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REVISTA E BOLETIM ACADEMIA NACIONAL DE BELAS ARTES LISBOA 2023 | 3.ª SÉRIE N. 40 REVISTA E BOLETIM ACADEMIA NACIONAL DE BELAS ARTES FICHA TÉCNICA TÍTULO Belas-Artes: Revista Boletim da Academia Nacional de Belas Artes COORDENAÇÃO GERAL Natália Correia Guedes Alberto Reaes Pinto COLABORADORES Álvaro Lobato Faria António Pedro Vasconcelos Christopher Bochmann Cristina de Sousa Azevedo Tavares Emília Nadal Hugo Ferrão João Jorge Duarte José Joaquim Mendes Hormigo José Manuel Fernandes José Sasportes José Trindade Chagas Mário Varela Gomes Paulo Monteiro Rui Nery Teresa Leonor M. Vale Vasco Nuno Figueiredo de Medeiros Vitor Veríssimo Serrão EDIÇÃO DE TEXTO E IMAGEM Andreia Cunha da Silva IMAGEM DE CAPA Atelier B2 Design [José Brandão | Alexandra Viola] ISSN: 2184-6952 DEPÓSITO LEGAL: 215394/2004 REVISTA E BOLETIM ACADEMIA NACIONAL DE BELAS ARTES LISBOA 2023 | 3.ª SÉRIE N.O 40 Índice AS ACADEMIAS EM DIÁLOGO COM A CIÊNCIA E A CULTURA: O PASSADO E O FUTURO 27 de Novembro de 2017 9 SESSÃO SOLENE DE REABERTURA DA ACADEMIA NACIONAL DE BELAS ARTES 7 de Março de 2023 21 SESSÃO SOLENE DE RECEPÇÃO DOS NOVOS ACADÉMICOS 18 de Outubro de 2023 39 COMUNICAÇÕES ACADÉMICAS Bairro de Nova Oeiras: vinte anos de recuperação, 2002-2022 JOSÉ MANUEL FERNANDES 14 deFevereiro 67 A relação entre a música e o texto CHRISTOPHER BOCHMANN 14 de Fevereiro 75 A presença da música e da dança na obra de Columbano e da geração naturalista (e na passagem para o modernismo): uma nova orquestração para o retrato CRISTINA DE SOUSA AZEVEDO TAVARES 14 de Março 95 A ciência da pintura: evidências científicas da pintura quinhentista portuguesa VASCO NUNO FIGUEIREDO DE MEDEIROS 14 de Março 105 Suspensão metafísica nos objectos corpóreos retabulares de Francisco Trabulo HUGO FERRÃO 18 de Abril 127 A Academia de Portugal em Roma ao tempo de D. João V: cronologia, espaço, funcionamento TERESA LEONOR M. VALE 16 de Maio 139 A fortificação de Quelba/Khor Kalba (Emirado de Sharjah, EAU), no Golfo de Omã. Identificação e testemunhos MÁRIO VARELA GOMES, RUI CARITA, ROSA VARELA GOMES 20 de Junho 165 Constantin Brancusi - A mística da forma ÁLVARO LOBATO DE FARIA 13 de Novembro 185 Santo António dos Cavaleiros e a Industrialização da construção/prefabricação total pesada em Portugal ALBERTO REAES PINTO 11 de Dezembro 195 José Maria Veloso Salgado (1864-1945): Mestre e Pedagogo JOSÉ TRINDADE CHAGAS 11 de Dezembro 213 ELOGIOS ACADÉMICOS José Augusto-França: Presidente da Academia Nacional de Belas Artes NATÁLIA CORREIA GUEDES 12 Deszembro de 2022 243 Elogio académico ao Doutor Pedro Manuel Guedes de Passos Canavarro EMÍLIA NADAL 11 de Abril de 2023 247 NOTÍCIAS 249 Jan van der Straet (c. 1580-1606) Color olivi. Série Nova Reperta Publicado por Philips Galle Gravura URL : https://www.britishmuseum. org/collection/object/P_1948- 0410-4-204 105 A ciência da pintura: evidências científicas da pintura quinhentista portuguesa VASCO NUNO FIGUEIREDO DE MEDEIROS Investigador Integrado do ARTIS-IHA Faculdade de Letras Universidade de Lisboa Resumo Na década de noventa do século XV Leonardo da Vinci concluiu os primeiros cadernos do Codex Urbinas caracterizando pela primeira vez a pintura enquanto ciência: «A ciência da pintura compreende todas as cores da superfície e as figuras dos corpos cobertas com elas, e a sua proximidade e afastamento, segundo a proporção entre as diferentes diminuições e as diferentes distâncias (…)». Note-se, porém, que em finais do século XV o processo de cientificação da pintura contava já com meio século de lenta e progressiva edificação. Este, iniciou-se na década de trinta com Jan van Eyck e a criação da óptica pictórica e com Leon Battista Alberti e a teorização da perspectiva artificial. Também a pintura quinhentista portuguesa, erradamente apelidada «Primitiva», reúne em si toda uma série de características e evidências que importa conhecer e desvendar e que a equiparam técnica e cronologicamente com a vanguarda da pintura cientificada europeia. Palavra-chave Ciência Pictórica. Óptica. Perspectiva. Pintura. Renascimento Português. 106 História Técnica da Arte: produção, fruição e relevância histórica da ciência artística A história técnica do «fazer» em arte nem sempre foi acolhida de forma pacífica pela historiografia da arte. Por detrás dessa rejeição encontra-se o temor de que uma interpretação técnica do «fazer» promova ou corrompa a essência «mágica» e «demiúrgica» que a criação artística encerra. Face a esta apreensão, a história da arte designou quais as zonas de contacto e de estrita dissonância a implementar entre arte e ciência caracterizadas por âmbitos cronológicos e de intervenção claramente definidos: na arte moderna e contemporânea, onde este contacto surge subentendido em territórios onde estas duas polaridades, de facto, se confundem; ou como designação genérica de todas as ciências que olham para o objecto artístico provido de uma “materialidade”, ou seja, as ciências da conservação e restauro. Note-se, porém, que se contemplarmos outras áreas artísticas, como o cinema ou a música, compreendemos claramente que a dimensão técnica do «fazer», assume uma preponderância crucial na própria mensagem a difundir, i.e., constitui parte integrante do código semântico, conferindo-lhe um sentido próprio. De facto, a tecnologia e a ciência, constituem um factor inseparável da narrativa, ou seja, os limites da narrativa são impostos pela técnica. A título de exemplo, veja-se o paralelo com a música, seja de vanguarda ou erudita. Em Kraftwerk: Man, machine and Music, Pascal Busy revela precisamente a dimensão exógena que o «fazer» tecnológico representa para a criação musical do mítico grupo. De facto, à semelhança de uma bottega de artista do século XVI, o seu mítico Kling Klang Studio também se assemelhava mais a um laboratório do que a uma romântica sala de ensaios: «From within the self-imposed seclusion of the Kling Klang studio they have created a factory-like environment – a laboratory where the musicians appear to work more like scientists than artists. This little home industry has consistently grown in stature if not in size. They have embraced every new advancement in instrument technology, allowing each new machine to assume a life of its own» (Bussy 2004, 12). Esta interdependência entre a história técnica do fazer e a linguagem artística ou musical não se esgota, porém, na música electrónica. Tomemos como exemplo o magnífico Concerto para piano e orquestra em sol maior de Maurice Ravel com a Orchestre National de France dirigida por Emmanuel Krivine e interpretado por Martha Argerich1. O público sentado na plateia frui o resultado de uma miríade de operações técnicas altamente especializadas, que, independentemente de não configurarem em nenhum momento o fluxo simbólico e/ou narrativo que Maurice Ravel imprimiu à obra, tornam-se indissociáveis à sua concretização. Da técnica construtiva e momento evolutivo do piano e dos restantes instrumentos, da sua afinação à leitura das anotações musicais, do maestro Emmanuel Krivine à técnica de Martha Argerich e dos restantes músicos, tudo contribui, ainda quede forma indirecta para a mensagem sonora que Ravel idealizou. Ao 1 Ver URL: https://www.youtube.com/watch?v=vlvWfP-iFmY. https://www.youtube.com/watch?v=vlvWfP-iFmY 107 público chega apenas um somatório de operações, que no seu conjunto, surge revestido de uma forma estritamente simbólica, desprovida já da sua primitiva forma operativa. Somatório de operações... Importa reter este conceito. O cinema constitui igualmente um universo onde a comunhão entre técnica e narrativa caminham lado a lado e de forma indissociável, num continuo progressivo onde a tecnologia marca, por vezes, a abertura de novas fronteiras visuais. O sucesso de obras como Star Wars dependeu inteiramente das condições técnicas impostas pela narrativa. Muitos dos efeitos especiais actualmente em uso no cinema foram desenvolvidos a partir de 1977, data de realização do primeiro filme da trilogia inicial2. Os desenvolvimentos tecnológicos desses efeitos tornaram-se indissociáveis do fluxo narrativo que George Lucas concebeu. Sem um, o outro não poderia existir. A narrativa forçou a tecnologia, a tecnologia libertou a narrativa. Note-se, porém, que nenhuma evidência desta interdependência surge aquando da visualização da obra. Uma vez mais, encontramo-nos perante um somatório de operações. Será a história da arte permeável a fenómenos análogos? Certamente que sim. De facto, também na pintura encontramos paralelos que se afiguram estranhamente compatíveis com estas dinâmicas. Um caso relativamente recente e paradigmático em que tecnologia e arte se uniram de forma simbiótica para dar lugar a novas formas de manifestação artística, ilustra cabalmente esta espécie de “sincretismo” artístico-científico. De facto, o surgimento de uma técnica pictórica específica dos anos setenta do século XX, procede do desenvolvimento de uma novidade tecnológica ímpar: o projector de slides. Com efeito, a associação desta tecnologia óptica ao airbrush, resultaria no desenvolvimento de uma novíssima técnica pictórica apelidada de fotorrealismo ou hiper-realismo. Este exemplo ilustra cabalmente a contaminação tecnológica da arte através da apropriação de um dispositivo inovador e da sua adequação à prática pictórica. Servem estes exemplos apenas para introduzir a problemática em questão. Será que se recuarmos alguns séculos, o fenómeno persiste? Certamente que sim. Aliás, poderá afigurar-se paradoxal, mas foi precisamente no século XV que este fenómeno de sincretismo científico-artístico mais se agudizou e onde se revela mais evidente. A explicação desse facto, encontramo-la em Thomas Kuhn. No seu paradigmático A Estrutura das revoluções Científicas, obra filosófica considerada amiúde como “um marco na história intelectual” e uma das mais influentes da segunda metade do século XX, Kuhn clarifica de forma cabal o teor relacional detido entre arte e ciência no século XV. Existem duas frases que cumprem claramente o carácter paradigmático deste sincretismo: uma relacionada com o objecto artístico em questão; outra relacionada com o observador desse mesmo objecto. Vejamos a primeira: «Mas estes são também os anos, sobretudo durante a Renascença, em que a clivagem entre as artes e a ciência era ténue. Leonardo foi apenas um entre muitos daqueles que passavam livremente de um campo para o outro, pois arte e ciência só mais tarde se tornaram categoricamente distintas» (Kuhn 2009, 219). Clivagem entre arte e ciência. De facto, como veremos, essa clivagem era diminuta no século XV. Poderemos inclusive, em algumas áreas, considerar como inexistente. Com efeito, existem áreas em que foi o impulso dessa nova visualidade que permitiu antever inúmeras revelações no campo científico. Coube 2 Ver a este respeito os seis episódios da magnífica série documental “Star Wars: A Saga que mudou a História” transmitidos a 4 de Maio de 2023 no canal História. Ver ainda, “How Star Wars changed special effects forever”, da Manchester Metropolitan University. URL: https://www.mmu.ac.uk/news-and-events/news/story/6883/. https://www.mmu.ac.uk/news-and-events/news/story/6883/ 108 igualmente a muitas inovações tecnológicas e científicas, a abertura dessa mesma visualidade a novos universos de significação e realidade. A fronteira é ténue e por vezes confunde-se onde começa e termina esta interacção: se na arte, se na ciência. A segunda frase de Thomas Kuhn, remete-nos precisamente para o efeito que esses novos universos de significação e realidade, causa no tecido cognitivo do observador. Com efeito, novos paradigmas instalam-se, a partir do momento em que se revela uma nova identidade semântica da visualidade, momento em que o olhar do observador evolui e nunca mais poderá recuar para uma posição prévia a essa ruptura: «O que um homem vê depende não somente daquilo que ele vê, mas também daquilo que a sua experiência visual e conceptual prévia lhe ensinou a ver» (Kuhn 2009, 160). Vejamos de que forma é que estes novos paradigmas se instalaram de forma irredutível e inamovível. Um exemplo claro, ainda que prévio à revolução científica e tecnológica da arte que pretendemos clarificar, surge com a inovação semântica e narrativa que a nova visualidade plástica de Giotto imprimiu nos observadores do seu tempo. Para um anónimo observador que no ano de 1306 visitasse a Capella degli Scrovegni em Pádua, todo ciclo de afresco de Giotto afigurar-se-ia como um prodígio absoluto. Gary Wills compara a impressão causada pela obra de Giotto em finais do século XIII com o impacto produzido pela projecção do primeiro filme dos irmãos Lumière, L’Arrivée d’un Train en Gare de La Ciotat: «Giotto’s new image must have hit the late thirteenth century with all the impact of our first moving pictures. We have perhaps forgotten how strongly people react to the first experience of a powerful new illusion (…)» (Dunning 1991, 33). Se os primeiros espectadores dessa mítica pelicula abandonaram a sala de projecção em pânico por temerem serem colhidos pelo comboio, poder-se-á presumir que os Paduanos terão sentido uma inaudita experiência mística ao contemplar a obra pela primeira vez. Esta mesma percepção surge inscrita no Decameron de Giovanni Boccaccio (1313-1375) [Jornada VI, narração 5], cuja narrativa traduz cabalmente o poder ilusório que esta obra revolucionária detinha: «El genio de Giotto era de tal excelencia que no hubo nada [producido] por la naturaleza, madre y creadora de todas las cosas, en el curso de la perpetua revolución de los cielos, que él no representara por medio de estilo, pluma o pincel de forma tan veraz que el resultado no fuera de mayor fidelidad que el logrado por la propia naturaleza. De ahí que el sentido humano de la vista haya sido, a menudo, engañado por sus obras, tomando como real lo que estaba sólo pintado.» (Boccaccio apud Cabezas 2002, 108). De facto, a capacidade inovadora de Giotto não se resume apenas à singular corporalidade que confere aos corpos e objectos representados, mas fundamentalmente através do simulacro de espaço pictórico onde os integra. Se a rudimentar, mas feérica espacialidade de Giotto operou essa paradigmática revolução do olhar, infere-se que os desenvolvimentos ocorridos na primeira metade do século XV, terão assumido uma dimensão ainda mais fracturante face aos cânones intelectivos pré-estabelecidos. De facto, e à semelhança dos exemplos atrás elencados, também a pintura sofreu um processo exponencial de amplitude narrativa, aquando da sua contaminação pelos desenvolvimentos tecnológicos e científicos do Quattrocento. A arte produzida a partir da década de trinta do século XV constituirá a marca mais evidente dessa revolução artístico-científica e pautar-se- á pela intercepção de quatro universos até aí intocáveis: a visualidade; a óptica; a geometria 109 e a matemática. A experiência visual e conceptual prévia dos observadores nuncamais será a mesma. Paulatinamente, esta nova semântica visual, dotada de novas capacidades narrativas, impor-se-á sobre o gosto de mecenas e patronos, obrigando a uma verdadeira revolução nos métodos de ensino e aprendizagem da pintura, reformulando espaços, e sobretudo, impondo uma reconfiguração do conceito de artífice medievo, anónimo e gremial, para uma concepção intelectualizada de artista, enquanto ser especulativo e paradigmático. Esta revolução técnica, científica e epistémica da arte perdurará intocável até à primeira década do seculo XX, altura que uma nova visualidade modernista e disruptiva se imporá definitivamente. A nova visualidade científica e a sua importância para a revolução da pintura dos séculos XV e XVI Temos, portanto, um continuum de cerca de seis séculos, desde o início da revolução científico-tecnológica da pintura do Quattrocento até ao início do século XX. Durante seiscentos anos, este paradigma visual não será alterado. Não falamos aqui da história dos estilos, como é evidente. Esses, suceder-se-ão com a voragem habitual com que o tempo devora as modas e as imposições socioculturais e políticas na arte. Falamos pelo contrário do suporte cognitivo dos mecanismos da visualidade, cuja omnipresença, discreta e nem sempre evidente, constitui o tal somatório de operações que caracterizámos no primeiro capítulo. O seu advento tem uma história e uma origem específica que importa apurar. Pertence a Erwin Panofsky o melhor exemplo acerca da cumplicidade que se gerou a partir da terceira década do século XV entre o norte e o sul, mas sobretudo, entre dois novos universos que entrariam definitivamente na semântica da pintura europeia: a óptica setentrional e a perspectiva meridional. Na obra Early Netherlandish Painting - Its origins and Character, publicada em 1971, Panofsky caracteriza de forma curiosa esta precisa divisão de competências entre a Flandres e Itália. Para tal, recorre a um conhecido conto de fadas sobre dois irmãos que possuem separadamente uma luneta e uma espingarda mágicas. Um consegue ver o dragão, mas não o pode matar, o outro, consegue matá-lo, mas não o pode ver (Panofsky, Early Netherlandish Painting 1971, 18). Considerando a luneta enquanto sortilégio que a pintura Flamenga alcançou na representação mimética do mundo, a espingarda mágica assume-se enquanto progressão para o infinito numa alusão directa ao advento da perspectiva artificialis Albertiana. Óptica e perspectiva. Serão estas duas valências, aparentemente tão dissociadas da prática pictórica, que irão, de facto, revolucionar a história da pintura europeia até ao início do século XX. A sua introdução nas oficinas europeias será lenta e gradual. Poder-se-á considerar que foram necessários cerca de quarenta anos para a sua ampla implementação no espectro oficinal europeu, desde a década de trinta, data em que a óptica pictórica flamenga e a perspectiva italiana viram a luz do dia, até à década de setenta, período em que as oficinas mais cosmopolitas, de Florença a Lisboa, começaram a integrar esta nova semântica visual e espacial nas suas práticas operativas. Voltaremos a esta questão. Compreender a ampla disseminação destas novidades teóricas e tecnológicas no tecido operativo das oficinas europeias, implica a compreensão de alguns mecanismos presentes na própria revolução científica. Falamos dos seus alvores, como é evidente, mas de um período inaugural, sem o qual, todo o desenvolvimento subsequente ficaria comprometido. Falamos também dos artistas e das 110 suas viagens. Da viagem das obras e do conhecimento. Da viagem e dos centros de troca epistémica que serão fundamentais para a definitiva consolidação conceptual das práticas. De facto, para compreender o fenómeno em toda a sua plenitude, não chega invocar o papel preponderante da viagem e dos viageiros ao longo do Quattrocento para compreender a fecunda troca de conhecimentos operada; também não chega invocar o papel centralizador e de permuta que cidades como Veneza representaram neste campo; muito menos, sobrevalorizar o papel da tratadística e da imprensa na divulgação massiva de conhecimento; e tão pouco a ascensão estatutária de artífices e artistas, ou o nivelamento social de eruditos e cortesãos. Todas estas valências, quando associadas a um propósito comum, ou seja, a criação, desenvolvimento e difusão de redes de conhecimento, terão estabelecido um enxame de conexões que deram origem ao aparecimento das tão renomadas Trading Zones. A ciência da pintura dependerá em absoluto destes mecanismos. A compreensão em detalhe destes mecanismos, obrigaria a uma vasta reflexão que não cabe aqui. Foquemo-nos, portanto, no essencial: do que falamos, quando falamos de ciência da pintura? O termo é tardio face à origem das duas dimensões que lhe darão corpo: a óptica pictórica flamenga e a perspectiva italiana. O seu autor? Leonardo da Vinci. O termo Scientia Pictórica surge pela primeira vez inscrito numa série de textos avulsos cuja função se crê didáctica e que foram redigidos maioritariamente entre 1492 e 1499, constituindo o corpus teórico da mítica, mas esquiva Leonardus Vinci Accademia fundada em parceria com Luca Pacioli (Chastel 2002, 64). De resto, o enquadramento que Leonardo estabelece das disciplinas necessárias aos jovens pintores, não deixa lugar a dúvidas sobre a função programática que o seu Trattato constituiria para a Academia: «El joven há de aprender, en primer lugar, perspectiva, y más tarde, las medidas de cullesquiera cuerpos. Logo, y de la mano de un buen maestro, avezarse en los membros primorosos. Después [ha de acudir a] la naturaleza para confirmar las razones de lo aprendido. Observará luego, y por un tiempo, las obras de distintos maestros. Y habrá, en fin, de habituarse a poner en práctica su arte» (Vinci 1986, 351). Este seu projecto didáctico encontra-se profundamente consolidado em quatro princípios nucleares que estruturam na sua essência todo o conteúdo programático da Scientia Pictórica, a saber: aprendizagem da perspectiva; aprendizagem de anatomia; observação experimental da natureza; observação didáctica de distintas obras; prática pictórica. A ligação entre o plano curricular que estabelece, as matérias abordadas no Trattato, e a referência, ainda que subliminar, à existência de uma academia onde as mesmas seriam leccionadas, permitem estabelecer, de facto, uma relação concreta entre estes dois eventos. O ano habitualmente atribuído à conclusão do tratado, 1499, coincide lamentavelmente com a invasão da cidade de Milão pelas tropas francesas a mando de Luís XII, rei de França. Uma furtiva nota que Leonardo escreveu no memorando Ligny, «Vende o que não puderes levar contigo», ilustra as consequências directas deste evento, e poderá justificar a inconcretude dos dois projectos, tanto o da Accademia, como o do Trattato, que seria publicado apenas no século XVII (Nicholl 2004, 353). O declarado anti-cientificismo do maneirismo, seria responsável pela absoluta obsolescência do conceito. Mas recuemos à época em que o mesmo florescia nas oficinas europeias. Na década de noventa do século XV, a óptica pictórica e a perspectiva já tinham feito o seu percurso de lenta implantação nas práticas oficinais, mas sobretudo, dos programas de ensino que haviam reconfigurado em absoluto o papel do mestre e do 111 aprendiz segundo os padrões tradicionais. O leque de disciplinas que Leonardo designa no conteúdo programático do seu Trattato, resultaram da implementação de dois grupos específicos de elementos: um tecnológico composto pela implementação técnica da pintura a óleo e do advento das máquinas de desenhar; um científico composto pelo desenvolvimento teórico da óptica pictórica e da perspectiva artificialis. Curiosamente, podemos cruzar estes dois grupos e obter assim os respectivos pares científicos e tecnológicos que se desenvolveram, como referido,a partir da década de trinta do Quattrocento: óptica pictórica - técnica do óleo / perspectiva artificialis - máquinas de desenhar. Serão estas duas componentes tecnológicas, a pintura a óleo e o advento das máquinas de desenhar, a impulsionar o desenvolvimento das duas valências mais relevantes da pintura cientificada: a óptica e a perspectiva. Cada um destes pares será responsável pelo desenvolvimento de uma inovação paradigmática. A primeira a surgir será a óptica pictórica, ou seja, a capacidade que os pintores passam a ter de representar fiel e mimeticamente todas e quaisquer superfícies e texturas que a realidade apresenta, representando-as com a máxima fidelidade. Esta capacitação será responsável por um momento inaugural da pintura cientificada na dimensão que Hans Belting caracteriza na sua obra Mirroir du Monde, enquanto «La naissance du Concept d’Art». A definição não é inocente. Este conceito já transporta consigo a futura dimensão técnica com que Leonardo irá circunscrever no seu célebre Trattato. Numa carta de 1435, o Duque da Borgonha, Filipe o Bom, refere-se ao seu amado pintor Jan van Eyck nos seguintes termos: «La défection de mon bien-aimé peintre serait pour moi une perte irréparable (…) nous ne trouverions point si excelente en son art et science» (Belting 2014, 97). Belting aponta para o facto de apesar de se tratar provavelmente de uma expressão comum, "arte e ciência" contém de facto uma distinção que deve ter desempenhado um papel no julgamento feito sobre o pintor. O julgamento prende-se com o facto de Jan van Eyck ter desempenhado um papel crucial e único no desenvolvimento da óptica pictórica mediante o aperfeiçoamento da pintura a óleo, mas sobretudo, na compreensão e domínio da luz e do seu comportamento no espaço e nos objectos. Na ausência de tratadística acerca do assunto, deveremos apontar integralmente a sua obra como um postulado teórico que fez escola e marcou definitivamente as gerações subsequentes de pintores europeus. Esta dimensão muito particular marcará, de facto, a distinção clara entre um legado imagético setentrional e um legado teórico meridional. Entre fontes teóricas visuais vs. fontes teóricas tradicionais, ou seja, sob a forma de tratados, redigidos, porém, por artífices, artesão e artistas. É que na mesma época em que Jan Van Eyck desbravava esse admirável mundo novo, em Florença, homens como Filippo Brunelleschi e Leon Battista Alberti, inauguravam um novo capítulo na história epistémica da arte, ou seja, a aplicação à prática da pintura de duas dimensões particularmente inovadoras: teoria e experimentação. Casos práticos de inovação tecnológica e científica I - a óptica pictórica Antes de rumarmos definitivamente em direcção a Florença, importa regressar à fria, mas encantadora cidade de Bruges. Será aí o berço da pintura cientificada do norte da europa. Curiosamente, aquilo que conhecemos, hoje, acerca da sua origem e 112 desenvolvimento, foi-nos contado por um italiano – o incontornável Giorgio Vasari3. Vasari refere-se de forma muito sucinta ao episódio em que por mero “acaso”, um tal de Giovanni da Bruggia teria descoberto a técnica da pintura a óleo. O episódio encontra-se relatado na vida de Antonello da Messina, e apesar de existirem escassas relações entre o que aqui é dito e a verdade histórica, importa olhar com algum detalhe para o que nos conta o biógrafo italiano. Vasari revela numa espécie de preâmbulo, que os artesãos da baixa idade média continuavam a pintar utilizando como medium a têmpera, embora reconhecessem que as suas obras careceriam de uma certa suavidade e vivacidade cromática, mas sobretudo, de uma maior capacidade na mistura dos pigmentos de forma a produzir diferentes matizes. Para além do mais, denuncia a utilização exclusiva da técnica do Trattegio, ou seja, um procedimento usado para reproduzir o efeito claro-escuro na pintura por meio de linhas paralelas ou cruzadas, de distinta densidade e intensidade e dependendo de grades de sombreamento: «et ancora maggiore facilità nello unire i colori insieme, avendo eglino infino a qui usato il tratteggiare l’opere loro per punta solamente di pennello» (Vasari 1986, 374). Vasari conta-nos igualmente que no início do Quattrocento, eram inúmeros os artistas que procuravam um novo método que fosse capaz de superar estas óbvias limitações operativas na prática da pintura. Até que um dia…: «Outside of Italy, many gifted minds dedicated to painting - that is, all the painters of France, Spain, Germany, and other countries - possessed this same desire. It therefore happened, as matters stood, that while Giovanni da Bruggia, a painter greatly esteemed in those parts for the excellent practical skill he had acquired in his craft, was working in Flanders, he began to try out various kinds of colours and, as a man who took delight in alchemy, to make a number of oils for use in varnishes and other purposes, following the ideas of learned men such as himself. And on one occasion or other, after having expended a good deal of effort on painting a panel, he brought his work to completion with great care, gave it a coat of varnish, and set it out in the sun to dry as was the custom. But, either because the heat was extreme, or because the wood had been badly joined or poorly seasoned, his panel unfortunately split along the joints. As a result, when Giovanni saw the damage the sun's heat had caused his panel, he decided to find a way to prevent the sun from ever again causing such great damage to his works. And so, rejecting both varnish and working in tempera, he began to ponder a means of producing a kind of varnish which would dry in the shade without putting his paintings in the sun. And after he had experimented -with many materials, both pure substances and mixtures, he finally discovered that linseed and walnut oil dried faster than all the other oils he had tested. Thus, by boiling these oils with some other mixtures he made, he produced the varnish that he - or rather, all of the painters in the world - had long desired. After testing many other materials, he realized that mixing his colours with these kinds of oils gave them a very strong consistency, and that when they dried, not only were they waterproof, but the colours gleamed so brightly that they possessed lustre by themselves without the need for varnish, and, what seemed even more amazing to him, they could be blended infinitely better than tempera. As one might reasonably expect, Giovanni was extremely delighted with this invention, which gave birth to many works, filling the whole region with them to the incredible delight of the public and the greatest profit to himself, and Giovanni, assisted from day to day by his experience, went on to produce ever greater and better works. Before long, the fame of Giovanni's discovery spread not only throughout Flanders but throughout Italy and other parts of the world, and artisans were extremely anxious to know how he rendered his works with so much perfection. Those artists who saw his works without understanding the methods he employed were forced to admire them and to bestow lavish praise upon them, but, at the same time, they were envious of his skills, especially since for a time he did not want anyone to see him working or to learn his secret. But when he became old he finally bestowed the favour upon Ruggieri da Bruggia, his pupil, and Ruggieri told Ausse his student and others who are mentioned in works treating the subject of oil painting. But in spite of this and the fact that merchants purchased these works and sent them all over the world to princes and important personages, making 3 A notoriedade das Vite será tão significativa, que doravante esta narrativa dominará todas as pósteras referências a Jan van Eyck e à génese do colorito a olio. Será esse o caso do famoso Schilder-Boeck, editado em 1604 por Karel van Mander,que, não obstante o compreensível pendor nacionalista na glorificação da pintura flamenga face à sua congénere italiana, irá parafrasear na íntegra a narrativa Vasariana. 113 huge profits, the method did not travel beyond Flanders. And although such -works, especially when they were fresh and when it seemed possible to recognize the secret, possessed the sharp odour that the colours and the oils mixed together gave them, this secret was still never discovered over the course of many years». (Vasari, The Lives of the Artists 2008, 186-187). Se, de facto, a fonte Vasariana não constitui um repositório minimamente fiável a este respeito e enferma de inúmeros subterfúgios panfletários e campanilistas a favor da escola florentina, é certo que atribui nominalmente a sua origem a um homem e a uma região - Giovanni da Bruggia. Esta atribuição constitui para Philip Ball uma grata ironia, pela forma como confere à pintura italiana do alto Renascimento, uma inequívoca dívida face a uma escola considerada por Vasari e seus correligionários como «menor», «gótica» e «primitiva». Ball considera inclusive, a existência de um claro double twist na atribuição a Jan van Eyck de algo que extrapola largamente a sua inovação. Com efeito, apesar de ter desenvolvido uma forma de potenciar largamente as possibilidades que este medium oferecia, Jan Van Eyck não terá sido o primeiro a utilizá-lo enquanto aglutinante, pois o mesmo seria o método homólogo à têmpera amplamente utilizado no Norte da Europa (Ball 2001, 125, Dunkerton 1999, 93). Na verdade, antes de meados do século XV, o óleo como aglutinante pictórico não constituía novidade nenhuma inclusive para as oficinas italianas. No entanto, a técnica não era do agrado da grande maioria dos artistas deste período, e a razão prendia-se fundamentalmente com o facto de, tanto o azul ultramarino como o vermelhão, cuja radiância constituía um valor simbólico e espiritual autónomo, quando misturados com óleo, sofriam uma adulteração do seu matiz habitual. O azul ultramarino escurecia substancialmente face à usual preparação da têmpera, e o vermelhão perdia uma parte considerável da sua vibração (Ball 2001, 128). Este fenómeno, numa época em que a pintura e o valor cromático dos pigmentos eram compreendidos deliberada e exclusivamente enquanto formulação simbólica dos cânones teológicos do cristianismo, terá contribuído largamente para que os artesãos prescindissem dessa técnica durante largos séculos. Apesar da sua utilização já se encontrar anteriormente referenciada sobretudo em pinturas junto do mar, esta nunca terá suplantado a tradicional técnica do buon fresco e da têmpera (Rudel 1950, 59). Sabe-se que a longevidade do uso do óleo como liant de pigmentos será longeva na história da pintura, mas de facto, a escassa informação remanescente revela uma prática muito pouco documentada até aos alvores do século XV. Então, assim sendo… no que terá consistido, verdadeiramente, essa inovação que os irmãos Van Eyck, Hubert e Jan, parecem ter começado a evidenciar a partir da terceira década do século XV? De facto, existe uma clara dissensão na narrativa historiográfica em torno do misterioso medium Eyckiano, como se toda a capacidade de representação mimética do mundo que o mesmo veio possibilitar, pudesse ser atribuída exclusivamente a um miraculoso elixir, e não a uma plena compreensão óptica do comportamento da luz e das cores. A questão é particularmente mais complexa do que aparenta ser. É que, de facto, Jan Van Eyck não se limita a ser um mero artífice que descobre algo miraculoso através de um mero incidente processual. Seria muito redutor, e de resto, entraríamos no “jogo” campanilista com que Vasari armadilhou as Vite. Vejamos no que terá constituído esta “descoberta” dos irmãos Van Eyck, Jan e Hubert. A questão divide-se conforme já foi referido anteriormente, em duas inovações complementares, mas distintas. Uma, encontra- 114 se de facto descrita no texto de Vasari. Existiu um momento inicial em que “algo” foi aperfeiçoado, e essa percepção é antiga. Era algo diáfano, imperceptível, e, no entanto, tão presente e inovador. Aquando da grande exposição Le Primitifs flamands, que decorreu em Bruges no ano de 1902, dois visitantes ilustres iriam ser assolados por uma questão comum, ou seja, como enquadrar a revolução que a óptica pictórica flamenga operou, com o seu tempo histórico? De facto, algo não batia certo… Huizinga, no seu The Autumm of the Middle Ages publicado em 1919, quando confrontado com a manifesta modernidade que a obra de Van Eyck representa, aponta um processo de revelação e desenvolvimento do mundo medieval ainda sem rupturas aparentes: «(…) the naturalism of the Van Eyck, which is usually regarded in art history as an element announcing the arrival of the Renaissance, should rather be regarded as the complete unfolding of the medieval spirit» (Huizinga apud Porras 2018, 9). Cinco anos depois, em 1924, Max Jacob Friedländer, manifestará na obra Early Netherlandish Painting uma consideração diametralmente oposta. Para Friedländer, a revolução de vanguarda que Van Eyck opera na pintura traduz não apenas uma completa renuncia às concepções artísticas tradicionais, mas sobretudo, manifesta já uma total revelação do homem, ou seja, é claramente humanista: «The Van Eyck left their footprints and their names (…) succeeding where their predecessor failed (…) Tradition had begun to loosen its hold, eyes were trained on the world’s infinite diversity – and rigid contemporary patterns lost their power» (Friedländer apud Porras 2018, 9). Poder-se-á tender a considerar que ambos estão correctos, mas a categórica ruptura epistémica de Van Eyck que Panofksy caracteriza enquanto «the most exhaustive and the most tantalizing interpreter of human nature», infere total validade à opinião de Friedländer (Panofsky 1971, 194). Ora, conforme observámos, esta inovação assenta em parte numa inovação tecnológica – o uso do óleo enquanto aglutinante. Mas vimos igualmente que o óleo enquanto aglutinante era já amplamente utilizado, tanto em Itália como no norte da europa. Assim sendo, onde reside a modernidade humanista revelada por Jan Van Eyck? No desenvolvimento da óptica pictórica, precisamente. Vejamos do que falamos quando nos referimos a este termo. Para tal, importa introduzir outro conceito de grande utilidade para a problematização em questão: o conceito de Filosofema. Entende-se por filosofema uma proposição de cariz filosófico cuja acção possui um carácter objectificado através de determinadas características imagéticas, tecnológicas ou estilísticas. Ou seja, o desenvolvimento técnico da óptica pictórica nas oficinas neerlandesas, correspondeu, de facto, a uma afirmação filosófica e científica de um estilema, enquanto imagem simbólica, supra-realista. Trocado por miúdos, constatamos que estas proposições filosóficas imagéticas representam mais do que a realidade tal como nós a percepcionamos, mas antes, uma absoluta reconfiguração ontológica, ou seja, uma manifestação estruturada de conceitos que manifestam um real conhecimento do mundo4. A representação fiel e mimética da realidade, converte-se ela própria numa afirmação de modernidade – num filosofema. Por estranho que pareça, nenhum dos marcadores habituais deste tipo de evidência simbólica, se encontra representado pelo sistema de descodificação iconográfico e iconológico proposto por Panofsky, senão vejamos: «Os signos e estruturas humanas são registos porque e na medida em que exprimem ideias que, embora realizadas pelos processos de simbolizar e construir, são separadas desses processos» (Panofsky, Estudos de Iconologia 1989, 17). Trata-se, 4 Vide a este respeito: MEDEIROS, Vasco, A ciência pictórica na Europa: 1430–1530: iconopoiese e ensino, confluência e singularidade, Tese de Doutoramento, Artis - Instituto de História da Arte, Faculdade de Letras da Universidadede Lisboa, 2020, pp. 260-266. 115 portanto, de um evidente paradoxo. Signos passiveis de um enquadramento de significação, por se constituírem enquanto marcadores que um «fazer» instala, deverão ser excluídos desse mesmo sistema. Panofsky falha ao produzir uma concepção parcial do sentido alegórico da representação, ou seja, esvaziando o sentido de todas as evidências que um «fazer» cientificado inscreve na obra. A representação fiel de texturas, de reflexos, representações de vidro, de água, de metais, reverberações cromáticas, espelhos, entre muitas outras evidências sintomáticas deste inovador mundo óptico que a pintura flamenga instala, afirmar-se-ão definitivamente enquanto formas simbólicas plenas de significação. Encontramo-nos assim perante um claro dilema. De que forma é que esta dimensão absolutamente extraordinária de um artista capaz de romper com as cadeias que a tradição medieva ditava há séculos, tal como Huizinga, Friedländer e Panofksy claramente apontam, concorda com a descrição sumária do humilde artífice que esbarra por acidente numa inovação paradigmática que o relato Vasariano apresenta? Não concorda de todo. É que, de facto, Van Eyck foi o primeiro grande artista de fama europeia a alcançar um estatuto intelectual e liberal notável, estatuto esse teimosamente ignorado ainda hoje pela historiografia da arte. De facto, a sua dimensão intelectual e humanista será exemplar e marca, com efeito, o início da história da liberalidade do artista na europa. Para compreender esta dimensão exemplar, importa deitar um breve olhar à magnífica corte de Flipe III, conhecido como o Bom. De facto, se existe um nome e uma corte capazes de subtrair integralmente esta visão excludente de um mundo onde a paridade entre artistas e humanistas se encontrava liminarmente encerrada nas repúblicas italianas – esse nome é o de Jan Van Eyck e a corte, a de Filipe III, Duque da Borgonha (1396-1467). Seja através das missões diplomáticas à península Ibérica ou dos já referidos contactos diplomáticos estabelecidos por Albergati em 1430, a corte do Duque da Borgonha parece constituir um polo dinamizador na sociedade europeia da época a diversos níveis. Na óptica de Richard Vaughan, Filipe III seria incontestavelmente o mais generoso e iluminado governante a Norte dos Alpes, fazendo-se rodear de um esplendor artístico e cultural ímpar, possuindo à época, uma das maiores e mais exaustivas bibliotecas de toda a Europa. Tendo herdado no início do seu reino, por volta de 1420, uma biblioteca com cerca de 250 volumes iluminados, por alturas da sua morte, em 1467, esse número tinha quadruplicado. Enquanto patrono de músicos, pintores, ourives e literatos, tanto das artes maiores como das menores, fez-se reunir de um incomparável escol de intelectuais e artífices: do incontornável Jan Van Eyck ao escultor Claus Sluter, do compositor Gille Binchois ao poeta Michault Taillevent, todos terão beneficiado da sua pródiga generosidade (Vaughan 2002, 150, 153, 155). Para além das inúmeras oficinas de produção livresca que atraía sobre si uma constelação de iluminadores de renome, Bruges representava à época um atractivo irresistível para diversos artífices, que procuravam no seu vasto mercado e no porto de ligação com toda a Europa, uma fonte segura de negócios. A produção artística também extrapolava largamente os grandes retábulos ou retratos que Jan van Eyck, Petrus Christus, Memling ou David Gerard produziam, constituindo igualmente os modelos de tapeçaria ou de objectos de ourivesaria, um evidente manancial de afirmação de uma matriz artística e cultural (Martens 1994, 7). Rapidamente, a difusão destas inovadoras formas de arte alcançariam todos os reinos, cortes e repúblicas europeias, afirmando mais do que uma moda, uma afirmação paradigmática e moderna do mundo. 116 Com efeito, o impacto que estas obras causava era tal, que perduram os relatos de absoluta estupefacção e incompreensão face a imagens de tal forma inovadoras, porque os códigos de interpretação ainda não haviam sido actualizados. O relato da contemplação de uma destas obras pelo insigne antiquário Ciríaco de Ancona em 1449, relembra-nos o paradigma apontado anteriormente por Thomas Kuhn. De facto, e após contemplar uma Descida da Cruz de Rogier van der Weyden na corte de Leonello d’Este de Ferrara, Ciríaco revela o efeito hipnótico de uma pintura sem paralelo na história da arte europeia. O seu registo é inestimável e peremptório ao descrever o impacto visual e místico que uma obra pictórica flamenga deteria num observador italiano em meados do século XV. Vejamos então o efeito provocado em Ciríaco: «A most pious image, with a large crowd of men and women about in deep mourning. All this is admirably depicted with what I would call divine rather than human art. There you could see those faces come alive and breathe which [the painter] wanted to show as living, and likewise the deceased as dead, and in particular many garments, multicolored soldier’s cloaks, clothes prodigiously enhanced by purple and gold, blooming meadows, flowers, trees, leafy and shady hills, as well as ornate porticoes and halls, gold really resembling gold, pearls, precious stones, and everything else you think to have been produced, not by the artifice of human hands but by all- bearing nature herself». (Panofsky 1971, 2, Ainsworth e Christiansen 1999, 15, Nash 2008, 29, Smith 2004, 54)5. O mundo descrito por Ciríaco, não encontrava, de facto, qualquer paralelo nas fórmulas pictóricas em voga na Itália do Quattrocento. A capacidade de representação óptica de um universo pleno de ínfimos detalhes constituía uma marca de inovação e de deslumbramento em clara oposição à pintura italiana habitada ainda por um forte simbolismo. O que Ciríaco «vê» verdadeiramente na obra que descreve, é a imagem «real» e especular de um mundo redireccionado para os sentidos, sem necessidade de recorrer a quaisquer mecanismos de descodificação simbólica. Ao contrário de Vasari, cujo enfoque incidirá fundamentalmente no carácter mecânico de uma técnica oriunda de “artefici”, Ciríaco estabelece precisamente o seu contrário, ao designar a impossibilidade de mãos humanas produzirem tamanhos prodígios que apenas à natureza pertenceriam. Este entendimento, denota já a póstera concepção humanista do pintor enquanto émulo da natureza, tornando-se evidente que o foco dessa percepção terá origem não em Itália, mas sim na Flandres. Em Itália, porém, nascia outro sortilégio absolutamente extraordinário. Se na distante flandres, os irmãos Van Eyck haviam desenvolvido a luneta mágica do conto de Panofksy, algures em Florença, Filippo Brunelleschi e Leon Battista Alberti desenvolveriam o outro elemento-chave para o desenvolvimento da pintura cientificada na europa – a espingarda mágica, ou seja, a perspectiva artificial. 5 As múltiplas referências bibliográficas indicadas, a par de constituírem uma excelente fonte de informação a respeito da notoriedade filosófica e científica da pintura flamenga, servem igualmente o propósito de salientar a notoriedade deste relato, cuja relevância passa demasiadas vezes ao lado de uma historiografia da arte de cariz exclusivamente italianizante. 117 Casos práticos de inovação tecnológica e científica II - a perspectiva artificialis Se, conforme vimos, a magnifica Bruges daria origem a uma das mais revolucionárias formas de representação da realidade jamais desenvolvidas em toda a história cultural da europa, Florença não lhe ficará atrás. Caberá à capital da Toscana o desenvolvimento da inovação inerente à espingarda mágica do conto que Panofksy tão bem escolheu para ilustrar o fenómeno de partilha de competências no aperfeiçoamento da pintura europeia moderna. E, conforme vimos, a espingarda mágica refere-se à inefável descoberta da projecção perspéctica, ou seja, do nascimento do espaçopictórico. Por espaço pictórico, entenda-se aquela dimensão que Leon Battista Alberti designava como una finestra, ou seja, a concepção revolucionária que uma superfície bidimensional de uma pintura, semelhante a uma janela aberta, se projectava até ao infinito através de um espaço tridimensional. Este desenvolvimento contará com dois tempos e duas fases distintas: uma experimental e outra teórica. Comecemos pelo início, e o início envolve uma figura absolutamente envolta em lenda - Filippo Brunelleschi. E lenda por que este artista impõe- se obrigatoriamente como charneira de dois tempos aparentemente inconciliáveis, existindo claramente um antes e um depois de Brunelleschi no que respeita à harmonização entre a geometria, a matemática e as artes plásticas. A recepção da célebre biografia de Antonio Manetti Novella del Grasso Legnaiuolo, e em particular do relato Vita di Filippo Brunelleschi, tornou possível conhecer com algum grau de detalhe a primeira demonstração experimental de algo que Manetti designa por “Regola”, e que, de facto, nunca terá passado do estatuto de mera “curiosidade” no que à história da arte diz respeito (Field 2005, 33). Para a historiografia da arte, esta problemática nunca terá assumido relevante proeminência por não configurar nenhuma novidade na restrita história dos estilos com que sempre se revestiu. Mas para edificar uma história da pintura cientificada europeia, será relevante, conforme veremos. Para o biógrafo Antonio Manetti, Filippo Brunelleschi configurava em absoluto o arquétipo do homem universal, dominando disciplinas aparentemente alheias à prática arquitectónica e pictórica: matemática; geometria; mecânica; arquitectura; pintura; escultura, etc. As demonstrações que terá levado a cabo entre 1413 e 1416, conjugando conhecimentos de matemática e geometria juntamente com a capacidade de produzir instrumentos de experimentação, instituirão, de facto, uma nova era onde as epistemologias artesanais se afirmarão como uma nova semântica artística. O texto de Manetti assume deste modo uma especial relevância por constituir um relato presencial da metodologia empregue por Brunelleschi, ainda que parco nos pormenores indicados. Terão sido duas as experiências conduzidas por Brunelleschi, sendo a mais conhecida aquela que terá efectuado à porta da Catedral de Santa Maria dell Fiore. Eleito um ponto de vista a cerca de três braccia (cerca de 1,74m) dentro do portal principal, Brunelleschi terá utilizado uma pintura do Baptistério executada com extremo rigor mimético, mas sobretudo, perspecticamente correcta. De modo a aumentar o verismo da sua pintura, terá coberto a parte correspondente ao céu com prata polida de modo que este fosse reflectido, aumentando assim o grau de ilusão da experiência. Brunelleschi efectuou então um pequeno orifício no ponto equivalente à linha de visão do Baptistério, através do qual o observador poderia observar, munido de um espelho na outra mão, o reflexo da imagem 118 sobreposta à imagem real. Manetti afirma que a criação deste dispositivo terá sido motivado pela necessidade de comprovar a viabilidade teórica do ponto de vista único: «the painter needs to presuppose a single place from which the painting must be viewed, taking into account the height and depth and width, and similarly for distance» (Kemp 1990, 12-12, 344). Esta narrativa parece sugerir, de facto, uma inovadora interacção entre conhecimento prático e teórico, ou seja, entre a capacidade de produzir um instrumento científico e a formulação de complexas proposições matemáticas. Existe, porém, um problema na atribuição da «invenção» da perspectiva a Brunelleschi. Aparentemente, não deixou nenhuma instrução teórica sob a forma de tratado que fosse capaz de elucidar os pintores, escultores e arquitectos acerca da correcta edificação de um espaço perspectivado. Esse trabalho será da responsabilidade de outra personagem envolta em lenda: Leon Battista Alberti. Publicado em 1435 em latim e traduzido no ano seguinte para italiano com uma dedicatória a Filippo Brunelleschi, o De Pictura será o primeiro tratado teórico dedicado à pintura a incluir um método de edificação perspéctica aplicável. Em 1435 a cidade de Florença fervilhava de novidade, e o campo conceptual da pintura urgia por um humanista de rara erudição matemática capaz de formalizar no plano teórico, aquilo que Brunelleschi havia comprovado experimentalmente. Alberti irá, porém, muito para além do pressuposto teórico do Quantum Continuum e da formalização de um espaço pictórico concreto. A multiplicidade temática e a abrangência a campos análogos como o da óptica, indiciam que Alberti havia contactado com as escolas flamengas, onde uma linguagem de vanguarda, mimética e verista, havia renovado os antigos paradigmas imagéticos. As qualidades inerentes do novo criador que nasce sobre a pena de Alberti são radicalmente opostas ao receituário tradicional e secreto das oficinas que o velho Cennino Cennini havia proclamado no seu seu trattato, Il Libro dell’Arte. A visão que Alberti preconiza, perfeitamente enquadrada pela minucia e detalhe dos pintores na distante Flandres, favorece a hipótese formulada por Gombrich quando este evoca um possível contacto do autor do De Pictura com a arte neerlandesa durante o seu exilio. Este contacto terá ocorrido provavelmente numa viagem realizada entre 1428 e 1431 a Norte dos Alpes, no preciso momento em que as novas doutrinas de representação e mimese tomavam forma e faziam escola. Um breve olhar ao seu percurso biográfico, permite, de facto, inferir semelhante hipótese, mas requer uma análise profunda para lá da habitual tradição historicista. Em 1401, todos os homens da família Alberti de idade superior a dezasseis anos foram sujeitos ao banimento. Leon Battista, nascido já no exílio, será o único membro da família a registar no seu legado epistolar a penosa instabilidade e a humilhação política que este terá representado: «we have always hoped, in this exile of ours, to return again to our own country, to come together again in our own house, and to rest among our kinsmen. This hope and longing have grown more fervent, indeed, as we continually suffer and decline while unable to settle our spirits or to root our lives in some kind of stable order» (Baxendale 1991, 722). Durante este longo período de 27 anos, e, não obstante a pesada pena a que foram submetidos, a actividade profissional dos Alberti, enquanto mercadores e banqueiros internacionais, terá constituído uma garantia de segurança económica. Nascido em 1404 em Génova, Alberti foi educado nos principais centros de ensino do Norte de Itália, primeiro em Pádua na escola humanista de Gasparino Barzizza, onde estudou latim, e posteriormente na Universidade de Bolonha onde estudou jurisprudência. Durante este período de aprendizagem, terá adquirido igualmente competências profundas 119 em diversos ramos das ciências, nomeadamente na matemática e na óptica, factor que lhe terá conferido uma extensa capacidade intelectual (Alberti 2004, 3). Sobre o seu inegável intelecto, todos os relatos são unânimes em considerá-lo sublime e universal em todas as formas de conhecimento, dimensão enciclopédica que lhe granjeou o encómio de um copista coetâneo à margem de um manuscrito do seu Trivia Senatoria «Die quid tandem nesciverit hic vir?» (Blunt 1959, 3). Apesar desta notoriedade académica, será, no entanto, sobre a ciência da pintura que o seu olhar se deterá quando decide, após o seu regresso a Florença em 1434, publicar um tratado dedicado a esta arte. Quando questionada a fonte onde Alberti se baseou para a renovada teoria artística que propõe no De Pictura, de facto sobram mais questões do que respostas. Vitrúvio, no que respeita ao corpus do De Architectura, centra-se exclusivamente sobre o receituário pigmentário, não existindo nenhuma referênciaespecifica à prática da pintura. À excepção da critica que estabelece sobre a permuta de uma pintura concreta em prol de diversas fantasias, prescreve uma clara supremacia desejável do real: «É que, de facto, não devem ser aprovadas as pinturas que não são semelhantes à realidade, nem, se são tomadas elegantes pela arte, delas se deve logo julgar favoravelmente, a não ser que apresentem determinadas razões justificativas aplicadas sem contradições» (Vitrúvio 2006, 273). Ernst Gombrich formula uma importante hipótese que importa aqui aprofundar: «Fue ayudado Alberti en su asombroso diagnóstico por el conocimiento de la pintura flamenca?» (Gombrich 1985, 53). Esta questão obriga a uma reflexão profunda em torno do período decorrente entre 1429 e 1431, do qual pouco se sabe e que poderá constituir a chave para a resolução dessa misteriosa fonte onde Alberti se terá inspirado. Na obra Vita di Leon Battista Alberti, que Girolamo Mancini levou ao prelo em 1882, este aponta como hipotética a presença de Alberti na segunda legação Transalpina confiada a Albergati por Martinho V, em 1430, com a missão de atenuar as graves divergências entre o rei de França e o duque da Borgonha, Filipe III, o Bom, em face da aliança deste com os ingleses. (Mancini 1882, 97-99). Com efeito, nessa segunda delegação, o Cardeal Albergati percorreu todo o norte da Europa, onde visitou as «province francesi, belghe e tedesche», tendo tido contacto pessoal com o escol de excepção que prefigurava a corte de Filipe o Bom. Esta conjectura sai reforçado pelo facto de o próprio Cardeal Albergati ter sido retratado pelo recém-chegado da península Ibérica, Jan van Eyck, pintor e embaixador do Duque da Borgonha Filipe III. O encontro entre Jan Van Eyck e o jovem Alberti, ainda que não documentado, revelar-se-ia bastante interessante tendo em conta o consenso em torno das visitas de Jan Van Eyck a Itália por volta dos anos de 1425 e 1426, e das evidências estéticas resultantes dessa viagem apontadas por Charles Sterling (Barghahn 2013, 32). Serão, aliás, inúmeras as viagens semelhantes à que Jan Van Eyck terá hipoteticamente realizado a Itália: caso da referida estada em Ferrara de Rogier van der Weyden (1400-1464) aquando da sua viagem a Roma em 1450; de Petrus Christus (1410/20-1473); de Hans Burgkmair (1473-1531); de Daniel Hopfer (1470-1536); de Joachim Patinir (1480-1524); de Herri met de Bles (1510-1555/60), entre muitos outros (Aikema e Brown 1999, 22-24). O problema destas viagens no que concerne à publicação do De Pictura é que são na sua grande maioria, posteriores à sua data de publicação, ou seja, a 1435, o que levanta de facto uma problematização em torno do acesso de Alberti a uma fonte precoce no que respeita à teoria óptica flamenga. Esta constatação, quando confrontada com o estipulado no tratado no que concerne ao tratamento óptico e mimético da realidade, confere, de facto, à hipótese formulada por Mancini uma inusitada probabilidade. Em 1434, com trinta anos de 120 idade e recém-chegado da flandres, o jovem Alberti chegava finalmente a Florença na posse da nova teoria pictórica flamenga, concretizando a sua harmonização com as experiências conceptuais que Brunelleschi, Ghiberti, Donatello e Masaccio desenvolviam no campo do espaço pictórico. Deste encontro, nascerá assim a Scientia Pictórica, mas o seu primeiro impacto, para lá da disseminação da nova ciência perspéctica, far-se-á notar fundamentalmente na reformulação estatutária do pintor. O modelo, será Vitrúvio, mas a inspiração poderá ter uma origem muito mais setentrional do que comummente se considera. Se de facto, a ausência de provas documentais não permite confirmar cabalmente o contacto entre Alberti e as oficinas Flamengas num período anterior à publicação do De Pictura, a evidente renovação conceptual da óptica pictórica patente no corpus teórico do tratado, demonstra-o. Alberti será assim o primeiro a juntar essas duas competências numa só teoria: óptica e perspectiva. Por outras palavras, e retomando o conto dos dois irmãos com que Panofsky ilustra esse encontro – finalmente alguém matou o dragão. O Caso Português: Atavismo ou Modernidade? Chegamos assim ao derradeiro capítulo desta breve história da ciência da pintura – a sua migração para a periferia e «microcentros» europeus. O caso português será paradigmático. A análise detalhada da pintura nacional produzida entre meados dos séculos XV e XVI, obriga, de facto, a diversas cautelas no que à integração das práticas pictóricas de vanguarda diz respeito. Apesar da acentuada diferenciação dos estilemas em voga nos principais núcleos oficinais do reino, nota-se uma assimilação praticamente integral da óptica pictórica flamenga, aspecto que confere à «escola portuguesa», uma paridade absolutamente inequívoca para com as suas congéneres. Poder-se-á assim, questionar de que modo e com que grau de intensidade, terá a óptica pictórica penetrado no reino, e quais os mecanismos envolvidos na sua introdução. É certo que nunca se conferiu o devido valor à presença de Jan van Eyck no reino, uma presença que apesar de breve, poderá ter deixado uma influência extremamente importante e contribuído para a alteração do gosto dominante na corte Avisina. Mas sobretudo, poderá ter estimulado o envio de pintores para a flandres com o objectivo de obterem formação nessa inovadora prática pictórica. Certo é, que poderemos formalizar um arco relacional este primeiro evento e o facto de cerca de quatro décadas depois, constatarmos já a presença desse filosofema na pintura portuguesa, ou seja, em pleno período de actividade de Nuno Gonçalves. E esta constatação permite formalizar um segundo arco relacional com o período em que as principais oficinas nacionais já se encontravam a laborar de acordo com as regras totais da ciência da pintura europeia. Na verdade, se o tradicional «fosso» instalado entre a oficina de Nuno Gonçalves e as suas congéneres quinhentistas parece evidenciar-se face às opções estilísticas empregues, do ponto de vista da representação pictórica de efeitos lumínicos e ópticos - caso particular das texturas, dos reflexos, do domínio da luz e dos matizes – a continuidade parece por demais evidente. Esta questão, não obstante, constituir um facto claramente assinalável, tem sido até à data flagrante e incompreensivelmente ignorado pela historiografia da arte portuguesa. A única excepção a este diagnóstico encontra-se num ensaio de 1993, intitulado Pintura Contemporânea dos Descobrimentos, onde Luís Filipe de Abreu estabelece uma abordagem aos painéis de Nuno Gonçalves sob uma perspectiva 121 inteiramente inovadora, ou seja, analisando aspectos relacionados com os efeitos ilusionísticos e ópticos da obra. A distinta abordagem que efectua aos painéis, longe do tradicional e obsessivo escopo iconográfico, dever-se-á provavelmente à sua formação base enquanto artista-plástico e Professor Catedrático da Faculdade de Belas Artes de Lisboa, condição que lhe confere uma especial apetência a aspectos relacionados fundamentalmente com a técnica pictórica. A sua abordagem, revela diversos elementos que permitem intuir claramente uma intenção cientificista na concepção da obra, tanto naquilo que designa por “tratamento da luz arbitrado com decisão”, como na representação metódica de sombras, reflexos e texturas. Outro aspecto interessante é aquele em que, com inegável argúcia do autor, as sombras projectadas representam um fenómeno típico de sombra dupla e divergente provocada por uma origem de luz dupla, ou melhor, proveniente de fonte dividida por um cepto vertical (Abreu 1993, 361-362). O que Abreu identifica na obra, são precisamente os traços estruturais que caracterizam o primeiro estado «evolutivo» da pintura cientificada antes de uma integração plena da perspectiva Albertiana. Com efeito, recorde-se que a primeira representação mimética de uma sombra de dupla intensidade terá sidopintada por Robert Campin entre 1428 e 1430. Recorde-se igualmente que no mesmo período em Itália, e não obstante a utilização que Masaccio fará da sombra enquanto dispositivo narrativo nos frescos da Capela Brancacci, a sua representação resulta de uma dedução lógica e não de um exercício observacional directo - prática que será implementada apenas entre a década de sessenta e setenta do Quattrocento. Mesmo nessa data, o diferencial existente entre o Miracolo di Sant’Antonio da Padova ou Sacra Conversazione de Piero della Francesca de 1472-1474 e o São Jerónimo de Antonello da Messina de 1475, permite intuir claramente que o domínio óptico da luz e da sombra dependeria integralmente da compreensão e domínio da óptica pictórica flamenga e não da compreensão matemática do espaço pictórico. Primeiro a luneta e só depois a espingarda… Um olhar atento aos painéis permite concluir deste modo, que em meados do século XV, a nova filosofia observacional flamenga já se encontrava inteiramente implementada na oficina de Nuno Gonçalves, laborando a mesma de acordo com os padrões de vanguarda em voga no especto oficinal europeu. Mais, o seu cotejo com a obra contemporânea de Piero della Francesca, permite intuir um claro ascendente da oficina lisboeta no que concerne ao domínio mimético da luz, das sombras e das texturas, não obstante o facto de a compreensão e aplicação das regras perspécticas serem ainda rudimentares, aspecto que se faz notar tanto nos Painéis, como no São Vicente Atado à Coluna. Das inúmeras sombras duplas divergentes elencadas por Abreu, destacam-se precisamente a projecção da bota no painel do Infante, a referida lança e corda do painel do Arcebispo, ou ainda as projecções presentes tanto no São Vicente Atado à Coluna, como no São Vicente da Cruz em Aspa. Todos estes exemplos constituem uma prova inequívoca do afã do pintor em demonstrar um domínio e uma vanguarda óptica absolutamente irrepreensível. O facto destas sombras representarem aquilo que Luís Filipe de Abreu designa por «faixas divergentes de fraca intensidade sobrepostas num triangulo de maior opacidade junto ao objecto», constitui prova inequívoca de que o pintor pretendeu deliberadamente demonstrar que o espaço pictórico para o qual a obra se destinava, se encontrava iluminado pelo menos por duas fontes autónomas e multidireccionais. Este aspecto denota uma clara sofisticação do artista, traduzida mediante o tratamento conceptual da luz e da sombra com 122 contornos claramente cientificistas. Com efeito, a origem lumínica dessas sombras de projecção dupla encontra-se representada e claramente identificável em inúmeros reflexos espectrais, caso particular de um conjunto janelar cindido por um mainel central: «No painel dos cavaleiros, encontramos uma chave que o pintor nos quis deixar, como quem enfaticamente chama a atenção para o problema das luzes: no capacete do cavaleiro das barbas, bem de frente, o reflexo da janela de onde ela provém. A tal janela com o colunelo ao meio... que também está na armadura (coxa) do cavaleiro de joelhos e na gola do cavaleiro da lança. E no peito deste mesmo, o reflexo da ogiva de uma janela gótica, ornamentada de maneira habitual, com arcos cruzados. Tudo nos fala ostensivamente da luz, para que não tenhamos dúvidas de que o mestre tem um discurso coerente, intencional e significante» (Abreu 1993, 361 - 362). Os reflexos destas janelas encontram-se assim habilmente dissimulados, tanto no capacete do cavaleiro das barbas no Painel dos Cavaleiros, como na referida armadura e gola do cavaleiro localizado á direita de São Vicente no Painel do Arcebispo, mas também, ainda que de forma desvanecida, na armadura e na perna dos cavaleiros situados no extremo oposto do mesmo painel. O reflexo da armadura e da gola do cavaleiro da direita, detalha inclusive alguns pormenores arquitectónicos extremamente relevantes, caso específico de um arco ogival aparentemente polilobado e cuja concepção sugere uma observação directa e presencial. Efectivamente, parte da novidade desta «filosofia observacional», consistiria precisamente na harmonização conceptual entre o espaço pictórico e o espaço observacional, resultando numa hábil conjugação entre a obra e o espaço lumínico a que esta se destinava. Constata-se assim, que os reflexos presentes no capacete do cavaleiro das barbas, assim como, nos materiais reflectores que os diversos cavaleiros do Painel do Arcebispo envergam, quando confrontados com as múltiplas direcções das sombras representadas, permitem confirmar precisamente a existência de duas fontes lumínicas autónomas provenientes de janelas ogivais e maineladas. Esta conclusão, a necessitar de futuros subsídios, poderá, de facto, ajudar a lançar alguma luz sobre o local para o qual as obras terão sido originalmente criadas. Esta demorada análise votada à obra de Nuno Gonçalves, permite caracterizar todo um quadro operativo, que meio século mais tarde assumirá uma força expressiva absolutamente ímpar. Neste contexto, existe uma oficina quinhentista cuja notoriedade a formaliza enquanto genuína fonte das demais. A proficiência e singularidade das obras aí produzidas, sugere tratar-se do núcleo difusor da pintura cientificada em voga no espectro oficinal português – trata-se, claro está, da oficina lisboeta de Jorge Afonso. Uma das razões para a aparente centralidade epistémica que a oficina evidencia, prende-se fundamentalmente com as inúmeras ligações familiares, de amizade e de parceria que o pintor possuía com a grande maioria dos protagonistas da cena artística nacional: Jorge Afonso era cunhado do flamengo Francisco Henriques, considerado «ho milhor oficial de pymtura que n’aquelle tempo avia», sogro de Gregório Lopes, tio das esposas de Cristóvão de Figueiredo e de Garcia Fernandes, parente de João de Ruão, e terá ainda mantido ligações documentadas com Vasco Fernandes e Gaspar Vaz, que em 1515 terão testemunhado uma escritura de aquisição de bens do artista lisboeta (Serrão 2001, 106). Deste modo, a análise da técnica em voga na sua oficina poderá caracterizar de forma cabal o «estado da arte» das demais, sendo de crer, que para além das relações familiares e/ou comerciais elencadas, Afonso terá desempenhado igualmente um relevante papel na divulgação e ensino da 123 pintura cientificada. Com efeito, a análise da ilustre Anunciação atribuída à sua oficina, revela a mesma consciência óptica que Luís Filipe de Abreu identifica na obra de Nuno Gonçalves, ou seja, um tratamento da luz arbitrado com intencional decisão, harmonizado, porém, com inúmeras referências oriundas desse mundo multidisciplinar que a ciência da pintura, nesse meio século de permeio, havia, entretanto, conquistado. E, no entanto, para lá da inovação perspéctica, são ainda as preocupações com a luz e com a sombra que parecem ocupar inteiramente a atenção do artista. O pormenor da sombra projectada pelos pés do leitoril onde a mão da Virgem repousa, permite perceber que se mantém a predileção por uma duplicidade lumínica, ou em alternativa, por uma fonte singular cindida por um mainel, solução, de resto, emulada na arquitectura do plano fundeiro. Para além do mais, a oficina de Jorge Afonso manifesta um claro domínio característico da escola flamenga, i.e., um controle absoluto das problemáticas associadas à matiz, à textura superficial, à radiância e ao brilho. Com efeito, serão inúmeros os exemplos visuo-tácteis totalmente concordantes com esse mundo multi-textural e sinestésico que Panofksy tão bem caracterizou: seja na sensação visual de leveza que as penas das asas do Anjo Gabriel transmitem; na aparência cálida da esteira africana em contraste com a frialdade da tijoleira; ou no brilho áureo do bastão de ouro incrustado de pedras preciosas que o Anjo empunha. Note-se, porém, que um dos pormenores mais extraordinários destaobra, reside na revolucionária e já amplamente referida reprodução do chamado Efeito Tyndall, fenómeno óptico caracterizado pela dispersão da luz nas partículas em suspensão coloidal. A representação meticulosa das diversas volutas de fumo, encontram na Anunciação uma expressão inteiramente original e vanguardista, sugerindo o detalhe aplicado à sua representação (Medeiros 2020, 88). A obra evidencia notórios traços de uma observação directa do fenómeno e de um claro comprometimento epistémico para com a realidade observável, em detrimento das medievas concepções sobrenaturais. Também a dupla Vasco Fernandes/Gaspar Vaz irá evidenciar notórios traços de um absoluto domínio dos fundamentos da pintura cientificada, facto que se reveste de especial importância, se tivermos em conta tratar-se de uma oficina com determinadas características regionalizantes. Com efeito, o facto de uma oficina laborar em Viseu precisamente nos mesmos moldes da sua congénere lisboeta, permite intuir que na primeira metade do século XVI, a ciência da pintura encontrava-se amplamente disseminados pelos principais centros urbanos do reino. Todas estas evidências, parecem conferir um nexo causal entre a mítica oficina de Nuno Gonçalves e as suas congéneres quinhentistas. Note-se que do ponto de vista cronológico, será amplamente plausível estabelecer uma ligação, ainda que indirecta, entre Nuno Gonçalves, activo entre 1450 e 1490, e os jovens pintores Jorge Afonso (1470-1540) e Vasco Fernandes (1475- c. 1542). Ambos teriam 20 e 15 anos, respectivamente, aquando da morte do velho mestre, idade em que já teriam certamente iniciado, ou inclusive, terminado a sua formação. O que este facto permite deduzir, é que no lapso de uma geração apenas, para além do evidente domínio da óptica, ter-se-á operado nas oficinas nacionais a recepção, assimilação e transmissão da perspectiva linear, fechando deste modo o arco evolutivo da pintura portuguesa dentro de uma esfera conceptual perfeitamente a par das suas congéneres europeias. Lisboa, 14 de Março de 2023. 124 Bibliografia ABREU, Luis Filipe de, «Pintura Contemporânea dos Descobrimentos - Contribuição para a sua Leitura», In A Universidade e os Descobrimentos, AA.VV., 353-366, Lisboa: Casa da Moeda, 1993. AIKEMA, Bernard e BROWN, Beverly Louise, Renaissance Venice and the North. Crosscurrents in the Time of Dürer, Bellini and Titian, London: Thames & Hudson, 1999b. AINSWORTH, Maryan W. e CHRISTIANSEN, Keith, From Van Eyck to Bruegel, New York: The Metropolitan Museum of Art, 1999. ALBERTI, Leon Battista, On Painting, London: Penguin Classics, 2004. 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