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195 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 Revista Campo da História DOI: 10.55906/rcdhv8n1-012 195-208, 2023 ISSN: 2526-3943 SAÚDE MENTAL E SEUS ESTIGMAS: COMO OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO PODEM AJUDAR NA QUEBRA DE PRECONCEITOS? MENTAL HEALTH AND ITS STIGMAS: HOW CAN THE MEDIA HELP TO BREAK THE PREJUDICE? Recebimento do original: 01/01/2023 Aceitação para publicação: 01/02/2023 Benedito Carlos Alves dos Santos Mestre em Ciências da Religião Instituição: Núcleo de Apoio à Inclusáo Social Para Pessoas com Deficiência (NAISPD) - Criando Asas Endereço: Al. dos Tupinas, 611, Planalto Paulista, São Paulo - SP, CEP:04069-000 E-mail: carlosalves_psic@yahoo.com.br RESUMO: O Estigma é um mal que assolada nossa sociedade de forma bastante sutil e concomitantemente impede que o estigmatizado posso seguir sua vida como ser “normal”. Falando do tema Saúde, encontramos o estigma quando fazemos uma sondagem sobre questões da “Saúde Mental”. Para a composição do artigo, foi usado como pano de fundo para ilustração do tema, a personagem bíblica Caim, que assassina seu irmão e em consequência recebe um sinal na testa. Transpondo essa ideia para o artigo, esse sinal é o estigma que acompanha a Pessoa com Transtorno Mental. Vê-se hoje a necessidade de um trabalho de conscientização, onde possamos quebrar os preconceitos, pois quanto menos preconceitos, maior a possibilidade de um trabalho profícuo de inclusão e superação. A mídia, com seus aparatos, pode ser um instrumento facilitador de quebra de preconceitos? PALAVRAS-CHAVE: Estigma, Pessoa com Transtorno Mental, Caim, Mídia. ABSTRACT: Stigma is an evil that plagues our society in a very subtle way and concomitantly prevents the stigmatized from being able to continue their lives as "normal" beings. Speaking of the topic of Health, we find stigma when we do a survey on "Mental Health" issues. For the composition of the article, it was used as a background to illustrate the theme, the biblical character Cain, who murders his brother and as a consequence receives a mark on his forehead. Transposing this idea to the article, this sign is the stigma that accompanies the person with mental disorder. Today we see the need for a work of awareness, where we can break the prejudice, because the less prejudice, the greater the possibility of a fruitful work of inclusion 196 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 and overcoming. The media, with its apparatuses, can be a facilitating instrument to break prejudice? KEYWORDS: Stigma, Mentally Disabled Person, Cain, Media. 1. RÁPIDA OLHADA NO PROCESSO HISTÓRICO DA SAÚDE MENTAL Quando aqui é usado o termo “rápida olhada no processo histórico da Saúde Mental”, é no sentido de que não é possível aqui fazer uma análise aprofundado sobre a temática, pois o mesmo é bastante extenso e não é o caso aqui fazer um tratado sobre a História Saúde Mental. Falando sobre doença mental, Vietta, Tavares e Diniz (2009), afirmam que na que “na Antiguidade, atribuía-se às influências malignas, o que não se conseguia identificar ou interpretar”. Isso significa dizer, em outras palavras, que não havia a distinção entre doença física e mental. Os problemas mentais eram atribuídos as possessões demoníacas e aos espíritos malignos. Na Era Clássica, o doente mental começa ser visto de forma mais humanitária. Hipócrates foi o primeiro médico a explicar, coerentemente, as doenças com base em causas naturais. A causa da doença mental, também já tem explicações naturais e não mágicas. Pitágoras, por exemplo, havia dito que o “cérebro é o verdadeiro órgão do intelecto do homem e sede da enfermidade mental”. Os médicos hipocráticos descreviam pela primeira vez delírios orgânicos, sintomas de depressão (melancolia), insanidade puerperal (psicose pós-parto), fobias, etc. (VIETTA, TAVARES e DINIZ, 2009). Na era das luzes, iluminismo, o doente mental, ou o assim considerado louco, passou a ser objeto de estudo da ciência. Já no século XVIII, os primeiros espaços para tratamento de loucos, começaram a surgir. Eram assim os chamados Hospitais Gerais ou as Santas Casas de Misericórdia. ... é apenas a partir da Idade Média que surgem as instituições com objetivos específicos de receberem toda espécie de pessoas que não se incluíam no modelo social dito estruturado. Muitas lutas e discussões foram necessárias para se pudesse chegar ao início da quebra de preconceitos (FOUCAULT, 1972). Com o tempo, os locais onde se internavam as pessoas que tinham transtornos mentais, passaram a ser chamados de “manicômios”, lugar de segregação, de exclusão, onde se 197 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 colocavam os incômodos da sociedade. Segundo Foucault (1978), “pobres, vagabundos, presidiários e cabeças alienadas assumirão o papel abandonado pelo lazarento”, ou aqueles que tinham lepra. Esses também foram excluídos do convívio social por sua marca, a lepra. Além da Santa Casa da Corte, desde o início do século XIX, outros hospitais de caridade das principais cidades brasileiras mantiveram, de forma inconstante e sob as mesmas condições miseráveis, divisões destinadas aos insanos, que precederam a criação de hospícios exclusivos para alienados. Vale ressaltar que, nos documentos daquele século, os termos “asilo”, “hospício” ou “hospital” eram usados indistintamente como sinônimos, no sentido de hospedagem destinada àqueles que dependessem da caridade pública, como os órfãos, os expostos (recém-nascidos abandonados), os mendigos, os lázaros, etc. (ODA e DALGALARRONDA, 2004). Fazendo uma leitura sobre escritos de Pacheco (2003), Pinel, em seguida, Esquirol, mesmo sendo expoentes pioneiros nos estudos da psiquiatria, não tinham uma preocupação em construir uma teoria biológica da loucura, mas sim de conhecer e bem delimitar suas apresentações clínicas”. No que se refere à terapêutica, Esquirol deu continuidade à prática de um tipo de tratamento diferenciado: o tratamento moral iniciado por Pinel. Esta abordagem estruturou-se em decorrência dos pressupostos teóricos a respeito da loucura que, deixando de ser exclusivamente organicista, passou a considerar o aspecto psicológico como fundamental na determinação da doença. As experiências vividas pelo paciente adquirem assim um novo valor como dados a serem observados e considerados no conhecimento de suas funções mentais (PACHECO, 2003). Segundo Jabert (2001), um dos marcos dessa história da psiquiatria no Brasil foi o decreto que criou o primeiro hospício em território nacional em 1841 - o Hospício de Pedro II. Sua inauguração se deu 1852. No livro “Ouvindo Vozes”, Oliveira (2009), retrata histórias do hospício e lendas do Encantado, que aconteceram no hospício de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro. Relata o referido autor, que tal “hospício carrega a marca de sua história singular, secular e idiossincrática que, como ferro em brasa, atravessou a alma das criaturas que habitaram seus subterrâneos”. Tratando-se da temática loucura, Naus dos Loucos é um termo que nuca pode ser esquecido. A Naus dos loucos, termo encontrado na literatura italiana, retratar as embarcações que levavam mar adentro os ditos loucos (Jabert, 2001). 198 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucostinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. (...) Eram frequentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do que haviam prometido, esses passageiros incômodos; prova disso é o ferreiro de Frankfurt que partiu duas vezes e duas vezes voltou, antes de ser reconduzido definitivamente para Kreuznach. Frequentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos. (Foucault, 1972). Segundo Amarante et al (1995), foi com a realização do V Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em outubro de 1978, que se deu início a uma importante discussão política sobre o tema da Saúde Mental. Neste mesmo ano aconteceu, no Rio de Janeiro, o I Congresso Brasileiro de Psicanálise de Grupos e Instituições. Como participação nesse evento tivemos o destaque de autores de renome da Reforma Psiquiátrica, a saber: Franco Basaglia, Felix Guattari, Robert Castel e Erving Goffman. Em 1979 ocorreu em São Paulo o I Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM). O foco desse evento foram as discussões centradas na necessidade de um estreitamento mais articulado da Saúde Mental com outros movimentos sociais para as conquistas “Antimanicomiais” (AMARANTE et al, 1995). O ano de 1987, destacou-se pela realização de dois eventos importantes: a I Conferência Nacional de Saúde Mental e o II Congresso Nacional do MTSM. Este segundo evento registrou a importante presença de associações de usuários de serviços de Saúde Mental e seus familiares, como a "Loucos pela Vida" de São Paulo, e a Sociedade de Serviços Gerais para a Integração Social pelo Trabalho (SOSINTRA) do Rio de Janeiro, entre outras (AMARANTE et al, 1995). É sabido que as décadas de 1980 e 1990 foram marcadas então pelas lutas antimanicomial. 199 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 Como relata Ribeiro (2015), dentre os programas da reforma − alguns aprovados após 2010, mas em continuação à proposta da Lei n. 10.216 − que formam uma rede de atenção para o tratamento do indivíduo junto à família e a comunidade, estão: Centro de Atenção psicossocial (CAPS) I, II, II e CAPSi e CAPSad2, Programa de Economia Solidária, Programa de Volta pra Casa, auxílio reabilitação, residências terapêuticas e outros serviços que são de implantação regional, como os Centros de Convivência e Cultura (Ribeiro – 2015, p.35). Segundo Macedo (2006), um outro marco fundamental na a luta histórica pelos direitos da pessoa portadora de transtornos mentais, foi a elaboração da Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais. Com base na citada lei, conseguiu-se redirecionar o modelo assistencial em Saúde Mental, contando com a força de outras frentes do conhecimento, a saber: Sociologia, Antropologia, Psicologia e Direito. Importante que nesse processo não deixemos de pensar em Franco Basaglia e Nilce Nise da Silveira, a Lei 180 (Lei da Reforma Psiquiátrica Italiana), entre outras ações que vieram a influenciaram no processo de uma reforma psiquiátrica, conhecida atualmente como a Luta antimanicomial. 2.O CÁRCERE DE CAIM: O MANICÔMIO DOS LOUCOS Qual, Andarás errante e perdido pelo mundo, Sendo assim, qualquer pessoa me poderá matar, Não, porque porei um sinal na tua testa, ninguém te fará mal, mas, em pago da minha benevolência, procura tu não fazer mal a ninguém, disse o senhor, tocando com o dedo indicador a testa de caim, onde apareceu uma pequena mancha negra, Este é o sinal da tua condenação, acrescentou o senhor, mas é também sinal de que estarás toda a vida sob minha protecção e sob minha censura, vigiar-te-ei onde quer que estejas,” (SARAMAGO, 2009). Falando sobre sistemas prisionais, Foucault (2006), diz que “o primeiro princípio da prisão é o isolamento do condenado em relação ao mundo exterior”. Goffman (1961/2008ª), entende esses sistemas como uma “instituição total que é um local de residência e trabalho, com grande número de indivíduos com situações semelhantes, separados da sociedade por considerável período de tempo. Os indivíduos levam uma vida fechada e formalmente administrada”. Aqui é tomada a classificação de Goffman (1961/2008ª), para entendimento dessas instituições: 1 - Instituições para cuidar de pessoas consideradas incapazes e inofensivas: casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes; 200 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 2 - Instituições para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça para a sociedade: sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários; 3 - Instituições para proteger a comunidade contra perigos intencionais: cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra e campos de concentração; 4 - Instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais: quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões; 5 - Instituições destinas a servir de refúgio do mundo, embora sirvam muitas vezes como locais de instruções religiosas: abadias, mosteiros, conventos e outros claustros. Como sustento da composição desse artigo, interessa-nos a segunda definição apontada por Goffman, a de “instituições para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça para a sociedade: sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários”. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa uma série de rebaixamento, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é simplesmente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele (GOFFMAN, 1961/2008a). Foi isso que se tornou os manicômios, instituições totais como forma de exclusão dos indivíduos do meio social, sem os adequados cuidados. Para isso valeria uma visita nos documentários feitos sobre o Manicômio de Barbacena (MG). O complexo manicomial conhecido por Cidade dos Loucos foi fundado em 12 de outubro de 1903, em Barbacena, Minas Gerais. Antes de ser um local focado no "tratamento" psiquiátrico, o Hospital Colonial de Barbacena tratava pacientes vítimas da tuberculose, o que explica a localização afastada do hospital, em cima de uma montanha. Local perfeito também para excluir os grupos marginalizados da sociedade1. 1 Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-manicomio-de-barbacena-o- holocausto-brasileiro-que-matou-60-mil-pessoas.phtml. Acesso em 27/01/2023. 201 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 Dentro de uma instituição ou não, comumente, uma pessoa com transtorno mental, enfrenta toda sorte de preconceitos, rejeições, exclusões, pois, não lidar com o diferente ainda causa estranhamento, medo, estigmas e preconceitos. Se hoje me expulsas da superfície da terra e tenho de meocultar de tua presença, andarei errante e vagando pelo mundo, e quem me encontrar me matará. O Senhor lhe respondeu : - Não é assim. Quem matar Caim pagará multiplicado por sete. O Senhor marcou Caim, para que não fosse morto por quem o encontrasse (Gên. 4, 14-15). Segundo Krauss e Kuchller (2007), a queixa de Caim atinge seu clímax na constatação: “o primeiro que me encontrar me matará” (Gên. 4, 14), uma suposição que espelha uma forma de sociedade na qual o indivíduo isolado torna-se presa fácil. Por isso é colocado sob uma proteção especial. O louco é colocado no manicômio, é segredado. Interpretando Fernandes (2000), pode-se dizer que segregar Cain com um sinal é delimita-lo nas suas várias fases históricas como: a fase da vingança privada; a fase da vingança divina; a fase da vingança pública e a fase da reação humanitária. E o Senhor marcou Caim, para que não fosse morto por quem o encontrasse. Caim afastou-se da presença do Senhor e habitou Eres Nod, a leste de Éden. (Gên. 4, 15-16). Segundo Krauss e Kuchller (2007), a terra de Nod, em hebraico, assemelha-se à palavra “vaguear” e retoma, portanto, o tema da maldição divina. Pode-se então dizer que Caim, com seu sinal fica privado do Éden. A barreira que as instituições totais colocam entre o internado e mundo externo assinala a primeira mutilação do eu. Ao ser admitido numa instituição total, é muito provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais a mantém, o que provoca desfiguração pessoal. O homem diferente, passa a ser estigmatizado por essa mesma maioria, que passa a etiquetá-lo de marginal (GOFFMAN, (1961/2008a), Carregar um estigma implica portar um sinal negativo. O estigma adquiriu duas dimensões: uma objetiva (um sinal, um uso, a religião, o sexo, a opção sexual, a deficiência física ou mental etc.) e outra subjetiva ( a atribuição ruim ou negativa que se faz a estes estados, podendo-se citar o seguinte exemplo: se é deficiente físico é ruim ou inferior ou pior etc.). Donde a derivação de regras para os estigmatizados que funciona de forma a prejudicar-lhes a vida diária e também a tornar o convívio humano em geral enfraquecido, pois os supostos “normais” também saem lesionados da relação. As experiências ruins dos “normais” em relação aos estigmatizados fazem um profundo nexo com o estereótipo, podendo-se afirmar que são conceitos complementares. O estereótipo pode ser confirmado pelas instituições e transformar- se em qualificação permanente da pessoa, criando um processo de estigmatização ( BACILA, 2008). 202 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 Se hoje me expulsas da superfície da terra e tenho de me ocultar de tua presença, andarei errante e vagando pelo mundo (Gên 4,14). Para Goffman (1963/2008b), passa-se a acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano. Cria-se uma teoria do estigma, uma ideologia para explicar a sua inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas vezes uma animosidade baseada em outras diferenças. Para Bacila (2008), tratam-se de regras falsas e que não têm nexo com a realidade. Com isso, usa-se de termos específicos de estigma como aleijado, bastardo, retardado, em nosso discurso diário como fonte de metáfora e representação, de maneira característica, sem pensar no seu significado original. (...) Como diz o refrão antigo, o diabo que te assinalou, algum defeito te encontrou, nem sou melhor nem pior que os demais, procuro trabalho, disse caim tratando de levar a conversa ao terreno que lhe convinha, Trabalho é o que por aqui não falta, que sabes tu fazer, perguntou o velho, Sou agricultor, já temos agricultores em quantidade suficiente, por esse lado não irás conseguir nada, além disso vens sozinho, sem família, Perdi a minha, Perdeste-a como, Perdi-a simplesmente, e não há mais que contar, Sendo assim, deixo-te, não gosto da tua cara nem desse sinal que tens na testa. Já se afastava, mas Caim ainda o reteve, Não vás, diz-me ao menos como chamam a estes sítios, Chamam-lhes terra de nod, E nod que quer dizer, Significa terra da fuga ou terra dos errantes, diz-me tu, já que aqui chegaste, de quê andas fugido e porquê és um errante. Não conto a minha vida ao primeiro que encontro no caminho com duas ovelhas atadas por um baraço, além disso não te conheço, não te devo respeito e não tenho por que responder às tuas perguntas... (SARAMAGO, 2009). Como então resolver o problema do estigma, do preconceito em relação à pessoa com transtorno mental? O problema pode ser resolvido? Para Bacila (2008), negar estigmas significa, em última análise, exaltar as virtudes e promover as qualidades positivas, ainda que estas mereçam atenção e tratamento das instituições públicas. É preciso uma mudança de mentalidade para vencer os preconceitos que, muitas vezes, podem estar fulcrados em nossos raciocínios falsos. 3. MEIOS DE COMUNICAÇÃO SOCIAL E SUPERAÇÃO DE ESTIGMAS Observando o percurso da história da Saúde Mental, foram muitas as violências aplicadas a indivíduos consideradas pessoas loucas, ditas anormais, insanas. Segundo Cooper 203 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 (1967), uma vez rotulado, o indivíduo é obrigado a assumir o papel de doente, ele é coisificado até que se converta no objeto resultante do processo patológico. É um estigmatizado. Em pleno século XX, ainda é possível identificar no imaginário coletivo os sentidos que, outrora, foram atribuídos à loucura. O louco promovido à categoria de doente mental pela psiquiatria, ainda se sê às voltas com o enclausuramento. É fato que o doente mental não mais se encontra aprisionado entre os muros dos manicômios, todavia, existem muitas ideologias que, de uma forma ou de outra, ainda rondam a doença mental e enclausuram-na nas teias de um discurso formado tanto por elementos da racionalidade científica quanto por elementos do senso comum ( RIBEIRO E PINTO, 2011). Visto assim, o estigmatizado como doente mental carrega um pesado fardo e, por mais que tenhamos mudado a maneira de pensar em relação e eles, está longe a superação do estigma ser superado. A pergunta é, será que os meios modernos de comunicação podem ser fatores facilitadores no processo de superação de preconceitos? Temos vivido, nos últimos anos experiências do tempo de Pandemia e sofremos os percalços dos Fake News2. Então, como acreditar nos meios de comunicação moderno? O que é verdade e o que é mentira? Temos aí mais um desafio. Não podemos negar que a mídia exerce forte poder sobre as massas, sobre a construção de novos paradigmas culturais. A cultura da mídia exerce uma influência cada vez mais direta sobre as pessoas e suas relações (CNBB, 2014). É da competência do Estado a elaboração e as estratégias de execução das políticas públicas de saúde, em geral, e das políticas de saúde mental. Estratégia preventiva implica providências que requerem medidas de financiamento, planejamento e execução. Essas medidas têm como finalidade reduzir: 1) A prevalência e a incidência dos transtornos mentais de todos os tipos numa comunidade, num determinado espaço de tempo; 2) A duração de um número estatisticamente significante dos transtornos prevalentes e incidentes; 3) As possibilidades clínicas de cronificação desses transtornos por meio dos mais eficazes métodos terapêuticos disponíveis, contemplando os biológicos, os psicofarmacológicos e os psicossociais (CREMESP, 2007). Faz-se necessário, então, políticas públicas, que deem respostas positivas aos desafios gerados a partir do preconceito que ainda existem em relação à pessoa com transtorno mental. Além depensar políticas públicas, deve-se haver uma preocupação com o comprometimento daqueles que exercem o poder com os meios de comunicação com os indivíduos acometidos 2 Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762020000100001. Acesso em 27/01/2023. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-69762020000100001 204 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 pelos transtornos. É preciso haver empatia em função do altruísmo. Segundo Terra et al. (2006), é preciso criar novas possibilidades de um novo paradigma onde a pessoa com transtorno mental possa ser vista como um cidadão em sofrimento psíquico e não mais como uma doença. Por muito tempo o “sofredor psíquico” foi visto como louco e incapaz de conviver na sociedade. Eram abandonados ao acaso pelos familiares. Segundo Boschetti, (2009), “o domínio midiático está nas mãos e no poder de poucos, pois são cinco grupos empresariais que decidem o que 180 milhões de pessoas irão ver e ouvir”. É preciso ficar atento ao poder ideológico de quem mantem o poder midiático. Segundo Freita (2006), “ideologia pode ser entendida como representações transmitidas pelo grupo social dominante que é incorporada como se fosse de toda a sociedade e existe porque também existe exploração de um grupo sobre o outro”. Por muitas vezes o poder midiático tem serviço para reforçar estigmas e preconceitos, gerando assim uma naturalização do normal em detrimento do que possa ser diferente. Fator esse que pode ser avaliado historicamente, onde foi gerado uma sociedade de desigualdade e injustiças sociais. É tendência pensar a sociedade apenas a partir da ótica do que seja típico, reforçando o padrão de exclusão, desconsiderado o que nomeiam como anormal, ou atípico. Talvez seja uma proposta para os meios midiáticos a prática de denunciar ações que tenham cunho ideológico estigmatizastes. Seria um pouco o olhar proposto pela Psicologia Social, de uma luta contra a ideologia fatalista que corrobora reforçando para uma relação de dominação e dependência nos diversos complexos das relações sociais. Como afirma Canguilhem (1990), “a identidade do normal e do patológico é afirmada, em proveito do conhecimento normal”. Visto assim, a doença mental pode ser um forte mecanismo de poder nas mãos de pessoas de má fé. Por outro lado, não é possível que em pleno Séc. XXI sejam ignorados os meios que a tecnologia tem trazido com seus avanços. Estudos recentes têm mostrado que quando bem usados, podem corroborar em construções positivas. O movimento da Luta Antimanicomial usa novas possibilidades de comunicação, dentre elas, a Internet. Esse uso do espaço virtual para fortalecimento de identidades aponta para a necessidade e a importância de analisar as práticas discursivas utilizadas pelos atores sociais da Luta Antimanicomial no ciberespaço. Este artigo, que integra um conjunto de reflexões de uma pesquisa de doutorado, relata uma análise sobre um 205 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 conjunto de postagens realizadas por atores sociais no YouTube, por ocasião da comemoração do Dia Nacional de Luta Antimanicomial3. Diante de toda essa panorâmica - transtornos mentais, estigma e mídia - fica lançado o desafio para os meios de comunicação social. São poucos ainda os estudos que abrangem essa temática e por isso a importância de se atentar para isso. Uma mudança de paradigma não nasce pronta e nem cai do céu. Ela requer enfrentamentos diversos e multidisciplinar. Para isso é preciso ver o outro em toda a sua totalidade, reconhecê-lo como portador de direitos e não um mero merecedor da caridade do outro. Esse reconhecimento do outro só é possível quando o olhar que lançamos a ele não é um olhar que enxerga somente nossas experiências, carregado de preconceitos e pré- noções, mas um olhar relativizador, que o vê a partir de suas especificidades e que torna familiar (no sentido de que não causa estranhamento objetivado) qualquer manifestação da diferença (THOMAZ, 1995). À guisa de conclusão, levando em consideração que os preconceitos estigmatizantes são geradores de estereótipos advindos da falta de conhecimento e de uma consciência social moralmente negativa construída culturalmente. Deve-se ter a esperança que se possa romper com esse padrão. Existem vários meios pelos quais sejam possíveis fazer esse enfrentamento e construção de um novo paradigma, promovendo a compreensão e educação do grande público acerca destas doenças. Não basta criar modismos com conceitos errôneos estereotipados sobre questões da saúde mental, como fizeram alguns canais televisivos, mas trabalhar em rede de forma que os estigmas e preconceitos sejam, senão extirpados, pelo menos amenizados. É preciso acreditar que os Meios de Comunicação, levando em consideração valores éticos, possam ajudar no rompimento dos meta-regras impostos culturalmente sobre a pessoa com transtorno. Segundo Bacila (2008), “as meta-regras consistem em regras socais objetivas da sociedade que estão ligadas a estruturas objetivas e baseadas sobre relações de poder”. 3 Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/download/133929. Acesso em 27/01/2023. https://brapci.inf.br/index.php/res/download/133929 206 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 Balada do Louco4 Dizem que sou louco por pensar assim Se eu sou muito louco por eu ser feliz Mas louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz Se eles são bonitos, sou Alain Delon Se eles são famosos, sou Napoleão Mas louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz Eu juro que é melhor Não ser o normal Se eu posso pensar que Deus sou eu Se eles têm três carros, eu posso voar Se eles rezam muito, eu já estou no céu Mas louco é quem me diz E não é feliz, não é feliz Eu juro que é melhor Não ser o normal Se eu posso pensar que Deus sou eu Sim, sou muito louco, não vou me curar Já não sou o único que encontrou a paz Mais louco é quem me diz E não é feliz Eu sou feliz 4 Disponível em: https://www.letras.mus.br/ney-matogrosso/47717/. Acesso em 30/01/2023. https://www.letras.mus.br/ney-matogrosso/47717/ 207 Revista Campo da História, v. 8, n. 1, 2023. ISSN 2526-3943 REFERÊNCIAS AMARANTE, P. et al. Loucos pela vida. A trajetória da reforma Psiquiátrica no Brasil. 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