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CONTEÚDO E METODOLOGIA DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM > Relacionar a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Educação de Jovens e Adultos (EJA). > Reconhecer o aluno da EJA como protagonista de sua aprendizagem. > Identificar o papel do professor no processo de ensino e aprendizagem. Introdução O conhecimento e a aprendizagem não se constroem da mesma forma em todas as etapas de aprendizagem. As crianças, quando chegam à escola, encaram uma trajetória que se inicia na educação formal. Os estudantes da EJA costumam já ter passado por essa experiência, e nem sempre as suas representações sobre a escola são boas. Ainda assim, eles já conhecem muito mais sobre a vida, em razão das experiências vividas. A EJA é uma modalidade de ensino que, por ter alunos com características muito específicas, precisa de uma organização curricular e pedagógica também específica. Afinal, boa parte dos estudantes da EJA vive no cotidiano práticas que envolvem a escrita e outros conhecimentos que serão aprofundados e sistema- tizados na escola. Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos Rosemary Trabold Nicacio Desde a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, [2020]) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 (BRASIL, [2018]), a educação é vista como um direito de todos. Por isso, é preciso estudar a educação voltada ao público da EJA (jovens, adultos e idosos), reconhecendo-os como sujeitos históricos com um percurso significativo de experiências. Tais experiências são a base sobre a qual os professores devem pensar a educação. Neste capítulo, você vai estudar a proposta curricular da EJA e a sua aproximação com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Além disso, vai identificar o perfil dos estudantes da EJA. Por fim, vai ver o papel do professor nessa modalidade de ensino. Proposta curricular da Educação de Jovens e Adultos A EJA, como modalidade de ensino da educação básica, deve ter um currículo organizado a partir das orientações da BNCC, o que foi reafirmado pelas Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2021). Ainda que não haja orientações na BNCC para um atendimento específico da EJA, esse público tem especificidades que precisam ser consideradas (BRASIL, 2017). Tais especificidades estão previstas no Plano Nacional de Alfabetização (PNA): Ao jovem e ao adulto que não sabem ler e escrever busca-se não apenas proporcio- nar autonomia para ler e escrever o próprio nome e algumas palavras relacionadas ao seu cotidiano, mas, além disso, apresentar a leitura e a escrita como meios de desenvolvimento pessoal e profissional, de acesso à literatura e de outras possibi- lidades, conforme as motivações e aspirações de cada pessoa (BRASIL, 2019, p. 35). Essa visão abrangente nos leva a pensar que o currículo na educação básica tem como ponto de partida os conhecimentos, as competências e as habilidades previstas na BNCC. No entanto, é fundamental que as escolas que atendam a EJA façam os devidos ajustes para o atendimento de jovens e adultos que, pela própria trajetória de vida, já têm competências e habilidades desenvolvidas. Por isso, é importante que os professores tenham clareza da história de vida de seus alunos e de suas experiências, principalmente com a escrita e a leitura. Assim, eles poderão reorientar o currículo a serviço da aprendizagem. Na alfabetização de uma turma de EJA, deve-se ter ciência de que esses jovens e adultos já têm conhecimentos sobre a função social da escrita, pois Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos2 convivem em um mundo letrado. No entanto, lhes falta o capital linguístico for- mal, no sentido defendido por Soares (2017), que diferencia a alfabetização do letramento. O letramento é um valor social (capital) cultural e linguístico que é adquirido no convívio social. Esse conhecimento é construído socialmente, com uma herança de geração para geração. Já a alfabetização relaciona-se ao entendimento de como a escrita se organiza e de qual é a formação do sistema de escrita em toda a sua amplitude. Em resumo, a alfabetização é um saber formal que só é adquirido na escola. Segundo a BNCC, há eixos de conhecimento a serem aprofundados em relação ao ensino da língua, como a oralidade, a análise linguística e semiótica, a leitura, a escuta e a produção de textos. No eixo da oralidade estão as situações comunicativas e a aproximação das práticas de uso da linguagem oral, tão comum na vida cotidiana, em podcasts e programas de rádio e TV. Uma reorientação curricular deve estar voltada à reflexão sobre as condições de produção desses textos orais, os gêneros e o espaço de circulação desses discursos. O ensino da língua na oralidade deve ser atrelado ao aspecto crítico e reflexivo sobre as intenções do discurso nos diferentes espaços em que estes circulam, pois, como afirma Bakhtin (2003, p. 261), “todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem”. A linguagem nunca é neutra, então é preciso orientar os alunos para que compreendam os gêneros do discurso em seu aspecto ideológico. Para isso, é preciso ter domínio da língua e da linguagem e conhecer o uso de determinadas expressões ou do léxico próprio do con- texto de produção. Trata-se da palavra como ato, segundo Bakhtin (2003), que traduz um pensamento, uma intenção. Nessa perspectiva, vinculamos o ensino a uma atitude política, no sentido freiriano de que preparamos o aluno para ler o mundo e libertar-se da alie- nação que o analfabetismo produz. Também observamos no eixo da leitura o desenvolvimento de estratégias para a compreensão dos diferentes textos, como multissemióticos, orais e escritos, possibilitando aos alunos autonomia para a fruição de textos literários, muitas vezes inacessíveis aos analfabetos, além da leitura de textos jornalísticos, que promovem a informação sobre o momento presente, algo muito importante para incluir-se socialmente. Na análise linguística e semiótica, os alunos devem mergulhar na própria produção do registro escrito, na organização do sistema, na relação grafo- fônica, na fono-ortografia, na morfossintaxe, na sintaxe, na semântica, na variação linguística, nos elementos notacionais, etc. Vale ressaltar que o ensino da língua deve estar sempre a serviço da autonomia e do desenvolvimento da consciência crítica. Não é válida a imposição da língua unicamente na forma Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos 3 culta, pois, como alerta Gadotti (2021), em uma educação formal corremos o risco de reproduzir o poder dominante e, assim, não produzir a emancipação dos alunos. Segundo o autor, o analfabetismo é a expressão da pobreza, por isso um programa de EJA não pode apoiar-se no rigor metodológico, mas no quanto os saberes da língua poderão impactar na qualidade de vida de seus estudantes. Afinal, “a educação de adultos está condicionada às possibilidades de uma transformação real das condições de vida do aluno-trabalhador” (GADOTTI, 2021, documento on-line). É importante ressaltar que a BNCC organiza a formação do currículo consi- derando o ensino fundamental em sua integralidade, ou seja, os anos iniciais e finais são como um percurso contínuo (Quadro 1). Quadro 1. Organização da BNCC para o ensino fundamental Anos iniciais Anos finais Campo da vida cotidiana Campo artístico-literário Campo artístico-literário Campo das práticas de estudo e pesquisa Campo das práticas de estudo e pesquisa Campo da vida pública Campo jornalístico-midiático Campo de atuação na vida pública Fonte: Adaptado de Brasil (2017). Observe que o campo da vida cotidiana é o ponto de partida. A ideia é aproximar os estudantes da linguagem escrita a partir dos gêneros textuais e dos discursos mais próximos de sua vivência para, aos poucos, introduzi-los no uso dos gêneros mais institucionalizados, como os do acesso à literatura, artigos científicos, textosjornalísticos e textos de atuação na vida pública (textos de cunho político, código de direito do consumidor e de interesse público), essenciais para o exercício pleno da cidadania (BRASIL, 2017). Acima de tudo, a escola deve garantir o letramento por meio da alfabetiza- ção. Como descreve Soares (2012, p. 12), “não basta apenas saber ler e escrever, é preciso também saber fazer uso do ler e do escrever e saber responder às exigências de leitura e de escrita que a sociedade faz continuamente”. As Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos enfatizam, em seu artigo 13, que, independentemente de os estudantes da EJA estarem no Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos4 ensino fundamental ou no ensino médio, o currículo deve garantir os direitos e objetivos de aprendizagem, com destaque para as competências de língua portuguesa, matemática e inclusão digital (BRASIL, 2021). Este último porque as diretrizes também preveem o ensino a distância para os estudantes da EJA a partir dos anos finais do ensino fundamental, então é muito importante organizar um currículo que dialogue com as tecnologias. Tanto o discurso oral quanto o escrito precisam ser ressignificados no processo de alfabetização, pois a língua precisa ser conhecida na vida desses estudantes de forma viva (BRASIL, 2021). O termo “letramento” tem origem na palavra “literacy”, que significa: [...] estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceito está a ideia de que a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, linguísticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la (SOARES, 2012, p. 9). Assim, o processo de alfabetização de jovens e adultos deve contribuir para a sua ressignificação no mundo social, econômico e cultural, o que é um processo de inclusão. Nesta seção, vimos que é necessário que os currículos escolares sejam reorientados para atender às especificidades do público da EJA, que não tem as mesmas necessidades das crianças em fase de escolarização. Na próxima seção, vamos ver as características do público da EJA, reconhecendo o seu protagonismo no processo de aprendizagem. Perfil do aluno da Educação de Jovens e Adultos Na EJA, os principais sujeitos envolvidos são o aluno e o professor. Nesta seção, vamos conhecer as características do aluno dessa modalidade de ensino, identificando o perfil que lhe confere a condição de protagonista da sua própria aprendizagem. Segundo o artigo 37 da LDB (BRASIL, [2018]), a EJA é destinada àqueles que não tiveram acesso ou continuidade dos estudos em idade própria e, por isso, será responsabilidade do Estado garantir as condições para sua educação escolar. Para concluir o ensino fundamental, os alunos devem ter completado 15 anos; para o ensino médio, devem ter completado 18 anos. Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos 5 Segundo Moraes, Araújo e Negreiros (2020), as políticas públicas voltadas para o atendimento dessa modalidade de ensino são secundárias em relação às demais políticas educacionais. Afinal, como uma política compensatória, imaginava-se que a EJA atenderia a um público de adultos por um determi- nado período e se extinguiria. No entanto, a EJA tem se expandido para o atendimento de dois novos grupo sociais, idosos e jovens, caracterizando a juvenilização da EJA e descaracterizando a identidade original desse público. Serra e Furtado (2016) destacam que os idosos passaram a usufruir do direito à educação como uma forma de participar da vida, pois foram privados do acesso à escola por diversos motivos, como trabalho, família, resistência dos maridos e inexistência de escolas próximas a suas moradias. Todavia, eles não perderam a vontade de aprender e mantiveram a esperança de mudar de vida, acreditando que aprender a ler e a escrever garante maior autonomia e independência, inclusive no acompanhamento dos estudos de filhos e netos. A juvenilização, de acordo com Souza Filho, Cassol e Amorim (2021), tem crescido devido a vários fatores, predominando a própria adolescência e a indisciplina que acaba rotulando o adolescente como aluno problema. Ainda, há os constantes insucessos na aprendizagem e a busca por emprego, que afasta os jovens da escola. O maior problema da juvenilização é a exclusão da vida escolar e, consequentemente, da interação social e cultural. O perfil da EJA tem ampliado a sua heterogeneidade, principalmente em relação aos interesses e saberes já construídos. Os adultos vão em busca do aperfeiçoamento para a manutenção no trabalho ou mesmo uma promoção. Já os idosos tendem a resgatar as oportunidades que lhes foram negadas, buscando autonomia a independência. Os jovens, por outro lado, buscam acolhimento e o resgate social de quando foram preteridos na escola regular. Além disso, entre os alunos da EJA estão os presidiários, que diminuem suas penas ao estudarem. Eles podem ou não participar das aulas nos presídios. Como visto, os alunos da EJA já percorreram uma certa trajetória de vida, por isso tiveram experiências diversas, inclusive com a escrita. Afinal, hoje o mundo está conectado, e muitas regiões distantes dos grandes centros já se encontram ligadas por algum meio de comunicação que usa a linguagem tanto oral quanto escrita. A organização do discurso exige que as pessoas acionem a sua gramática interior, que é uma aprendizagem informal, mas que pode ser aperfeiçoada à medida que o tempo passa. Além disso, as pessoas adquirem um vocabulário específico do seu universo de trabalho e de suas experiências sociais. Ramos e Martins (2022, p. 7) falam sobre o discurso oral como um espaço de autoria quando os alunos podem interpretar a partir de suas próprias Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos6 referências, pois “o conhecimento prévio tem um caráter ‘acumulativo, ex- pandível e modificável’ que recai sobre o conhecimento linguístico”. Assim, entendemos que há uma base de conhecimento sobre a língua. Os jovens e adultos também apresentam como característica predominante a condição de serem trabalhadores, o que representa um dos principais mo- tivos para o retorno à escola, qualificando-se para o trabalho e melhorando as condições de vida (MORAES; ARAÚJO; NEGREIROS, 2020). Independentemente de serem de áreas urbanas ou rurais, esses estudantes convivem com relações de comércio, pois são consumidores e, muitas vezes, produtores de bens e/ou serviços, evidenciando práticas com objetos e ar- tefatos do mundo letrado. No entanto, muitos deles ainda são classificados como semianalfabetos ou analfabetos funcionais. O termo “alfabetização funcional”, difundido mundialmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e pela Organização dos Estados Americanos (OEA) na década de 1960, teve origem nos Estados Unidos na década de 1930, quando foi constatado que os militares tinham dificuldades para compreender as instruções escritas, ainda que tivessem conhecimento da língua inglesa. Esse termo impulsionou muitos países a investir em programas de alfabetização para adultos, como ocorreu no Brasil com o Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) em 1968. No entanto, foi apenas em 1976 que esse movimento ganhou um aspecto mais humanista, com a participação de Paulo Freire (ESCOBAR, 2007; STIEG; ARAÚJO, 2017). Os estudantes da EJA, conforme Arroyo (2013, p. 274), se encontram fora do lugar na escola regular, por isso é preciso inventar “outros lugares, outros tempos inclusivos educativos: extraturnos, extratempos, extrapercursos, extradisciplinas, extraordenamentos curriculares, extra-avaliações”. Em outras palavras, o que a escola oferece precisa ser revisto. Afinal, mais que trabalhadores anônimos, excluídos e defasados na escolarização, os alunos da EJA são sujeitos de direitos: [...] constituídos por e nas relações sociais,na vida em sociedade, pela intermedia- ção da cultura, dos valores e crenças que dotam essas relações de significados e sentidos. Inserem-se em um contexto histórico, político e econômico e nele en- saiam suas trajetórias de vida. Ao mesmo tempo, realizam um movimento próprio para interpretar esse mundo e traduzi-lo a si mesmo, percebendo-se como parte constituinte de um ou de vários grupos (SANTOS; SILVA, 2020, p. 3). Os estudantes devem ser vistos como pessoas com conhecimentos sobre o mundo em que vivem, realizam trocas sociais e comerciais, cultuam valores Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos 7 e atribuem sentidos diversos, conferindo uma autonomia sobre o seu lugar no mundo. Portanto, nessa perspectiva, esses alunos precisam ser envolvidos nos processos educacionais, principalmente quanto às práticas de alfabe- tização e letramento, pois cabe a eles estabelecer as relações entre as suas experiências cotidianas e os saberes formais que a escola apresenta. Em outras palavras, é preciso que assumam seu protagonismo também na escola. O conhecimento da língua portuguesa e da linguagem escrita repercute não apenas nas relações desses estudantes com o mundo, mas também na forma de organização do pensamento. A língua não é apenas um código; é um campo ideológico e de poder. Por isso, conhecer sua organização e os elementos constituintes pode promover a inclusão e ampliar a visão de mundo desses sujeitos. Para Paulo Freire (2010), os alunos da EJA precisam envolver-se no processo de construção da aprendizagem. Eles precisam conscientizar-se das verdades ocultas pelas ideologias que circundam a realidade. Entre essas ideologias, está a própria ideia de escola, pois não é possível incluir os alunos da EJA em estruturas excludentes, com tempos, rituais e conteúdos a serviço da educação regular. Nessa perspectiva, o protagonismo desses estudantes não aflora e, se aflorar, será incômodo para a ordem estabelecida. O protagonismo vem da presença, do direito de fala, do ser ouvido, do pensar junto, da possibilidade de transformação que eles buscam na escola. Para os alunos da EJA, a escola tem um significado totalmente diferente do que tem para as crianças. Os alunos da EJA não estão na escola porque são obrigados ou precisam aprender sobre diversos conteúdos, mas porque precisam buscar sua dignidade e autonomia para viverem num mundo letrado, com exigências para inclusão que passam por saberes que só são adquiridos na escola. Assim, a função social da escola é definida pela inclusão social e formação humana, pelo empoderamento que saber ler e escrever traz para as pessoas que vivem em uma sociedade letrada. Ao protagonizarem sua história de vida escolar, os alunos da EJA podem reconstrui-la como sonharam. Nesta seção, conhecemos o perfil dos estudantes da EJA, seus anseios e seu protagonismo no processo de ensino. Entretanto, a escola não é formada apenas por alunos; também precisamos identificar o perfil dos professores e o papel deles na aprendizagem dos estudantes da EJA. É o que estudaremos na próxima seção. Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos8 Perfil do professor da Educação de Jovens e Adultos Atuar na docência exige do profissional conhecimento técnico e, principal- mente, conhecimento humano. Assim, toda técnica deve estar a serviço da formação humana, não o contrário. Os professores que atuam na EJA precisam conhecer as técnicas e tecnologias da sua profissão, como a didática, e os conteúdos que vão ensinar. Além disso, precisam organizar tudo isso para que seus alunos encontrem o que estão buscando: dignidade, aperfeiçoamento profissional, acolhimento, inclusão, ressignificação de sua visão de mundo e empoderamento oferecido pelo conhecimento para quem o detém na sociedade contemporânea. Para Charlot (2013, p. 114), “ensinar é, ao mesmo tempo, mobilizar a atividade dos alunos para que construam saberes e transmitir-lhes um patrimônio de saberes sistematizados legado pelas gerações anteriores de seres humanos”. Em outras palavras, o que se propõe é uma viagem intelectual. Portanto, será preciso questionar as certezas e provocar as contradições, o que nos orienta como seres pensantes. Como já visto, na EJA, o professor precisa lidar com uma enorme heteroge- neidade. Na perspectiva de Charlot (2013, p. 162), isso permite combater a ideia de carência dos alunos dos meios populares, pois “eles não têm carências; têm, sim, outra forma de se relacionar com o mundo, outro tipo de vínculo com o mundo, outra forma de entrar em um processo de aprender”. Portanto, não trata-se de um ambiente carente, mas de um ambiente riquíssimo de saberes e experiências que podem promover o desenvolvimento reflexivo por meio das relações dialógicas e dialéticas conduzidas pelo professor. Afinal, “na medida em que, enquanto falamos, somos leitor um do outro, leitores de nossas próprias falas, o que ocorre aqui é que cada um de nós é estimulado a pensar e repensar o pensamento do outro” (FREIRE; SHOR, 1986, p. 3). O professor precisa olhar para seus alunos, não para suas carências, pois elas não os caracterizam. O que caracteriza uma pessoa, segundo Charlot (2013, p. 162), “é sua forma de se relacionar com o mundo, com os outros, consigo mesma e, portanto, com o saber e, de forma mais geral, com o aprender”. Nesse contexto, a primeira tarefa primordial do professor é conhecer seus alunos, suas histórias de vida, seus saberes e anseios e sua leitura de mundo. Freire (1989, p. 13) ressalta que “a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra, e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele”. Assim, os alunos passam a protagonizar suas vidas. Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos 9 As práticas pedagógicas precisam promover uma ruptura ao paradigma dominante de mera transmissão de informações, pois, mesmo não sendo uma prática neutra, a educação não precisa reproduzir a ideologia dominante, que se articula a um saber mecânico. Segundo Freire (1989, p. 16), educadores críticos “sabem que não é o discurso que ajuíza a prática, mas a prática que ajuíza o discurso”. Portanto, é preciso mudar a ação educativa. Todo esse movimento exige do professor uma escuta ativa, que entenda o outro no ponto de vista dele, não no seu próprio. É importante construir uma relação democrática de fala e escuta, na qual o aluno tem o direito de dizer a sua palavra, e é dever do professor escutá-la. O professor também tem o direito de dizer a eles, falar com eles e não para eles. Essa relação dialógica é fundamental como um ato de acolhimento desses alunos, principalmente porque eles chegam na escola sem a certeza de que serão bem-vindos. A organização e o planejamento do ensino, bem como a concretização do currículo, exigirão do professor da EJA um movimento de partilha. É preciso dar oportunidade para que esses estudantes exerçam seu protagonismo, por isso o professor pode compartilhar o planejamento de seu curso. Os alunos poderão trazer contribuições preciosas para ajudar o professor a construir bons desafios, motivando-os na participação das atividades. Segundo Charlot (2013, p. 178), “o essencial é que o aluno se aproprie de conhecimentos que façam sentido para ele e, ao responderem a questões ou resolverem proble- mas, esclareçam o mundo”. Nessa construção de si mesmo, aluno e professor estão em atividade de forma articulada e indissociável. Se o professor não oferecer as condições, o aluno não saberá construir novos conhecimentos. A chave está no conhecimento que o professor tem de seus alunos. Esse conhecimento vem de uma boa avaliação diagnóstica que deve guiar as primeiras aulas, de uma roda de conversa ou de atividades que aproximem o cotidiano do saber formal. Assim, o professor vai conhecer o que sabem seus alunos, quais foram suas experiências e quais são suas expectativas. A partir disso, o professor vai organizar os movimentos metodológicosem suas aulas. Na Figura 1, há uma representação do movimento metodológico da aula, que consiste em organizar o ensino de acordo com o grau de autonomia dos alunos frente ao conhecimento que será abordado. Quando algum conteúdo for de maior familiaridade aos estudantes, o professor pode propor desafios em grupos ou individuais. Por outro lado, quanto mais desconhecido for o tema ou maiores forem as dificuldades, o professor pode fazer a apresentação das atividades de forma coletiva, com todos apoiando uns aos outros. No momento coletivo, o professor pode levantar os conhecimentos prévios, de modo que os diferentes saberes possam circular na sala. Uma ideia pode gerar Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos10 outra, o que amplia o repertório de toda a turma. À medida que os alunos se sentirem mais familiarizados com o conteúdo, o professor pode oferecer atividades em pequenos grupos e, depois, atividades individuais. Esse movi- mento metodológico favorece o processo de construção de conhecimento e de partilha, permitindo que os alunos possam, aos poucos, construir autonomia e ter maior confiança em sua participação. Figura 1. Movimento metodológico. Maior autonomia Menor autonomia Aluno Coletivo Grupo Individual Os estudantes da EJA precisam ter a oportunidade de mostrar seus saberes e de se reconhecerem como sujeitos históricos, com uma trajetória social que lhes conferiu esses saberes. Cabe ao professor criar boas situações de aprendizagem para que os alunos possam exercer seu protagonismo. Telma Weisz e Ana Sanchez (1999), no livro O diálogo entre o ensino e a aprendizagem, apresentam quatro princípios para se organizar uma boa situação de aprendizagem. Esses princípios apoiam-se numa concepção construtivista de aprendizagem; ou seja, os estudantes são capazes de construir conhecimento à medida que o professor cria condições que favoreçam seu trabalho intelectual. Veja a seguir os quatro princípios de uma boa situação de aprendizagem (WEISZ; SANCHEZ, 1999). 1) Os alunos precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo em torno do qual o professor organizou a tarefa. 2) Os alunos têm problemas a resolver e decisões a tomar em função do que se propõem a produzir. 3) O conteúdo trabalhado mantém as suas características de objeto sociocul- tural real. 4) A organização da tarefa garante a máxima circulação de informação possível entre os alunos, por isso as situações propostas devem prever a interação entre eles. Conhecimento e aprendizagem na Educação de Jovens e Adultos 11 Neste capítulo, identificamos a importância de articular a formação dos estudantes da EJA aos currículos da BNCC, principalmente por esses es- tudantes terem características e necessidades específicas. Ensinar na EJA também requer um olhar diferenciado do professor, cujo papel é maior do que ensinar. 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