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Aristóteles e a Filosofia

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Aristóteles
Émile Boutroux
Introdução e notas de Olavo de Carvalho
1ª edição — janeiro de 2024 — CEDET
Título original: Aristote,
em Etudes d’histoire de la philosophie (3e édition). Paris: Félix 
Alcan, 1908.
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro�ssional e Tecnológico
Av. Comendador Aladino Selmi, 4630,
Condomínio GR Campinas 2 — módulo 8
CEP: 13069-096 — Vila San Martin, Campinas-SP
Telefone: (19) 3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br
CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book
CEDET LLC
1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Felipe Denardi
Tradução:
Christian Lesage
Revisão:
Vitório Armelin 
Preparação de texto:
Miguel Mallet
Diagramação:
Virgínia Morais
Capa:
Lucas Gabriel Goes de Macêdo
Revisão de Provas:
Flávia Regina eodoro
Andressa Gotierra da Silva
Telma Regina Matheus
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Boutroux, Émile (1845–1921). 
Aristóteles; Émile Boutroux; tradução de Christian Lesage; 
introdução e notas de Olavo de Carvalho
– Campinas, SP: Vide Editorial, 2024.
ISBN: 978-85-9507-209-1
1. Filoso�a. 2. Filoso�a de Aristóteles.
I. Autor. II. Título.
CDD – 100 / 185
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Aristóteles – 100
2. Filoso�a de Aristóteles – 185
VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor e do detentor dos direitos autorais.
Sumário
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 B
 O   A
 O     A
 C  
 O      
 A 
 L
 M
 F 
 M
 C
 A
 M
 M
 B 
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 A   
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A  É B 
O  C
texto que se vai ler foi redigido inicialmente por Émile Boutroux
como verbete para a Grande Encyclopédie (Paris, 1886) e depois
incluído pelo autor nos seus Études d’Histoire de la Philosophie
(1897).1 Com seus cento e tantos anos de idade, ainda é uma das
melhores introduções ao estudo da �loso�a de Aristóteles, e, fora um
ou outro ponto corrigido pela pesquisa mais recente — de que dou
ciência nas notas de rodapé —, di�cilmente se encontrará um guia
mais seguro para orientar os primeiros passos do estudante que
ingressa no assunto.2
A causa dessa vitalidade reside não só no extenso conhecimento que
o autor tinha das obras do Estagirita e de seus comentadores antigos e
modernos, porém, muito mais que isso, na conaturalidade entre seu
espírito e o do mestre que ele celebra como encarnação suprema do
gênio grego.
Excetuando-se talvez F. W. von Schelling e Félix Ravaisson, que o
antecederam sob mais de um aspecto, ninguém no século  estava
mais dotado para apreender a intimidade do pensamento de
Aristóteles do que o autor de De la Contingence des Lois de la Nature
(1874), título que, para quem sabe do que se trata, já é toda uma
declaração de aristotelismo.
Para captar o sentido dessa a�nidade, é preciso compreender o que
Boutroux queria dizer com a “contingência das leis da natureza”.
A história das concepções modernas sobre o mundo físico pode-se
dividir, grosso modo, em duas épocas: o império do mecanicismo e a
era da física indeterminista. O primeiro origina-se no século , com
Galileu, alcançando seu apogeu na centúria seguinte com Newton. A
segunda esboça-se no século , com Leibniz, mas não alcança sua
plena expressão senão dois séculos depois, com Max Planck e Werner
Heisenberg. O confronto desses dois estilos de pensar a natureza
con�rma o dito de Arthur O. Lovejoy segundo o qual toda a história
intelectual do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé a
Platão e Aristóteles. Pois, no sentido mais rigoroso dos termos, o
mecanicismo clássico é platônico e o indeterminismo moderno é
aristotélico.
Platônico quer dizer, até certo ponto, pitagórico. A noção pitagórica
de que Deus escreve o livro da natureza em caracteres matemáticos,
longo tempo abandonada no Ocidente, foi vigorosamente retomada
pela ciência renascentista, dando surgimento à concepção mecanicista
de que, uma vez apreendidas as equações fundamentais do universo,
tudo o mais se poderia conhecer por dedução matemática.
Nada mais distante da verdade histórica do que a crença popular de
que a nova ciência se voltou para a observação do mundo natural,
negligenciada pelos escolásticos. A primeira objeção que estes
levantaram contra a lei galileana da inércia foi, precisamente, que ela
se opunha aos fatos observados. Galileu inventou, isto sim, o
experimento matematizado, o que é o mesmo que dizer: o
experimento idealizado, que não corresponde a nenhum fato
particular da experiência, mas sim à “fórmula” matemática por trás
dos fatos. A ciência assim concebida não lidava com a natureza dada
na experiência, mas com estruturas gerais que, governando
invisivelmente os acontecimentos naturais, só são apreensíveis sob a
forma de relações matemáticas. É patente a inspiração platônica deste
recuo da mente desde a multiplicidade sensível à unidade de umas
quantas fórmulas.
Matematização quer dizer, desde logo, simpli�cação. A antiga ciência
aristotélica também buscava a simpli�cação, mas sempre pelo método
de remontar dos seres individuais às suas espécies por meio da
abstração e da classi�cação, permanecendo sempre estreitamente
referida aos dados sensíveis dos quais havia partido. Na ciência
renascentista, o que se busca já não é a “essência” — o conteúdo
intelectualmente apreensível por trás dos dados sensíveis —, mas
apenas a fórmula, a equação que relaciona uns aos outros esses dados
sensíveis, independentemente de qual seja a “natureza” dos seres
considerados. Em ambos os casos a mente procedia por abstração: mas
uma coisa é reduzir vários entes à unidade de seus traços comuns,
suprimindo as variações acidentais, outra coisa é reduzi-los a suas
medidas, proporções e relações. A descrição cientí�ca do mundo
perde assim em alcance ontológico e força explicativa o que ganha em
precisão matemática e aplicabilidade técnica. Todos os dados não
redutíveis ao modelo matemático tinham de ser excluídos da área de
investigação, em benefício da coerência do sistema — uma perda que,
de início, não pareceu grave, porque as relações matemáticas obtidas
podiam, em seguida, ser aplicadas de volta à natureza sensível,
demonstrando-se exatas. A busca da exatidão vai então cada vez mais
substituindo a busca do quid, da essência, até o ponto em que se torna
possível produzir uma descrição assombrosamente exata e e�caz de
algo que não se tem a menor ideia do que seja.
É absolutamente errado dizer que a nova ciência “derrubou” ou
“contestou” o que quer que fosse da ciência antiga. Ela limitou-se a
mudar de assunto, investigando em outras direções e respondendo a
novas perguntas que jamais tinham interessado à ciência antiga.
Fortemente in�uenciada por Aristóteles, esta última não acreditava
muito na e�cácia do método matemático no domínio das ciências da
natureza. As realidades matemáticas, segundo Aristóteles, são
essencialmente �xas e imutáveis, não podendo por isto corresponder
perfeitamente aos fatos da natureza, que é, por de�nição, o reino da
mutação — do nascimento e da deterioração (γενεσις και φτορας,
guênesis kai orás). Uma ciênciada natureza que procedesse
principalmente por medições e comparações matemáticas chegaria, no
máximo, a leis de probabilidade razoável, objeto da dialética, muito
abaixo do ideal da certeza demonstrativa (αποδειζις, apodêixis), que
era o objetivo supremo da ciência aristotélica.
Mas, no primeiro momento, nenhum dos próceres da nova escola
pensou nisso. Os sucessos da física matematizada eram tão
estrondosos que qualquer objeção aristotélica assumia o ar de uma
negação insensata do fato consumado. Toda a mitologia moderna que
contrasta a imagem de uma ciência medieval puramente lógico-
verbalista com a da nova ciência voltada para “a observação da
natureza” — mitologia que ainda é transmitida nas escolas, a despeito
de já mil vezes desmoralizada pela pesquisa histórica — nasce,
paradoxalmente, dos sucessos obtidos pela aplicação de modelos
matemáticos que só sob aspectos muito determinados e limitados
correspondiam à realidade observada. Para fazer uma ideia de quanto
a imagem estereotipada da transição renascentista chegou a dominar
as consciências, basta ver que até um homem da autoridade de Albert
Einstein chega a proclamar que Galileu libertou a ciência física de um
jugo aristotélico de mais de um milênio.3 Ora, na época de Galileu,
não fazia nem três séculos que as concepções físicas de Aristóteles
tinham reingressado em circulação no Ocidente, por intermédio de
Sto. Alberto Magno, suscitando, em vez de aprovação geral, uma geral
hostilidade que só aos poucos foi vencida. Por outro lado, é fato que o
aristotelismo dos escolásticos era de tipo muito atenuado pela
mediação da doutrina cristã, e que um aristotelismo stricto sensu só
vem a surgir, por ironia, justamente no renascentismo italiano, com
Pietro Pomponazzi — isto é, no período mesmo no qual a cultura de
almanaque transmitida nas escolas e manuais populares data o �m da
hegemonia aristotélica no pensamento ocidental.
Qualquer que fosse o caso, o sucesso do modelo matemático,
ampliado pelos desenvolvimentos extraordinários que lhe deu
Newton, conferiu à nova ciência a autoridade de uma nova revelação
sinaítica. De lado a lado, o continente europeu é varrido por uma onda
de matematismo, que abrange desde as discussões teológicas até a
jardinagem: Descartes aposta na conversão dos in�éis pela
argumentação more geometrico, enquanto nos jardins de Versalhes a
vegetação rebelde é disciplinada até reduzir-se ao formato de um
tabuleiro de xadrez. Deslumbrada pela claridade das equações que
aparentemente tudo explicavam (embora sua força descritiva viesse
justamente de haverem desistido de explicar o que quer que fosse),
ainda no século seguinte — que é o da efetiva propagação europeia do
mecanicismo, por meio da obra de Voltaire Éléments de la Philosophie
de Newton (1738) — a exaltação dos entusiastas chega a ver na nova
ciência um novo �at lux, o retorno ao momento primordial da criação:
“God said: ‘Let Newton be!’ — and all was light”.4
Uma das poucas vozes discordantes é Leibniz. Matemático ele
próprio, e dos maiores, mas igualmente versado na �loso�a escolástica
(principalmente portuguesa), que os novos �lósofos haviam
abandonado sem exame, ele adverte que nem toda a natureza do corpo
consiste somente na extensão, isto é, em grandeza, �gura e
movimento, mas que importa necessariamente reconhecer nela algo
que tenha relação com as almas e que se designa habitualmente por
forma substancial [...]. Pode-se até demonstrar que a noção da
grandeza, da �gura e do movimento não é distinta como se imagina, e
que encerra algo de imaginário e de relativo às nossas percepções.5
A ousadia desse parágrafo era tanta que historicamente seu efeito
�caria retido por mais dois séculos. A época que acabava de encontrar
mais um argumento para o mecanicismo na distinção de Bacon entre
as qualidades primárias e secundárias dos objetos, isto é, entre a
grandeza e as qualidades sensíveis, acreditando piamente na
objetividade da primeira e na subjetividade das últimas, não podia
mesmo engolir, da noite para o dia, a escandalosa proclamação de que
a grandeza “tem algo de imaginário” e de que aquilo que há de real e
objetivo nos seres é o seu individual e irredutível quid — a abominável
“forma substancial” dos escolásticos.
Assim, �cou o dito pelo não dito. A “Época das Luzes” faz-se de
avestruz, despede-se de Leibniz com as chacotas de Voltaire (que o
caricatura sob o personagem do Dr. Pangloss) e deixa as objeções para
depois, sem imaginar que renasceriam com força centuplicada no
século .
Leibniz, no entanto, já prevê que, pelo caminho matematizante, as
ciências iriam acabar desistindo de toda certeza e tendo de se
contentar com as probabilidades razoáveis de que falava o velho
Aristóteles. Retribuindo o mal com o bem, ele se põe a pesquisar a
matematização das probabilidades, terminando por descobrir o
cálculo in�nitesimal, incumbido de determinar a partir de que ponto
uma diferença pequena se torna irrelevante, e construindo assim a
única esperança de que uma física reduzida à probabilidade dialética
possa conservar ainda o estatuto de ciência rigorosa. A utilidade dos
estudos de Leibniz para a ciência do século  é incomensurável.
Mas, antes que o legado leibniziano pudesse ser retomado, foi
necessária uma longa batalha para abalar e en�m destruir as falsas
certezas em que se fundavam as ambições totalitárias do mecanicismo,
abrindo assim a possibilidade de um retorno à modéstia do
probabilismo aristotélico-leibniziano.
Nessa luta, a contribuição de Émile Boutroux é sem dúvida de um
valor que nem sempre os historiadores lhe têm sabido reconhecer. De
la Contingence des Lois de la Nature é, simplesmente, a contestação
radical das “imutáveis leis matemáticas da natureza” em que o
mecanicismo havia apostado o destino da humanidade europeia.
A argumentação de Boutroux parte de uma base kantiana. Nas
matemáticas reina a absoluta necessidade lógica, mas os juízos
matemáticos são puramente analíticos, no sentido kantiano, isto é,
suas conclusões já estão contidas em suas premissas. Assim, por mais
que busquemos adaptar as realidades do mundo sensível a um padrão
de exatidão matemática, jamais o conseguiremos por completo,
porque, de um lado, a ciência da natureza não pode contentar-se com
puros juízos analíticos e deve, ao contrário, produzir juízos sintéticos
obtidos da experiência; por outro lado, esses juízos sintéticos não terão
outro fundamento senão a indução, que não poderá jamais obter
senão certezas aproximativas. Os juízos produzidos pela ciência da
natureza não serão nunca juízos categóricos, mas juízos contingentes.
Se Boutroux tivesse parado aí, teria apenas repetido Kant,
assinalando um limite constitutivo do nosso conhecimento
experimental. Mas, prossegue ele, a contingência não está só nos juízos
cientí�cos que produzimos sobre a natureza: está na natureza mesma.
A diferença essencial entre as entidades matemáticas e os seres do
mundo físico não re�ete apenas alguma imperfeição da nossa mente,
mas a natureza mesma destes e daquelas. Se não conseguimos reduzir
todo o cosmos a umas quantas equações das quais tudo o mais se
pudesse deduzir matematicamente, é simplesmente porque os seres da
natureza não são entidades matemáticas, formais, imutáveis, alheias ao
tempo e ao espaço, mas, ao contrário, sua forma mesma de existência é
a mudança no espaço e no tempo. Na natureza, ao contrário do que
acontece no domínio lógico formal, podem acontecer coisas novas,
imprevistas. A necessidade natural existe, sim, mas é uma necessidade
condicional e relativa. Mais ainda, não é um só e mesmo padrão de
necessidade relativa que impera em todo o universo, mas este se divide
em estratos, que vão subindo da necessidade mais imperiosa até a
quase completa indeterminação, não vigorando em parte alguma nem
o absoluto determinismo nem o acaso completo. Daí que, sendo
impossível alcançar uma perfeita exatidão matemática nas leis gerais
da natureza, a matematização da ciência natural acabe tomando a
forma de um raciocínio de aproximação probabilística.O contingencialismo de Boutroux, se por um lado revigora as críticas
de Aristóteles ao método matemático na �loso�a natural,6 por outro
enuncia da maneira mais enfática o programa que mais tarde viria a
ser realizado pelo indeterminismo de Planck e Heisenberg.
O mais interessante, no caso, é que o próprio Aristóteles, ao enfatizar
as limitações do método matemático em física, não apenas se abstém
de negar toda utilidade a esse método, mas ele próprio lança as bases
para o estudo matemático do movimento, indo, portanto, muito além
do que, na época renascentista, puderam perceber tanto seus
seguidores quanto seus detratores. Esta observação, posta em relevo
bem recentemente,7 mostra que o contingencialismo das leis da
natureza estava bem mais próximo do espírito do aristotelismo do que
talvez o próprio Boutroux o houvesse percebido.
É evidente que a dívida de Boutroux não era só com Aristóteles. Ele
aprendeu muito com a teoria do hábito enunciada pelo seu mestre
Félix Ravaisson, ao qual De la Contingence des Lois de la Nature é
dedicado. Segundo Ravaisson, a capacidade de adquirir hábitos é uma
propriedade geral da natureza. Ravaisson de�ne o hábito como a
maneira de ser geral e permanente, o estado de uma existência
considerada quer no conjunto dos seus elementos, quer na sucessão
das suas épocas.
Hábito adquirido é aquele que é consequência de uma mudança.
Mas o que se entende especi�camente por hábito, e que constitui o
assunto deste trabalho, não é somente o hábito adquirido, mas o
hábito que, em decorrência de uma mudança, é contraído em relação
a essa mudança mesma que lhe deu nascimento.
Ora, se o hábito, uma vez adquirido, é uma maneira de ser geral,
permanente, e se a mudança é passageira, então o hábito subsiste para
além da mudança da qual é resultado. Ademais, se ele não se refere,
enquanto hábito e por sua essência mesma, senão à mudança que o
engendrou, o hábito subsiste por uma mudança que já não é e que
não é ainda: por uma mudança possível;
— eis o sinal mesmo pelo qual deve ser reconhecido.8
No entender de Ravaisson e Boutroux, as proclamadas “leis” da
natureza são em verdade hábitos, que, embora possam permanecer
estáveis por um tempo impensavelmente longo, nada têm de eterno e
imutável.
O contingencialismo não antecipou apenas a física de Planck e
Heisenberg. Ele também resolveu, antecipadamente, todas as
contradições em que viria a debater-se, em seus confrontos com o
mecanicismo das ciências físicas, a escola alemã das “ciências do
espírito” (Geisteswissenschaen). O pressuposto básico de que parte
essa escola é a distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey — inspirado
em Windelband e Rickert — entre “compreensão” e “explicação”, a que
corresponde outra, entre “sentido” e “causa”. Os fatos da natureza,
segundo Dilthey, explicam-se pelas suas causas; os fatos da história e
da cultura compreendem-se pelo seu sentido. Esta radical oposição de
métodos entre ciências da natureza e da cultura foi logo em seguida
relativizada por Max Weber, ao alegar que, embora sem aspirar a
formular leis causais de ordem geral, as ciências da cultura não podem
abdicar totalmente da explicação causal nem do instrumental
matemático.
Esta objeção de Weber foi amplamente aceita pelos cientistas sociais,
mas pouquíssimos dentre eles tiveram a ousadia de levá-la às suas
últimas consequências. Que consequências? Simplesmente isto: se o
método causal e matemático não pode ser excluído das ciências
humanas, quem garante que, reciprocamente, o método compreensivo
não possa ser aplicado às ciências da natureza? Falar num sentido dos
fatos da natureza é, para o mecanicista de estrita observância,
anátema. A natureza tal como enfocada pela ciência desde Galileu é
pura coisa, objetividade muda. Toda tentativa de captar nos fatos do
universo um sentido, um valor, é pura “criação cultural”, para não
dizer antropomor�smo primitivo. Mas será mesmo assim? O combate
à concepção coisista da natureza começou, no nosso século, da
maneira mais modesta, em círculos de marginais e excluídos da
comunidade acadêmica. O primeiro deles foi René Guénon. Em O
reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945), ele atacou, com
base na cosmologia vedantina, a redução da ciência natural aos
aspectos quantitativos, que separa arti�cialmente mundo natural e
mundo humano, e exigiu um retorno a antigas cosmologias que
integravam ambos numa visão da natureza como manifestação visível
de realidades espirituais. Titus Burckhardt, um continuador de
Guénon, assim resume a crítica do mestre:
A mais mínima percepção, o fato de que apreendamos com os
sentidos um objeto qualquer, de que o incorporemos à rede de
imagens interiores e de que o espírito o reconheça como verdadeiro e
real, constitui um processo indivisível que demonstra como, neste
mundo, condições de tipo muito variado se inserem umas nas outras,
umas em modo espaço-temporal, outras em modo temporal não
espacial e outras, ainda, em modo supraespacial e supratemporal.
Disto resulta que a “realidade” não consiste em meras “coisas”, mas
representa uma ordem de inconcebível sutileza e multiplicidade de
níveis. Todos os povos que não estejam deformados pela
modernidade sabem disso. Ter consciência da multíplice gradação
interna da existência faz parte da experiência primordial humana. Só
em virtude de uma evolução muito peculiar do pensamento foi
possível chegar ao ponto de aceitar uma ciência baseada
exclusivamente em dados numéricos como explicação satisfatória do
cosmos.9
Embora Guénon fosse ainda mais fundo na crítica, demonstrando,
em Les Principes du Calcul In�nitésimal (1952), que a ciência
quantitativista acabara perdendo a noção mesma do que era
quantidade e entrando com isto nas mais grotescas contradições, a
comunidade acadêmica fez questão estrita de ignorá-lo.
Mas, aos poucos, críticas semelhantes começaram a brotar de dentro
do próprio grêmio. Edmund Husserl, talvez o �lósofo de maior
in�uência nos círculos acadêmicos europeus de sua época, mostra, em
A crise das ciências europeias, que a matematização da imagem da
natureza importa em ignorar diferenças decisivas entre estratos da
realidade. Uns anos depois, a antropóloga Mary Douglas contesta a
noção de que todos os signi�cados entrevistos na natureza por
civilizações antigas sejam meras “criações culturais” arbitrárias, sem
conexão com propriedades objetivas da natureza: sem apoio em dados
objetivos da natureza, nenhum simbolismo é possível. O simbolismo
natural não apenas existe mas é a condição mesma para a existência
das culturas.10 O ataque se radicaliza quando Seyyed Hossein Nasr,
laureado historiador das ciências, lança sobre a concepção
quantitativista da natureza a culpa pelo desastre ecológico, que, a essa
altura, começa a preocupar os meios cientí�cos.11 Quase ao mesmo
tempo, Raymond Ruyer, biólogo eminente, informa ao mundo que o
conjunto de ideias cosmológicas informalmente compartilhado pela
elite cientí�ca norte-americana não só se opõe radicalmente a todo
cienti�cismo mecanicista mas forma, de maneira quase espontânea, as
bases de uma visão gnóstica do universo.12 E uma das bases dessa
gnose é justamente a constatação de que todo materialismo
mecanicista toma o mundo pelo avesso:
O materialismo consiste em crer que “tudo é objeto”, “tudo é exterior”,
“tudo é coisa”. Ele toma por pressuposto o caráter “super�cial” da
percepção visual e da consciência cientí�ca. Ele toma como “lado
direito” o avesso dos seres.13
Em direta oposição a essa visão das coisas, os gnósticos de Princeton
insistiam em que a forma própria de existência de tudo quanto existe é
ser algo em si mesmo, é possuir um quid, uma consistência interna,
uma identidade e, no �m das contas, quase um ego.
De um passo, a ciência do século  não apenas voltava às formas
substanciais dos escolásticos e de Leibniz mas também demolia o
muro entre ciências da natureza e ciências da cultura, entre
“explicação” e “compreensão”. Na perspectiva de Ruyer, já não seria
descabido a um físico ou a um biólogo indagar, para além dascausas e
processos, o sentido de um fato natural. Estava assim aberta a via para
a reconstituição da ciência compreensiva da natureza reivindicada por
Guénon, Burckhardt e Nasr. E um dos instrumentos que Ruyer
apontava como mais promissores nesse sentido era justamente uma
disciplina cientí�ca de criação recente que até então, aplicada
unilateralmente ao domínio das ciências humanas, parecera destinada
a fortalecer os preconceitos matematizantes: a teoria da informação.
Nas ciências da natureza, ela daria o resultado inverso: uma vez
enfocado qualquer fenômeno natural como um processo de
transmissão e recepção de informações, a consideração de um sentido
se tornava não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade.
Não é preciso exagerar, na história da progressiva demolição da fé
mecanicista, o papel que depois de Ruyer desempenharam omas
Kuhn, com a teoria das “revoluções cientí�cas”, e Michel Foucault, com
a alegação de que as epistemes — sistemas de chaves básicas de todo o
pensamento cientí�co de uma época — se sucedem de maneira
arbitrária. A irracionalidade da História — até mesmo da História das
ciências — nada prova contra a razão. Mas di�cilmente a crença na
mecanicidade matemática do universo poderia resistir a um abalo
como o que lhe deu o biólogo Rupert Sheldrake com sua teoria da
ressonância mór�ca:
A Natureza é essencialmente habitual. Entre os gregos desenvolveu-se
a ideia de que o mundo é governado por princípios invisíveis, não
materiais, que transcendem espaço e tempo. Os pitagóricos
conceberam-nos como números e relações numéricas; os platônicos,
como Ideias ou Formas intemporais. Estes pressupostos erigiram-se
em fundamentos da ciência moderna, e do século  em diante os
princípios imateriais governantes do universo material foram
concebidos como leis imutáveis moldadas por um Deus matemático.
Até a década de 60, essa velha ideia parecia mais ou menos
inquestionável; o universo mesmo era visto como uma máquina
eterna, e portanto o que poderia ser mais natural do que o fato de leis
o governarem? Mas, com a revolução cosmológica causada pela teoria
do Big Bang, o cosmos tornou-se mais parecido com um organismo
em desenvolvimento do que com uma máquina eterna. Ele parece ter
nascido uns 15 milhões de anos atrás, e ter-se desenvolvido e crescido
desde então. A totalidade da natureza evoluiu; um dia não houve
átomos, nem moléculas, nem estrelas ou planetas, nem cristais ou
células viventes. Todos esses sistemas desenvolveram-se no curso do
tempo. Assim, por que continuaríamos a pressupor que num
universo em evolução as leis que os governam foram �xadas de
antemão, antes até que o universo viesse a existir?
Por que não explorar a possibilidade de que as regularidades da
natureza tenham efetivamente evoluído? Talvez elas dependam de
hábitos que se desenvolvem organicamente dentro do universo, antes
que de leis impostas por uma mente matemática preexistente.14
A ideia de que as regularidades da natureza se assemelham antes a
hábitos do que a leis eternas foi proposta por Sheldrake no livro A
New Science of Life: e Hypothesis of Formative Causation [Uma
nova ciência da vida: a hipótese da causalidade formativa], em 1981, e
desenvolvida em e Presence of the Past: Morphic Resonance and the
Habits of Nature [A presença do passado: a ressonância mór�ca e os
hábitos da natureza, 1988]:
Essa hipótese postula que os sistemas auto-organizantes, de todos os
níveis de complexidade — como átomos, moléculas, cristais, células,
organismos, sociedades, planetas e galáxias —, são estruturados por
campos especí�cos chamados campos mór�cos, e que estes campos
contêm uma espécie de memória coletiva derivada de coisas
anteriores da sua mesma espécie. Assim, cada cristal de aspirina, por
exemplo, ou cada pé de carvalho, é moldado por um campo que é ele
mesmo moldado pela in�uência cumulativa dos cristais de aspirina e
pés de carvalho que os antecederam. A in�uência dos sistemas
similares anteriores, agindo através ou por meio do espaço e do
tempo, ocorre pelo processo da ressonância mór�ca, que envolve
uma ação do semelhante sobre o semelhante.
Paracelso ou Agrippa não diriam isso melhor. A teoria da ressonância
traz de volta, precisamente, as velhas noções da analogia, das
simpatias, das correspondências, en�m as similitudes, tão decisivas na
�loso�a antiga e medieval da natureza, que a episteme renascentista
acreditava haver banido para sempre15 e que, historicamente falando,
só tinham sobrevivido, a duras penas, no interior do gueto esotérico
perpetuamente assediado pela inquisição cientí�ca moderna.
A ciência deste �m de século pode não estar ainda totalmente livre da
contaminação mecanicista, com o seu cortejo de sequelas totalitárias.
Mas a ampliação do horizonte das perguntas possíveis foi tal, que hoje
em dia nenhum �lósofo ou cientista pode, sem incorrer em pecado de
dogmatismo que não passará despercebido a ninguém, proclamar a
existência de um abismo intransponível entre a ciência moderna e a
ciência antiga e medieval, nem muito menos instalar-se na primeira
com a presunção cega com que, ainda em 1932, um Léon Brunschvicg,
lendo os sábios do passado, se sentia um homem adulto a ouvir
histórias de crianças.16
Mas, no século passado — no século de Darwin e Spencer, de
Haeckel e Comte —, essa presunção imperava por toda parte, e o
establishment acadêmico fazia coro quase unânime à profecia de
Renan:
A ciência não terá destruído os sonhos do passado senão para lhes
pôr no lugar uma realidade mil vezes superior.17
Desa�ar essa certeza era expor-se à chacota, ao boicote, ao
isolamento. E o que mais impressiona, na �loso�a francesa do século
, é a vigorosa atualidade que apresenta, para nós de hoje, o grupo
de pensadores que, dentro da própria cidadela acadêmica, ousaram
opor-se a esse formidável consenso. Ler hoje Renan ou Comte, ou
qualquer dos outros profetas do império cientí�co-materialista, é
sentir o cheiro inconfundível da morte e do passado. Ler Ravaisson,
Ollé-Laprune, Lachelier, mas principalmente Boutroux, é entrar numa
atmosfera que é nossa e, em certos momentos, é conversar com
alguém que nos fala, por antecipação, do mesmo tipo de ciência que
hoje salta do século  para o terceiro milênio.
Curiosamente, muito do pensamento desses precursores permanece
desconhecido daqueles que, por descendência direta ou até mesmo
ressonância mór�ca, expõem hoje ideias análogas às suas. No
parágrafo de Sheldrake acima citado, �ca bem claro que ele ignora por
completo que a doutrina dos hábitos da natureza já fora exposta, com
todas as letras, com mais de cem anos de antecedência, por Émile
Boutroux, partindo de uma ideia de seu mestre Félix Ravaisson.
Nem Ravaisson nem Boutroux jamais esconderam o que suas ideias
deviam a Schelling, a Leibniz e sobretudo a Aristóteles. Idêntica dívida
têm hoje, sabendo-o ou não, os homens de ciência que se abrem ao
estudo dos imprevistos, das singularidades irrepetíveis, do misterioso
acordo entre ordem e desordem que se observa por toda parte num
cosmos bem diferente da máquina, escrava da ordem matemática,
imaginada pela ciência renascentista.18 A distinção de Aristóteles entre
um reino celeste e metafísico, regido por leis eternas, e um mundo
sublunar ou natural, submetido à mudança e capaz de imitar a
estabilidade do primeiro mediante algum meio-termo entre mudança
e permanência, é uma ideia que ressoa, com toda a sua força, não só
nas descobertas de Sheldrake mas — só para dar mais um exemplo —
na teoria das catástrofes de René om.19
Mas a simples capacidade de extrair riquezas de dentro de um legado
aristotélico que estava soterrado sob três séculos de maledicência já
mostra a poderosa independência de pensamento que animava
aqueles dois �lósofos franceses, aquela independência que lhes
permitia examinar a ciência antiga com uma visão direta e objetiva,
saltando por cima das viseiras impostas pelo establishment acadêmico
de então.
No caso de Boutroux, essa independência soma-se a outro fator, que
o torna, também, um esplêndidohistoriador da �loso�a. É que o
�lósofo da contingência, tendo rejeitado as supostas leis eternas da
natureza, não poderia em seguida cair escravo ante pretensas leis de
ferro do devir histórico, a cujo culto a in�uência hegeliana vinha
afeiçoando boa parte da intelectualidade europeia. Como frisou André
Canivez, Boutroux, em seus estudos históricos, se opõe ao neo-
hegelianismo e insiste numa �loso�a da história que não seja
demonstração de uma regularidade preestabelecida no fundo de
singularidades parciais mutuamente neutralizadas. Ele preferiu trazer
à luz a atividade do livre-arbítrio no �o da continuidade histórica. Não
há um sistema da história. Ela não é a ressurreição das doutrinas
mortas, mas o acionamento de seus recursos inesgotáveis. O
historiador une-se, assim, ao teórico da contingência.20
Não há, de fato, compreensão mais humilde, mais objetiva e mais
profunda de uma �loso�a do que aquela que, em vez de “explicá-la”
pelo “seu tempo histórico”, remetendo-a ao museu das ideias
inofensivas, busca, ao contrário, compreender-se a si mesma por ela,
revigorando a sua força e a sua luz originárias e demonstrando mais
uma vez a verdade da sentença de Hoffmansthal: “Para o espírito, tudo
está presente”.21
O Aristóteles que o leitor vai encontrar no presente volume não é,
portanto, um dado histórico de uma cultura extinta, exibido por um
arqueólogo, mas um tesouro �losó�co e cientí�co revivi�cado por um
intérprete capaz de “pôr em ação os seus recursos inesgotáveis”.
Rio de Janeiro, 31 de julho de 1999
Olavo de Carvalho
A
Τὸ πρῶτον οὐ σπέρμα ἐστὶν ἀλλα τό τέλειον.22
Aristóteles, Metafísica, xii, 7, 1073a, 1.
Se é verdade que em certos homens se encarna às vezes o gênio de
um povo, e que esses vastos e poderosos espíritos são como o ato e a
perfeição em que todo um mundo de virtualidades encontra seu termo
e sua perfeição, Aristóteles, mais que ninguém, foi um desses homens:
nele, o gênio �losó�co da Grécia encontrou sua expressão universal e
perfeita. Portanto, o que aqui evocamos é mais que o pensamento de
A
um indivíduo, notável, aliás; é o espírito da própria Grécia, no apogeu
de sua grandeza intelectual. Estará de acordo com o pensamento
analítico do �lósofo em questão, e na prática se mostrará
indispensável, estabelecer numerosas divisões em assunto tão amplo, e
considerar suas diversas partes uma por uma.
 
B
ristóteles nasceu em Estagira, colônia grega jônica da Trácia,
situada à beira-mar na península Calcídica, no ano de 384 a.C., e
morreu em Cálcis, na ilha de Eubeia, em 322.
Seu pai, Nicômaco, era médico, assim como seus antepassados. Eles
relacionavam sua família à de Macaão, �lho de Esculápio; e, como
muitos outros, davam a si mesmos o nome de Asclepíades. Nicômaco
foi médico do rei da Macedônia, Amintas , pai de Felipe. Este fator
pode ter contribuído para que Aristóteles fosse chamado à corte do rei
da Macedônia, para a educação de Alexandre. Na qualidade de
Asclepíade, supõe-se que tivesse recebido desde cedo instrução em
anatomia.
Aos dezessete anos, perdeu os pais. Viu-se então independente, e
possuidor de uma grande fortuna. O brilho de Atenas o atraiu a essa
cidade. A ela chegou em 367 ou 366 a.C., aos dezoito anos. Platão, que
ali fundara sua escola em 387 ou 386, estava então ausente; tinha
partido para Siracusa em 368 ou 367, e a deixaria por volta de 365,
para a ela retornar em 361 ou 360. Aristóteles ingressou no círculo dos
alunos de Platão, e fez parte dessa escola por vinte anos, até a morte do
mestre. Isso já contradiz a lenda de um atrito que teria ocorrido, bem
antes da morte de Platão, entre o mestre e o discípulo, provocado por
ingratidão e falta de respeito deste último. Diz-se que Platão, tendo
percebido a aplicação e a vivacidade de espírito de Aristóteles,
chamava-o de “o leitor”, e também de “a inteligência”. Supõe-se que, na
própria Atenas, ele tenha estudado não apenas o platonismo, mas
também os outros sistemas que vigoravam na época.
Muito antes da morte de Platão, ele manifestou sua independência. É
perfeitamente possível que, como membro da escola de Platão, já desse
aulas por conta própria. Ao menos escrevia já desde essa época; e se
suas primeiras obras são platônicas na forma e no conteúdo, elas já
contêm, entretanto, objeções às teorias das Ideias, e a a�rmação da
eternidade do mundo. Era a contragosto, dizia ele, e por zelar pelo
superior interesse da verdade, que se contrapunha dessa forma ao seu
mestre. Ele dava exemplo, aliás, de respeito pelo gênio de Platão. Em
poema que chegou até nós, ele celebra o mestre como um homem a
quem os maus não têm o direito de louvar, e que mostrou, por meio de
sua vida e de sua doutrina, que o homem bom é, ao mesmo tempo, o
homem feliz.
A morte de Platão, em 347 a.C., inicia um novo período na vida de
Aristóteles. Ele deixa Atenas e vai, com Xenócrates, para Atarneu, na
Mísia, ao encontro de seu amigo e condiscípulo Hérmias, tirano dessa
cidade, de quem veio a desposar a sobrinha, ou irmã, Pítia. Depois ele
se casaria novamente com uma mulher chamada Hérpile. Após a
queda e a morte de Hérmias, em 345, Aristóteles vai para Mitilene.
Daí, parece ter retornado a Atenas, onde abriu a escola de retórica em
que se colocou como adversário de Isócrates. Em 342 a.C., atendeu ao
chamado de Felipe, rei da Macedônia, pedindo-lhe que cuidasse da
educação de seu �lho Alexandre, então com aproximadamente
quatorze anos. Permaneceu na corte da Macedônia até que Alexandre
empreendesse sua expedição à Ásia (334 a.C.). Sem divagar em busca
de um ideal distante demais das condições da prática, Aristóteles
parece ter cultivado no espírito do seu aluno as qualidades generosas.
Alexandre manteve por toda a vida respeito e amor pelo seu mestre,
embora as relações entre eles se tivessem rompido após o assassinato
do sobrinho de Aristóteles, Calístenes, em 325 a.C.
Em 335 ou 334 a.C., Aristóteles retorna a Atenas, e aí abre, no Liceu,
uma escola que foi chamada de escola peripatética, ao que tudo indica
devido ao hábito do mestre de passear com os alunos enquanto falava
sobre ciência e �loso�a. Pela manhã, relata Aulo Gélio, Aristóteles
dava, para uma audiência seleta, uma aula acroamática,24 versando
sobre as partes mais complexas da �loso�a, em especial da �loso�a da
natureza e da dialética. À noite, dava uma aula exotérica,25 aberta a
todos que se apresentassem, que tratava de retórica, tópica26 e política.
Ensinava tanto em forma de aulas, quanto em forma de conferências.
Sua escola era, como a escola de Platão, uma sociedade de amigos que
se reuniam, em dias estabelecidos, para refeições em comum.
Sendo ele próprio rico, e gozando da assistência do rei, Aristóteles
podia dispor de todos os recursos cientí�cos comportados pela
sociedade de então. Diz-se que Alexandre enviou-lhe oitocentos
talentos para a confecção de sua História dos animais. Diz-se até que
pôs à sua disposição milhões de homens encarregados de procurar
para ele animais de todo tipo, especialmente peixes, de manter parques
de animais e viveiros de pássaros, de informá-lo sobre todas as
observações e descobertas que pudessem fazer avançar a ciência. São
lendas, porém suscitadas, sem dúvida, pelos fatos. Aristóteles
certamente reuniu todos os documentos, de toda natureza, que lhe foi
possível obter. Foi o primeiro a formar uma grande coleção de livros.
Embora Aristóteles, em 325 a.C., tivesse rompido com Alexandre, a
morte deste último, em 323, deixou-o em perigo. Quando estourou a
guerra lamíaca, ele foi considerado amigo dos reis da Macedônia e de
Antípatro,27 e perseguido por ateísmo. Deixou Atenas, segundo
declarou, para que os atenienses não se tornassem mais uma vez
culpados em relação à �loso�a. Refugiou-se em Cálcis, na Eubeia. Aí
veio a morrer, doente, no verão de 322 a.C., poucos meses antes de
A
Demóstenes, nascido no mesmo ano que ele. Tinha sessenta e dois
anos.
Seu caráter, atacado desde cedo por adversários políticos e cientí�cos,
surge em seus escritos como leal, humano e nobre; e nãohá fato
con�rmado que prove o contrário. Sua vida é imbuída de dignidade
moral e �losó�ca. Aristóteles é um gênio a um só tempo universal e
criador, e um trabalhador infatigável. Não possui o ímpeto de Platão:
tendo o espírito voltado para a realidade que nos é dada, tem por
quimérico tudo que não se relacione a ela; mas não se restringe aos
fatos, ou ao sensível: busca pelo inteligível. Em todas as matérias,
recomenda o meio-termo, o comedimento. Uma fortuna mediana, um
governo da classe média: esta é, segundo ele, a melhor condição para o
indivíduo e para a sociedade.
Diz-se que era magro e de pequena estatura; tinha olhos pequenos, e
na boca uma expressão irônica. Com a primeira esposa, Pítias, teve
uma �lha de mesmo nome. Com a segunda, Hérpile de Estagira, teve
um �lho, Nicômaco, do qual a Ética a Nicômaco leva o nome. Em seu
testamento refere-se em termos afetuosos à primeira e à segunda
esposa, aos dois irmãos, e aos seus �lhos; e demonstra solicitude em
relação aos amigos e parentes afastados.
 
O   A
história da conservação dos escritos de Aristóteles é pouco
conhecida. Segundo Estrabão28 e Plutarco,29 os escritos de
Aristóteles e de Teofrasto, após a morte deste último, teriam chegado
às mãos de Neleu,30 que os levou para sua casa em Escépcis, na Mísia.
Aí teriam sido escondidos num subterrâneo, e descobertos por
Apelicão31 na época de Sula.32 Este teria então mandado transportá-los
a Roma. Sejam ou não verdadeiras essas anedotas, os textos que se
conservaram foram revistos e classi�cados, no século  a.C., por
Andrônico de Rodes, �lósofo peripatético, que publicou deles uma
edição completa em torno de 60–50 a.C. É este o Aristóteles, mais ou
menos recomposto, que possuímos hoje. Nossa coleção contém,
provavelmente, tudo o que restava de autêntico no tempo de
Andrônico, e há motivos para considerar, em geral, apócrifas as obras
ausentes da coleção enumerada por Diógenes Laércio.33 Mas, também
provavelmente, nem tudo o que contém a edição dita de Andrônico é
de Aristóteles; e mesmo as obras autênticas não estão isentas de
acréscimos e modi�cações. Além disso, são conhecidos títulos de
obras comprovadamente autênticas que não constam de nossa coleção
e que aparentemente já estavam perdidas desde a época de Andrônico.
Entretanto, tudo indica que as obras mais importantes para o
conhecimento da �loso�a e da ciência aristotélicas tenham sido
conservadas.
Quais são, entre as obras que possuímos, as que devem ser
descartadas por inautênticas? A questão, em muitos casos, não pode
ser resolvida de forma precisa e segura. Eis os resultados obtidos por
Eduard Zeller,34 em sua Philosophie der Griechen, t. , 3ª ed. É
duvidosa ou inadmissível a autenticidade das seguintes obras: De
Xenophane, Zenone et Gorgia; De animalium motu; De plantis; De
coloribus; De audibilibus; De mirabilibus auditis; Physiognomonica;
Mechanica problemata; De indivisibilibus lineis; De mundo; De
respiratione; De virtutibus et vitiis; Œconomica; Rhetorica ad
Alexandrum. As obras Moralia Eudemea e Moralia Magna são
modi�cações da Ética a Nicômaco. Os fragmentos de cartas que
possuímos estão muito entremeados de acréscimos e alterações.
Os escritos deixados por Aristóteles podem, ao que tudo indica, ser
classi�cados em uma das três categorias seguintes: 1a. Livros didáticos
e de ciência propriamente dita: são os resumos e compêndios que ele
empregava em suas aulas.
Ele não os publicou, mas os divulgou unicamente entre os seus
alunos.
2a. Escritos publicados: estes destinavam-se ao grande público. Eram
escritos, segundo se dizia, de forma rica e cativante. Parte deles era em
forma de diálogos.
Frequentemente, usando expressões tiradas do próprio Aristóteles,
foram chamados de acroamáticos ou acroáticos os escritos não
publicados, e de exotéricos os escritos publicados. É certo que essas
expressões respondem a uma distinção capital na �loso�a de
Aristóteles. Existem, segundo ele, dois modos de ensino,
correspondentes aos dois graus do conhecimento. O que é conhecível
como necessário e absolutamente certo é assunto de demonstração
propriamente dita; o que não é conhecível senão como possível é
assunto de dialética. Em suas aulas, Aristóteles ensinava a ciência
perfeita: ele demonstrava; o papel do aluno era unicamente de ouvinte.
Mas fora de suas aulas, Aristóteles dirigia encontros dialéticos em que
se raciocinava em função das probabilidades, em função de
considerações mais ou menos externas ao objeto em questão, e nos
quais eram admitidos não apenas alunos, mas também gente de fora. É
este o valor das palavras acroamático e exotérico, empregadas em
referência ao ensino de Aristóteles. Este não as aplica às suas obras,
mas elas lhes são perfeitamente aplicáveis.
3ª. A essas duas categorias deve-se acrescentar uma terceira, a saber:
anotações destinadas ao uso pessoal de Aristóteles. Esses escritos
podem ser chamados de hipomnemáticos.35
Por �m, Aristóteles deixou discursos, cartas e poesias.
Desses três tipos de escritos, não chegaram até nós senão os
primeiros. Dos segundos e terceiros não nos restam senão fragmentos.
Entre os escritos perdidos, os mais importantes são: na primeira
categoria, o Tratado das plantas, a Anatomia, os Teoremas
astrológicos. Na segunda, os Diálogos e a História da retórica. Na
terceira, extratos de algumas obras de Platão e escritos sobre os
pitagóricos e sobre outros �lósofos. É sem dúvida nessa terceira
categoria que devem ser classi�cadas as Instituições (Πολιτειαι,
Politeiai), onde se encontravam informações de todo tipo sobre 158
cidades helênicas e bárbaras, coletânea perdida, da qual possuímos
numerosas citações muito interessantes. O tratado Da constituição dos
atenienses foi encontrado recentemente num papiro, e publicado em
1891.
Podem ser classi�cados da seguinte maneira os escritos cientí�cos
propriamente ditos, ou escritos não publicados, que possuímos, e que
representam, de maneira provavelmente completa no que diz respeito
ao essencial, a obra �losó�ca de Aristóteles: 1º. Escritos lógicos,
reunidos na época bizantina apenas sob o nome Ὄργανον [Organon]:
Κατηγορίαι, Kategoriai [Categorias], em partes alteradas e ampliadas;
Περὶ ἑρμηνείας,
Peri hermeneias [Do discurso, ou Das proposições], obra que parece
ser o trabalho de algum peripatético do século  a.C.; Αναλιτιχὰ
πρότερα, Analitica protera [Primeiros analíticos], que trata do
silogismo; Αναλιπχὰ ὔστὲρα, Analitica ustera [Últimos analíticos], que
trata da demonstração; Τοπιχά, Topica [Tópicos], que tratam da
dialética ou raciocínio em matéria provável. O livro  dessa obra é
geralmente apresentado como obra especial, com o título: Περὶ
σοφιστιχῶν ἐλἑνχων, Peri so�stikon elenkon [Dos argumentos
sofísticos].
2º. Escritos de �loso�a natural: Φυσιχὴ ἀχρόασισ, Fisike akroasis
[Física], em oito volumes, dos quais o livro , embora redigido
segundo anotações aristotélicas, não parece ser de Aristóteles; Περὶ
γενέσεως χαὶ φθορᾶς, Peri gueneseos kai oras [Da geração e da
corrupção]; Περὶ οὐρανοῦ, Peri ouranou [Do céu]; Μετεωρολογιχά,
Meteorologica [Meteorologia]; Περὶ ψυχῆς, Peri psikes [Da alma], e
diversos opúsculos ligados a estes, denominados Parva naturalia; Περὶ
τὰ ζῶα ἱστορἰαι, Peri ta zoa historiai [História dos animais], em dez
volumes, obra extremamente alterada, da qual o livro  é inautêntico;
Περὶ ζώων μορίων, Peri zoon morion [Das partes dos animais]; Περὶ
πορείας ζώων, Peri poreias zoon [Dos órgãos motores dos animais];
Περί ζώων γενέσεως, Peri zoon geneseos [Da geração dos animais],
obra gravemente alterada.
3º. Escritos ditos metafísicos, que abordam o que Aristóteles
denomina “Filoso�a primeira” (Πρὠτη φιλοσοφία, prote �loso�a): a
obra chamada Metafísica, em quatorze volumes, é uma coleção feita
aparentemente pouco tempo depois da morte de Aristóteles, e
compreende tudo o que se encontrava em seus papéis referente à
�loso�a primeira. Esses escritos devem seu nome atual: Pós-física (Τὰ
μετὰ τά φυσικὰ, Ta meta ta fysika) à sua posição que sucede à da física,
naedição de Andrônico. O que forma seu fundo são os livros , , ,
,  a , e  (numeração da edição de Berlim). O livro  e o livro 
a partir do cap. , 1065a26, são inautênticos.
4º. Escritos relativos às ciências práticas: Ηθιχα Νιχομαχεια, Ethika
Nikomakeia [Moral endereçada a Nicômaco]; Πολιτιχα, Politika
[Política], obra inacabada. Segundo Eduard Zeller, os livros  e 
da Política devem, ao que tudo indica, ser intercalados entre os livros
 e ; Τεχυη ρητοριχη, Tekne retorike [Retórica]; Περι ποιετιχης, Peri
poietikes [Poética].
A questão da cronologia, em relação às obras didáticas, é de pouca
importância. Todas essas obras, de fato, foram compostas nos últimos
anos da vida do �lósofo (335–322 a.C.): remetem umas às outras, e em
seu conjunto nos apresentam o sistema perfeito, sem nenhuma marca
de progresso.36 Até onde se pode julgar pelas frágeis indicações que
podem ser tiradas dos testemunhos históricos e do exame das obras
em si, Aristóteles compôs inicialmente os escritos lógicos, exceto as
anotações segundo as quais foi redigido o Περι ερμηνειας, Peri
hermeneias [Da interpretação], que parecem ser posteriores ao Περι
ψυχης, Peri psykes [Da alma]. Em seguida foram compostos os
escritos de �loso�a natural, depois as obras de �siologia e psicologia, e
sobre as ciências práticas; e �nalmente, ao que tudo indica, e em todo
caso posteriormente à física, a coleção dita metafísica. Aristóteles
U
parece, portanto, ter ido do abstrato ao concreto, e, no campo do
concreto, do ser inconstante ao ser imutável.
 
O    
A
niversalidade: esta é, como indicam os próprios títulos dos livros,
a primeira característica da obra de Aristóteles. Teoria e prática,
metafísica e ciência da observação, erudição e especulação, a �loso�a
de Aristóteles se estende a todos os campos. Ela é, ou almeja ser, o
saber em sua totalidade. Mais clara do que em Platão, mais geral do
que em Anaxágoras e Demócrito, da obra de Aristóteles emana a ideia
da ciência, considerada o objeto supremo da atividade. Não se trata de
uma curiosidade de eruditos, e sim da ambição de penetrar a essência
e a causa das coisas. Tudo o que é, sem exceção, mesmo o que parece
reles e insigni�cante, provoca, neste sentido, a busca do �lósofo. Em
toda produção da natureza, até na que aparenta ser mais humilde, ele
sabe que irá encontrar o inteligível e o divino.
É neste sentido que ele aborda todos os objetos acessíveis à
inteligência humana; e, munido de todos os conhecimentos positivos
que se podia adquirir então, tão atilado em sua intuição quanto
rigoroso no raciocínio, criou ou constituiu a maior parte das ciências
pelas quais se dividiria, em seguida, o gênio humano. A lista das
ciências assim organizadas por ele é a própria lista das ciências que ele
cultivou: história da �loso�a, lógica, metafísica, física geral, biologia,
botânica, ética, política, arqueologia, história literária, �lologia,
gramática, retórica, poética e �loso�a da arte. Aristóteles está à
vontade em cada uma dessas ciências: para cada uma delas, determina
S
princípios especiais e apropriados. Um puro ético ao tratar de justiça e
amizade, é naturalista de pro�ssão ao tratar de zoologia.
Haveria então diversos homens em Aristóteles, e não seria sua
imensa obra senão a justaposição dos mais diversos trabalhos, tal
como poderia resultar da colaboração entre diversos sábios?
Semelhante apreciação seria certamente super�cial. Entre os diversos
trabalhos de Aristóteles, há em primeiro lugar espírito e método
comuns. Esse fundo comum poderia ser de�nido como uma mistura
harmoniosa de idealismo, observação e formalismo lógico. Em tudo,
Aristóteles busca a ideia no fato, o necessário e o perfeito no
contingente e no imperfeito; em tudo ele busca substituir os dados
fugazes da observação sensível por concepções �xas e de�nições. Mas
isso não é tudo: as diferentes partes do saber mantêm entre si, segundo
ele, uma determinada relação, que ele de�ne muito claramente. De
forma geral, o superior só se torna conhecido depois do inferior, e com
auxílio do próprio conhecimento desse inferior; mas, ao mesmo
tempo, é no superior que se encontra a razão de ser e a causa
verdadeira do inferior. Por exemplo, a alma não se torna conhecida
senão depois do corpo, que é sua base e condição de existência. Mas o
corpo não existe senão para a alma; e é dela que obtém o movimento
regrado que o faz ser. Este princípio de Aristóteles nos servirá para
classi�car as diversas formas de sua atividade �losó�ca.
 
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em ter chegado à precisão, ou mesmo à �xidez no detalhe,
Aristóteles foi, não obstante, o primeiro a conceber a ciência de um
ponto de vista enciclopédico, e a procurar um princípio completo de
classi�cação do conhecimento.
A ciência, antes de mais nada, distingue-se claramente das próprias
coisas a que se refere. Ela consiste na concepção das coisas como
necessárias; e comporta gradações, segundo o objeto por ela
considerado comporte ele mesmo a necessidade, ou apenas a
probabilidade.
A ciência, em seu conjunto, segue uma dupla direção, conforme o
espírito humano tome por ponto de partida o que for primordial do
seu ponto de vista, ou o que for primordial absolutamente. Esses dois
movimentos são o exato inverso um do outro: pois o que para nós é
primordial são os fatos, e os fatos, segundo a ordem interna da
natureza, são o que existe em último lugar; reciprocamente, o que é
primordial em si são os princípios, e os princípios são a última coisa
que podemos atingir.
A �loso�a, no sentido amplo da palavra, é a ciência em geral. Ela
compreende, em primeiro lugar, a �loso�a primeira ou ciência dos
princípios absolutos; em segundo lugar, o conjunto das ciências
especí�cas, das quais as principais são: a matemática, a física, a ética e
a poética. A �loso�a é una, graças à �loso�a primeira que é o
reservatório comum de onde todas as ciências especí�cas extraem seus
princípios.
Essa divisão, embora fundamental, não está sempre presente nas
classi�cações das ciências encontradas em Aristóteles. Em algumas
delas ele divide as proposições, como fazem os platônicos, em éticas,
físicas e lógicas, incluindo entre estas últimas as proposições mesmas
relacionadas à �loso�a primeira.
Na maior parte das vezes, ele divide as ciências em teóricas, práticas
(ou relativas à ação) e poéticas (ou relativas à produção por meio de
uma matéria), colocando, do ponto de vista lógico e absoluto, a teoria
à frente da prática, e a prática à frente da poética. Depois ele subdivide
as ciências teóricas em teologia, matemática e física. A teologia pode
ser relacionada à �loso�a primeira: forma dela o topo. A matemática
trata de essências ainda estáveis, porém não separáveis da matéria,
O
senão por abstração. A física trata das substâncias sensíveis, ou seja,
móveis e perecíveis. As ciências práticas ou ciências das coisas
humanas se subdividem, quando se vai da potência ao ato, ou seja, do
que é primordial para nós ao que é primordial em si, em ética,
econômica e política. A econômica, a bem dizer, é frequentemente
dada por Aristóteles como inserida na política. A retórica é
apresentada sobretudo como ciência auxiliar da política. A poética
compreende todas as artes, das quais a poesia e a música ocupam o
primeiro lugar. Nessa classi�cação não é mencionada a lógica, sem
dúvida porque ela não abrange senão as ciências que tratam das
realidades, enquanto a lógica tem, por objeto, conceitos.
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O      
objeto considerado por Aristóteles é essencialmente teórico. Saber
por saber, compreender, ajustar as coisas à inteligência, esta é a
�nalidade de todo seu trabalho.
Todos os homens, diz ele, têm o desejo natural de conhecer.
Apreciamos a ciência, para além de qualquer interesse. A sabedoria
independe de utilidade, e é mesmo tão mais sublime quanto menos
útil. A mais elevada ciência é aquela do objetivo ou da �nalidade em
função de que existem os seres. Esta é a única ciência verdadeiramente
livre, pois éa única a não existir senão em função do saber em si. É a
menos necessária de todas as ciências, e, por isso mesmo, a mais
notável. A ciência nos leva a conhecer as razões inteligíveis das coisas.
O ignorante que observa admira-se de que as coisas sejam como são, e
essa admiração é o próprio início da ciência: o sábio se admiraria de
que as coisas fossem diferentes de como ele as conhece.
Como procede Aristóteles para apreender a ciência, assim entendida?
Aristóteles não é nem o idealista dogmático que supõe Bacon,
fabricando o mundo unicamente com as categorias da linguagem, nem
o empirista que vêem nele muitos modernos. É observador, e
construtor: de forma geral, ele alia e combina intimamente o estudo
escrupuloso dos fatos ao esforço para torná-los inteligíveis. Tem os
fatos como ponto de partida, mas não se atém a eles: procura extrair
deles as verdades racionais que sabe de antemão estarem neles
contidas. O termo que tem em vista é o conhecimento das coisas em
forma demonstrativa, isto é, na forma de uma dedução em que as
propriedades da coisa se tornem conhecidas pela sua própria essência.
Na maior parte das vezes, e sobretudo quando se trata de coisas
metafísicas ou morais, antes de abordar o estudo das coisas em si, ele
procura e discute todas as opiniões existentes sobre a matéria. É o
método dialético, que ao tirar seus argumentos, não da essência
mesma da coisa, mas do que é admitido pelo interlocutor, não vai além
da verossimilhança.37 Ao empregar este método, Aristóteles parte
frequentemente das concepções populares, tirando delas um sentido
�losó�co, que utiliza para estabelecer sua teoria. Parte também da
linguagem, que é para ele como um intermediário entre as coisas e a
razão. E sobretudo respeita as doutrinas dos que o antecederam,
enumerando cuidadosamente todas as opiniões por eles sustentadas; e
mesmo quando contesta essas opiniões, procura-lhes a razão e a
verdade relativa. Suas dissertações �losó�cas são, em geral, compostas
da seguinte maneira: 1º. Determina o objeto da pesquisa, a �m de não
se expor a mal-entendidos, como ocorre a Platão; 2º. Enumera e
aprecia as indicações e opiniões existentes sobre a matéria; 3º. Busca e
examina, da forma mais completa possível, as di�culdades ou άπορίαι
apresentadas pela questão levantada; 4º. Considerando as coisas em si
mesmas, e utilizando nos seus raciocínios os resultados das discussões
anteriores, busca a solução do problema na determinação da essência
una e eterna do objeto em questão.38
R
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A 
esulta do que foi dito até aqui que Aristóteles é, antes de mais nada,
historiador. Começou por aprender o mais possível. Platão,
segundo se diz, chamava-o de “o leitor”. Apesar de seu elevado grau de
curiosidade pelos fatos, a história não é, para ele, um �m em si, mas
um meio indispensável. Ela fornece ao espírito o material sem o qual
este se agitaria no vácuo. Aristóteles entregou-se a estudos históricos
aprofundados em todos os domínios da ciência.
No que diz respeito à história da �loso�a, ele escreveu sobretudo
sobre os pitagóricos e sobre o platonismo. Todo o primeiro livro da
Metafísica é preenchido por pesquisas históricas: é uma exposição dos
princípios propostos desde Tales até Platão. Mas como o objeto que
tem em vista é dogmático, ele enquadra os sistemas anteriores em sua
própria �loso�a. Busca-lhes a ideia, a forma perfeita, o termo e a
perfeição; quer compreendê-los com mais profundidade do que foram
compreendidos pelos próprios autores; e os resume em fórmulas
criadas por ele, que fazem deles encaminhamentos ao seu próprio
sistema. Se classi�ca as doutrinas, é segundo as semelhanças e
diferenças que apresentam em relação ao seu ponto de vista, e não
segundo a in�uência que tenham exercido umas sobre as outras.
Assim, o resumo contido no primeiro livro da Metafísica destina-se a
preparar a teoria aristotélica das quatro causas. Aristóteles mostra que,
antes dele, já se havia mais ou menos discernido e evidenciado os
princípios material, motor e formal, mas que a causa �nal só fora
mencionada de forma acessória e acidental. Anaxágoras, que
vislumbrara a causa �nal, surge, diz nosso autor, como um homem
sensato, em meio a homens que falam ao acaso. As buscas
cronológicas têm pouca importância nessas considerações. Da mesma
forma, Aristóteles atribui pouca importância às relações entre mestre e
discípulo. Ele assinala os serviços prestados por cada um de seus
antecessores à �loso�a em geral, tal como a concebe; salienta aquilo
que cada pensador encontrou de duradouro; assinala os inventores e
defensores das ideias que desempenharam algum papel no
desenvolvimento da ciência, e que lhe parecem merecedoras de exame.
Em resumo, ele não busca as origens históricas dos sistemas, mas
extrai da massa informe dos fatos a formação lógica da �loso�a
de�nitiva.
À história política referem-se as famosas Πολιτειαι, Politeiai
[Politeias],39 em que Aristóteles expunha as constituições de 158
cidades gregas e bárbaras. Esse conjunto de tratados se inseria naquilo
que chamamos hoje de arqueologia e história da civilização. Neles
encontravam-se diversas indicações de costumes, e até mesmo
provérbios e canções populares de diferentes povos. As matérias eram
organizadas, segundo alguns comentaristas gregos, em ordem
alfabética. Segundo Diógenes, as constituições eram classi�cadas,
conforme suas semelhanças, em democráticas, oligárquicas,
aristocráticas e tirânicas. Podemos hoje fazer uma ideia de como eram
as “Politeias” graças ao tratado da Constituição dos atenienses,
descoberto recentemente. A primeira parte desse tratado é a
explicação das transformações políticas de Atenas, desde a sua origem.
A segunda descreve a organização política e administrativa de Atenas
na época do processo da Coroa.
Na ordem literária, Aristóteles tinha escrito a história da retórica e da
poesia. Essa história, que não chegou até nós, é muito louvada por
Cícero. “Aristóteles”, disse, “assinalou nela todos os preceitos
enunciados pelos retores, e isso com tanta perfeição que se
considerava que esses preceitos eram mais bem expostos por ele do
que pelos próprios autores, e quando se queria conhecê-los, era nele
que se os procurava”.
Ele estabeleceu também listas cronológicas das representações
dramáticas, e listas dos vencedores dos jogos olímpicos e píticos. Essas
obras se perderam.
A
Percebe-se que a curiosidade de Aristóteles é insaciável, e estende-se
a todos os campos. Mas ele quer saber e compreender, e não distrair-se
com a narração dos fatos: a história não passa, para ele, de um
instrumento da ciência, e os fatos não têm valor senão como veículos
para as ideias.
 
L
ristóteles quer conhecer os fatos, não apenas como são, mas como
devem ser; quer resolver o que é contingente e o que é necessário.
Ele precisa então, em primeiro lugar, investigar as condições nas quais
o espírito concebe algo como sendo necessário; em outras palavras, ele
precisa inicialmente considerar a ciência pela forma, abstraindo o seu
conteúdo: tal é o objeto da lógica.40 –41
A lógica é a determinação das leis do raciocínio e das condições da
ciência. Aristóteles distingue, no conhecimento, forma e matéria, e
considera que a forma tem existência e leis próprias. Sua existência
consiste na realidade dos conceitos estáveis, ou ideias gerais, unas, e
exatamente determinadas quanto à sua compreensão e à sua extensão.
Sua lei fundamental é o princípio da contradição: “É impossível que
um mesmo atributo pertença e não pertença a um dado sujeito,
considerado por uma única e mesma perspectiva”. Existe, aliás,
segundo Aristóteles, proporção e harmonia entre o pensamento e o
ser; por conseguinte, nosso �lósofo não se esquiva de admitir em sua
lógica diversos elementos de caráter metafísico.
A lógica aristotélica é uma análise racional das condições que devem
ser preenchidas por um raciocínio para que sua conclusão seja
concebida como necessária. Não se trata de saber como, de fato,
raciocinamos na vida comum, mas de como deve ser construídoum
raciocínio para que a necessidade do laço que ele estabelece surja
imediata e irresistivelmente como evidente. É por isso que o problema
da análise psicológica do raciocínio natural, apontado por Locke, não
pode ser substituído pelo de Aristóteles se não for admitida a redução
do necessário ao contingente, do ideal ao real, do preceito ao fato, da
arte à natureza.
Convém distinguir: 1º. Os instrumentos do pensamento; 2º. O papel
e o valor desses instrumentos na constituição da ciência.
Os instrumentos do pensamento são as noções, as proposições e o
raciocínio.
Sob o título geral de noções alinham-se os predicáveis, as categorias e
as noções de relações lógicas.
Os predicáveis, que Aristóteles chama, ao que parece, de gêneros dos
problemas, são as noções universais referentes aos modos gerais
segundo os quais uma coisa pode ser enunciada em relação a outra.
São os denominados universais, a saber: o gênero, a espécie, a
diferença, o próprio e o acidente.
As categorias são os gêneros irredutíveis das palavras, e, por
conseguinte, das coisas, pois as classes das palavras são as próprias
classes das coisas. São os gêneros supremos. As categorias são em
número de dez: 1ª. A essência, por exemplo: homem, cavalo; 2ª. A
quantidade: dois metros de comprimento; 3ª. A qualidade: branco; 4ª.
A relação: o dobro, a metade; 5ª. O local: no liceu; 6ª. O tempo: ontem;
7ª. A situação: estar deitado, sentado; 8ª. A maneira de ser: estar
calçado, armado; 9ª. A ação: cortar, queimar; 10ª. A paixão: ser
cortado, queimado. As categorias dividem-se em duas classes, sendo a
essência, por si só, a primeira, e as nove outras categorias a segunda.
Essa tabela das categorias parece ter sido organizada empiricamente,
por comparação das palavras entre si. Ela difere fundamentalmente da
de Kant, que apresenta as diferentes maneiras de ligar a priori e em
sentido necessário os diversos elementos de uma intuição geral, ou
seja, de trazer essa matéria esparsa à unidade da apercepção
transcendental.
As diferentes relações lógicas dos termos entre si são a identidade e a
oposição; esta última compreende a contrariedade, a contradição e a
relação entre privação e posse.
O princípio geral relativo à oposição é que dois termos opostos entre
si pertencem sempre a uma mesma e única ciência. As proposições
resultam da combinação dos conceitos.
São a�rmativas ou negativas, universais ou especí�cas. Somente elas
comportam verdade ou erro, enquanto conceitos isolados não são
verdadeiros nem falsos. A consequência não é a mesma, se dois juízos
forem contraditórios entre si, ou simplesmente contrários. Dois juízos
contrários não podem ser ambos verdadeiros, mas podem ser falsos;
ao passo que, de dois juízos contraditórios, um é necessariamente
verdadeiro, e o outro, falso: isso resulta do princípio do terceiro
excluído, expressão particular do princípio de contradição.
As proposições comportam conversões, ou inversões entre sujeito e
atributo, das quais Aristóteles determina as regras. O raciocínio
consiste essencialmente no silogismo. A teoria do silogismo e da
demonstração, ou silogismo perfeito, é chamada por Aristóteles de
analítica. Aristóteles reivindica sua criação. Ele a�rma que não havia
nada sobre essas matérias antes dele, que sua tarefa não foi só
aperfeiçoar, mas também inventar, e que foi por meio de exaustivos
experimentos que atingiu seu objetivo. Kant, referindo-se à teoria do
silogismo, a�rmou que esta, depois de Aristóteles, não tinha dado um
só passo, para frente ou para trás.
O silogismo é um raciocínio no qual, dadas determinadas coisas,
delas resulta necessariamente outra. O próprio do silogismo é
evidenciar a necessidade da ligação. Esse resultado é obtido pelo
emprego de elementos adaptados a uma aplicação exata do princípio
de contradição. Esses elementos são termos que se considera terem
entre si relação semelhante à relação entre a parte e o todo. Se 
contém , e  contém , segue-se necessariamente, segundo o
princípio de contradição, que  contém . Tal é o tipo do silogismo, e
os três termos que ele implica são chamados, por esse motivo, grande,
médio e pequeno. Esta relação de continência é considerada por
Aristóteles como equivalente à relação entre o geral e o particular. O
gênero é como um círculo de�nido que contém as espécies.
O silogismo é perfeito ou imperfeito segundo seja imediatamente
conforme ao tipo que acabamos de indicar, ou não se torne conforme
a ele senão por meio de transformações ou reduções.
A origem dessa teoria encontra-se na matemática. Consiste numa
adaptação das relações de grandeza às noções qualitativas. Era natural
que Aristóteles buscasse, numa imitação analógica da matemática, o
meio de demonstrar necessariamente em matéria qualitativa; pois a
matemática realizava, no entendimento de todos, essa necessidade no
encadeamento dos termos que ele tinha em vista. O instrumento da
ligação necessária, no silogismo, é o meio-termo.
Entre os casos particulares do silogismo, o mais importante é a
indução, ou raciocínio que vai do particular ao geral. Eis um exemplo
deste raciocínio: “O homem, o cavalo e o jumento têm vida longa. Ora,
o homem, o cavalo e o jumento são animais sem fel. Logo, todos os
animais sem fel têm vida longa”. A condição para a legitimidade da
conclusão é a convertibilidade da menor. Neste exemplo, é preciso que
seja legítimo substituir a proposição “O homem, o cavalo e o jumento
são animais sem fel. Logo, todos os animais sem fel vivem muito
tempo”. A legitimidade dessa substituição não é mais uma questão de
lógica. De fato, a lista de animais sem fel é in�nita. Mas a essência do
animal sem fel encontra-se inteira em cada animal sem fel. A questão é
discernir essa essência, extrair dela o tipo do animal sem fel, de
maneira a distinguir as características que pertencem aos animais sem
fel, enquanto animais sem fel, das características que lhes pertencem
independentemente dessa condição. Para tanto, considera-se um certo
número de animais sem fel, comparando-os entre si, investiga-se o que
têm em comum, e, com isso, o que neles é essencial e necessário. Em
outras palavras, considera-se os seres da natureza, não apenas com os
sentidos, mas com o νοῦς,42 lugar das essências e capaz de encontrá-las
e de reconhecê-las em meio aos dados dos sentidos.
A indução de Aristóteles visa assim à classi�cação dos seres e dos
fatos, e a uma classi�cação natural. Na medida em que se aplica em
discernir entre as relações necessárias e as relações contingentes, ela
torna possível a predição, fornecendo assim verdadeiras leis, no
sentido moderno da palavra. Mas essa possibilidade de predição é
restrita aos fatos que decorrem imediatamente de uma determinada
essência, e não se estende aos fatos resultantes da mistura de várias
essências. Pois a mistura das essências não tem uma razão necessária, é
algo puramente contingente. Os gêneros, segundo Aristóteles, são
radicalmente separados uns dos outros, cada um deles é um absoluto.
Por essa doutrina da independência dos gêneros, a teoria aristotélica
da indução se opõe tanto ao cartesianismo, que reduz as leis físicas às
determinações matemáticas, o heterogêneo ao homogêneo, quanto ao
evolucionismo, que admite a existência atual das espécies, atribuindo-
lhes, porém, uma gênese natural no passado a partir de uma origem
comum.
O silogismo propriamente dito e a indução estão um para o outro,
segundo Aristóteles, como a ordem da natureza está para a ordem do
conhecimento humano. Em si, o silogismo é mais inteligível: para nós,
a indução é mais clara. O silogismo parte do geral. Ora, é para nós
impossível tomar conhecimento do geral, senão por indução. Não que
os princípios gerais se apóiem na sensação e na indução como seu
fundamento; mas é a indução que, para nós, revela esses princípios, é
ela que nos fornece os elementos inteligíveis que o νοῦς reconhece
como necessários e verdadeiros.
Tais são os instrumentos da ciência. Como, por seu intermédio, se
forma a ciência? A ciência é o conhecimento das coisas enquanto
necessárias.Uma coisa é conhecida cienti�camente quando sabemos
que não poderia ser diversa do que é. Ora, este conhecimento é
realizado quando conseguimos associar a coisa dada à sua causa.
Existem na natureza três tipos de ligações: 1º. As conjunções que se
realizam sempre, por exemplo: as relações dos fenômenos
astronômicos; 2º. As conjunções que costumam realizar-se, por
exemplo: as relações entre si das coisas físicas, e, mais ainda, das coisas
morais; 3º. O acaso, isto é, as coincidências que se reproduzem pouco,
ou nunca. A primeira espécie de ligação comporta a ciência perfeita, a
segunda uma ciência imperfeita, limitada à probabilidade; a terceira
permanece fora da ciência. Não há ciência daquilo que se passa.
Nem a opinião nem a sensação podem produzir a ciência, pois sendo
ambas incapazes de determinação perfeita e de �xidez, não podem
apreender o �nito e o imóvel. A dialética platônica é, também, incapaz
de fornecer ciência, pois, como consiste em perguntas e respostas, não
repousa senão no consentimento do adversário, e não sobre o
verdadeiro em si. Partindo da hipótese, não vai além da consequência
puramente lógica e formal. É pela demonstração que se obtém a
ciência. A “apodíctica”, ou teoria da demonstração, difere
essencialmente da dialética.
A demonstração se faz por silogismo direto da primeira �gura. A
redução ao absurdo e os silogismos da segunda e da terceira �gura não
são ainda a demonstração. A demonstração estabelece seu ponto de
partida num princípio não apenas concedido pelo adversário, mas
necessário em si. Assim raciocina o matemático.
A demonstração compreende três elementos: 1º. O sujeito; 2º. O
atributo, que deve ser associado ao sujeito por um laço de necessidade;
3º. Os princípios gerais sobre os quais se apoia a demonstração. Estes
últimos são o princípio de contradição e seus derivados.
Indispensáveis, são, em si, vazios e insu�cientes. É na natureza do
sujeito que reside a base da demonstração.
Há, efetivamente, princípios que são próprios ao sujeito, como, por
exemplo, o contínuo, inerente à extensão; o descontínuo, inerente ao
número: são esses princípios especiais que têm conteúdo e são
fecundos. É sobre esses princípios que convém tomar apoio, e nunca se
deve, na dedução, passar de um gênero a outro, a menos que um seja
propriamente subordinado ao outro. Assim, a geometria não poderia
ser explicada pela aritmética: é impossível adaptar às grandezas
extensas as demonstrações próprias ao número. Quando se viola esta
regra, não se tem mais por guia senão os princípios comuns a todas as
ciências; a partir deste momento, as ligações estabelecidas não são
conhecidas senão como acidentais e contingentes, não como essenciais
e necessárias: procedeu-se por analogia, não por demonstração. A
impossibilidade vista aqui por Aristóteles será suprimida por
Descartes e Leibniz.
Os princípios próprios são indemonstráveis como os princípios
comuns. Pretender demonstrar tudo seria condenar-se, seja a uma
progressão ao in�nito, seja a um círculo vicioso. Cada ciência possui,
assim, seus próprios princípios especiais irredutíveis.
De onde vêm esses princípios? Não são inatos, nem recebidos de fora
pura e simplesmente. Há em nós uma disposição para concebê-los; e
por efeito da experiência, essa disposição se efetiva. É nisso,
de�nitivamente, que consiste a indução, e assim é por indução que
conhecemos os primeiros princípios próprios a cada ciência.
A demonstração supõe a de�nição. É preciso que haja de�nições
indemonstráveis, caso contrário se iria ao in�nito. Não há de�nição,
nem do indivíduo, nem do acidente, ou geral indeterminado, mas
apenas das espécies intermediárias entre o geral e o indivíduo. A
de�nição se faz pela indicação do gênero próximo e das diferenças
especí�cas. Para chegar a constituir uma de�nição, é preciso ir do
particular ao geral, e conferir essa indução por uma dedução indo do
gênero às espécies.
Em resumo, uma coisa é conhecida como necessária quando é
associada, por via de dedução, a uma essência especí�ca.
Abaixo da apodíctica, que ensina como se pode chegar a conhecer
uma coisa como necessária, está a dialética, ou lógica do provável:43 ela
está exposta nos Tópicos. O domínio da dialética é a opinião, modo de
conhecimento suscetível a verdade ou falsidade. O dialético adota,
como ponto de partida, não de�nições necessárias em si, mas as
opiniões ou as teses apresentadas pelo senso comum ou pelos �lósofos;
e apura qual, dentre essas opiniões diversas, é a mais provável. Ele
procede por perguntas e respostas, e examina contraditoriamente o
sim e o não de cada tema. Assim, conduz suas perguntas de forma a
colocar, primeiro, uma tese, em seguida uma antítese; e discute ambas
as proposições. Essa discussão consiste em examinar as di�culdades
que surgem, quando se quer aplicar a proposição a casos particulares.
O dialético raciocina em forma de silogismos, partindo, no entanto, do
verossímil. O verossímil, tomado como dado, é, de�nitivamente, a
essência simplesmente genérica, ainda não determinada pela diferença
especí�ca. Somente o acréscimo do princípio especí�co ao princípio
genérico poderia tornar a conclusão necessária. Mas os princípios
especí�cos não podem ser deduzidos dos princípios genéricos, pois
todo gênero comporta, de forma igual, diferentes espécies.
O papel da dialética é considerável: é o único modo de raciocínio
possível nas matérias que não comportam de�nições necessárias. E na
busca das próprias verdades necessárias, é o preliminar indispensável
da demonstração.
O que a dialética é em matéria lógica, a retórica é em matéria moral.
Se a primeira busca o verossímil, a segunda visa persuadir. A retórica,
portanto, vai de par com a dialética, ou melhor, assim como a prática
está para a teoria como o particular está para o geral, a retórica é uma
parte da dialética.44 O modo de raciocínio próprio à retórica é o
entimema, silogismo no qual uma das três proposições é
subentendida, e as razões são tiradas, não da própria essência das
coisas, mas da verossimilhança e de sinais. A principal matéria do
entimema empregada pela retórica é a analogia, ou indução que vai do
particular ao particular.
Por �m, da dialética45 distingue-se a erística. Enquanto aquela age no
campo das coisas que são gerais, ordinárias, sem ser necessárias, a
erística age no domínio do puro acidente, de forma deliberada. A
erística contenta-se com uma verossimilhança aceita pelo interlocutor.
Assim, os raciocínios erísticos são puros so�smas. Aristóteles os revela
e descreve minuciosamente.
Abaixo das coisas que acontecem sempre, que dependem de uma
essência a um só tempo genérica e especí�ca e podem ser conhecidas
como necessárias, e abaixo mesmo das coisas que costumam
acontecer, que dependem de uma essência simplesmente genérica e
podem ser conhecidas como prováveis, há aquelas que acontecem
acidentalmente, sem nenhuma regra. Assim como as coisas que
costumam acontecer dependem da mistura das espécies, os fenômenos
isolados resultam da mistura de gêneros; porém, enquanto o que não é
determinável pela espécie ainda o é, em certa medida, pelo gênero,
fundo comum de diversas espécies, o que não é nem mesmo
determinável pelo gênero deixa completamente de sê-lo, visto que,
acima dos gêneros não há mais nada senão os princípios universais, os
quais, sendo aplicáveis a tudo, não determinam nada. Não há,
portanto, ciência do acaso, enquanto tal, do encontro de dois gêneros.
Apenas os elementos de que se compõe o fenômeno fortuito podem
ser conhecidos como necessários ou possíveis, na medida em que são
associados a suas essências especí�cas ou genéricas respectivas: a
junção desses elementos, que constitui propriamente o fenômeno
fortuito, é desprovida de razão, porque os gêneros, enquanto tais, não
têm ligação entre si.
A lógica aristotélica reinou inconteste até Bacon e Descartes. A partir
dos primórdios da �loso�a moderna, ela foi fustigada por todos os
lados, criticada seja por não ser senão a lógica da exposição, e não da
invenção,46 seja por ser considerada

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