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AULA 1 
POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE 
Profª Tania Maria Santos Pires 
 
 
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INTRODUÇÃO 
A evolução das Políticas Públicas de Saúde 
As políticas públicas existem para que as pessoas sejam beneficiadas e 
cuidadas. Portanto, para falar de políticas públicas de saúde, é fundamental 
estudar a origem do cuidado, as motivações para que ele acontecesse 
historicamente, e como a responsabilidade do cuidado se estabeleceu de forma 
oficial, tornando-se uma tarefa do Estado. 
Atualmente, o mundo vive uma onda de questionamentos sobre a 
responsabilidade do cuidado. Um dos motivos é o aumento das migrações de 
pessoas empobrecidas por guerras ou catástrofes, que buscam 
desesperadamente outros locais onde possam viver com um pouco mais de 
segurança. No Brasil, vivemos o drama dos venezuelanos, que chegam em ondas 
no estado de Roraima, onde esperam semanas, vivendo nas ruas, até 
conseguirem autorização para se estabelecerem. A Itália, por exemplo, combate 
a migração ilegal de centenas de africanos que tentam chegar ao continente 
Europeu através do mar, em barcas que colocam as suas vidas em risco. 
As sociedades se manifestam de diversas maneiras sobre o tema, ora 
acolhendo, ora rejeitando os refugiados, porque o cuidado com os vulneráveis 
impõe custos financeiros, consumo de serviços públicos e organização de 
políticas públicas, agravando situações pré-existentes ainda sem solução, como 
acesso a emprego e a outros serviços públicos. 
Além disso, o desequilíbrio econômico causado pela instabilidade política 
e pelas guerras impulsiona a pobreza, afinal impede as pessoas de comprar 
alimentos, encarecendo o consumo essencial e aumentando a vulnerabilidade de 
inúmeras famílias no Brasil e em outros países pobres. A situação de guerra na 
Europa, deflagrada em 21 de fevereiro de 2022, evidencia essa realidade, pois 
repercute de diferentes formas no mundo inteiro. 
Diante desses dramas sociais, repetimos a pergunta que vem sendo feita 
desde os primórdios da organização social: De quem é a tarefa de cuidar? Essa 
reflexão nos levará a uma melhor compreensão das prioridades estabelecidas 
pelos governos, considerando um cuidado mais bem executado e mais justo. 
 
 
 
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TEMA 1 – O CUIDADO COM OS MAIS FRÁGEIS E VULNERÁVEIS 
Para a subsistência do mais rudimentar agrupamento social, existe 
necessidade de implementar ações positivas de interesse comum. Tais ações 
precisam ser organizadas na forma de projetos, amparadas por legislação, 
sempre ao encontro das necessidades daquele grupo social ou população-alvo, 
promovendo cuidado e desenvolvimento. A esse conjunto de planos e ações 
voltadas ao interesse público chamamos de políticas públicas. 
1.1 O que são políticas públicas de saúde? 
Políticas públicas “podem ser definidas como conjuntos de disposições, 
medidas e procedimentos que traduzem a orientação política do Estado e regulam 
as atividades governamentais relacionadas às tarefas de interesse público” 
(Lucchesi, 2004, p. 3). São consideradas de responsabilidade do Estado, que se 
incumbe dos processos de tomada de decisão, implementação e manutenção da 
ação, envolvendo órgãos públicos e diferentes organismos e agentes da 
sociedade relacionados às políticas implementadas (Höfling, 2001). 
As políticas públicas de saúde fazem parte do campo de ação do Estado, 
que tem a responsabilidade de planejar, implementar e executar ações de saúde, 
nos seus diversos níveis de gestão, para a melhoria das condições de saúde da 
população. Elas consistem “em organizar as funções públicas governamentais 
para a promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e da 
coletividade” (Lucchesi, 2004, p. 3). 
Os temas e conteúdos das políticas públicas costumam variar de acordo 
com as características de um povo e sua cultura, porém existem temas 
inquestionáveis, por serem necessidades básicas de todos os povos. As temáticas 
de saúde e amparo social são exemplos claros de temas irrefutáveis nas agendas 
de gestão pública da atualidade. No entanto, a compreensão de que as 
necessidades de saúde e cuidado são direitos humanos acima de outros 
interesses, e de que a preservação da vida é de interesse público, o mesmo 
valendo para a esfera individual, demorou para se consolidar ao longo da 
estruturação das sociedades até os dias de hoje. 
No contexto do cuidado, diversos setores estão ligados por interfaces e 
ações comuns, com objetivos confluentes. Tal confluência de interesses pode ser 
facilmente observada nas interfaces dos setores de saúde, educação, 
 
 
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infraestrutura, ação social, moradia, emprego e renda. Não é por acaso que as 
populações com o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são as que 
apresentam melhores indicadores em saúde. Por outro lado, os piores indicadores 
coincidem com aquelas que apresentam o pior IDH. 
1.2 Determinantes sociais de saúde 
A relação entre desenvolvimento econômico e qualidade de vida e saúde 
está na base da elaboração dos estudos de determinantes sociais de saúde. 
A definição de Determinantes Sociais de Saúde (DSS), segundo a 
comissão nacional que estuda o tema, implica a existência de fatores sociais, 
econômicos, culturais, étnicos, raciais, psicológicos e comportamentais, que 
influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na 
população. 
Os estudos internacionais demonstram que os fatores DSS são mais 
impactantes na formação do contexto de saúde e doença do que os determinantes 
biológicos e hereditários que são passados em cada geração, inclusive com 
impacto na qualidade de vida. 
As ações em conjunto desses diversos setores potencializam-se 
mutuamente, gerando qualidade de vida e desenvolvimento econômico e social. 
No entanto, nem sempre foi assim, e ainda precisamos caminhar muito até 
alcançar a meta da justiça social, cujo maior objetivo é diminuir as desigualdades, 
gerando equilíbrio e oportunidades para todos. 
TEMA 2 – VULNERABILIDADE E RISCO EM SAÚDE 
1) As políticas públicas de saúde estão embasadas na equidade. Isso 
significa a aplicação de discriminação positiva, com priorização dos mais frágeis 
e necessitados. A Lei n. 8.080, conhecida como lei Orgânica da Saúde, traz a 
equidade como um dos princípios do SUS, com a missão legal de destacar 
aqueles que mais precisam de assistência à saúde. Chamamos a equidade de 
justiça justa. 
2) Entre todos os que necessitam de atenção, existem aqueles que são 
mais frágeis e devem ser priorizados. As equipes de saúde aprendem a fazer a 
seleção de risco com base em critérios clínicos, em situações de urgência e 
emergência. No entanto, o reconhecimento de outros componentes de risco torna 
 
 
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a abordagem em saúde mais qualificada, pela necessidade de reconhecer o 
contexto social e as condições de vida em sua influência direta na produção de 
saúde e doença. Para entender com clareza do que estamos falando, é oportuno 
entender o conceito de vulnerabilidade e risco, apesar do uso muito frequente dos 
dois termos com o mesmo sentido. 
2.1 Entendendo os conceitos 
3) Entende-se que a vulnerabilidade é a situação de exposição de 
pessoas, famílias e comunidades, às condições sociais, econômicas e 
psicológicas inapropriadas ao seu desenvolvimento. Tais condições fragilizam as 
famílias, aumentando o risco. Sendo assim, o risco é a possibilidade da ocorrência 
de desfechos graves que afetam as famílias em várias dimensões da sua vida. 
4) Pessoas, famílias e comunidades que vivem na pobreza, em 
moradias precárias, sem acesso a infraestrutura ambiental, como esgoto, energia 
elétrica, asfalto e água tratada, expostas a situações de violência e com pouca 
escolaridade, estão em condições de elevada vulnerabilidade, com alto risco de 
doenças diversas, além de criminalidade, abandono de incapaz, aborto e morte 
precoce. 
5) A vulnerabilidade dessas populações expressa-se de diversas 
formas, com diferentes origens. Emnosso país, um viés muito importante está 
ligado às pessoas afrodescendentes e às populações indígenas. O histórico de 
escravidão em nosso país, primeiro da população indígena e posteriormente dos 
negros, deixou um rastro de pobreza e indigência que se reflete em nossos dias 
no desamparo social e na falta de perspectivas dessas populações. 
6) Estudos mostram que a população que se declara negra constitui 
45% da população brasileira, porém são 65% de pobres e 70% de extremamente 
pobres, o que também se evidencia proporcionalmente em baixa escolaridade e 
outros indicadores sociais. 
7) Juntando esses fatores de vulnerabilidades a outros componentes, 
como a realidade da mulher, o risco aumenta de forma considerável para 
transtornos mentais, como depressão e exposição à violência de gênero. Estudos 
mostram que a população negra tem expectativa de vida menor do que a 
população em geral. Por conta disso, é preciso desenvolver políticas públicas 
específicas para atender esse segmento. 
 
 
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2.2 Vulnerabilidade e resiliência 
8) Resiliência é a capacidade de indivíduos e famílias de reagirem 
positivamente a fatores estressores externos, com retorno ao funcionamento 
normal após um período de dificuldades. De forma mais clara, significa “dar a volta 
por cima”, “transformar o limão na limonada”. Sabemos que todas as famílias e 
indivíduos passam por períodos de dificuldades, sendo obrigados a reagir. 
Estudos mostram que famílias em grande vulnerabilidade são afetadas em sua 
capacidade de reação diante dos problemas, com grande risco de 
desestruturação e rompimento de ligações. 
9) Diante disso, cabe à sociedade cuidar dos mais vulneráveis, no 
intuito de diminuir o risco para essas pessoas e famílias – as quais, na maioria 
das vezes, de acordo com a sua estratificação de vulnerabilidade, estão tão 
fragilizadas que não conseguem superar essa condição sozinhas. 
TEMA 3 – CARIDADE CRISTÃ COMO MOTIVAÇÃO PARA O CUIDADO 
10) No decorrer da história, o sentimento de responsabilidade com os 
necessitados esteve associado à religiosidade. Com o estabelecimento do 
cristianismo como religião oficial do ocidente, essa responsabilidade se 
concretizou através das ordens religiosas, que criaram, sustentaram e cuidaram 
de hospitais e asilos. Padres e freiras eram treinados para prestar cuidados aos 
doentes, que chegavam diariamente aos mosteiros e seus complexos hospitalares 
em busca de assistência à saúde e conforto religioso. 
11) Esse legado viria a ser, mais tarde, de grande importância para o 
desenvolvimento de práticas médicas e hospitalares, que transformariam o 
hospital em um espaço tecnológico e científico, levando à criação das primeiras 
escolas médicas e de enfermagem da Europa. 
3.1 Impacto da beneficência sobre a saúde 
As motivações religiosas para o cuidado fazem parte da cultura judaico-
cristã ocidental. Há várias referências bíblicas sobre o dever de cuidar dos órfãos, 
das viúvas e dos demais necessitados, do pentateuco ao Novo Testamento. O 
cristianismo trouxe, como dever cristão, a ação de amparar os necessitados, 
desde os primórdios da Igreja, no século I, o que fica evidente no livro de Atos dos 
Apóstolos, que descreve o trabalho de pessoas especialmente designadas para 
 
 
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cuidar da assistência aos vulneráveis. A instituição do diaconato, com a 
designação de diáconos (palavra grega que significa “servidor” ou “aquele que 
serve”), demostra a importância do problema para os primeiros cristãos (Atos 6: 1 
a 5). A função dos diáconos era administrar as doações da comunidade cristã, 
para suprir as necessidades de órfãos e viúvas, pessoas doentes e desvalidas. 
A motivação da caridade cristã levou muitas pessoas, durante a Idade 
Média, a se dedicarem exclusivamente a essa tarefa, criando ordens religiosas 
dedicadas ao cuidado de mulheres, idosos, deficientes e crianças desamparadas, 
que se abrigavam em conventos e monastérios, em busca de amparo e 
assistência à saúde. Porém, a assistência médica ocidental era permeada de 
religiosidade e misticismo. 
O hospital não exercia a função que tem atualmente. Por muito tempo, na 
Europa, o hospital foi considerado um lugar para que mendigos e pobres 
pudessem morrer com dignidade, recebendo os sacramentos religiosos. Eram 
administrados por ordens religiosas, cuja prioridade era a salvação da alma 
através da administração dos sacramentos. O hospital também servia como 
instrumento legal para o cumprimento de pena para mulheres que eram acusadas 
de prostituição, ou que eram consideradas rebeldes por seus pais. 
A partir do século XIII, os hospitais começam a mudar de administração e 
de objetivos. A sua gestão é transferida para o município, embora as ordens 
religiosas continuassem cuidando dos doentes. O número de hospitais aumentou 
significativamente, assim como os chamados leprosários, cuidados e atendidos 
pelas ordens religiosas, com assistência aos pobres, que desde então foram 
chamados de indigentes. 
Os países europeus, da Idade Média até o período do Iluminismo, não 
tinham programas de amparo estruturado aos pobres. Porém, foi ao longo desse 
período que ações importantes foram sendo estruturadas, de modo a visão de 
assistência à saúde e cuidado com os necessitados foi sendo aos poucos 
modificada. 
É importante ressaltar que há registros de época de ações de uma saúde 
pública incipiente, com a organização de uma estrutura administrativa para a 
prevenção de enfermidades e a supervisão sanitária, com o objetivo de proteger 
a saúde comunitária. A atuação acontecia na forma de conselhos, formados por 
cidadãos ilustres das cidades, chamados na Inglaterra de vereadores. Esse 
conselho administrava a cidade, cuidando de suas finanças, além de áreas como 
 
 
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abastecimento, supervisão de obras públicas e saúde e bem-estar, por meio de 
subcomitês que organizavam ações como limpeza das ruas e supervisão dos 
mercados de alimentos. O cuidado das pessoas, no entanto, ainda estava fora da 
jurisdição oficial. 
3.2 Abrigamento religioso às crianças 
Na época, os índices de mortalidade infantil eram imensos, e o infanticídio 
não era considerado um crime propriamente dito, apena um pecado (Nascimento, 
2008). Essa concepção de pecado com relação às crianças levou a Europa, 
sobretudo os países de tradição católica, como Portugal, Itália e Espanha, ao 
desenvolvimento de ações caritativas de amparo às crianças, que perduraram até 
o século XIX. Entre essas ações, está a oficialização da “roda dos enjeitados” nos 
conventos. 
Inicialmente, a roda servia para receber doações. As pessoas depositavam 
donativos às freiras enclausuradas e tocavam o sino. A irmã encarregada da roda 
a girava e recebia as dádivas. Posteriormente, o sino passou a ser tocado para 
receber os bebês enjeitados por diversos motivos, como extrema pobreza dos 
pais, orfandade, proteção da honra, crianças que eram fruto de relacionamentos 
ilícitos, bastardos de homens casados e até crianças com alterações genéticas ou 
deficiências. 
A roda era uma opção generosa, quando consideramos a outra opção, que 
seria abandonar a criança em monturos, nas florestas, onde eram devoradas por 
animais, ou então vendidas a traficantes piratas para as mais diversas finalidades 
de exploração e crueldade. 
O Brasil assume o modelo português de assistência aos enjeitados ainda 
em seu papel de colônia. A historiadora pernambucana Alcileide Nascimento 
(2008) relata que a principal motivação do acolhimento às crianças enjeitadas era 
a aplicação do sacramento de batismo aos pequenos, os quais, quando 
abandonados para morrer ao léu, à beira de rios, monturos e florestas, não 
recebiam o sacramento e assim não teriam salvação para as suas almas. Ela 
relata que algumas crianças deixadas na roda levavam bilhetes requisitando que 
o bebê fosse batizado. 
A primeira casa dos enjeitados no Brasil é registrada em Salvador – BA, 
em1726. Depois, o Brasil ainda teria mais 14 casas nesse mesmo intento, que 
foram encerradas com as mudanças de paradigmas sociais e de assistência aos 
 
 
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desamparados. A última a encerrar as suas atividades foi a de São Paulo, em 
1950. 
Apesar do estigma representado pelo abandono, a roda dos enjeitados, ou 
dos expostos, como também era conhecida, foi a primeira forma de proteção à 
criança abandonada. Era uma iniciativa de motivação religiosa, posteriormente 
com apoio oficial institucional – ainda que, em seu vínculo e sustento, fosse uma 
obra de caridade. 
O abrigamento, apesar de benéfico, não impedia a morte maciça dessas 
crianças até um ano de idade, fosse por dificuldades nos cuidados, por conta do 
elevado número de crianças para um número pequeno de irmãs de caridade 
cuidadoras, pela fragilidade ligada às doenças, ou pela dificuldade de encontrar 
amas de leite para os recém-nascidos. Os pequenos eram alimentados com leite 
de outros animais, mas a falta de cuidados de higiene, pois não se conhecia a 
ideia de esterilização do leite, levava os bebês à morte por infecções intestinais. 
Doenças como a sífilis congênita não eram tratadas. Havia ainda outras doenças 
infecciosas epidêmicas, como o sarampo, que assolavam as crianças. 
Em resumo, mesmo com boa vontade e caridade, havia a necessidade de 
maior envolvimento social e planejamento no cuidado com essas crianças. Na 
verdade, era necessária uma ação por parte do Estado em uma questão tão grave. 
Nesse momento histórico, o iluminismo fornece o conteúdo racional necessário à 
mudança de paradigma quanto ao cuidado e suas consequências sociais e 
econômicas. 
TEMA 4 – CUIDADO POR INTERESSES ECONÔMICOS 
Os custos com ações de saúde pública são geralmente entendidos como 
gastos, como despesas, porque não se nota imediatamente o retorno dos 
investimentos feitos. Para que ocorra uma mudança, da visão de gasto para a 
visão de investimento, é necessária uma consideração mais ampla do conjunto 
social coletivo e de seus desdobramentos na economia do país, considerando a 
segurança de todos e o seu desenvolvimento. Temos respostas a longo prazo, 
com investimentos em setores como saúde, educação e assistência social, a partir 
de políticas públicas integradas e contínuas. Os países considerados de maior 
desenvolvimento econômico e social caminharam nessa direção a partir do século 
XVII. 
 
 
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4.1 Desenvolvimento econômico e saúde da população 
A partir do século XVII, os principais países da Europa adotaram, 
gradativamente, mudanças em sua forma de cuidar da saúde das pessoas. Foi 
assim que Inglaterra, Alemanha e França implementaram cuidados sociais e de 
saúde à população, estabelecendo leis que legitimaram essas ações. 
Na base dessa mudança de visão, estava um conjunto de doutrinas 
políticas e econômicas, capazes de aumentar o poder do Estado e de seus 
dirigentes, soberanos e líderes – o que coincide, não por acaso, com o 
desenvolvimento da indústria nesses países. Tais doutrinas ficaram conhecidas 
como mercantilismo, cujo principal objetivo era garantir poder e lucro. 
Naquele momento, uma pergunta estava sendo feita pelos monarcas e 
soberanos das nações que mais se desenvolviam no mundo: Que rumo o governo 
deve seguir para aumentar o poder e a riqueza da nação? A resposta imediata 
era ter uma população grande para fazer frente a uma mão de obra de qualidade. 
Nesse caso, há que se cuidar da saúde da população e guiar o povo para que 
seja usado para os interesses do Estado. Nesse intuito, metodologias estatísticas 
se desenvolveram, tendo sido aplicadas nas análises dos problemas de saúde. 
Tais análises estimularam o desenvolvimento de estudos de saúde pública. 
A ideia de uma política nacional de saúde desenvolveu-se na Inglaterra, 
mobilizando diversos setores e envolvendo, além de médicos, legisladores, 
homens de negócios, matemáticos e estatísticos, com o objetivo comum de cuidar 
da população, para que, usufruindo de boa saúde, ela pudesse ser cada vez mais 
produtiva, desde o chão da fábrica até os grandes pensadores. Muda-se o foco: 
do cuidado caritativo para o foco de desenvolvimento econômico. 
4.2 Rudimentos das políticas de saúde e assistência social 
Entende-se que é muito mais lucrativo cuidar da criança para que ela não 
morra, para que se desenvolva de forma saudável, e também para que sirva à 
pátria em várias frentes, seja no exército ou na produção industrial. Busca-se 
promover formação e ofício profissional aos pequenos, prática que implica lucro 
no futuro e desenvolvimento para a nação. Na mesma linha, entende-se que era 
melhor garantir condições para que a mulher pobre pudesse cuidar do seu filho 
pequeno. Amamentar o filho pelo tempo necessário, até que ficasse forte o 
suficiente para resistir às doenças, não tendo que abandoná-lo por falta de 
 
 
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recursos, era mais vantajoso e lucrativo para a nação. Surgem assim os 
rudimentos das leis de amparo à maternidade e à criança. 
A infância não era entendida como uma fase especial de desenvolvimento 
humano. As crianças pobres eram abandonadas dentro de suas próprias casas, 
por conta da falta de alternativas por parte das famílias. Muitas vezes, elas tinham 
de se submeter a trabalhos pesados e insalubres desde cedo. Por outro lado, as 
famílias ricas deixavam os seus filhos sob os cuidados dos serviçais. Pela 
ausência dos pais em sua educação direta, estavam sendo corrompidas em sua 
formação ética e moral. Por conta dessas realidades, foram desenvolvidas ações 
no sentido de proteger a criança, para que ela conseguisse sobreviver, com a 
preservação de seu caráter e um desenvolvimento ético adequado. 
Nesse momento, surgem novos entendimentos do significado de infância. 
A criança começa a ser compreendida de forma diferente do adulto, nos aspectos 
emocional e biológico. As suas necessidades emocionais, tanto quanto a sua 
fragilidade biológica, são consideradas como peculiares, e assim um novo sistema 
de proteção social começa a ser construído dentro das famílias, considerando as 
orientações médicas vigentes. Surge, no século XVIII, a especialidade médica 
chamada de pediatria. Ao mesmo tempo, cresce o poder do médico nas decisões 
da mãe, como também as práticas de proteção à saúde. 
A organização de programas de assistência às mulheres nutrizes e a ajuda 
financeira aos conventos e hospitais que abrigavam as crianças foram algumas 
das ações implementadas pelos governantes nesse período. 
Outro fator importante para o desenvolvimento dos cuidados em saúde foi 
a melhoria dos hospitais. No entanto, o motivo para isso não foi tão nobre. Em sua 
busca pelo poder, os governantes iniciavam guerras, investindo massivamente 
nas tecnologias disponíveis. Naquela época, o desenvolvimento das armas de 
fogo significava investimento no soldado treinado, para que fosse capaz de utilizá-
las. Para o poder e a liderança de uma nação fossem reconhecidos, era 
necessário formar um grande e poderoso exército. Por isso, quando um soldado 
era ferido, deveria ser curado para retornar ao front de guerra. Perdê-lo seria 
perder um investimento. 
Cuidar dos órfãos, para que crescessem e servissem à pátria, a sua mãe 
cuidadora, compondo mais tarde os pelotões da infantaria, era a garantia de um 
exército numeroso e poderoso. Para isso, era essencial evitar que as crianças 
morressem precocemente. Os órfãos eram conhecidos como “filhos da pátria”. 
 
 
12 
Assim, poderiam manifestar a sua gratidão cumprindo seus deveres militares. O 
pelotão de frente, a infantaria, era formado pelos infantes órfãos ou abandonados, 
que tinham o dever de devolver, à mãe pátria, os cuidados dela recebidos. 
Nessa lógica, diferentes iniciativas e empreendimentos ganharam 
destaque na Inglaterra. Em 1741, é criado o Hospital dos Enjeitados de Londres. 
Em 1748, publicou-se o “Ensaio sobre amamentação e manejo de crianças”. 
Cidadãosfilantropos influentes, como Jonas Hanway, trabalharam em defesa da 
causa das crianças pobres. Na França, em 1793, foi sancionado um decreto 
relacionado à saúde das crianças e das mulheres grávidas. 
Como vimos, os interesses econômicos e de poder se sobrepujam aos 
interesses humanitários. Porém, o conjunto das visões de cuidado, além das 
dimensões humanitária (religiosa), social e econômica, com rudimentos na Idade 
Média, desenvolveu-se no período do Iluminismo, tornando-se a base da estrutura 
moderna de atenção à saúde, com uma visão prática das políticas públicas de 
saúde e de seus benefícios à sociedade. 
TEMA 5 – POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NA CONTEMPORANEIDADE 
Em seu livro Uma história da Saúde Pública, George Rosen (2006, p. 31), 
médico americano nascido em 1910, analisa os principais componentes que 
fundamentaram as políticas públicas de saúde da contemporaneidade: 
Ao longo da história humana, os maiores problemas de saúde que os 
homens enfrentaram sempre estiveram relacionados com a natureza da 
vida em comunidade. Por exemplo, o controle das doenças 
transmissíveis, o controle e a melhoria do ambiente físico (saneamento), 
a provisão de água e comida puras, em volume suficiente, a assistência 
médica, e o alívio da incapacidade e do desamparo. A ênfase sobre cada 
um desses problemas variou no tempo, e de sua inter-relação se originou 
a Saúde Pública como a conhecemos hoje. 
Como observamos no análise de Rosen, existem ações que se integram 
para a adequação do homem ao espaço/meio ambiente em que vive. Dentro 
dessa estruturação, mesmo com as condições ambientais adequadas, há que se 
cuidar dos desamparados, com o objetivo de levá-los ao desenvolvimento e à 
autonomia social. 
5.1 Contexto brasileiro de vulnerabilidade social 
Analisando a realidade de hoje no Brasil, sobretudo nas grandes 
metrópoles, vemos que as comunidades que se formaram nas periferias das 
 
 
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grandes cidades surgiram de forma desordenada, com ocupações irregulares. 
Não se levava em consideração o risco ambiental a que estavam submetidas, 
além dos riscos sanitário, ecológico e de infraestrutura. Muitas construções eram 
precárias, em barrancos que desmoronam com as chuvas, matando as pessoas, 
principalmente as crianças. 
Nesse contexto, famílias ocupavam prédios condenados nos centros das 
cidades. Além disso, grupos habitavam espaços que funcionavam de forma 
independente da lei e da ordem, como acontece até hoje nas comunidades dos 
morros cariocas, antigamente conhecidas como favelas. A demora na 
estruturação da ação estatal, com políticas efetivas capazes de oferecer 
alternativas às pessoas, provocou o vazio assistencial e de políticas públicas 
capazes de subsidiar o cidadão e ampará-lo em suas escolhas. O produto dessas 
situações é o caos social, com a falência da lei e da ordem. 
Nessa situação, faz sentido o questionamento apresentado pela I 
Conferência Internacional sobre Promoção de Saúde, realizada pela OMS em 
1986, no Canadá: Até onde o cidadão pode ser considerado responsável pela sua 
própria saúde? 
Considerando a responsabilidade dos governos na estruturação das 
políticas públicas, o que inclui as diversas frentes de condicionantes de saúde, 
como educação, apoio social, emprego, renda, moradia e a questão ambiental, 
podemos pensar nessa questão de forma mais abrangente em comparação às 
ações no nível individual, praticadas pelo cidadão, e também capazes de causar 
doenças. 
O cuidado com os mais frágeis está de acordo com os princípios que 
embasam o SUS, sobretudo o princípio de equidade. Dentro da estrutura pública, 
é importante identificar quem são os mais frágeis, e quais critérios devem ser 
usados para estabelecer o grau de vulnerabilidade de uma população. Dentre os 
critérios mais utilizados, temos: nível educacional, condições de moradia, famílias 
monoparentais, renda mensal por pessoa componente da família, além do número 
de crianças entre 0 e 5 anos de idade. 
5.2 Ações de combate à pobreza no Brasil 
Os programas sociais de transferência de renda vêm sendo discutidos no 
Brasil e internacionalmente desde a década de 80. Os programas instituídos no 
Brasil compartilham pontos em comum, com o objetivo de juntar os setores mais 
 
 
14 
sensíveis do cuidado. Os primeiros programas reconhecidos como de distribuição 
de renda foram lançados em 2001, no governo do presidente Fernando Henrique, 
com o programa Bolsa Escola. Outros programas associados foram o Bolsa 
Alimentação e o Vale Gás. Como destaque estratégico desse período, temos o 
mapeamento das famílias através do cadastro único (cadÚnico), que garantiu a 
transferência direta de recursos para essas famílias, sem interferência política. 
Em 2004, no primeiro período do governo Lula, foi implantado o Bolsa Família. 
O programa Bolsa Família é reconhecido por cientistas sociais como o 
maior programa social de transferência de renda do Brasil nos últimos anos, com 
uma interface muito forte com a saúde. Foi concebido com o objetivo de atender 
duas finalidades básicas: “enfrentar o maior desafio da sociedade brasileira, que 
é o de combater a miséria e a exclusão social; promover a emancipação das 
famílias mais pobres” (Marques; Mendes, 2005, p. 159). 
Completando essa análise, pesquisadores sociais identificam esses 
objetivos como “compensatórios”, no sentido de compensar a pobreza extrema 
das famílias. É importante ainda promover o acesso às políticas universais, de 
modo a oferecer condições de autonomização futura dessas famílias . De fato, o 
maior objetivo é garantir padrões mínimos de sobrevivência, retirando pessoas da 
pobreza extrema, associada à fome e a um entorno cruel, realidade que expõe as 
pessoas aos mais variados riscos. Em outubro de 2021, o programa Bolsa Família 
foi formalmente encerrado pelo governo Jair Bolsonaro, substituído pelo programa 
Renda Brasil, que utiliza a mesma plataforma de cadastro, com a promessa de 
ampliação, para atender a uma longa fila de famílias empobrecidas pela inflação 
e pelo desemprego pós-pandemia. 
As políticas públicas de saúde, tanto quanto as políticas públicas no âmbito 
social, devem ter como o seu maior objetivo o desenvolvimento da autonomia dos 
sujeitos, o que significa que, apesar do objetivo de curto prazo (permitir a saída 
da condição de extrema pobreza, que imobiliza as pessoas, impedindo o seu 
processo de escolha), no longo prazo as políticas de transferência de renda 
devem promover a saída da situação de dependência, instigando a autonomia, 
através da compreensão do processo de amadurecimento social e do 
desenvolvimento ativo na massa produtiva do país. Para isso, o país precisa 
estabilizar o seu processo de crescimento econômico, com processos de geração 
de emprego e renda, além de um programa educacional efetivo, com amparo 
 
 
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social e condições gerais de saúde para a população. Após a consolidação desses 
componentes, as populações podem caminhar para uma vida saudável e feliz. 
NA PRÁTICA 
Érica é uma mulher de 25 anos, negra, moradora de um bairro de alta 
vulnerabilidade em Curitiba. Quando criança, foi criada pela avó, que é 
recicladora, porque a sua mãe a abandonou. Estudou apenas até o ensino 
fundamental e trabalhava como diarista. Casou-se aos 19 anos e teve a sua 
primeira filha aos 20, mas o casamento mostrou-se um relacionamento abusivo, 
com vários episódios de violência. Por conta dessa situação de risco, Érica se 
separou. Depois de ter movido uma ação contra o ex-marido, conseguiu uma 
pensão alimentícia para a filha pequena. 
Recentemente, Érica recebeu o diagnóstico de hipertireoidismo. 
Desenvolveu hipertensão e, há um ano, descobriu que estava novamente grávida, 
de um namoro recente. Foi uma gravidez de alto risco, e assim Érica não 
conseguiu manter as suas faxinas. Para piorar a situação, o seu ex-marido parou 
de pagar a pensão alimentícia. 
Érica fez o pré-natalna Unidade de Saúde. A sua filha está com todas as 
vacinas em dia, frequenta a escola e ganha uma cesta básica da escola, além de 
leite integral. Se Érica não estivesse vinculada ao programa Bolsa Família, não 
conseguiria sobreviver. 
FINALIZANDO 
Em nosso passeio histórico, vimos como as visões de cuidado se 
desenvolveram, mesmo em um mundo ainda desprovido de conhecimento 
científico. O foco do cuidado humanitário, expresso no dever religioso de amparo 
aos pobres e frágeis da sociedade, levou muitos abnegados cuidadores a 
renunciar o seu conforto pessoal, tomando conta de crianças desamparadas e 
rejeitadas. Ao mesmo tempo, a evolução do conceito de saúde comunitária e de 
proteção da saúde do grupo se desenvolvia, desde a Idade Média, com medidas 
sanitárias e sociais. 
Os interesses de poder econômico, no entanto, foram os fatores que mais 
impulsionaram o cuidado das pessoas, motivando o Estado a intervir, assumindo 
o seu papel de cuidador da população, para que todos tivesses saúde e boas 
 
 
16 
condições físicas de trabalho. Não se chega à idade adulta produtiva sem 
cuidados na infância, portanto “há que se cuidar do broto para que a vida nos dê 
flor e fruto” (canção “Coração de estudante”, de Milton Nascimento). 
Vimos que a sociedade deve eleger os mais vulneráveis e assumir, com 
eles, compromissos que se expressam através de programas de amparo social, 
mas que ao mesmo tempo sejam capazes de promover o desenvolvimento da 
independência e da autonomia. No Brasil, um importante programa de 
transferência de renda é o Bolsa Família, atualmente chamado de Auxílio Brasil. 
Vários dos seus objetivos estão concentrados em importantes indicadores de 
saúde, como vacinação e cuidados no pré-natal. 
 
 
 
 
17 
REFERÊNCIAS 
HÖFLING, E. Políticas (públicas) sociais. Cadernos CEDES, v. 21, n. 55, p. 30-
41, 2001. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-32622001000300003>. 
Acesso em: 3 jun. 2022. 
LUCCHESI, P. (Coord.) Informação para Tomadores de Decisão em Saúde 
Pública: Políticas Públicas em Saúde. São Paulo: Bireme/Opas/OMS, 2004. 
Disponível em 
<http://files.bvs.br/upload/M/2004/Lucchese_Politicas_publicas.pdf>. Acesso em: 
3 jun. 2022. 
MARQUES, R.; MENDES, A. SUS e Seguridade Social: em busca do elo perdido. 
Saúde e Sociedade, v. 14, n. 2, p. 39-49, 2005. Disponível em: 
<https://doi.org/10.1590/S0104-12902005000200005>. Acesso em: 3 jun. 2022. 
NASCIMENTO A. A sorte dos enjeitados: o combate ao infanticídio e a 
institucionalização da assistência às crianças abandonadas do Recife (1789-
1832). São Paulo: Annablume; FINEP, 2008. 
ROSEN G. Uma História da Saúde Pública. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. 
 
 
	INTRODUÇÃO
	A evolução das Políticas Públicas de Saúde
	FINALIZANDO

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