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AULA 1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE Profª Tania Maria Santos Pires 2 INTRODUÇÃO A evolução das Políticas Públicas de Saúde As políticas públicas existem para que as pessoas sejam beneficiadas e cuidadas. Portanto, para falar de políticas públicas de saúde, é fundamental estudar a origem do cuidado, as motivações para que ele acontecesse historicamente, e como a responsabilidade do cuidado se estabeleceu de forma oficial, tornando-se uma tarefa do Estado. Atualmente, o mundo vive uma onda de questionamentos sobre a responsabilidade do cuidado. Um dos motivos é o aumento das migrações de pessoas empobrecidas por guerras ou catástrofes, que buscam desesperadamente outros locais onde possam viver com um pouco mais de segurança. No Brasil, vivemos o drama dos venezuelanos, que chegam em ondas no estado de Roraima, onde esperam semanas, vivendo nas ruas, até conseguirem autorização para se estabelecerem. A Itália, por exemplo, combate a migração ilegal de centenas de africanos que tentam chegar ao continente Europeu através do mar, em barcas que colocam as suas vidas em risco. As sociedades se manifestam de diversas maneiras sobre o tema, ora acolhendo, ora rejeitando os refugiados, porque o cuidado com os vulneráveis impõe custos financeiros, consumo de serviços públicos e organização de políticas públicas, agravando situações pré-existentes ainda sem solução, como acesso a emprego e a outros serviços públicos. Além disso, o desequilíbrio econômico causado pela instabilidade política e pelas guerras impulsiona a pobreza, afinal impede as pessoas de comprar alimentos, encarecendo o consumo essencial e aumentando a vulnerabilidade de inúmeras famílias no Brasil e em outros países pobres. A situação de guerra na Europa, deflagrada em 21 de fevereiro de 2022, evidencia essa realidade, pois repercute de diferentes formas no mundo inteiro. Diante desses dramas sociais, repetimos a pergunta que vem sendo feita desde os primórdios da organização social: De quem é a tarefa de cuidar? Essa reflexão nos levará a uma melhor compreensão das prioridades estabelecidas pelos governos, considerando um cuidado mais bem executado e mais justo. 3 TEMA 1 – O CUIDADO COM OS MAIS FRÁGEIS E VULNERÁVEIS Para a subsistência do mais rudimentar agrupamento social, existe necessidade de implementar ações positivas de interesse comum. Tais ações precisam ser organizadas na forma de projetos, amparadas por legislação, sempre ao encontro das necessidades daquele grupo social ou população-alvo, promovendo cuidado e desenvolvimento. A esse conjunto de planos e ações voltadas ao interesse público chamamos de políticas públicas. 1.1 O que são políticas públicas de saúde? Políticas públicas “podem ser definidas como conjuntos de disposições, medidas e procedimentos que traduzem a orientação política do Estado e regulam as atividades governamentais relacionadas às tarefas de interesse público” (Lucchesi, 2004, p. 3). São consideradas de responsabilidade do Estado, que se incumbe dos processos de tomada de decisão, implementação e manutenção da ação, envolvendo órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da sociedade relacionados às políticas implementadas (Höfling, 2001). As políticas públicas de saúde fazem parte do campo de ação do Estado, que tem a responsabilidade de planejar, implementar e executar ações de saúde, nos seus diversos níveis de gestão, para a melhoria das condições de saúde da população. Elas consistem “em organizar as funções públicas governamentais para a promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e da coletividade” (Lucchesi, 2004, p. 3). Os temas e conteúdos das políticas públicas costumam variar de acordo com as características de um povo e sua cultura, porém existem temas inquestionáveis, por serem necessidades básicas de todos os povos. As temáticas de saúde e amparo social são exemplos claros de temas irrefutáveis nas agendas de gestão pública da atualidade. No entanto, a compreensão de que as necessidades de saúde e cuidado são direitos humanos acima de outros interesses, e de que a preservação da vida é de interesse público, o mesmo valendo para a esfera individual, demorou para se consolidar ao longo da estruturação das sociedades até os dias de hoje. No contexto do cuidado, diversos setores estão ligados por interfaces e ações comuns, com objetivos confluentes. Tal confluência de interesses pode ser facilmente observada nas interfaces dos setores de saúde, educação, 4 infraestrutura, ação social, moradia, emprego e renda. Não é por acaso que as populações com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são as que apresentam melhores indicadores em saúde. Por outro lado, os piores indicadores coincidem com aquelas que apresentam o pior IDH. 1.2 Determinantes sociais de saúde A relação entre desenvolvimento econômico e qualidade de vida e saúde está na base da elaboração dos estudos de determinantes sociais de saúde. A definição de Determinantes Sociais de Saúde (DSS), segundo a comissão nacional que estuda o tema, implica a existência de fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos, raciais, psicológicos e comportamentais, que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. Os estudos internacionais demonstram que os fatores DSS são mais impactantes na formação do contexto de saúde e doença do que os determinantes biológicos e hereditários que são passados em cada geração, inclusive com impacto na qualidade de vida. As ações em conjunto desses diversos setores potencializam-se mutuamente, gerando qualidade de vida e desenvolvimento econômico e social. No entanto, nem sempre foi assim, e ainda precisamos caminhar muito até alcançar a meta da justiça social, cujo maior objetivo é diminuir as desigualdades, gerando equilíbrio e oportunidades para todos. TEMA 2 – VULNERABILIDADE E RISCO EM SAÚDE 1) As políticas públicas de saúde estão embasadas na equidade. Isso significa a aplicação de discriminação positiva, com priorização dos mais frágeis e necessitados. A Lei n. 8.080, conhecida como lei Orgânica da Saúde, traz a equidade como um dos princípios do SUS, com a missão legal de destacar aqueles que mais precisam de assistência à saúde. Chamamos a equidade de justiça justa. 2) Entre todos os que necessitam de atenção, existem aqueles que são mais frágeis e devem ser priorizados. As equipes de saúde aprendem a fazer a seleção de risco com base em critérios clínicos, em situações de urgência e emergência. No entanto, o reconhecimento de outros componentes de risco torna 5 a abordagem em saúde mais qualificada, pela necessidade de reconhecer o contexto social e as condições de vida em sua influência direta na produção de saúde e doença. Para entender com clareza do que estamos falando, é oportuno entender o conceito de vulnerabilidade e risco, apesar do uso muito frequente dos dois termos com o mesmo sentido. 2.1 Entendendo os conceitos 3) Entende-se que a vulnerabilidade é a situação de exposição de pessoas, famílias e comunidades, às condições sociais, econômicas e psicológicas inapropriadas ao seu desenvolvimento. Tais condições fragilizam as famílias, aumentando o risco. Sendo assim, o risco é a possibilidade da ocorrência de desfechos graves que afetam as famílias em várias dimensões da sua vida. 4) Pessoas, famílias e comunidades que vivem na pobreza, em moradias precárias, sem acesso a infraestrutura ambiental, como esgoto, energia elétrica, asfalto e água tratada, expostas a situações de violência e com pouca escolaridade, estão em condições de elevada vulnerabilidade, com alto risco de doenças diversas, além de criminalidade, abandono de incapaz, aborto e morte precoce. 5) A vulnerabilidade dessas populações expressa-se de diversas formas, com diferentes origens. Emnosso país, um viés muito importante está ligado às pessoas afrodescendentes e às populações indígenas. O histórico de escravidão em nosso país, primeiro da população indígena e posteriormente dos negros, deixou um rastro de pobreza e indigência que se reflete em nossos dias no desamparo social e na falta de perspectivas dessas populações. 6) Estudos mostram que a população que se declara negra constitui 45% da população brasileira, porém são 65% de pobres e 70% de extremamente pobres, o que também se evidencia proporcionalmente em baixa escolaridade e outros indicadores sociais. 7) Juntando esses fatores de vulnerabilidades a outros componentes, como a realidade da mulher, o risco aumenta de forma considerável para transtornos mentais, como depressão e exposição à violência de gênero. Estudos mostram que a população negra tem expectativa de vida menor do que a população em geral. Por conta disso, é preciso desenvolver políticas públicas específicas para atender esse segmento. 6 2.2 Vulnerabilidade e resiliência 8) Resiliência é a capacidade de indivíduos e famílias de reagirem positivamente a fatores estressores externos, com retorno ao funcionamento normal após um período de dificuldades. De forma mais clara, significa “dar a volta por cima”, “transformar o limão na limonada”. Sabemos que todas as famílias e indivíduos passam por períodos de dificuldades, sendo obrigados a reagir. Estudos mostram que famílias em grande vulnerabilidade são afetadas em sua capacidade de reação diante dos problemas, com grande risco de desestruturação e rompimento de ligações. 9) Diante disso, cabe à sociedade cuidar dos mais vulneráveis, no intuito de diminuir o risco para essas pessoas e famílias – as quais, na maioria das vezes, de acordo com a sua estratificação de vulnerabilidade, estão tão fragilizadas que não conseguem superar essa condição sozinhas. TEMA 3 – CARIDADE CRISTÃ COMO MOTIVAÇÃO PARA O CUIDADO 10) No decorrer da história, o sentimento de responsabilidade com os necessitados esteve associado à religiosidade. Com o estabelecimento do cristianismo como religião oficial do ocidente, essa responsabilidade se concretizou através das ordens religiosas, que criaram, sustentaram e cuidaram de hospitais e asilos. Padres e freiras eram treinados para prestar cuidados aos doentes, que chegavam diariamente aos mosteiros e seus complexos hospitalares em busca de assistência à saúde e conforto religioso. 11) Esse legado viria a ser, mais tarde, de grande importância para o desenvolvimento de práticas médicas e hospitalares, que transformariam o hospital em um espaço tecnológico e científico, levando à criação das primeiras escolas médicas e de enfermagem da Europa. 3.1 Impacto da beneficência sobre a saúde As motivações religiosas para o cuidado fazem parte da cultura judaico- cristã ocidental. Há várias referências bíblicas sobre o dever de cuidar dos órfãos, das viúvas e dos demais necessitados, do pentateuco ao Novo Testamento. O cristianismo trouxe, como dever cristão, a ação de amparar os necessitados, desde os primórdios da Igreja, no século I, o que fica evidente no livro de Atos dos Apóstolos, que descreve o trabalho de pessoas especialmente designadas para 7 cuidar da assistência aos vulneráveis. A instituição do diaconato, com a designação de diáconos (palavra grega que significa “servidor” ou “aquele que serve”), demostra a importância do problema para os primeiros cristãos (Atos 6: 1 a 5). A função dos diáconos era administrar as doações da comunidade cristã, para suprir as necessidades de órfãos e viúvas, pessoas doentes e desvalidas. A motivação da caridade cristã levou muitas pessoas, durante a Idade Média, a se dedicarem exclusivamente a essa tarefa, criando ordens religiosas dedicadas ao cuidado de mulheres, idosos, deficientes e crianças desamparadas, que se abrigavam em conventos e monastérios, em busca de amparo e assistência à saúde. Porém, a assistência médica ocidental era permeada de religiosidade e misticismo. O hospital não exercia a função que tem atualmente. Por muito tempo, na Europa, o hospital foi considerado um lugar para que mendigos e pobres pudessem morrer com dignidade, recebendo os sacramentos religiosos. Eram administrados por ordens religiosas, cuja prioridade era a salvação da alma através da administração dos sacramentos. O hospital também servia como instrumento legal para o cumprimento de pena para mulheres que eram acusadas de prostituição, ou que eram consideradas rebeldes por seus pais. A partir do século XIII, os hospitais começam a mudar de administração e de objetivos. A sua gestão é transferida para o município, embora as ordens religiosas continuassem cuidando dos doentes. O número de hospitais aumentou significativamente, assim como os chamados leprosários, cuidados e atendidos pelas ordens religiosas, com assistência aos pobres, que desde então foram chamados de indigentes. Os países europeus, da Idade Média até o período do Iluminismo, não tinham programas de amparo estruturado aos pobres. Porém, foi ao longo desse período que ações importantes foram sendo estruturadas, de modo a visão de assistência à saúde e cuidado com os necessitados foi sendo aos poucos modificada. É importante ressaltar que há registros de época de ações de uma saúde pública incipiente, com a organização de uma estrutura administrativa para a prevenção de enfermidades e a supervisão sanitária, com o objetivo de proteger a saúde comunitária. A atuação acontecia na forma de conselhos, formados por cidadãos ilustres das cidades, chamados na Inglaterra de vereadores. Esse conselho administrava a cidade, cuidando de suas finanças, além de áreas como 8 abastecimento, supervisão de obras públicas e saúde e bem-estar, por meio de subcomitês que organizavam ações como limpeza das ruas e supervisão dos mercados de alimentos. O cuidado das pessoas, no entanto, ainda estava fora da jurisdição oficial. 3.2 Abrigamento religioso às crianças Na época, os índices de mortalidade infantil eram imensos, e o infanticídio não era considerado um crime propriamente dito, apena um pecado (Nascimento, 2008). Essa concepção de pecado com relação às crianças levou a Europa, sobretudo os países de tradição católica, como Portugal, Itália e Espanha, ao desenvolvimento de ações caritativas de amparo às crianças, que perduraram até o século XIX. Entre essas ações, está a oficialização da “roda dos enjeitados” nos conventos. Inicialmente, a roda servia para receber doações. As pessoas depositavam donativos às freiras enclausuradas e tocavam o sino. A irmã encarregada da roda a girava e recebia as dádivas. Posteriormente, o sino passou a ser tocado para receber os bebês enjeitados por diversos motivos, como extrema pobreza dos pais, orfandade, proteção da honra, crianças que eram fruto de relacionamentos ilícitos, bastardos de homens casados e até crianças com alterações genéticas ou deficiências. A roda era uma opção generosa, quando consideramos a outra opção, que seria abandonar a criança em monturos, nas florestas, onde eram devoradas por animais, ou então vendidas a traficantes piratas para as mais diversas finalidades de exploração e crueldade. O Brasil assume o modelo português de assistência aos enjeitados ainda em seu papel de colônia. A historiadora pernambucana Alcileide Nascimento (2008) relata que a principal motivação do acolhimento às crianças enjeitadas era a aplicação do sacramento de batismo aos pequenos, os quais, quando abandonados para morrer ao léu, à beira de rios, monturos e florestas, não recebiam o sacramento e assim não teriam salvação para as suas almas. Ela relata que algumas crianças deixadas na roda levavam bilhetes requisitando que o bebê fosse batizado. A primeira casa dos enjeitados no Brasil é registrada em Salvador – BA, em1726. Depois, o Brasil ainda teria mais 14 casas nesse mesmo intento, que foram encerradas com as mudanças de paradigmas sociais e de assistência aos 9 desamparados. A última a encerrar as suas atividades foi a de São Paulo, em 1950. Apesar do estigma representado pelo abandono, a roda dos enjeitados, ou dos expostos, como também era conhecida, foi a primeira forma de proteção à criança abandonada. Era uma iniciativa de motivação religiosa, posteriormente com apoio oficial institucional – ainda que, em seu vínculo e sustento, fosse uma obra de caridade. O abrigamento, apesar de benéfico, não impedia a morte maciça dessas crianças até um ano de idade, fosse por dificuldades nos cuidados, por conta do elevado número de crianças para um número pequeno de irmãs de caridade cuidadoras, pela fragilidade ligada às doenças, ou pela dificuldade de encontrar amas de leite para os recém-nascidos. Os pequenos eram alimentados com leite de outros animais, mas a falta de cuidados de higiene, pois não se conhecia a ideia de esterilização do leite, levava os bebês à morte por infecções intestinais. Doenças como a sífilis congênita não eram tratadas. Havia ainda outras doenças infecciosas epidêmicas, como o sarampo, que assolavam as crianças. Em resumo, mesmo com boa vontade e caridade, havia a necessidade de maior envolvimento social e planejamento no cuidado com essas crianças. Na verdade, era necessária uma ação por parte do Estado em uma questão tão grave. Nesse momento histórico, o iluminismo fornece o conteúdo racional necessário à mudança de paradigma quanto ao cuidado e suas consequências sociais e econômicas. TEMA 4 – CUIDADO POR INTERESSES ECONÔMICOS Os custos com ações de saúde pública são geralmente entendidos como gastos, como despesas, porque não se nota imediatamente o retorno dos investimentos feitos. Para que ocorra uma mudança, da visão de gasto para a visão de investimento, é necessária uma consideração mais ampla do conjunto social coletivo e de seus desdobramentos na economia do país, considerando a segurança de todos e o seu desenvolvimento. Temos respostas a longo prazo, com investimentos em setores como saúde, educação e assistência social, a partir de políticas públicas integradas e contínuas. Os países considerados de maior desenvolvimento econômico e social caminharam nessa direção a partir do século XVII. 10 4.1 Desenvolvimento econômico e saúde da população A partir do século XVII, os principais países da Europa adotaram, gradativamente, mudanças em sua forma de cuidar da saúde das pessoas. Foi assim que Inglaterra, Alemanha e França implementaram cuidados sociais e de saúde à população, estabelecendo leis que legitimaram essas ações. Na base dessa mudança de visão, estava um conjunto de doutrinas políticas e econômicas, capazes de aumentar o poder do Estado e de seus dirigentes, soberanos e líderes – o que coincide, não por acaso, com o desenvolvimento da indústria nesses países. Tais doutrinas ficaram conhecidas como mercantilismo, cujo principal objetivo era garantir poder e lucro. Naquele momento, uma pergunta estava sendo feita pelos monarcas e soberanos das nações que mais se desenvolviam no mundo: Que rumo o governo deve seguir para aumentar o poder e a riqueza da nação? A resposta imediata era ter uma população grande para fazer frente a uma mão de obra de qualidade. Nesse caso, há que se cuidar da saúde da população e guiar o povo para que seja usado para os interesses do Estado. Nesse intuito, metodologias estatísticas se desenvolveram, tendo sido aplicadas nas análises dos problemas de saúde. Tais análises estimularam o desenvolvimento de estudos de saúde pública. A ideia de uma política nacional de saúde desenvolveu-se na Inglaterra, mobilizando diversos setores e envolvendo, além de médicos, legisladores, homens de negócios, matemáticos e estatísticos, com o objetivo comum de cuidar da população, para que, usufruindo de boa saúde, ela pudesse ser cada vez mais produtiva, desde o chão da fábrica até os grandes pensadores. Muda-se o foco: do cuidado caritativo para o foco de desenvolvimento econômico. 4.2 Rudimentos das políticas de saúde e assistência social Entende-se que é muito mais lucrativo cuidar da criança para que ela não morra, para que se desenvolva de forma saudável, e também para que sirva à pátria em várias frentes, seja no exército ou na produção industrial. Busca-se promover formação e ofício profissional aos pequenos, prática que implica lucro no futuro e desenvolvimento para a nação. Na mesma linha, entende-se que era melhor garantir condições para que a mulher pobre pudesse cuidar do seu filho pequeno. Amamentar o filho pelo tempo necessário, até que ficasse forte o suficiente para resistir às doenças, não tendo que abandoná-lo por falta de 11 recursos, era mais vantajoso e lucrativo para a nação. Surgem assim os rudimentos das leis de amparo à maternidade e à criança. A infância não era entendida como uma fase especial de desenvolvimento humano. As crianças pobres eram abandonadas dentro de suas próprias casas, por conta da falta de alternativas por parte das famílias. Muitas vezes, elas tinham de se submeter a trabalhos pesados e insalubres desde cedo. Por outro lado, as famílias ricas deixavam os seus filhos sob os cuidados dos serviçais. Pela ausência dos pais em sua educação direta, estavam sendo corrompidas em sua formação ética e moral. Por conta dessas realidades, foram desenvolvidas ações no sentido de proteger a criança, para que ela conseguisse sobreviver, com a preservação de seu caráter e um desenvolvimento ético adequado. Nesse momento, surgem novos entendimentos do significado de infância. A criança começa a ser compreendida de forma diferente do adulto, nos aspectos emocional e biológico. As suas necessidades emocionais, tanto quanto a sua fragilidade biológica, são consideradas como peculiares, e assim um novo sistema de proteção social começa a ser construído dentro das famílias, considerando as orientações médicas vigentes. Surge, no século XVIII, a especialidade médica chamada de pediatria. Ao mesmo tempo, cresce o poder do médico nas decisões da mãe, como também as práticas de proteção à saúde. A organização de programas de assistência às mulheres nutrizes e a ajuda financeira aos conventos e hospitais que abrigavam as crianças foram algumas das ações implementadas pelos governantes nesse período. Outro fator importante para o desenvolvimento dos cuidados em saúde foi a melhoria dos hospitais. No entanto, o motivo para isso não foi tão nobre. Em sua busca pelo poder, os governantes iniciavam guerras, investindo massivamente nas tecnologias disponíveis. Naquela época, o desenvolvimento das armas de fogo significava investimento no soldado treinado, para que fosse capaz de utilizá- las. Para o poder e a liderança de uma nação fossem reconhecidos, era necessário formar um grande e poderoso exército. Por isso, quando um soldado era ferido, deveria ser curado para retornar ao front de guerra. Perdê-lo seria perder um investimento. Cuidar dos órfãos, para que crescessem e servissem à pátria, a sua mãe cuidadora, compondo mais tarde os pelotões da infantaria, era a garantia de um exército numeroso e poderoso. Para isso, era essencial evitar que as crianças morressem precocemente. Os órfãos eram conhecidos como “filhos da pátria”. 12 Assim, poderiam manifestar a sua gratidão cumprindo seus deveres militares. O pelotão de frente, a infantaria, era formado pelos infantes órfãos ou abandonados, que tinham o dever de devolver, à mãe pátria, os cuidados dela recebidos. Nessa lógica, diferentes iniciativas e empreendimentos ganharam destaque na Inglaterra. Em 1741, é criado o Hospital dos Enjeitados de Londres. Em 1748, publicou-se o “Ensaio sobre amamentação e manejo de crianças”. Cidadãosfilantropos influentes, como Jonas Hanway, trabalharam em defesa da causa das crianças pobres. Na França, em 1793, foi sancionado um decreto relacionado à saúde das crianças e das mulheres grávidas. Como vimos, os interesses econômicos e de poder se sobrepujam aos interesses humanitários. Porém, o conjunto das visões de cuidado, além das dimensões humanitária (religiosa), social e econômica, com rudimentos na Idade Média, desenvolveu-se no período do Iluminismo, tornando-se a base da estrutura moderna de atenção à saúde, com uma visão prática das políticas públicas de saúde e de seus benefícios à sociedade. TEMA 5 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NA CONTEMPORANEIDADE Em seu livro Uma história da Saúde Pública, George Rosen (2006, p. 31), médico americano nascido em 1910, analisa os principais componentes que fundamentaram as políticas públicas de saúde da contemporaneidade: Ao longo da história humana, os maiores problemas de saúde que os homens enfrentaram sempre estiveram relacionados com a natureza da vida em comunidade. Por exemplo, o controle das doenças transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), a provisão de água e comida puras, em volume suficiente, a assistência médica, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada um desses problemas variou no tempo, e de sua inter-relação se originou a Saúde Pública como a conhecemos hoje. Como observamos no análise de Rosen, existem ações que se integram para a adequação do homem ao espaço/meio ambiente em que vive. Dentro dessa estruturação, mesmo com as condições ambientais adequadas, há que se cuidar dos desamparados, com o objetivo de levá-los ao desenvolvimento e à autonomia social. 5.1 Contexto brasileiro de vulnerabilidade social Analisando a realidade de hoje no Brasil, sobretudo nas grandes metrópoles, vemos que as comunidades que se formaram nas periferias das 13 grandes cidades surgiram de forma desordenada, com ocupações irregulares. Não se levava em consideração o risco ambiental a que estavam submetidas, além dos riscos sanitário, ecológico e de infraestrutura. Muitas construções eram precárias, em barrancos que desmoronam com as chuvas, matando as pessoas, principalmente as crianças. Nesse contexto, famílias ocupavam prédios condenados nos centros das cidades. Além disso, grupos habitavam espaços que funcionavam de forma independente da lei e da ordem, como acontece até hoje nas comunidades dos morros cariocas, antigamente conhecidas como favelas. A demora na estruturação da ação estatal, com políticas efetivas capazes de oferecer alternativas às pessoas, provocou o vazio assistencial e de políticas públicas capazes de subsidiar o cidadão e ampará-lo em suas escolhas. O produto dessas situações é o caos social, com a falência da lei e da ordem. Nessa situação, faz sentido o questionamento apresentado pela I Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, realizada pela OMS em 1986, no Canadá: Até onde o cidadão pode ser considerado responsável pela sua própria saúde? Considerando a responsabilidade dos governos na estruturação das políticas públicas, o que inclui as diversas frentes de condicionantes de saúde, como educação, apoio social, emprego, renda, moradia e a questão ambiental, podemos pensar nessa questão de forma mais abrangente em comparação às ações no nível individual, praticadas pelo cidadão, e também capazes de causar doenças. O cuidado com os mais frágeis está de acordo com os princípios que embasam o SUS, sobretudo o princípio de equidade. Dentro da estrutura pública, é importante identificar quem são os mais frágeis, e quais critérios devem ser usados para estabelecer o grau de vulnerabilidade de uma população. Dentre os critérios mais utilizados, temos: nível educacional, condições de moradia, famílias monoparentais, renda mensal por pessoa componente da família, além do número de crianças entre 0 e 5 anos de idade. 5.2 Ações de combate à pobreza no Brasil Os programas sociais de transferência de renda vêm sendo discutidos no Brasil e internacionalmente desde a década de 80. Os programas instituídos no Brasil compartilham pontos em comum, com o objetivo de juntar os setores mais 14 sensíveis do cuidado. Os primeiros programas reconhecidos como de distribuição de renda foram lançados em 2001, no governo do presidente Fernando Henrique, com o programa Bolsa Escola. Outros programas associados foram o Bolsa Alimentação e o Vale Gás. Como destaque estratégico desse período, temos o mapeamento das famílias através do cadastro único (cadÚnico), que garantiu a transferência direta de recursos para essas famílias, sem interferência política. Em 2004, no primeiro período do governo Lula, foi implantado o Bolsa Família. O programa Bolsa Família é reconhecido por cientistas sociais como o maior programa social de transferência de renda do Brasil nos últimos anos, com uma interface muito forte com a saúde. Foi concebido com o objetivo de atender duas finalidades básicas: “enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que é o de combater a miséria e a exclusão social; promover a emancipação das famílias mais pobres” (Marques; Mendes, 2005, p. 159). Completando essa análise, pesquisadores sociais identificam esses objetivos como “compensatórios”, no sentido de compensar a pobreza extrema das famílias. É importante ainda promover o acesso às políticas universais, de modo a oferecer condições de autonomização futura dessas famílias . De fato, o maior objetivo é garantir padrões mínimos de sobrevivência, retirando pessoas da pobreza extrema, associada à fome e a um entorno cruel, realidade que expõe as pessoas aos mais variados riscos. Em outubro de 2021, o programa Bolsa Família foi formalmente encerrado pelo governo Jair Bolsonaro, substituído pelo programa Renda Brasil, que utiliza a mesma plataforma de cadastro, com a promessa de ampliação, para atender a uma longa fila de famílias empobrecidas pela inflação e pelo desemprego pós-pandemia. As políticas públicas de saúde, tanto quanto as políticas públicas no âmbito social, devem ter como o seu maior objetivo o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos, o que significa que, apesar do objetivo de curto prazo (permitir a saída da condição de extrema pobreza, que imobiliza as pessoas, impedindo o seu processo de escolha), no longo prazo as políticas de transferência de renda devem promover a saída da situação de dependência, instigando a autonomia, através da compreensão do processo de amadurecimento social e do desenvolvimento ativo na massa produtiva do país. Para isso, o país precisa estabilizar o seu processo de crescimento econômico, com processos de geração de emprego e renda, além de um programa educacional efetivo, com amparo 15 social e condições gerais de saúde para a população. Após a consolidação desses componentes, as populações podem caminhar para uma vida saudável e feliz. NA PRÁTICA Érica é uma mulher de 25 anos, negra, moradora de um bairro de alta vulnerabilidade em Curitiba. Quando criança, foi criada pela avó, que é recicladora, porque a sua mãe a abandonou. Estudou apenas até o ensino fundamental e trabalhava como diarista. Casou-se aos 19 anos e teve a sua primeira filha aos 20, mas o casamento mostrou-se um relacionamento abusivo, com vários episódios de violência. Por conta dessa situação de risco, Érica se separou. Depois de ter movido uma ação contra o ex-marido, conseguiu uma pensão alimentícia para a filha pequena. Recentemente, Érica recebeu o diagnóstico de hipertireoidismo. Desenvolveu hipertensão e, há um ano, descobriu que estava novamente grávida, de um namoro recente. Foi uma gravidez de alto risco, e assim Érica não conseguiu manter as suas faxinas. Para piorar a situação, o seu ex-marido parou de pagar a pensão alimentícia. Érica fez o pré-natalna Unidade de Saúde. A sua filha está com todas as vacinas em dia, frequenta a escola e ganha uma cesta básica da escola, além de leite integral. Se Érica não estivesse vinculada ao programa Bolsa Família, não conseguiria sobreviver. FINALIZANDO Em nosso passeio histórico, vimos como as visões de cuidado se desenvolveram, mesmo em um mundo ainda desprovido de conhecimento científico. O foco do cuidado humanitário, expresso no dever religioso de amparo aos pobres e frágeis da sociedade, levou muitos abnegados cuidadores a renunciar o seu conforto pessoal, tomando conta de crianças desamparadas e rejeitadas. Ao mesmo tempo, a evolução do conceito de saúde comunitária e de proteção da saúde do grupo se desenvolvia, desde a Idade Média, com medidas sanitárias e sociais. Os interesses de poder econômico, no entanto, foram os fatores que mais impulsionaram o cuidado das pessoas, motivando o Estado a intervir, assumindo o seu papel de cuidador da população, para que todos tivesses saúde e boas 16 condições físicas de trabalho. Não se chega à idade adulta produtiva sem cuidados na infância, portanto “há que se cuidar do broto para que a vida nos dê flor e fruto” (canção “Coração de estudante”, de Milton Nascimento). Vimos que a sociedade deve eleger os mais vulneráveis e assumir, com eles, compromissos que se expressam através de programas de amparo social, mas que ao mesmo tempo sejam capazes de promover o desenvolvimento da independência e da autonomia. No Brasil, um importante programa de transferência de renda é o Bolsa Família, atualmente chamado de Auxílio Brasil. Vários dos seus objetivos estão concentrados em importantes indicadores de saúde, como vacinação e cuidados no pré-natal. 17 REFERÊNCIAS HÖFLING, E. Políticas (públicas) sociais. Cadernos CEDES, v. 21, n. 55, p. 30- 41, 2001. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-32622001000300003>. Acesso em: 3 jun. 2022. LUCCHESI, P. (Coord.) Informação para Tomadores de Decisão em Saúde Pública: Políticas Públicas em Saúde. São Paulo: Bireme/Opas/OMS, 2004. Disponível em <http://files.bvs.br/upload/M/2004/Lucchese_Politicas_publicas.pdf>. Acesso em: 3 jun. 2022. MARQUES, R.; MENDES, A. SUS e Seguridade Social: em busca do elo perdido. Saúde e Sociedade, v. 14, n. 2, p. 39-49, 2005. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0104-12902005000200005>. Acesso em: 3 jun. 2022. NASCIMENTO A. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a institucionalização da assistência às crianças abandonadas do Recife (1789- 1832). São Paulo: Annablume; FINEP, 2008. ROSEN G. Uma História da Saúde Pública. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. INTRODUÇÃO A evolução das Políticas Públicas de Saúde FINALIZANDO
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