXI serem 
outras, a escola ainda continua respondendo a uma 
exigência que já não lhe é mais adequada. Este projeto 
de alfabetização não foi e não é suficiente para 
permitir a imersão na escrita, para possibilitar a 
reflexão e para responder às questões que os 
indivíduos se colocam para se compreender e 
compreender a realidade e, conseqüentemente, para 
fazer emergir uma transformação coletiva. 
A despeito da existência, hoje, de outras mídias 
que permitem o acesso fácil às informações 
necessárias para o viver no cotidiano, a escrita ainda 
se coloca como um meio mais eficaz e fundamental de 
acesso à informação, já que oferece a possibilidade de 
escolha e de liberdade face aos caminhos 
apresentados. Ao ler, o indivíduo constrói os seus 
próprios significados, elabora suas próprias questões e 
rejeita, confirma e/ou reelabora as suas próprias 
respostas. É ele quem inscreve ou reinscreve o 
significado do escrito a partir de sua própria história. 
Diferentemente da escrita, as outras mídias são 
mais prováveis de “aprisionarem” o não-leitor , já que 
as informações nelas veiculadas refletem uma seleção 
consciente daqueles leitores que as fazem e as 
despejam sobre os primeiros. Ademais, com o 
aparecimento de outros meios de comunicação, a 
relação alfabética e instrumental com a escrita perde 
sua força, uma vez que distancia os indivíduos 
alfabetizados do contato laborioso com a mesma. 
Segundo Foucambert (1994; 1997), a escrita é o 
instrumento do pensamento reflexivo e só o contato 
Escola e leitura 41 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
com ela pode favorecer o desenvolvimento de um 
pensamento abstrato, complexo e de natureza 
diferenciada daquele permitido pela linguagem oral. É 
a escrita que permite a construção de pontos de vista e 
de uma visão de mundo, e a atribuição de sentido a 
este mundo. Já a leitura é aquela que vai em busca 
desses pontos de vista, verificando-os, questionando-
os e investigando os meios de sua elaboração. Só a 
leitura, entendida como uma atividade social e 
reflexiva, pode propiciar uma relação criativa, crítica e 
libertadora com a escrita, mostrando-se como um 
desafio para qualquer processo de democratização e 
mudança social coletiva. 
É a partir desta perspectiva que Foucambert 
(1994), em sintonia com Smith (1999) e Solé (1998), 
defende um ensino de leitura no qual se aprende a ler 
lendo, onde o aprendiz pode estar em contato com os 
mais diversos tipos de textos sociais dos quais precisa 
e seutiliza no cotidiano, e no qual o único pré-
requisito para este aprendizado é a capacidade de 
questionar sobre as coisas do mundo. Para ele, o 
saber-ler não se confunde com o saber-codificar, pois 
o acesso ao código por si só não garante o “mergulho”
nas malhas de significado do texto e nem o 
desenvolvimento da capacidade de ver além do que é 
visível aos olhos. É neste sentido que Foucambert 
(1994) defende que a leitura é uma atividade para os 
olhos e não para os ouvidos, querendo dizer com isto 
que a leitura não se restringe ao aprendizado das 
correspondências letra-som, mas que o extrapola. 
Esta é, aliás, uma discussão complexa e incômoda 
que, apesar das pesquisas e descobertas sobre a 
atividade de leitura, ainda não está resolvida: Qual o 
papel da decodificação no aprendizado da leitura? É 
importante ensinar as correspondências letra-som ao 
leitor-aprendiz antes de fazê-lo emergir no mundo da 
leitura? Será que a instrução formal é indispensável 
para o processo deste aprendizado? Segundo Solé 
(1998, p. 52), “ ter não é decodificar, mas para ler é 
preciso saber decodificar” . Baseada neste pressuposto, 
essa autora defende que o ensino do código deve-se 
fundamentar em contextos significativos para a 
criança e não em situações de ensino do código 
isoladas e descontextualizadas. Ela postula, ainda, que 
este ensino deve partir das concepções iniciais que a 
criança constrói nas situações sociais de leitura, fora 
da escola, e que lhe permitem pensar, por exemplo, 
que a escrita diz coisas significativas. 
Segundo a mesma autora, é preciso que se mostre 
à criança o que precisa ser construído por ela no 
âmbito do aprendizado da leitura. Solé (1998) defende 
que o ensino da leitura deve ocorrer em todas as 
etapas de sua realização, ressaltando-se o ensino de 
estratégias de leitura para cada uma dessas etapas: 1) 
antes: predições iniciais sobre o texto e objetivos de 
leitura; 2) durante: levantamento de questões e 
controle da compreensão e; 3) depois: construção da 
idéia principal e resumo textual. 
Nesta perspectiva construtivista, na qual a autora 
se insere, o ensino constitui-se como uma ajuda 
proporcionada ao aluno para que ele organize a sua 
aprendizagem, sendo ele o responsável por este 
processo de elaboração de conhecimento. O adulto 
tem o papel de orientar a criança, servindo-lhe de guia 
e suporte para a sua aprendizagem; suporte este que 
deve ser retirado paulatinamente, à medida que a 
criança conquista a sua independência enquanto 
usuária da língua escrita. 
Contudo, Solé (1998) argumenta que o ensino da 
língua deve privilegiar o desenvolvimento da 
habilidade metalingüística, o qual possibilita o pensar 
sobre a linguagem enquanto objeto de reflexão. Além 
disso, esta autora defende que é o aperfeiçoamento 
desta habilidade que fornece um maior conhecimento 
sobre a estrutura e o código da língua. É o contato 
com a escrita que permite mais e mais o 
desenvolvimento da habilidade metalingüística, que, 
como em um sistema em espiral, quando 
implementada facilita o desenvolvimento da 
competência na leitura e escrita. 
Por outro lado, Foucambert (1994; 1997) e Smith 
(1999) vão mais longe ao afirmarem que a leitura não 
pode ser ensinada e que a responsabilidade do adulto 
(pais ou professores) é facilitar o aprendizado desta 
atividade através do acesso da criança a uma variedade 
de textos. Para estes autores, as habilidades de leitura 
são desenvolvidas por meio da imersão na escrita e na 
prática da leitura, não podendo ser ensinadas de 
maneira isolada e descontextualizada das práticas 
sociais. Deste modo, entende-se que os referidos 
autores diferenciam a atividade de ensino baseada em 
métodos que dividem a leitura em suas habilidades 
componentes, da atividade de orientação, na qual o 
adulto-leitor experiente tem a função de tornar 
possível a aprendizagem desta atividade. 
Segundo esta proposta, o adulto, para facilitar a 
entrada da criança no mundo da leitura e escrita, deve 
ler para ela, mostrando-lhe como os escritos que 
circulam no cotidiano podem ser usados a fim de que 
a mesma compreenda os seus sentidos. Segundo Smith 
(1999), a criança só é capaz de compartilhar deste 
mundo, quando compreende o seu significado, sendo 
este descobrimento e o descobrimento da diferença 
entre a fala e escrita os dois insights necessários para o 
aprendizado inicial da leitura. 
42 Ferreira & Dias 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
De acordo com este autor, só o contato com a 
escrita significativa e funcional, como, por exemplo, o 
contato com outdoors, placas, anúncios e embalagens, 
pode favorecer o aprendizado da leitura. Ele acredita 
que só a prática de leitura pode proporcionar o 
desenvolvimento das habilidades que a compõem, não 
sendo estas possíveis de seremdiretamente ensinadas. 
Para Smith (1999), o significado precede a leitura da 
palavra enquanto unidade específica, estando a 
compreensão, que é o núcleo da leitura, além das 
palavras ou da informação visual. 
Foucambert (1997), partindo de uma perspectiva 
mais política, afirma que o aprendizado da leitura só é 
garantido quando se desvela ao seu aprendiz o poder 
de transformação e mudança que apenas o escrito (e 
não o inscrito!) possui; um poder que é capaz de livrar 
o sujeito-leitor das malhas da resignação, da
obediência, da determinação e da impotência, já que 
só este tipo de relação com o escrito pode levá-lo a 
perceber o mundo de uma outra perspectiva, 
permitindo-lhe a teorização da experiência cotidiana e 
uma nova organização dos fatos. 
É diante disto que esse autor propõe um Projeto 
de Leiturização, do qual não só a escola e/ou os 
professores sejam os responsáveis, mas também, 
outras facções da sociedade, como, por exemplo, a 
família, a biblioteca, as empresas e as associações de 
bairro. Ele afirma que as transformações no âmbito 
das relações entre o indivíduo e a escrita só podem 
ocorrer a contento, dentro da escola, se esta for uma 
questão da comunidade e não, unicamente, da escola 
(Foucambert, 1994; 1997). Além disso, o autor 
defende que a leiturização não deve se restringir aos já 
leitores, mas deve alcançar, sobretudo, os não-leitores 
alfabetizados, que devido à distância da escrita podem 
ter-se tornado novamente analfabetos, analfabetos 
funcionais ou iletrados1. 
Entretanto, Foucambert (1994) enfatiza que, para 
que este projeto de leiturização se efetive, faz-se 
necessário o surgimento de dois movimentos sociais: 
um de reinvenção da escola e outro de 
desescolarização da leitura. Para que o primeiro se 
estabeleça, faz-se necessário uma intervenção das 
instâncias e movimentos de educação popular; e uma 
1 Para Foucambert (1998), os termos analfabetismo, 
analfabetismo funcional e iletrismo não têm o mesmo 
significado. O analfabetismo diz respeito à impossibili dade 
de compreender e reproduzir uma mensagem escrita 
simples, enquanto que o analfabetismo funcional 
caracteriza-se por esta mesma impossibilidade, porém 
envolvendo indivíduos com anos de escolaridade. Por fim, 
ele define o iletrismo como o afastamento do indivíduo das 
redes de comunicação escrita que pode levá-lo à perda dos 
saberes alfabéticos conquistados previamente. 
verdadeira mudança de postura política. Já a 
concretização do segundo passa pela conscientização 
dos membros da sociedade em relação à importância e 
poder da leitura enquanto ato e aprendizado social 
possibilitador de transformação, o qual se caracteriza 
e se realiza a partir das práticas familiares e sociais de 
leitura. 
Compartilhando de concepções semelhantes, 
Kramer (2001) também acredita que o acesso à 
alfabetização (enquanto desenvolvimento de uma 
postura reflexiva sobre a língua), à leitura e à escrita é 
um direito do cidadão e que, portanto, exige o 
comprometimento com um projeto de sociedade que 
vise à democratização e à justiça social. Ela também 
defende que a escola não deve assumir sozinha o 
compromisso com as mudanças que precisam ser 
efetivadas nesta área. Kramer argumenta que é 
necessário tanto o desenvolvimento de um projeto 
econômico como de um projeto de emancipação 
cultural dentro e fora da escola, que favoreça o contato 
dos indivíduos com o bem cultural produzido pela 
humanidade em todas as áreas do conhecimento. 
Deste modo, ela parece propor um acesso às várias 
leituras, que não apenas a do escrito: a leitura da 
escultura, da pintura, do movimento, da dança, da 
fotografia, da música... 
Além dessa proposta de emancipação da cultura 
que expande os limites geográficos da escola, Kramer 
(2001) salienta dois outros aspectos mais restritos às 
ações dentro da escola, os quais Foucambert (1994), 
talvez devido à sua realidade socioeconômica 
diferenciada da realidade brasileira, não traz para a 
discussão e que dizem respeito: 1) aos salários e 
condições dignas de vida e trabalho de seus 
profissionais; 2) aos projetos de formação continuada 
dos professores. Ela acredita que o professor mostra-
se como o cerne desta mudança, apesar de não ser o 
responsável único por ela. 
Percebe-se, deste modo, que tanto Foucambert 
(1994) como Kramer (2001), diferentemente de outras 
posturas, distribuem a responsabilidade de mudança 
da escola e da aprendizagem da leitura com os vários 
setores da sociedade, aliviando a escola e os 
professores deste peso esmagador até então não 
compartilhado com seus outros membros. Eles, 
portanto, desmistificam a onipotência atribuída a esta 
instituição e, especialmente, aos seus professores 
quanto à mudança a ser efetivada na escola e, 
conseqüentemente, na sociedade, via o acesso à 
alfabetização e/ou leiturização. 
No que se refere a Foucambert (1994), apesar de 
acreditar que a transformação radical da escola não 
pode ser efetivada por ela própria e pelos professores, 
Escola e leitura 43 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
sob o risco de levá-la a um duplo fracasso (o da 
alfabetização e o da leiturização), ele defende que os 
professores precisam apresentar ações determinantes 
tanto dentro como fora da escola, não esperando, de 
maneira passiva, que este tipo de mudança seja 
germinado na sociedade. Deste modo, ele parece 
também acreditar que o professor apresenta-se como 
uma peça fundamental deste processo, postulando que 
o mesmo pode engendrar o início desta mudança.
Todavia, Foucambert (1997) sustenta que, assim como 
acontece com o leitor-aprendiz, torna-se necessário 
que o professor tenha acesso, em processo de 
formação inicial ou continuada, ao poder da escrita 
para que possa colocar-se em uma posição que lhe 
permita a construção de um novo ponto de vista em 
relação à atividade de leitura e à sua natureza. 
Diz Foucambert (1997) que somente a 
aproximação do professor com a informação 
pertinente e, portanto, com o escrito, pode-lhe 
conceder a liberdade de escolha sobre o que é possível 
fazer em sala de aula. É esta informação teórica que 
permite a esse profissional a ampliação de sua 
percepção, via reflexão e distanciamento do real, e 
conseqüente ampliação de sua ação. Para ele, formar-
se professor é ter acesso aos instrumentos que 
possibilitam a formação do leitor, compreendê-los, 
agir sobre eles e transformá-los. 
No entanto, não é isto que tem sido evidenciado 
em nossa realidade educacional. A formação de 
professores por si só, hoje, não parece garantir este 
poder. Pelo contrário, o que se observa em cursos de 
formação de professores e em professores em serviço 
é que a relação com a escrita e, portanto, com a leitura 
é uma relação técnica, mecânica e, quase sempre, sem 
motivação e prazer. Relação esta que, em geral, tem 
sua origem na história de vida familiar, social e 
acadêmica do sujeito-leitor, como pode ser observado, 
por exemplo, no relato de entrevista de uma professora 
(P1) de 1ª série de uma escola pública estadual da 
cidade do Recife descrito abaixo: 
P1: Minha vida foi muito sofrida (....) Não 
tive mãe. Fui criada só com pai (...). Eu 
relaxei muito na minha leitura. A gente cobra 
muito do aluno e a gente não lê! (...) Eu acho 
fraca... a minha leitura. Eu não leio muito. 
Poderia ler mais. Eu vejo tanta gente lendo... 
Não gosto muito de ler não. Vou ser sincera. 
Deveria ler mais, mas não adquiri o hábito de 
leitura. Eu leio mais de uma vez, coloco o 
papel para lá, para cá... 
É partindo desta evidência, que Kramer (2001), 
através de uma análise da história de leitura de 
professores com histórias de vida, idades e 
experiências acadêmicas variadas, ressalta a 
importância de se implementar uma cultura de 
formação de professores onde seja possível dar a estes 
profissionais uma nova chance de se tornarem leitores 
afetivos e efetivos, tanto oferecendo condições de 
tempo e espaço (bibliotecas, salas de leituras, grupos 
de estudo),como favorecendo, dentro dos programas 
de formação, o contato com a literatura não de modo 
instrumental, mas como experiência do prazer pelo 
belo, pelo artístico e pelo estético, a fim de fazê-los 
resgatar ou construir o gosto pela leitura. Afinal, como 
pode um professor não-leitor formar crianças e 
adolescentes leitores? 
Compartilhando da idéia de Smith (1999) e Solé 
(1998), acredita-se que a resolução para o problema da 
formação de leitores, dentro da escola, não está na 
disseminação de novos métodos de ensino, que, em 
geral, são elaborados por especialistas distanciados da 
realidade da escola e da sala de aula; mas que passa 
pela mudança da concepção que o professor tem sobre 
a leitura e que está na base de sua ação pedagógica e a 
orienta. Para tal, o professor precisa envolver-se com a 
leitura enquanto objeto de conhecimento, 
compreendendo a sua natureza, os processos 
cognitivos nela envolvidos e o modo como a criança 
aprende, o que, por sua vez, exige um projeto de 
formação de professores continuamente assistida, em 
que este possa ser auxiliado no processo de 
aproximação e exploração deste objeto, valorizando-se 
o seu saber pedagógico prévio.
Como ressaltam Solé e Coll (1999), ao discutirem 
a concepção construtivista de ensino, as teorias ou 
referenciais explicativos devem possibilitar ao 
professor a análise e reflexão tanto sobre a realidade 
da escola como sobre a prática pedagógica e as 
variáveis nela implicadas. Elas devem funcionar como 
um instrumento que permite ao professor responder às 
questões que são levantadas durante o processo de 
ensino e da aprendizagem, permitindo-lhe integrar as 
diversas respostas em um todo coerente e 
significativo. 
O referencial teórico ou explicativo precisa 
vincular também as considerações a respeito de 
aprendizagem, cultura, ensino e desenvolvimento, 
levando em conta o papel social da instituição escolar 
e sua repercussão sobre o sujeito individual. Enfim, 
este referencial precisa facilitar ao professor a 
compreensão do porquê das coisas e sua explicação 
para além do que acontece no ambiente de sala de 
aula. No caso particular do aprendizado da leitura, ele 
precisa compreender e explicar, por um lado, como o 
sujeito aprende e o que é necessário para que aprenda 
Escola e leitura 45 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
formação do aluno-leitor maduro, crítico, 
competente e reflexivo e, portanto, na formação 
de cidadãos críticos, como têm proposto os novos 
Parâmetros Curriculares da Língua Portuguesa 
(1997). O que se observa é que a escolarização 
prolongada não se tem mostrado com um fator 
suficiente para garantir o bom desempenho do 
indivíduo em atividades de compreensão de 
leitura, como atestam as evidências obtidas 
através de alguns estudos realizados com este tipo 
de população (e.g. Marcuschi, 1985; Costa, 1998). 
Costa (1998), por exemplo, ao investigar os 
processos cognitivos que dificultam a compreensão de 
leitura de estudantes universitários, verificou que 
apesar de se diferenciarem quanto à memória de 
trabalho e, mais estritamente, quanto ao domínio de 
conhecimento específico, os grupos de bons e maus 
compreendedores de sua amostra não se diferenciaram 
significativamente quanto à tarefa de monitoramento, 
que era composta de dois textos com passagens 
inconsistentes. Este é um dado interessante, visto que 
demonstra uma passividade subjacente dos leitores 
desses dois grupos frente aos textos oferecidos para a 
realização da tarefa. Ou seja, apesar de os critérios de 
análise utilizados pela autora (Critério de Avaliação 
Escolar e Critério de Árvore de Classificação) terem 
possibilitado a divisão da amostra (30 estudantes) em 
grupos de bons (15 estudantes) e maus (15 estudantes) 
compreendedores, os estudantes do primeiro grupo 
não apresentaram uma postura crítica e reflexiva 
enquanto leitores, o que evidencia uma deficiência 
metacognitiva por parte dos mesmos e, 
conseqüentemente, uma falha da escola, que parece 
não estar possibilitando pensar sobre o texto e sobre a 
intenção do autor, impondo, muitas vezes, uma única 
forma de ler e uma total submissão à autoridade do 
texto escrito. 
No que tange ao fator domínio específico, que de 
fato diferenciou os dois grupos estudados, Costa 
(1998) argumenta que este resultado pode indicar uma 
precária atividade de leitura por parte do indivíduo, 
que pode gerar dificuldades de compreensão, 
restringindo o acesso a um maior número de 
conhecimentos e desmotivando-o para atividades de 
leitura, constatando-se, portanto, um movimento 
circular que leva ao fracasso. Porém, isto parece 
indicar, também, que as condições reais de leitura do 
indivíduo têm sido restritas, e já que a escola é um 
lugar onde tradicionalmente circulam os mais variados 
tipos de texto e em que as mais variadas formas de 
leitura podem ser suscitadas, isto também indica que 
as condições de leitura da escola e, conseqüentemente, 
dos professores não se têm mostrado satisfatórias e 
favoráveis. 
Além disso, outros estudos sistematizados e 
realizados com crianças do ensino fundamental de 1ª e 
4ª séries de escolas particulares e de metodologias 
distintas (Archanjo, 1998); e com crianças de 3ª série 
de escolas particulares e de 4ª série de escolas públicas 
(Ferreira, 1998; Ferreira & Dias, no prelo) têm 
demonstrado que estas apresentam uma melhor 
performance sobre questões literais quando 
comparada à performance sobre as questões 
inferenciais. 
Esse tipo de resultado parece indicar que a escola 
não tem garantido o desenvolvimento de habilidades 
inferenciais elaboradas e, portanto, o surgimento de 
leitores maduros através da valorização da reflexão e 
da reconstrução do conhecimento, perpetuando, ao 
contrário, a prática da leitura reprodutiva, calcada na 
perspectiva empirista do conhecimento e, 
conseqüentemente, o desenvolvimento da passividade, 
da falta de criatividade e de crítica do aluno-leitor. 
Isso, por sua vez, parece poder explicar o mau 
desempenho de alunos universitários neste tipo de 
atividade, já que a escola não parece estar 
possibilitando a construção de condições para que, 
durante o “período de aprender a ler” (Lapp & Flood, 
1984), o aprendiz pratique e adquira as estratégias 
necessárias para alcançar o estágio da leitura 
proficiente, marcada pela autonomia do leitor. 
Por outro lado, os resultados dos estudos de 
Archanjo (1998) e de Ferreira (1998) demonstram que 
as crianças investigadas não falham em responder a 
todas as questões inferenciais e que respostas 
inferenciais podem surgir como respostas a questões 
literais (Ferreira,1998), o que parece sugerir a 
existência, entre essas crianças, da capacidade de 
estabelecer relações de significado a partir da leitura, 
mas que esta pode ser limitada pelo tipo de 
conhecimento ou raciocínio exigido para a efetivação 
de cada inferência. 
Isto indica a necessidade de se proporem aos 
alunos atividades de leitura em que os mesmos possam 
evidenciar a idéia de que o significado do texto a ser 
construído depende tanto dos objetivos e das 
perguntas do leitor como da natureza do texto e de sua 
macro e superestrutura. Além disso, como insiste Solé 
(1998), é importante e necessário que a criança 
aprenda a utilizar as estratégias de leitura usadas pelo 
leitor maduro, a fim de que se torne também um leitor 
eficiente e autônomo. Mas afinal o que é uma 
estratégia? Qual o seu lugar no processo de 
aprendizagem da leitura? 
46 Ferreira & Dias 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
O ENSINO DA LEITURA E AS ESTRATÉGIA S 
DE COMPREENSÃO 
De acordo com Solé (1998), as estratégias, assim 
como os procedimentos (também chamados de regras, 
técnicas, métodos, destrezas ou habilidades), podem 
ser definidas como um conjunto de ações voltadas 
para execução de uma meta. Elas têm a função de 
regular a ação do sujeito, já que lhe permitem avaliar, 
selecionar, persistir ou mudar determinadas ações emfavor de seus objetivos. No entanto, diferentemente 
dos procedimentos (microestratégias), as estratégias 
(macroestratégias) possibilitam a generalização de sua 
aplicação, ao mesmo tempo em que exigem a sua 
contextualização para que sua aplicação seja efetiva. 
Ademais, as estratégias requerem tanto consciência 
dos objetivos perseguidos como autocontrole em 
relação ao comportamento executado para o alcance 
do objetivo, avaliando-o, supervisionando-o ou 
modificando-o. 
As estratégias de leitura são capacidades 
cognitivas de ordem mais elevada e intimamente 
ligadas à metacognição. Elas permitem uma atuação 
inteligente e planejada da atividade de leitura, já que, 
enquanto ações metacognitivas, permitem conhecer 
sobre o próprio conhecimento. Como ressalta Solé 
(1998, p.70), esta afirmação traz contidas em si duas 
implicações: 1) As estratégias leitoras precisam ser 
ensinadas. As crianças não nascem sabendo utilizá-las: 
“ensinam-se - ou não se ensinam – e se aprendem – 
ou não se aprendem”; 2) O ensino de estratégias 
leitoras deve privilegiar o desenvolvimento de 
estratégias que possam ser generalizadas a outras 
situações e não se atenham a técnicas precisas, receitas 
infalíveis ou habilidades específicas. Deve-se ensinar 
com ênfase na capacidade de metacognição: avaliação, 
controle e flexibilidade de ações que podem ser 
mudadas em decorrência das situações de leitura. Isto 
implica dizer que conhecer um vasto repertório de 
estratégias é menos importante do que saber utilizá-
las. Conhecê-las não é o suficiente. A criança precisa 
saber mobilizá-las e utilizá-las em face da variedade 
de situações de leitura. 
Além disso, o ensino de estratégias de leitura, 
como Solé (1998) o entende, deve-se basear em três 
idéias básicas: 
1) A idéia da situação educativa como um processo
compartilhado, em que os papéis de professor e
aluno revezam-se entre a figura e o fundo do todo
que é a situação educativa. Neste tipo de
concepção, nem o professor nem o aluno se
apresentam como o centro do processo, mas como
elementos indispensáveis do cenário educativo.
2) A idéia de que o professor deve exercer uma
função de guia ou orientador. Ele deve favorecer o
estabelecimento do elo entre a construção
individual pretendida pelo aluno e as construções
socialmente estabelecidas, as quais são
representadas pelos conteúdos escolares e
objetivos específicos.
3) A idéia de que os desafios do ensino devem estar
um pouco além do que a criança é capaz de
resolver sozinha. Ou seja, o ensino não deve
esperar, como se acreditou e se acredita (a partir de
uma má interpretação da Teoria Piagetiana), a
prontidão do aluno para aprender. Neste sentido,
Solé (1998, p.76) afirma que
O bom ensino não é apenas o que se situa um 
pouco acima do nível atual do aluno, mas o 
que garante a interiorização do que foi 
ensinado e seu uso autônomo por parte 
daquele. 
Diante disto, a referida autora defende que o 
suporte dado ao aluno-leitor deve ser retirado 
progressivamente, até que ele alcance mais autonomia 
e possa controlar sua própria aprendizagem. No 
entanto, o processo de interiorização desse ensino não 
é explicado. O que parece implícito na idéia de bom 
ensino apresentada pela autora é que a conquista da 
autonomia permite a verificação da interiorização, que 
é favorecida pelo modelo adulto e autônomo de 
leitura. Porém, o como a criança se apropria disto não 
fica evidente, questão, aliás, que ainda se mostra 
como um impasse dentro dos grandes sistemas 
teóricos da Psicologia que abordam o processo de 
aprendizagem. 
Em contrapartida, Solé (1998) chama a atenção 
tanto para a importância da explicitação no ensino da 
leitura, como para a relevância do auxílio do professor 
no processo desse aprendizado. A criança precisa 
aprender que o leitor experiente se utiliza de 
estratégias que favorecem o controle e avaliação de 
sua compreensão leitora e, para que isto ocorra, é 
necessário que se diga o que precisa fazer, 
demonstrando para ela e fazendo com ela as atividades 
de leitura, até que não precise mais do auxílio do 
adulto. 
Esta é uma idéia também defendida por Smith 
(1999). Apesar de não acreditar no ensino da leitura, 
ressalta que esta postura solícita do professor, 
diferentemente do que se pensa, não favorece o 
desenvolvimento de um comportamento de 
dependência ou espera por parte da criança, já que esta 
é capaz de negar a ajuda de outro mais experiente 
Escola e leitura 47 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
quando se sente segura e com domínio sobre o 
conteúdo ou tarefa explorada. 
Isto foi observado, por exemplo, por Palincsar e 
Brown (1984). Elas verificaram que o treinamento 
para o uso de estratégias de compreensão mostra-se 
mais efetivo quando ocorre em situação de 
reciprocidade entre uma criança com problemas de 
leitura e um adulto leitor competente. Ao empregar o 
procedimento Ensino Recíproco, caracterizado pela 
atuação de um adulto-modelo que guiava o estudante 
na interação mais sofisticada com o texto e com o qual 
revezava a responsabilidade de explorá-lo, estas 
autoras perceberam que as crianças paulatinamente 
adotavam as estratégias do adulto de maneira cada vez 
mais sofisticada e independente, tornando-se cada vez 
mais capazes de assumir a liderança do diálogo, 
demonstrando um papel ativo em detrimento da 
passividade inicialmente apresentada. 
Em estudos realizados em situação experimental 
(Estudo I) e em situação de sala de aula (Estudo II), 
Palincsar e Brown (1984) constataram o poder 
significativo deste tipo de procedimento para 
favorecer a promoção da habilidade de compreensão e 
de seu monitoramento. Verificaram que os alunos que 
participaram deste treinamento melhoraram seus 
escores de compreensão em sala de aula e foram 
capazes de transferir as habilidades conquistadas para 
outras tarefas, como, por exemplo, a habilidade para 
usar regras de condensação para sumarizar, habilidade 
para prever questões que um professor poderia fazer 
em relação a um segmento de um texto e habilidade 
para detectar sentenças incongruentes encravadas em 
passagens de prosas. 
Para estas autoras, o sucesso do procedimento 
Ensino Recíproco pode ser atribuído, primeiramente, 
ao fato de o aprendiz ter acesso às estratégias 
utilizadas pelo leitor maduro, no momento em que este 
realiza a leitura, oferecendo ao primeiro um modelo 
eficiente de atuação frente ao texto. E em segundo 
lugar, por ser uma situação interativa, este tipo de 
procedimento permite que o aprendiz revele o seu 
nível de competência, permitindo ao leitor adulto fazer 
um diagnóstico on-line e atribuir um feedback 
apropriado, de modo a favorecer os ajustes 
necessários. Além disso, as autoras apontam o tempo 
de treinamento como um dos fatores responsáveis pelo 
sucesso deste procedimento, o qual foi realizado no 
decorrer de vinte dias contínuos, durante quatro 
semanas, favorecendo, portanto, esse 
acompanhamento e aprimoramento das intervenções. 
Palincsar e Brown (1984) argumentam que muito 
mais importante do que a instrução para o uso das 
estratégias de predizer, questionar, sumarizar e 
clarificar, que foram enfatizadas neste estudo, a 
interação de co-responsabilidade entre o leitor maduro 
(investigador ou professor) e estudantes mostrou-se 
como o ponto central deste processo de aprendizagem 
e mudança - interação esta que está próxima das 
situações naturais de aprendizagem em que o adulto se 
apresenta como guia ou suporte deste processo. 
Ferreira e Dias (no prelo) também encontraram 
achados semelhantes. Ao comparar a eficácia das 
estratégias de tomar nota e da imagem mental entre 
crianças de 3ª e 4ª séries do ensino fundamental de 
escolas particulares e públicas estaduais, as autoras 
verificaram que a estratégia de tomar nota, por 
favorecer um engajamento mais efetivo entre 
leitor/texto mediado pelo adulto (investigadora) apto a 
estimular esta interação a partir de perguntas, 
predições, comentários e esclarecimentos, mostrou–sesignificativamente mais poderosa do que a estratégia 
da imagem mental. 
Apesar de o estudo de Ferreira e Dias (no prelo) 
ter-se caracterizado por uma única sessão de 
treinamento para o uso das estratégias estudadas, o 
papel do adulto, enquanto suporte da aprendizagem da 
criança, mostrou-se relevante e evidente. Como 
enfatizam as autoras, a troca de linguagem entre 
adulto/criança na situação de mediação favorece a 
construção conjunta de significado textual, permitindo 
a construção posterior do sentido individual do texto. 
Deste modo, elas chamam a atenção para o papel 
crucial do professor enquanto elemento essencial na 
aprendizagem e superação das dificuldades de 
compreensão de leitura, em sala de aula. 
Alves e Leal (2001), por exemplo, em um 
trabalho realizado com crianças multirrepetentes de 
uma sala de 1ª série do ensino fundamental de uma 
escola pública estadual da cidade de Paulista-PE, 
utilizando as sugestões de Solé (1998) sobre o ensino 
de estratégias de compreensão para antes, durante e 
depois da leitura, constataram tanto uma mudança de 
atitude das crianças frente à leitura, como uma 
mudança qualitativa no desempenho das mesmas 
sobre as questões de compreensão. Elas verificaram 
que na avaliação inicial as crianças apresentavam 
dificuldade para responder tanto a questões literais 
como a questões inferenciais, não havendo nenhuma 
criança com mais de três acertos sobre estas questões. 
Por outro lado, observaram, após o trabalho de 
intervenção, um melhor desempenho geral das 
crianças, embora a dificuldade e responder a questões 
inferenciais tenha persistido. 
Nestas situações de intervenção, que ocorreram 
em um período de 20 dias, com duração de 3 h/a por 
encontro, nos meses de novembro e dezembro, as 
48 Ferreira & Dias 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
crianças foram mergulhadas em um mundo de leitura 
significativo, em que as atividades propostas pela 
professora e pela professora-investigadora tinham uma 
relação com os objetivos sociais da leitura. Além 
disso, elas tiveram suas atividades guiadas pelas 
professoras, que lhes ensinaram a utilizar as 
estratégias usadas pelo leitor competente antes, 
durante e após a leitura. 
Apesar das dificuldades apresentadas pelas 
crianças em relação às questões inferenciais, mesmo 
após a intervenção, percebe-se que é possível ajudar as 
crianças consideradas problemáticas a superar as suas 
dificuldades de leitura, quando há mudança no cenário 
e na dinâmica de sala de aula. Mesmo ocorrendo em 
um curto intervalo de tempo e no final do ano letivo, 
essas crianças foram capazes de aprender a ler de 
maneira significativa, demonstrando que o problema 
de leitura não está sóno sujeito cognoscente, mas, 
muitas vezes, nas situações de aprendizagem 
oferecidas. 
Não é a instrução direta e mecânica por si só que 
garante o aprendizado da leitura e o uso eficaz de 
estratégias de compreensão leitora, mas o 
envolvimento cognitivo e afetivo do aprendiz com a 
tarefa. O leitor-aprendiz precisa engajar-se 
significativamente no processo de sua aprendizagem e 
o adulto leitor maduro (pais ou professores) tem a
função de facilitar e promover este tipo de relação 
entre aprendiz (criança ou adulto) e a construção do 
saber exigido pela leitura. 
Todavia, a despeito deste conhecimento, que 
ressalta a importância do papel do significado na 
aprendizagem da linguagem escrita, ainda circula na 
escola a crença no treinamento de habilidades como 
requisito básico da alfabetização, havendo ou uma 
ênfase na utilidade futura da leitura e escrita como 
meios de ascensão social;,ou uma desconsideração em 
relação ao seu uso nas atividades práticas do dia-a-dia 
(Kramer, 2001). 
Outro aspecto relacionado ao problema do ensino 
da leitura na escola, diz respeito à inexistência ou falta 
de funcionalidade de bibliotecas escolares. Quando 
estas existem, ou o acervo é pobre e insuficiente e/ou 
o horário de funcionamento é irregular e assistemático,
dificultando o acesso de professores e alunos ao 
material impresso e ao espaço que deveria ser de 
estudo e pesquisa. Falam também bibliotecários para 
administrar este espaço e para coordenar, junto aos 
professores atividades que incentivem o gosto pela 
leitura e a autonomia para o estudo e pesquisa (Silva, 
1996). 
Quanto à atuação do professor, esta tem esbarrado 
tanto na falta de condições objetivas de trabalho, 
como, por exemplo, a falta de material impresso ou a 
inexistência de circulação deste material dentro da 
escola, como na impossibilidade de tempo e espaço 
para a reflexão da prática e da realimentação desta a 
partir das discussões teóricas entre professores e 
outros profissionais da educação. O que se observa é 
uma prática orientada apenas pela experiência 
adquirida na formação inicial ou uma prática sem 
referencial teórico consistente. 
Apesar da ampla produção de conhecimento sobre 
os processos de aprendizagem de leitura e escrita, o 
professor não tem tido acesso a este conhecimento ou 
o acesso ao mesmo tem ocorrido de forma distorcida
ou incompleta por meio de capacitações que tendem a 
uma informação em massa, nas quais ele exerce o 
papel de ouvinte passivo e de sujeito sem história. 
Em meio a um modismo de teorias e métodos, o 
professor abandonou ou foi levado a abandonar os 
seus antigos referenciais teórico-práticos, mesmo que 
inconscientes, sem substituí-los por outros capazes de 
atribuir consistência à sua prática e que lhe 
permitissem, por outro lado, desenvolver a consciência 
em relação ao seu importante papel na formação de 
leitores maduros, questionadores e críticos. 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
Como objeto de conhecimento que é, a leitura 
precisa ser explicitada. Deste modo, defende-se que as 
estratégias de leitura precisam ser ensinadas para que 
o leitor-aprendiz se torne um leitor autônomo e
competente. No entanto, acredita-se que este ensino 
precisa acontecer em situações contextualizadas e 
significativas, de modo que o aluno-leitor possa 
reconhecer a leitura como uma atividade social que 
permite a sua atuação no cotidiano e sua inserção no 
mundo letrado. 
Acredita-se também que a leitura é uma atividade 
capaz de mudar o indivíduo e suas relações com o 
mundo, favorecendo a possibilidade de 
transformações coletivas. Contudo, para que isto 
ocorra, faz-se necessário uma conscientização da 
sociedade em relação à importância da linguagem 
escrita, a qual pode começar a partir de uma mudança 
no projeto político de escola e na concretização de 
uma proposta social de leitura. 
Enfatiza-se, por outro lado, que para que haja uma 
revolução no aprendizado da leitura, faz-se necessário 
uma mudança de concepção dos professores a respeito 
desta atividade e do seu ensino a partir de uma 
aproximação e reflexão sobre o conhecimento 
produzido a respeito dos processos envolvidos neste 
aprendizado. 
Escola e leitura 49 
Psicologia em Estudo, Maringá, v. 7, n. 1, p. 39-49, jan./jun. 2002 
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Recebido em 18/12/2001 
Revisado em 05/04/2002 
Aceito em 06/05/2002 
325RBLA, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 325-345, 2010
Gêneros textuais e letramento
Genre and literacy
Maria do Socorro Oliveira*
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
RESUMO: Neste painel, discutimos a relação ‘letramento’ e ‘gênero textual’,
considerando a rica complexidade que envolve não apenas esses objetos teóricos
mas também a sua aplicação no domínio pedagógico, particularmente no que diz
respeito ao ensino-aprendizagem de língua materna. Vincularemos a discussão a
nossa experiência de ensino, pesquisa e extensão desenvolvida em programas de
formação de professores, voltados para a mobilização de práticas transdisciplinares
de natureza colaborativa e fortalecedora da ação docente. Nessa direção, indicamos
os projetos de letramento como uma alternativa para o desenvolvimento de um
trabalho contextualizado com os gêneros textuais.
PALAVRAS-CHAVE: Letramento; gênero; formação de professor; ensino-
aprendizagem de língua materna; projetos de letramento.
ABSTRACT: Our contribution to this panel intends to discuss how ‘literacy’
and ‘genres’ are related, taking into account the complexity involving not only
these two theoretical concepts, but also their implementation in the pedagogical
domain, especially related to mother tongue learning-teaching. We intend to
discuss that based on our experience in teaching, research and extension developed
at teacher education programs aiming at transdisciplinary practices of colaborative
and strengthening nature. To accomplish this task, we suggest literacy projects as
an alternative to develop a contextualized work with genres.
KEYWORDS: Literacy; genre; teacher education; mother tongue learning-
teaching; literacy projects.
Introdução
Resultado das discussões empreendidas nas universidades nas décadas de
70 e 80 e dos programas de renovação de ensino introduzidos nas diretrizes
curriculares dos estados e municípios e nos materiais destinados à formação
continuada de professores, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) –
coleção de documentos publicados pelo Ministério de Educação e Cultura em
1997 – inauguram uma importante e desafiadora fase na educação brasileira
* msoliveira@digi.com.br
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326 RBLA, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 325-345, 2010
que gera resistências por parte daqueles mais apegados a concepções tradicionais
de ensino e se apresenta como uma dificuldade para os professores que, por falta
de formação adequada, sentem-se inseguros e / ou incapazes de implementar
práticas didáticas inovadoras fundamentadas em um conjunto de teorias até
então desconhecidas como objetos de ensino.
Com vistas à preparação de professores e de outros agentes educativos
para as mudanças propostas nos PCN, é bem verdade que o próprio MEC
procurou assegurar o estudo e o debate dessas orientações curriculares mediante
a realização de programas e projetos que atendessem, de forma ampla, à
comunidade educacional brasileira. Também nessa perspectiva, outros órgãos
oficiais (Secretarias de Educação do Estado e do Município, Diretorias de Ensino
etc.) promoveram, e continuam promovendo, cursos, encontros e debates para
que os professores se apropriem dessa nova orientação e dos objetos teóricos
que a integram. No Brasil inteiro, instituições formadoras voltaram-se para a
educação do professor. Dentre os diversos programas instituídos para tal fim,
serve como exemplo o Programa de Qualificação Profissional para a Educação
Básica (PROBÁSICA) cujo objetivo primeiro era desenvolver uma política de
formação para professores já no exercício da docência, mas sem titulação
acadêmica, a qual lhes possibilitasse a construção de saberes teóricos e aplicados
necessários a uma prática reflexiva e crítica em sala de aula.
Graças a esse esforço, não há dúvida de que uma gama de conceitos,
oriundos de várias áreas, especialmente da linguística teórica e aplicada, instalou-
se no discurso do professor. Não apenas nos grandes centros educacionais mas
também naqueles situados nos mais afastados rincões desse Brasil, a fala dos
educadores brasileiros nunca esteve tão recheada de ‘modismos’ teóricos
quanto agora. Na voz dos professores, o que se ensina agora são os gêneros
textuais, sugeridos e explorados pelos livros didáticos, segundo uma perspectiva
de letramento. Os professores também dizem que é preciso alfabetizar letrando
e não há dúvida de que a linguagem é uma prática social. Esse discurso, embora
revelador de que o professor fez ecoar a voz dos PCN, não se tem efetivado
na prática do professor. Sobre isso, temos nos perguntado se, de fato, esses
professores se apropriaram de tais conceitos ou se não houve apenas uma
‘popularização’ de determinados referenciais teóricos. A nossa experiência em
contextos de formação indica que a apropriação dessas noções não se tem
efetivado do modo esperado ou desejável. Quando averiguamos a atribuição
de sentido que é construída por grande parte dos professores, depreendemos
que se trata de um discurso ‘vazio’, com significações distorcidas e banalizadas.
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327RBLA, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, p. 325-345, 2010
Desse modo, se, por um lado, podemos confirmar que os professores
passaram a falar, por exemplo, de noções como ‘letramento’ e ‘gênero textual’,
graças à divulgação desses termos pelos PCN e ao impacto de processos
formativos oferecidos aos professores, por outro lado, a mobilização desses
saberes no contexto de sala de aula mostra-se problemática. Na busca de uma
apropriação que não se efetivou, o professor acaba desenvolvendo um trabalho
intuitivo que mistura práticas tradicionais com um discurso pretensamente
inovador, caracterizado por entendimentos equivocados. E não poderia ser de
outra maneira! Como poderiam ter um entendimento claro e se sentirem
seguros acerca desses novos princípios se a própria Academia os reconhececomo
tão complexos, sendo ainda foco de acirrados debates por parte de seus
membros? Transformar ‘saberes científicos’ em ‘saberes a serem ensinados’ na
práxis escolar não é um trabalho fácil!
Tendo em vista essa problemática, as perguntas que orientam a nossa
reflexão neste painel são: 1) Que contribuições podem trazer os estudos de
letramento e gênero para o letramento do professor?; 2) Como desenvolver
com os professores práticas de letramento acadêmicas (formação inicial e
continuada) que sejam significativas para o trabalho cognitivo, social e político
no letramento escolar?; 3) Uma visão canônica do letramento aliada a uma
abordagem de gêneros centrada no ensino explícito dos textos valorizados nas
culturas dominantes assegura o desenvolvimento da competência leitora e
escritora de aprendizes oriundos de variados contextos sociais?; O letramento
cultural impacta de igual forma ou garante, de modo integral, a inclusão?
Em suma: em face do reconhecimento da diversidade social, dos
inúmeros contextos em que as práticas de leitura e escrita ocorrem, dos
diferentes modos que as constituem e dos diversos valores que a ela são
atribuídos, como tratar o letramento e os gêneros textuais, de modo a provocar
impactos na formação docente e na apropriação de práticas letradas significativas
pelo aprendiz de língua, favorecendo, naturalmente, a inclusão social?
Responder a essas perguntas, considerando o modo como os professores
têm significado as orientações dos PCN e atuado na sala de aula, implica discutir
a rica complexidade que envolve não apenas os objetos teóricos – letramento
e gênero – mas também a aplicação desses conceitos no domínio pedagógico,
particularmente no que diz respeito ao ensino-aprendizagem de língua materna.
Faremos isso a partir da nossa história de ensino, pesquisa e extensão
desenvolvida junto a professores que trabalham em favor de grupos
desfavorecidos social e economicamente – crianças moradoras de favelas ou
pertencentes à zona rural e jovens e adultos que lutam para ter acesso a bens
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culturais e oportunidades sociais que se oferecem num mundo em constante
transformação, palco da pós-modernidade e das novas Tecnologias da
Informação e Comunicação (TIC).
Situando a questão
Como qualquer iniciativa de natureza oficial (apesar de se preocupar
com os interesses e necessidades da comunidade escolar a quem é destinada,
ao levar em conta a cultura local dos seus membros – os alunos e os professores
–, como interlocutores), a aplicação dos PCN (aqui falo de língua portuguesa)
apresenta um caráter generalizante, prescritivo e hegemônico, na medida que
se constitui numa iniciativa de caráter amplo, nacional que visa oferecer
princípios teóricos e diretrizes gerais para o ensino-aprendizagem de práticas
letradas desejadas por determinados grupos que detêm o poder disciplinar. Não
é de se estranhar que a colocação dessa nova ordem posta em circulação nos
documentos oficiais das reformas de maneira hegemônica e prescritiva traga
dificuldades para os seus interlocutores.
A principal implicação é o reconhecimento do letramento como um
fenômeno neutro, natural, singular, autônomo, visível. Neutro, no sentido de
que pode ser indiferentemente aplicado a qualquer aluno: da região norte / da
região sul, pobre / rico, da zona urbana / da rural, criança / jovem / adulto etc.
Natural, porque resulta de um consenso social que segue a ordem regular das
coisas, ignorando o diferente e o inadequado. Singular, porque está
equacionado a uma prática universalizante cujo interesse é homogeneizar o
saber do aluno, conduzindo-o a um único lugar – o da cultura letrada,
canônica, dominante, sem atender aos interesses e às necessidades
comunicativas de grupos específicos. Autônomo, porque ocorre de modo
descontextualizado, atribuindo à escrita características intrínsecas, responsáveis
pelo desenvolvimento cognitivo. Visível, pelo poder e legitimação que ao
letramento canônico (letramento cultural) é atribuído.
No que diz respeito aos gêneros textuais, a compreensão deflagrada é a
de que estes são unidades textuais dadas, estáticas, descontextualizadas, com
características facilmente identificáveis, prontas para serem ensinadas. O
gênero, porém, não se constitui num fenômeno simples e puro. Conforme
atestam estudos de vários autores (JOHNS, 2006), ele é afetado por uma rede
de variáveis que operam juntas, tornando-o complexo e multifacetado.
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Letramento: complexidades
Enxergar o letramento como algo ‘singular’ é esquecer que a vida social
é permeada por linguagem de múltiplas formas e destinada a diferentes usos.
Nela, são veiculados gêneros diversos que são praticados por diferentes pessoas
nas mais diversas atividades sociais, orientadas a partir de propósitos, funções,
interesses e necessidades comunicativas específicas, não obstante a compreensão
de que alguns textos são considerados canônicos e, por isso, mais legitimados
que outros, socialmente. E é exatamente porque se constitui como algo ‘plural’
que vale a pena problematizar, examinando as diversas facetas que o constituem
e as razões por que esse fenômeno tem se tornado um verdadeiro ‘campo de
batalha’ no domínio pedagógico.
Para entender essa ‘guerra de letramentos’ (SNYDER, 2008), reflitamos
sobre alguns princípios que são centrais à perspectiva dos ‘novos estudos de
letramento’, conforme referidos por pesquisadores estrangeiros. Aqui no Brasil,
são denominados, simplesmente, ‘estudos de letramento’ (OLIVEIRA;
KLEIMAN, 2008, p. 7).
Nesses estudos argumenta-se que os letramentos, vistos como práticas
sociais, necessitam ser melhor entendidos nos seus contextos sociais e históricos;
são fruto de relações de poder; servem a propósitos sociais na construção e troca
de significados; formatam e são formatados pela cultura; sofrem interferência
de posições ideológicas, podendo estas serem explícitas e implícitas; são
dinâmicos à medida que são determinados por injunções de natureza
econômica (globalização), tecnológica (recursos da mídia e da internet),
política (políticas públicas de educação) e histórica (certas práticas valorizadas
numa determinada época que perdem o seu valor noutro tempo). São, enfim,
múltiplos, dêiticos, ideológicos e críticos (BAYNHAM, 1995; LEU et al.,
2004). Analisemos alguns desses princípios.
Os letramentos são múltiplos
A valorização dos usos da leitura e da escrita como práticas sociais por
oposição à compreensão do letramento visto como um modelo autônomo e
homogeneizante, encapsulado unicamente no processo de escolarização que
enfatiza o ler e o escrever como uma habilidade, deu lugar à compreensão de um
novo conceito, de natureza plural – letramentos. Fruto da virada social nas pesquisas
sobre linguagem (GEE, 1996), os estudos de letramento reenquadraram-se,
passando a destacar a complexidade da vida social, a pluralidade dos contextos
sociais e culturais, a força das mudanças sociais e a implicação dessas mudanças
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nas práticas de letramento cotidianas. Nesse novo quadro, os letramentos locais
ganharam importância teórica e, em consequência, diferentes mundos de
letramento (BARTON, 2000) têm sido explorados e tornados visíveis. Uma
compreensão sistemática de toda a complexidade e multiplicidade a que as
práticas de letramento estão vinculadas pode ser percebida em três dimensões:
1) os diferentes contextos de atividade; 2) as atividades particulares da vida
cultural; e 3) os diferentes sistemas simbólicos.
Não há dúvida de que as práticas de letramento que ocorrem nos
variados contextos – casa, escola, igreja, rua, lojas, empresas, órgãos oficiais,
dentre outros – atendem a funções e propósitos diferentes. Um bilhete que
circula no ambiente familiar não apresenta as mesmas características de outroque é produzido, por exemplo, num local de trabalho, ou mesmo na escola.
‘O que’ se lê e o ‘como’ se lê são fortemente determinados pelo ‘lugar’ de onde
lemos. Não lemos, por exemplo, a Bíblia em família do mesmo modo que a
lemos na igreja. Nesta, o caráter evangelizador supera o interesse formativo,
moral, ético que, na família, é esperado e alimentado.
Sabemos que o mundo é textualizado. Leitura e escrita estão em toda
parte. O que circula, portanto, na rua ou em ambientes comunitários são
modos de inscrição específicos (placas, propagandas, faixas, outdoors, fachadas
etc.) de grande força comunicativa e que, por isso, merecem atenção. Consumir
e saber produzir os inúmeros textos que se distribuem nos mais variados
contextos sociais significa não apenas ter acesso a essas práticas comunicativas
mas também assumir uma forma de poder que a muitos é negada.
Entender que o letramento é mediado por textos implica naturalmente
ter consciência de que o uso de determinados textos depende do sistema de
atividades no qual as pessoas estão inseridas, noutros termos, depende dos
papéis que as pessoas exercem e do que elas necessitam fazer por meio desses
textos em determinadas situações. Esse sistema, gerado nas instituições e
domínios particulares da vida cultural (academia, unidades de trabalho,
entidades religiosas, sindicatos, clubes etc.), determina que gêneros escolher e
usar em certas situações comunicativas para atingir determinados propósitos.
Em razão disso, os gêneros, conforme afirma Bazerman (2005, p. 31), “são
parte do modo como os seres humanos dão forma às atividades sociais”. Nessas
atividades, os papéis que as pessoas exercem determinam que competência
leitora e escritora elas devem ter.
Se, no exercício do seu trabalho, cabe a um médico preencher prontuários
com informações de seus pacientes, prescrever receitas com indicação de
medicamentos, ler bulas de remédios, ler literatura especializada a respeito de
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casos clínicos que lhe interessem, registrar ordens e ocorrências hospitalares,
escrever artigos científicos etc., cabe a um professor, no ensino de uma
disciplina, assumir a tarefa de elaborar programas, exercícios, fichamentos de
textos para apresentação didática, planos de aula, testes de avaliação,
comentários e notas sobre a produção dos alunos, boletins de notas e registros
de conteúdo, avisos, textos para apresentação em aula (no recurso de Power
Point), e-mails etc., ler material impresso (livros, revistas, jornais), pesquisar
na internet textos informativos relativos ao conteúdo da aula etc. Os exemplos
aqui focalizados salientam a natureza relacional existente entre situação,
atividade e participantes em eventos de letramento.
Nos dias atuais, o que as pessoas fazem com o letramento e o modo
como este é formatado tem sido largamente afetado pelo processo de
globalização, pelas exigências de uma economia altamente competitiva, pelos
meios de comunicação de massa e, naturalmente, pelo aparecimento da
internet, vista como elemento central no fluxo e no acesso da informação. Na
chamada ‘era da informação’, a disponibilidade cada vez maior de recursos de
comunicação e a rápida expansão das tecnologias a serviço da informação e da
ação social colocam o indivíduo frente à necessidade de buscar, localizar,
sintetizar e avaliar informações úteis à resolução de problemas do cotidiano
(sacar dinheiro, pagar contas, comprar via internet, solicitar informações e
serviços via celular e / ou computador etc.).
Especificamente no domínio do trabalho, ambiente altamente competitivo,
a busca de estratégias efetivas para interagir, ganhar acesso à informação e dela
fazer uso para solucionar problemas ligados ao funcionamento e produtividade
da organização aponta para a necessidade de ‘novos letramentos’ que permitam
aos jovens em geral agir e interagir na ‘era do conhecimento’ cujo tom recai nas
ideias dos indivíduos ou na sua capacidade para pensar e criar, o que exige o
desenvolvimento de várias competências do ponto de vista profissional. Em
função disso, países desenvolvidos têm dado prioridade a padrões de excelência
na escola, investindo em políticas públicas que valorizam o ‘capital humano’,
o que indica a necessidade de reinventar o currículo escolar no que diz respeito
às competências de linguagem para as demandas de um letramento diferente.
Afinal, conforme Leu et al. (2004), ensinar alguém a ler e a escrever para os
‘letramentos do futuro’ é uma experiência de transformação.
Nesse quadro caracterizador de uma sociedade do futuro, que tem
como base os meios de comunicação de massa e o desafio de ser criativo, o
letramento gráfico une-se ao letramento visual. Nessa combinação de múltiplas
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formas semióticas, a imagem deixa de atuar como um elemento que
complementa ou ilustra a palavra para ser um modo estruturante do texto.
Dessa forma, ela integra a mensagem, carregando em si mesma um valor
semântico. Nesse tipo de gramática textual, o sentido que se atribui ao texto
resulta de um ‘design’ mais amplo no qual se incluem caracteres alfabéticos,
imagens, cores, texturas, formas em movimento, apresentados todos de modo
linear, ou seja, alocados no mesmo espaço textual.
Se essa configuração textual e / ou modo de significar no texto traz um
grau de complexidade maior para a formação de leitores e escritores na
contemporaneidade (p. ex., leitura de gráficos, mapas, textos midiáticos), a
dificuldade é crescente no chamado letramento eletrônico em que, diferentemente
do letramento impresso, informações em rede são interconectadas (linked) de
forma não linear – hipertexto –, o que aponta para a construção de novos
cenários de letramento e novos perfis de profissionais na educação.
Ainda que se reconheça no contexto escolar o desejo de explorar o
mundo virtual em sala de aula, motivado por políticas de inclusão digital, o
que nele se observa, entretanto, é uma espécie de ‘bricolagem’. No dizer de
Lankshear e Knobel (2000), a escolarização dos letramentos pós-modernos
dá-se como “velhos vinhos em novas garrafas”. É o caso de recontar velhas
estórias por meio de uma nova tecnologia, por exemplo, utilizando-se o Power
Point. Consideremos que apenas fazer uso desse recurso, ainda que interessante,
não possibilita entender a funcionalidade e o valor das novas tecnologias
digitais.
Os letramentos são dêiticos
Amplamente discutidos nos estudos da linguagem, palavras como agora,
hoje, aqui, lá, ir, vir assumem diferentes significados dependendo do lugar e
tempo em que são enunciados. Também segundo as abordagens etnográficas
de letramento, a consideração desses aspectos enunciativos indica a natureza
dêitica das práticas de letramento ou o seu caráter situacional, sua dimensão
histórica e topográfica. Essa natureza explica por que as práticas de leitura e escrita
são dinâmicas: mudam em termos de forma e função; evoluem e se transformam
segundo condições sócio-históricas. Reflexão interessante a esse respeito
elabora Orlandi (1988), ao defender a ‘imprevisibilidade’ e ‘pluralidade
possível’ da leitura. A variação de leitura a que ela se refere contempla, por
exemplo, a questão de como um único texto permite possíveis leituras em
certas épocas e não em outras; textos sagrados (em sânscrito) são lidos hoje
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como pertencentes ao domínio da literatura; classes sociais e instituições
selecionam, apreciam e legitimam certos textos diferentemente de outras
(textos canônicos ou não); certos modos de ler circulam em determinados
domínios, e não em outros (ler em voz alta ou em voz baixa, para estudo, para
ocupar o tempo, para se divertir etc.); determinadas leituras e textos sofrem
restrição por parte de quem lê (jovem, criança, tipo de profissional etc.).
As rápidas transformações tecnológicasque hoje se dão afetam
profundamente o letramento, à medida que requerem do indivíduo novas
habilidades e estratégias para se adaptar e adquirir os letramentos que emergem,
além de abrir possibilidades para o uso criativo da tecnologia como uma
ferramenta útil para exercer novas funções e propósitos na formatação e
composição de mensagens. A natureza dêitica do letramento suscita, assim,
uma nova concepção ou (re)definição do que significa tornar-se letrado.
Os letramentos são ideológicos
A postulação das noções de ‘letramento autônomo’ em oposição a
‘letramento ideológico’, sendo entendida a primeira como uma tecnologia
neutra e universal, cuja aquisição, por si mesma, produz efeitos sobre o
desenvolvimento cognitivo e social, e a segunda como um posicionamento
sensível ao caráter sociocultural das práticas de letramento e às estruturas de
poder na sociedade (STREET, 1993), suscita uma rica discussão sobre a
natureza ideológica dos letramentos.
Embora se possa entender, a partir desse contraponto, que apenas esse
modelo alternativo está atravessado de ideologias, como a própria adjetivação
indica, apresentando-se o modelo autônomo como neutro, no sentido de que
busca a universalização das práticas de letramento, e como hegemônico, por
estar a serviço do poder de um grupo particular, não se trata de uma relação tão
simples. Com vistas a essa relação, é importante entender que, mesmo as concepções
que se apresentam como neutras (letramento autônomo), camuflam
pressuposições culturais e visões particulares do mundo social, interessadas em
sustentar determinadas relações de poder, sendo, por isso, ideológicas.
Há distintas formas de entender a ideologia. Conforme a teoria social crítica
(THOMPSON, 1995 apud RESENDE; RAMALHO, 2006), a ideologia
é, por natureza, hegemônica no sentido de que serve para produzir, reproduzir
e transformar a ordem social que favorece certos indivíduos, ou mesmo, grupos
dominantes. Como as ideologias se materializam nas práticas discursivas, a
investigação destas incluirá sempre um componente ideológico.
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No que diz respeito às práticas de letramento, os diferentes grupos
sociais buscam continuamente assegurar, por meio da agência humana, seus
interesses ou valorizar as formas de ler e escrever que lhes trazem benefícios ou
se constituem como um ‘bem social’ compartilhado entre eles. As crenças a
respeito do modo como as comunidades elegem seus ‘bens sociais’ apontam
necessariamente para um tipo de ideologia (GEE, 1994). Não há, nesse
sentido, nenhuma orientação de letramento que não seja ideológica.
Os letramentos são culturais
O entendimento de que as práticas de letramento estão sempre
encaixadas em específicos contextos culturais tem sido um recorrente tema de
estudo particularmente no campo da pesquisa etnográfica. Essas pesquisas
salientam a natureza situada dos letramentos e discutem o fato de alguns serem
‘invisíveis’ em relação a outros considerados ‘visíveis / dominantes’
(BAYNHAM, 1995, p. 246). É evidente que o letramento escolar goza de
legitimação e, em razão disso, é visto como um parâmetro para avaliação dos
letramentos locais. Assim sendo, as grandes críticas dirigidas aos letramentos
locais referem-se às ‘limitações’ desses letramentos, à forma ‘romântica’ como
estes são olhados e às relações que são estabelecidas entre eles e os letramentos
distantes, noutros termos, entre o ‘local’ e o ‘global’.
Em resposta à ‘aparente pobreza’ dos letramentos locais, inúmeros
pesquisadores (STREET, 2001; 2003; BAYNHAM, 2004) observam que,
embora vozes dominantes caracterizem as populações locais como ‘iletradas’,
uma rica variedade de práticas de letramento pode ser deflagrada em
comunidades marginalizadas, sejam elas situadas em ambientes rurais ou
urbanos. Defendem, por isso, a necessidade de tornar visíveis as práticas de
letramento cotidianas em toda a sua complexidade. Eles argumentam que o
respeito que se deve ter por esses letramentos não deve ser confundido com
‘uma abordagem romântica’. A verdadeira intenção não é isolar essas práticas
de outras que estão ‘fora’, mantendo-as ‘puras’, mas tê-las como ponto de
partida para introduzir letramentos hegemônicos, comprometidos com o
progresso e a modernização. Nesse sentido, a relação local / global não é
excludente. O global se imbrica ao local à medida que essas comunidades
tencionam garantir os seus direitos e necessidades locais. Assim (re)inventada,
a questão da ‘instrução’ passa a ser entendida como uma prática de ensino-
aprendizagem situada (BAYNHAM, 2004; BARTON, HAMILTON;
IVANIc, 2000; SZWED, 2001), em que a escrita (e, naturalmente, a leitura),
por si mesma, é incapaz de resolver problemas que são inerentes à prática social.
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Ainda a respeito dessa articulação – práticas de letramento locais / práticas
de letramento dominantes –, há quem discuta que os letramentos
‘universalizantes’ e os modos de produzir conhecimento na academia
(letramento acadêmico) são, em sentido restrito, profundamente locais
(BAYNHAM, 2004; LATOUR, 2000).
Trabalhar nessa (re)invenção requer a implementação de programas de
letramento que respondam às aspirações do grupo a que se destina, oferecendo
a ele a possibilidade de usar a leitura e a escrita de forma funcional, ou seja,
como um instrumento que possibilite alternativas para resolver problemas de
âmbito local ou que esteja sintonizado com os desejos e sentimentos daqueles
a quem está endereçado. Escutar esse ‘outro’ exige do professor e / ou do
pesquisador na área atitudes de engajamento e de responsabilidade social, além
da habilidade para se colocar como ‘insider’ nesses contextos.
Na prática, sabemos que articular o local ao global não é tarefa fácil. Se,
por um lado, o professor enfrenta hoje o desafio de promover o conhecimento
com grupos específicos que cultivam práticas e visões do mundo muito
particulares (jovens de periferia, crianças e jovens de zona rural, adultos com
interesses próprios em determinadas práticas de letramento), por outro lado,
há de se considerar que, com a democratização e a globalização, chegam à escola
indivíduos completamente clivados pelo processo de modernização. Fazem
parte de grupos cujos valores, crenças e práticas são bem específicas, mas, ao
mesmo tempo, se inserem em uma ‘comunidade global’ cuja demanda de
informação e trabalho exige deles novas competências, favorecendo ou não
possibilidades de inclusão. A esses aspectos acrescenta-se a dificuldade, a que
estão submetidos os professores, relativa à imposição de uma grade de
conteúdos a ser ministrada no decorrer do ano letivo.
O multiculturalismo impõe ao professor uma agenda desafiadora – a
de incluir numa sociedade grafocêntrica educandos pertencentes a uma tradição
oral. Nesses contextos, a imposição de letramentos exógenos acaba, muitas vezes,
por expulsá-los da escola ou desinteressá-los pelas práticas escolares, uma vez que
fazer parte dessa cultura letrada é ‘oferecer um fardo muito pesado para quem se
sente incapaz’ ou é ‘almejar um futuro para quem não tem futuro’. A compreensão
desse quadro exige do professor e do pesquisador outro ‘enquadre’ – não há
possibilidade de agir sobre esse mundo se não somos capazes de ‘dialogar’ com
ele. As pesquisas críticas e as pedagogias culturalmente sensíveis podem
oferecer respostas mais efetivas para uma ‘pedagogia do letramento’, julgamos.
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Os letramentos são críticos
Na atualidade, o que se tem considerado como ‘crítico’ diz respeito ao
modo “como as pessoas usam textos e discursos para construir e negociar
identidade, poder e capital” (LUKE, 2004, p. 21). A teoria crítica está
preocupada em entender as relações entre poder e conhecimento e em teorizar
o papel da linguagem na produção e reprodução do poder na vida cotidiana,