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HELENA MARIA AMARAL DO ESPÍRITO SANTO O OUTRO NO EU Uma Perspectiva Interaccional do Distúrbio de Personalidade FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE DE COIMBRA 1996 O OUTRO NO EU Uma Perspectiva Interaccional do Distúrbio de Personalidade HELENA MARIA AMARAL DO ESPIRITO SANTO O OUTRO NO EU Uma Perspectiva Interaccional do Distúrbio de Personalidade FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIENCIAS DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE DE COIMBRA 1996 Dissertação de tese de Mestrado em Psicologia Clínica do Desenvolvimento apresentada à Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade de Coimbra Realizada sob a orientação do Sr. Prof. Doutor José Luís Pio de Abreu Capa: Figura-fundo reversível. O ser humano em interacção pode ser visto de pontos de vista diferentes. Ver de diferentes pontos de vista dá origem a descrições diferentes; as descrições dão origem a teorias diferentes e as teorias dão origem a acções diferentes (Laing, 1969) AOS MEUS PAIS AO MEU MARIDO AO PROF. DOUTOR JOSÉ LUÍS PIO DE ABREU Introdução A viagem ao domínio da patologia da Personalidade tem, necessariamente, de fazer o desvio pela Psicologia da Personalidade. Este desvio à área científica da Personalidade está, por seu turno, ligado à História das Ideias, à confluência eterna da epistemologia (como conhecemos), ontologia (o que tentamos conhecer), intersubjectividade individual (o conhecedor e o processo de conhecer) e à fenomenologia (o que vivenciamos) (Mahoney, 1991). O problema é que cada personalidade é um processo epistémico e experiencial único e, nesse sentido, este desvio passará sempre pela incorporação humana, pela experiência emocional. Quer com isto dizer-se, quando fazemos a pergunta: "O que é a personalidade?", não será melhor perguntarmos: "Quais as nossas ideias de Personalidade?". Ao dar resposta a esta pergunta não se encontra uma ideia, mas várias. As ideias sobre a Personalidade envolvem, de forma problemática, crenças sobre o que somos. Para além destas, as nossas ideias sobre nós próprios envolvem ideias sobre o que gostaríamos de ser e sobre o que deveríamos ser. Com isto pretende precaver-se que aos diversos autores e a nós mesmos não deixarão de estar implicitamente envolvidas as nossas auto-imagens e os nossos auto-ideais. Como diz Pirandello: " (...) nascemos com um privilégio miserável, o de nos sentirmos vivos, com a grande ilusão resultante: que é a de tomar como realidade externa o que é de facto um sentimento interno de vida, e é mutável e variável, de acordo com os tempos, a nossa situação e a nossa sorte". Corre-se conscientemente este risco, mantendo em vista a solução que será a abertura à intersubjectividade. Mas não creio que a perspectiva subjectiva/introspectiva apresente somente aspectos negativos. Segundo Harter (1983) a maior parte da investigação sobre a personalidade tem sido focada na personalidade como objecto, em vez do self como sujeito. A via da introspecção pode ser, de facto, uma via heurística. Na realidade, foi da reflexão sobre a minha prática clínica, das relações com os meus pacientes, da análise da minha contra-transferência que se levantaram algumas das minhas 2 questões. Em conjunção com a revisão bibliográfica elas corporizaram-se em hipóteses. 1.1. Situação problema Os pontos de debate actuais relativamente ao domínio do distúrbio de personalidade são vários, provindo de diversos quadros teóricos. Este domínio foi durante muito tempo campo privilegiado da psicopatologia. Reconhecido, entretanto, que o conceito de personalidade pode ser evidenciado pelos aspectos mais estáveis e mais previsíveis da pessoa (Burger, 1993; Millon, 1981, 1994; Safran et al., 1992; Mahoney, 1991; Nuttin, 1952; Beck, 1990) ampliaram-se largamente os limites da psicopatologia. Deste modo, disciplinas como a Psicologia têm igualmente procurado na descrição da personalidade o seu sentido de identidade e continuidade. Se os modelos teóricos são vários, para diversos autores o conceito de Distúrbio de Personalidade permanece uma designação com pouca credibilidade, pouco fidedigno, com pouco suporte validativo e pouco investigado (Frances, 1980). No nosso entender estes aspectos foram já parcialmente ultrapassados. Ultimamente tem-se vindo a descobrir que estes distúrbios são uma componente major dos distúrbios mentais (Millon, 1994). Nos últimos tempos, trabalhos das mais diversas áreas vieram abrir caminho para uma nova concertação na conceptualização dos Distúrbios de Personalidade. Em grande parte, a flexibilidade do conceito de Distúrbio de Personalidade deve-se ao casamento bem sucedido de perspectivas aparentemente opostas. A chave do sucesso do casamento foi o distúrbio "borderline". De facto, o distúrbio borderline permeia toda a literatura sobre distúrbio de personalidade. 1.2. Objectivo/interesse do estudo Na prática clínica deparamo-nos com o distúrbio de personalidade como diagnóstico de último recurso. O problema do doente que foi avaliado, médica ou psicologicamente e tratado sem uma resposta favorável, é frequentemente reformulado com o diagnóstico primário de Distúrbio de O outro no Eu Problema 2 Helena Espirito Santo! ! 1996 3 Personalidade (D.P.). E quando este diagnóstico é feito, é o começo de novos problemas. Com ele são arrastados julgamentos de valor, o comportamento é percebido como deliberadamente difícil, malicioso ou manipulativo. Em última instância, as pessoas com este problema continuam a mostrar aos profissionais de saúde mental os seus limites e a envolver o seu senso de competência profissional. Adicionalmente, uma literatura crescente indica que a presença de D.P. tende a afectar a apresentação, curso e tratamento de distúrbios do Eixo I (Hills, 1995). O interesse por esta temática partiu daqui. No entanto, o seu objectivo não se prende tanto com questões de natureza empírica, mas com a procura de uma formulação teórica fundamentada na revisão monográfica e em investigação de campo. O objectivo deste estudo consiste em tentar descobrir se determinado tipo de factores (relacionais) poderão estar envolvidos no desenvolvimento e manutenção de um distúrbio de personalidade. O interesse desta procura prende-se com a preocupação em contribuir com novas pistas que alterem o estado de coisas entre os profissionais de saúde. 1. 3. Questões a investigar Em Portugal não existe um instrumento que complemente o diagnóstico clínico do Distúrbio de Personalidade. Por esse motivo, a primeira parte da nossa investigação consistiu em traduzir e aplicar um inventário que nos permitisse atingir esse objectivo (MCMI-III, Millon Clinical Multiaxial Inventory -III). Em segundo lugar procurámos investigar os desvios entre a imagem que o sujeito tem de si, a imagem dos outros sobre o sujeito e a ideia do sujeito da imagem que os outros fazem de si. Com esta investigação procura-se determinar a diferença entre as pessoas com patologia da Personalidade e sem patologia da personalidade. 1. 4. Delimitação O trabalho de aplicação do inventário para a população portuguesa foi bastante limitado, pois não era nossa pretensão fazer um trabalho de aferição, mas tão somente complementar o diagnóstico clínico com um instrumento O outro no Eu Problema 3 Helena Espirito Santo! ! 1996 4 externo. Adicionalmente, com este inventário, e a par com o diagnóstico clínico, pretendíamos simplesmente determinar a presença de distúrbio de Personalidade e não o tipo de patologia — aspecto específico do MCMI-III. Outro limite da nossa investigação prende-se com o número de elementos das nossas amostras da segunda parte da investigação.Este aspecto resultou da nossa preocupação em dar representatividade semelhante a todos os distúrbios de personalidade na nossa amostra experimental. Pretendíamos evitar com esta semelhança que houvesse vieses nos resultados. 1. 5. Organização do estudo No nosso trabalho iremos procurar tentar salientar a passagem de uma centralização na personalidade isolada para uma personalidade contextualizada. Seguimos de perto as abordagens mais recentes da perspectiva cognitivo-comportamental que procuram sintetizar outros modelos: o da vinculação, psicanalítico e interpessoal. Procuramos nestes as contribuições que convergem na integração dos factores cognitivos, afectivos, comportamentais e interpessoais numa perspectiva de desenvolvimento. Assim, no 2º capítulo iremos fazer este percurso ao longo do tema da Personalidade. Primeiro, ao longo das abordagens teóricas: desde as abordagens empíricas (personalidade isolada) às relacionais (personalidade contextualizada). Depois através da distrinça de conceitos aparentemente análogos aos da personalidade. Continuamos através da referência ao desenvolvimento do Eu. Enfatizamos a passagem na relação entre o "Eu e o Outro". E concluímos no "O Outro no Eu". No capítulo III, referente à Personalidade Patológica, a transição resulta mais indirecta. Iremos debruçarmo-nos sobre as abordagens teóricas e sua evolução, sobre questões conceptuais e abordagens explicativas actuais, que, a finalizar, reuniremos numa integração teórica. Na segunda parte do nosso trabalho tentaremos mostrar a transição a que temos vindo a fazer referência através da investigação prática. Procuraremos demonstrar as nossas hipóteses de que: O outro no Eu Problema 4 Helena Espirito Santo! ! 1996 5 — no distúrbio de personalidade (D.P.) a maneira como se vêem é diferente da maneira como os outros os vêem. — no D.P. o modo como pensam que os outros o vêem tem semelhanças com a maneira como os vêem realmente. — nas pessoas sem D.P. a maneira como se vêem é semelhante à maneira como os outros os vêem. — nas pessoas sem D.P. o modo como pensam que os outros o vêem é diferente da maneira como os vêem realmente. Com estas hipóteses em vista, esta 2ª parte divide-se no capítulo IV, onde referimos as nossas hipóteses e metodologia empregue. No capítulo V apresentam-se os resultados e sua discussão. Finalmente, no capítulo VI apresentaremos as nossas conclusões. O outro no Eu Problema 5 Helena Espirito Santo! ! 1996 Para se compreender a si próprio, o homem precisa de ser compreendido pelo seu semelhante. Para ser compreendido pelo seu semelhante, precisa de o compreender (Hora, 1959) Introdução A palavra "Personalidade" deriva do termo grego persona (προσϖπον) que originalmente significava a Máscara usada pelos actores dramáticos. Com este significado é sugerida uma aparência determinada, i.e., um conjunto determinado de traços que não tem nada a ver com o indivíduo que está por detrás da máscara. Ao longo do tempo o termo persona foi perdendo o seu significado de aparência e adquirindo um novo significado. Deixou de representar a máscara, para passar a significar a pessoa real com as suas características manifestas e explícitas. Finalmente assiste-se à passagem deste significado, aliado à impressão superficial, para as qualidades internas e menos explícitas do indivíduo. Quando se estuda a Personalidade em Psicologia, existe implicitamente a aceitação da noção de individualidade. O constructo científico de Personalidade não designa um indivíduo concreto, mas pressupõe, pela sua própria definição, que cada indivíduo é único e distinto dos outros. Indivíduo (do lat. individuu- "indivisível, inseparável", não dividido) é o exemplar concreto de qualquer espécie de ser vivo. Não se aplica a objectos inertes. O que significa que a noção de indivíduo já implica certo grau de unidade e organização. É um todo, não divisível, distinto dos outros (Nuttin, 1965). O outro no Eu! Personalidade 6 Helena Espirito Santo! 1996 Esta consciencialização e afirmação de individualidade não apresentou sempre as mesmas significações. Nesse sentido, a História das Ideias pode dar a ajuda indispensável para determinar a evolução do conceito. Para além desta determinação, o aspecto heurístico da abordagem histórica é sempre de valorizar, no sentido de fundamentar depois uma escolha conceptual. A emergência da noção do indivíduo como fenómeno único e, decorrente daí, da noção de privacidade, foi um fenómeno gradual, remontando as suas origens aos tempos pagãos. As ideias originais sobre individualidade e experiência pessoal assentam nas tradições espirituais de, praticamente, todas as culturas e de algumas épocas. A "alma" de cada pessoa foi sempre a expressão sagrada de uma existência unificada. De acordo com a investigação histórica de Ariès e Duby (1990), do século X ao século XIII não existia a noção de privacidade como a entendemos hoje: era comum nas residências feudais a inexistência de divisões na casa para os cuidados individuais. Nos finais do século XII emergem crescentemente sinais de desejo de liberdade e de autonomia. Se, por um lado, o Cristianismo enfatiza o serviço activo e a transformação da pessoa através de expressões ritualizadas, por outro, há uma nova emergência do Humanismo e sinais diversos de individualidade corporizada em responsabilidade legal. Só com o Renascimento se assiste ao florescer da ideia, ainda hoje actual, da pessoa como um processo único de vida. No século XVIII considera-se o individualismo como um obstáculo ao progresso e um sintoma de egoísmo (semelhante ao preconizado pelos Epicuristas e Estóicos) que impediria a liberdade e ordem social. Como expressão crítica particular desta ideia, presenciamos a advertência dos pensadores franceses para o O outro no Eu! Personalidade 7 Helena Espirito Santo! 1996 individualismo como um inimigo da liberdade, que traria como resultado a retirada dos cidadãos da vida pública e a vida pública dos cidadãos, culminando na destruição da ordem social. No século XIX ganham finalmente terreno, com o ideal romântico Alemão, as ideias de unicidade pessoal, de originalidade e desenvolvimento pessoal. Podemos, assim, distinguir entre uma concepção pré-moderna do indivíduo, enquanto definido pelos seus papéis no interior da comunidade e pelas relações entre esses papéis (pessoa heterónoma). E podemos também falar de uma concepção moderna do indivíduo, enquanto independente e antecedente à comunidade (pessoa autónoma). Esta concepção moderna, de raiz iluminista e liberal, atribui ao homem liberdade de escolha e faz dele um ser autónomo, responsável e independente dos constrangimentos que o cercam (Sampson, 1989). A Individualidade passa a assumir, simultaneamente, vários significados: egoísmo oposto à vida colectiva; a natureza biológica e genética dos sistemas vivos; aspectos recursivos fundamentais e auto- descritivos da reflexão pessoal e, ainda, a apreciação das diferenças individuais e suas expressões diversas (Mahoney, 1991). Finalmente, só actualmente se presencia à inclusão, aparentemente inconciliável, do indivíduo no seu sistema social e do sistema social no indivíduo. 1. Abordagens teóricas Um dos problemas mais perenes que se tem colocado ao ser humano é o carácter enigmático da natureza humana. Uma das dificuldadesem obter uma resposta clara prende-se, provavelmente, com a enorme variedade de diferenças entre nós. Desta variedade é O outro no Eu! Personalidade 8 Helena Espirito Santo! 1996 particularmente difícil identificar os aspectos partilhados comuns nos membros da raça humana. Simultaneamente, todos nós temos tendência para caracterizar os outros com qualidades e traços de carácter particulares. Uma hipótese explicativa é a de estarmos a dizer a nós próprios como nos comportarmos de acordo com as descrições que fazemos. Parece ser próprio do raciocínio humano tentar encontrar explicações causais que vão só numa direcção, i.e., tentar fazer previsões (Kelly, 1963). A Astrologia, Teologia, Filosofia, Literatura e Ciências Humanas representam algumas das direcções no caminho da compreensão da natureza humana. Na Psicologia os caminhos têm também sido vários. Iremos tentar descrevê-los, agrupando-os no que designamos por perspectivas empíricas e por perspectivas relacionais. Esta forma de agrupar as diversas teorias explicativas prende-se com o nosso próprio fio condutor: caminhar da focalização de um Self isolado e totalizante, para um Self descentralizado. Dito por outras palavras, para a contextualização do Self. 1.1. Perspectivas Empíricas Nestas perspectivas a Personalidade é compreendida como a soma, associação, síntese integradora de elementos diferentes que podem ser avaliados isoladamente. A verificação da frequência, regularidade ou constância de certas características permite o estabelecimento de classes ou tipos. Nesta formulação incluem-se as tipologias, as concepções baseadas no conceito de traço e as teorias factoriais. É uma perspectivação da Personalidade como objecto. Tipos Categoriais versus Traços dimensionais. O conceito de tipo de Personalidade (tal como é usado por Kretschmer e Jung) costuma ser contrastado com o conceito de traço de Personalidade O outro no Eu! Personalidade 9 Helena Espirito Santo! 1996 (Eysenck, 1970). Tem sido sugerido que perspectivar a Personalidade como tipo implica uma forma bimodal de distribuição e a perspectiva do traço relaciona-se com uma forma unimodal. Talvez possamos, no entanto, considerar esta dicotomia falaciosa (Eysenck, 1970) como decorre das noções de traço e de tipo. Para Nuttin (1965) traço de Personalidade é uma inferência a partir da constância, estabilidade ou consistência das formas de comportamento de um indivíduo. Pode definir-se como disposição, quer adquirida, quer hereditária, da Personalidade, conhecida a partir das formas de comportamento relativamente estáveis. Sob a multiplicidade de comportamentos e características que distinguem os indivíduos, existem dimensões mais fundamentais que subjazem a essas diferenças e que as remetem para uma certa unidade estrutural. Essas dimensões essenciais não se manifestam em traços isolados, mas sim em conjuntos de maneiras de ser e de agir. O tipo refere-se a esses aspectos diferenciais da Personalidade. Resultam da correlação de traços (Nuttin, 1965). Por outras palavras, um tipo de Personalidade abarca um grupo de componentes (“traços”). Daqui se depreende que as duas noções são interdependentes. Passemos agora a cada uma das abordagens. A primeira tentativa de classificação de comportamentos e consequentemente procura de previsão foi desenvolvida pelos sistemas tipológicos. A tipologia parte de uma apreensão global e intuitiva do núcleo central da estrutura da Personalidade, enriquecida depois por dados quantitativos, colocando sempre a ênfase na dependência de cada elemento em relação à totalidade da estrutura. Numa primeira integração intuitiva, identificam-se os grupos de comportamentos habituais ou traços. Pondera-se quantitativamente a força do vínculo que os une (coeficiente de correlação). Essa coesão de certos traços, que se opõe a outros conjuntos de traços, é reveladora da organização interna. Estas relações são concebidas num quadro gestaltista de O outro no Eu! Personalidade 10 Helena Espirito Santo! 1996 dependência de cada traço em relação à totalidade da Personalidade, ou a uma das dimensões fundamentais. Assim, seleccionam-se características centrais que exemplificam e categorizam tipos de personalidade. De facto, pretende-se reduzir as características diferenciais da personalidade às suas dimensões essenciais (habitualmente bipolares). A tipologia permite situar o indivíduo em relação a um ponto de referência. Mas não admite classificá-lo numa categoria bem definida. Ao invés, autoriza evocar um contexto provável para cada um dos traços de Personalidade. A análise dimensional presta atenção especial aos aspectos estruturais e estáveis, i.e., pesquisa determinado número de traços de forma a descrever a personalidade e explicar o comportamento e sua consistência. É o estudo quantitativo da Personalidade em termos de correlações e de factores. Não recusa completamente a noção de tipo. O tipo é um ponto limítrofe que se determina partindo do estudo das constâncias nos comportamentos individuais, o que fornece os conjuntos de comportamentos habituais. Certos comportamentos habituais agrupam-se em traços, através do cálculo das correlações e análise factorial. Diversos traços organizam-se, por seu lado, em tipos, que de uma análise mais extensa, permite obter factores de ordem mais geral (é o exemplo dos trabalhos de Eysenck e de Jung). Apesar de diferentes perspectivas terem proposto diferentes números e classes de traços, parece ter sido atingido algum consenso nos últimos anos com o modelo das 5 dimensões ("Big Five"). É explícito neste modelo que a pessoa revela consistência no seu comportamento. Vozes dissonantes, no entanto, têm-se ouvido. Para Mischel (1968) não é possível prever só através do conhecimento dos traços de Personalidade de um indivíduo, o modo como esse indivíduo reagirá exactamente numa dada situação específica. Essa impossibilidade decorre da variação do comportamento através das situações. De facto, o autor descobriu que as correlações para o O outro no Eu! Personalidade 11 Helena Espirito Santo! 1996 mesmo traço em situações diferentes eram bastante baixas. Esta impossibilidade levou a considerar que a descrição de uma pessoa através de traços é relativamente inútil, porque se correlaciona pouco com o modo como esse indivíduo se comporta ao longo de uma vasta gama de situações e também porque a descrição por traços sugere que não existem variáveis independentes que possam ser manipuladas de forma a permitir controlar o comportamento. Para este autor, o comportamento de alguém numa dada situação só poderá ser compreendido em termos do complexo de estímulos que essas situações apresentam nesse momento e pela história prévia da aprendizagem realizada por esse indivíduo em situações semelhantes (Mischel, 1968).1 A bem conhecida publicação de Mischel de 1968 foi a responsável pela crise profunda numa psicologia da personalidade que até à década de sessenta foi de grande esplendor (Palenzuela, Barros, 1993). Daqui desencadeou-se um debate profundo entre os defensores dos traços e os que enfatizavam os factores situacionais na determinação do comportamento. Este debate entre personalistas e situacionistas deu origem à perspectivade solução que foi a interaccional. Um destes trabalhos foi o do próprio Mischel em 1973. Outro dos limites apontados ao modelo dos traços refere-se ao pequeno acordo relativamente ao número de dimensões (desde uma a O outro no Eu! Personalidade 12 Helena Espirito Santo! 1996 1 A investigação parece assim revelar que não há consistência do comportamento. No entanto, a nossa intuição diz-nos que sim. Quem tem razão? Investigações em Psicologa social vêm lançar alguma luz sobre este paradoxo (Atkinson, et al., 1993). Estas investigações debruçam-se sobre os processos de inferência social, tendo revelado um grande número de distorções nas nossas capacidades para fazer juízos válidos a partir dos dados quotidianos da nossa experiência. Apesar destas investigações, alguns autores mantêm a ideia de que as nossa intuições captam a realidade da personalidade de modo mais fiel que a investigação (Vide Atkinson, et al., 1993). A primeira solução vem da perspectiva de Allport (1963) — a solução centrada-na-pessoa. Allport acreditava que nos devíamos preocupar mais com o padrão único de traços individuais do que com a comparação de traços comuns (abordagem idiográfica vs. nomotética). As nossas intuições pessoais parecem seguir a estratégia centrada-na-pessoa. Outra solução vem da crítica aos estudos que encontram uma consistência pequena do comportamento entre situações diferentes. Estes estudos baseiam-se só em uma ou duas medidas do comportamento.Seria mais correcto se se combinassem várias medidas comportamentais do mesmo traço (Atkinson, et al., 1993). trinta e três ou mais), não esquecendo que um grande número de traços se torna de difícil compreensão, dado o seu grau de complexidade (Millon, 1981). Esta posição é considerada demasiado radical pelas teorias da personalidade que argumentam ser possível prever com alguma segurança o modo como a maioria das pessoas com determinados traços de personalidade reagirão na maioria das situações. Para Nuttin (1965), por exemplo, não se procura classificar a personalidade segundo duas ou três classes, conforme se possua ou não um grau médio de determinada característica. E considera que essa concepção simplista é desmentida pelos estudos quantitativos e estatísticos das diferenças interindividuais, que mostram a distribuição contínua das diferenças quanto aos traços físicos e psíquicos. Não se trata do estabelecimento de algumas classes em função da ausência ou presença de um traço preciso, mas antes da integração de uma variedade de maneiras de ser e de agir numa forma dominante que serve de ponto de referência para cada indivíduo, conforme ele se distancie ou se aproxime dele. Já Millon (1981) lista algumas vantagens. Referimos as mais importantes: é possível obter a combinação das várias características num perfil único; é dada atenção a todos os traços (ao inverso da tipologia que só se dedica a traços únicos); o perfil dos traços permite a inclusão de casos invulgares ou atípicos (enquanto na tipologia é posto de lado o que não se encaixa nas categorias); permite a representação da individualidade e singularidade e permite uma conceptualização da normalidade e patologia numa relação de continuidade. Em conclusão, as perspectivas apresentadas permitem o estudo das diferenças individuais. Todavia, não permitem a descrição da individualidade da pessoa ou das particularidades da sua história. A sua inclusão no nosso trabalho justifica-se pela distinção que procuraremos fazer entre pessoas sem distúrbio de personalidade e com distúrbio de personalidade. O outro no Eu! Personalidade 13 Helena Espirito Santo! 1996 1.2. Perspectivas Relacionais A Personalidade, nesta visão, é entendida como o sistema de relações organismo-mundo. Aqui podemos situar a Psicanálise a teoria da Gestalt, as teorias da Aprendizagem social, entre outras. Estas teorias constituem o modelo que guia o nosso estudo. Na viragem do século alguns cientistas sociais fizeram notar a importância da interacção social na adaptação e sobrevivência — daí desenvolver-se mais tarde a perspectiva do interaccionismo simbólico. 1.2.1. Personalidade como espelho Os principais autores que desenvolveram uma noção de Personalidade como um espelho foram James, Baldwin, George H. Mead, Charles H. Cooley. Para estes a Personalidade é o produto da imitação, internalização e inferências sugeridas por aquilo que acreditamos serem as percepções e avaliações de nós feitas pelos outros. Por outras palavras, as avaliações que o indivíduo faz de si próprio, as auto-avaliações, são construídas a partir de avaliações reflectidas, i.e., das avaliações que os outros formulam ao seu próprio comportamento específico. O conceito que a pessoa faz de si (auto- conceito) seria uma espécie de fenómeno em espelho em que o indivíduo, ao ver-se a si próprio, tende a observar-se como os outros o olham. Cooley e Mead estão mais ligados a um interaccionismo simbólico e à noção de que um espelho social cria a Personalidade. Cooley (1902), mais especificamente, propôs o "looking glass Self" como metáfora de como o conceito de si mesmo é determinado pelas perspectivas dos outros.2 Baldwin põe a tónica nos processos interpessoais e vicariantes na aprendizagem social, promovendo a fundação da teoria da Aprendizagem social (ref. por Mahoney, 1991). O outro no Eu! Personalidade 14 Helena Espirito Santo! 1996 2 Como diz Pio de Abreu (1993, p. 87): "É este ver-se através dos olhos dos outros que lhe dá o modelo de si próprio, do seu auto-conceito ou do seu ego." Estes autores afirmam que as pessoas parecem sentir que a sua identidade requer validação dos outros para que lhes seja dada realidade social. Vários teóricos e investigadores confirmaram posteriormente que as percepções dos outros constituem uma parte importante do Eu e que exercem uma influência forte sobre as concepções que o indivíduo tem de si (Tice, 1992). No entanto, Shraver e Schoeneman (1979) consideram como parcialmente verdadeira a afirmação de que as nossas avaliações pessoais reflectem as respostas e avaliações dos outros. Os autores revêem 50 estudos nesta área e comprovam que as auto-percepções dos indivíduos concordam com a forma como pensam que os outros os percebem. No entanto, há uma concordância fraca entre a forma como uma pessoa se percebe e é percebida pelos outros. Também é preciso ter em conta que as avaliações dos outros não terão valor igual. Nem todos serão pessoas significativas para determinado indivíduo (Gecas, 1982). Acrescente-se ainda que as avaliações pessoais podem não ser apenas avaliações reflectidas. Algumas vezes são fruto de comparações sociais. O indivíduo pode comparar-se a um grupo que é para si fonte de normas e valores — grupo normativo— ou a um grupo que lhe dá os padrões de auto-avaliação — grupo comparativo. Outras vezes as percepções do indivíduo a seu respeito são influenciadas pela atribuição feita ao próprio comportamento observável (Vaz Serra, 1986). Para Broughton (1986) e outros críticos esta perspectiva da Personalidade como espelho poderia correr o risco de perder de vista o Eu individual, confundir percepções com a existência global e alhear-se do contexto e história pessoal. A unicidade activa e construtiva da Personalidade seria perdida, em detrimento de um convencionalismo internalizado. Gostaria, apesar destas críticas, de reafirmar a importância desta ideia para a fundamentaçãodas hipóteses deste trabalho. O outro no Eu! Personalidade 15 Helena Espirito Santo! 1996 Ainda que as hipóteses não se confirmem, não gostaria de deixar de referir com Harré (1984) que esta ideia tem o valor de, implicitamente, referir a importância do relacionamento social na forma e existência da Personalidade. 1.2.2. Personalidade como pessoa social Num sentido um pouco diferente, encontra-se ainda a ideia de que o ambiente social seria o contexto primário para o desenvolvimento da identidade. Neste sentido a Personalidade seria uma pessoa social. Sendo o auto-conhecimento central para a identidade, este requereria uma interacção com outros da mesma "família sistémica". A fundamentar esta ideia estariam os estudos demonstrativos de uma relação entre problemas de socialização primária e uma auto-consciência tardia e enfraquecida. Exemplo disto, vindo da experimentação animal, é o de macacos criados em isolamento completo e que não se reconhecem ao espelho. Poder-se-á concluir que o desenvolvimento do auto- conhecimento requer a interacção com outros elementos da mesma família sistémica (Mahoney, 1991). Conclusão semelhante tem sido referida para a possibilidade de dar consciência aos computadores: colocar dois sistemas em interacção, de forma a que um dê informação retroactiva sobre o que se passa no interior do outro. Um dos sistemas (Cérebro-A) actua no mundo exterior, enquanto o outro sistema (Cérebro-B) vê e influencia o que se passa no interior de A (Ver Figura 1) (Minsky, 1986). O outro no Eu! Personalidade 16 Helena Espirito Santo! 1996 MUNDO CÉREBRO-A CÉREBRO-B Figura. 1. Representação do modo de dar consciência a uma "mente" sem que esta perca o contacto com a realidade (Minsky, 1986). Dentro desta perspectiva há visões mais radicais, em que a Personalidade é vista como um repertório de máscaras que vão sendo mudadas para se adaptar a diferentes contextos sociais. A ênfase é colocada na influência dos contextos sociais nas representações do Eu. A percepção de si pela pessoa é mediada pela consciência e sensibilidade do indivíduo ao reconhecimento pelo outro (Mahoney, 1991). Na teoria Psicanalítica a Personalidade assume também uma perspectiva relacional. Encontramos em Freud o reconhecimento de que a percepção e vivenciação de interacções significativas com os outros afectam a estrutura intrapsíquica. Já em 1895 refere a importância das experiência de gratificação ou frustração face ao objecto na duração de lembranças. O autor explica, à luz dos seus modelos do trauma-afecto e topográfico, que o objecto é o veículo através do qual é procurada e obtida a gratificação do impulso. O objecto é vivenciado no início da vida em relação à satisfação libidinal; à medida que ocorrem as lembranças das interacções os impulsos instintivos passam rapidamente da procura de prazer para a busca do objecto. Em 1914 Freud refere que as quantidades da energia psíquica (líbido) são limitadas, podendo ser primariamente investidas em nós ("catexia do Ego") ou nos outros ("Objecto de amor"). É de salientar que para Freud o interesse por si próprio e o cuidado pelos O outro no Eu! Personalidade 17 Helena Espirito Santo! 1996 outros são inversamente proporcionais. O autor acreditava que as pessoas que se preocupavam demasiado consigo próprias, teriam pouca energia psíquica para investir em relacionamentos importantes. Ao propôr o seu modelo estrutural, Freud altera o sentido do conceito de objecto: este deixa de ter um papel secundário (mero gratificador de impulsos), para passar a ter um papel central. As identificações ao objecto tornam-se centrais na formação do Ego e do Superego (Freud, 1923). O próprio conceito Freudiano de "Complexo de Édipo" é uma ilustração inequívoca da importância que Freud atribui às relações interpessoais na estruturação e no desenvolvimento da Personalidade. O autor psicanalítico ao rever a sua teoria da ansiedade em 1926 apresenta-nos um acréscimo a estas ideias. Observa que no início "quando a criança descobre pela experiência que um objecto externo e perceptível pode terminar com a situação perigosa (…) o conteúdo do perigo que ele teme é deslocado da situação (…) para a condição que determinou esta situação, a perda do objecto" (p. 137-138). O objecto tem a função de regular a ansiedade. Finalmente ele acrescenta que o abandono e dependência da primeira infância estabelecem estas "situações precoces de perigo e criam a necessidade de ser amado, que irá acompanhar a criança para o resto da sua vida" (p. 155). Esta afirmação revela que o autor vê as experiências relacionadas com o objecto e as experiências de gratificação libidinal como sendo igualmente relevantes para a formação da estrutura psíquica e o desenvolvimento óptimo e sugere que as duas estão ligadas através de experiências de amor ou de medo e ansiedade. Nas teorizações pós-freudianas, com a teoria das Relações Objectais3 a dimensão relacional parece ainda mais evidente. O outro no Eu! Personalidade 18 Helena Espirito Santo! 1996 3 Será útil manter aqui a distinção entre as relações interpessoais e as relações de objecto. A primeira diz respeito às interacções reais com as pessoas. A segunda tem a ver com as dimensões intrapsíquicas da experiência com os outros, i.e., refere-se à representação mental do Self e dos outros e da função de cada um destes com as suas interacções ( Tyson, Tyson, 1993). Melanie Klein foi a sua precursora. A partir das análises que fez de crianças concluiu pela importância das relações de objecto pré- edípicas precoces. Para esta autora o primeiro objecto que existe na mente do bebé é o seio da mãe, tendo este uma existência separada do Self desde o início. O bebé seria dominado por instintos (instintos de vida e de morte), e estes ligar-se-iam ao seio. O seio da mãe assumiria, deste modo, dois sentidos: o seio bom e o seio mau. A referência a Klein justifica-se aqui pelo facto de ter sido pioneira nesta afirmação da internalização de objectos significativos como base do relacionamento interpessoal. Contudo, não nos deteremos mais, pois existe pouca coisa na sua teoria que esclareça os efeitos da acção do objecto no desenvolvimento (Tyson, Tyson, 1993). Com Mahler a individuação, i.e., o processo do indivíduo se tornar único e distinto, é teórica e experiencialmente indissociável do processo de separação, que consiste na distinção e distanciação que advém dos limites que as regras, papéis e relações colocam à sua identidade independente. O processo de separação-individuação é fundamental para a constância do objecto e para que uma Personalidade coerente seja desenvolvida. A maior parte do processo é estimulado pelas separações e interacções com a mãe, ocorrendo ao longo de diferentes fases. Entre as críticas que se levantam a esta teoria, contam-se: o foco exclusivo no papel da mãe, esquecendo o papel da figura masculina e dos próprios contributos interactivos em que a criança também se vê envolvida (Tyson, Tyson, 1993). Apesar destas críticas, a teoria mantém a sua validade ao referir a importância do papel das relações com os outros e da capacidade para nos separarmos o suficiente dessas relações para que consigamos formar uma identidade coerente. John Bowlby, psicanalista,foi o precursor da maior parte dos trabalhos sobre a vinculação em crianças. A sua teoria é uma integração de conceitos da psicanálise, etologia e psicologia cognitiva. O outro no Eu! Personalidade 19 Helena Espirito Santo! 1996 O autor propõe a tendência para a ligação como um sistema de resposta instintivo inato. São pelo menos cinco esses sistemas de resposta: choro, sucção, sorriso, agarrar e o seguir. Estes sistemas activam respostas por parte da mãe. A mãe, por seu turno, oferece feedback para os sistemas do bebé, activando comportamentos que medeiam a ligação. Quando os sistemas de resposta instintivas do bebé são activados sem que a mãe esteja disponível, ocorre ansiedade de separação com comportamentos de protesto (Bowlby, 1993a). Inicialmente, como se vê, o comportamento de vinculação é mediado por respostas organizadas segundo linhas bastante simples. " A partir do final do primeiro ano, passa a ser moderado por sistemas comportamentais cada vez mais refinados, os quais são organizados ciberneticamente e incorporam modelos representacionais do meio ambiente e do Eu." (Bowlby, 1990, p. 123). A criança forma assim modelos de trabalho internos das figuras de vinculação e de si mesmo, que tendem a persistir relativamente inalterados ao longo da vida. De acordo com a sua teoria, o insucesso em formar uma vinculação segura na infância está relacionado com uma incapacidade em desenvolver relacionamentos interpessoais na vida adulta (Bowlby, 1990). Ao longo da vida, em todo o vínculo afectivo uma pessoa nova tende a ser assimilada a um modelo existente. De forma semelhante, o indivíduo espera ser percebido e tratado por essas pessoas de um modo que seja apropriado ao seu modelo do Eu. E continuará com tais expectativas, apesar de provas em contrário. Tais expectativas levam a diversas crenças erróneas sobre as outras pessoas, a falsas expectativas acerca do modo como se comportarão e a acções inadequadas, com a intenção de frustrar o comportamento esperado delas. Pelo seu interesse, as ideias deste autor serão retomadas mais à frente. Se na teoria Psicanalítica foi sempre central o interesse pela Personalidade, os autores comportamentalistas tradicionalmente O outro no Eu! Personalidade 20 Helena Espirito Santo! 1996 evitaram tal teorização. Estes autores vêem a pessoa como influenciada pelos mecanismos de aprendizagem. Estamos ainda na linha da pessoa social. Apesar deste evitamento ao conceito de personalidade, a revolução cognitiva nos anos 60 re-direccionou a Psicologia experimental de volta para o "interior" do organismo. O que estes autores descobriram ao olharem para o interior foi, no entanto, muito mais do que o que antecipavam. Exemplos são as descobertas recentes sobre emocionalidade, processos inconscientes e significados pessoais (Mahoney, 1991). Nesta linha, a descoberta, talvez principal, foi a da Personalidade que se tornou (outra vez) um conceito cardinal, depois de ter sido banido durante quase meio século. Este ressurgimento deve-se, em grande parte, às ciências sociais e comportamentais, mas muito do seu ímpeto veio também da prática clínica. Se no início a teoria comportamental punha objecções ao conceito de Personalidade, por volta dos anos 60 notou-se a sua re-conceptualização, no sentido de a compreender pelo seu aspecto cognitivo. Iniciada, principalmente, com os trabalhos de Bandura (1977) esta re-conceptualização da Personalidade nunca mais parou. 1.2.3. Personalidade como agente As abordagens cognitivistas não deixaram de apresentar limitações. Da procura em as ultrapassar surgiu uma nova abordagem, designada por perspectiva constructivista ou estrutural (Gonçalves, 1989). O modelo constructivista começou por incorporar teorias baseadas no desenvolvimento (como por exemplo, a teoria da vinculação de Bowlby e a Epistemologia genética de Piaget), a dar ênfase aos processos cognitivos inconscientes ou tácitos e importância aos processos afectivos. Foi amplamente reconhecido por este movimento que as cognições e comportamentos explícitos são O outro no Eu! Personalidade 21 Helena Espirito Santo! 1996 regulados por processos tácitos e inconscientes (Lockwood, Young, 1992). Sob a superfície existe um núcleo constituído por assumpções centrais sobre si mesmo e sobre a realidade. Estas assumpções, construídas no curso do desenvolvimento, orientam a formulação de hipóteses que se traduzem nas acções. Guidano e Liotti (1983) defendem que elas se desenvolvem muito precocemente através de processos de vinculação e separação. As perspectivas constructivistas baseiam-se em três formulações centrais. Primeiro, as disfunções são vistas como o resultado de um desequilíbrio importante entre as estruturas cognitivas a mudança ambiental. Em segundo, o mundo da realidade é visto como um mundo construído activamente. Em terceiro, a construção da realidade é vista como seguindo um processo de desenvolvimento sequencial (Gonçalves, 1989). Assim, temos no modelo Construtivista uma perspectivação da Personalidade como agente, teoria, processo ou projecto. A Personalidade constitui uma teoria que o indivíduo tem sobre si próprio (Mahoney, 1991). O modo como uma pessoa se torna um indivíduo determinado é expressão de padrões comportamentais, predominantemente interaccionais, profundamente enraizados, que são principalmente emocionais e não explícitos (tácitos). Estes padrões constituem um conjunto aberto de princípios organizadores. Desta forma a Personalidade é uma metáfora do próprio processo de auto-organização que cada pessoa é em cada momento (Gonçalves, 1989, 1993; Guidano, 1985, 1987b; Mahoney, 1985, 1991). 1.2.4. Personalidade como agente em interacção No decurso dos últimos anos, a perspectiva cognitiva foi enriquecida com uma nova família de teorias que defendem a ideia da importância do desenvolvimento num contexto interpessoal. Com este novo ramo a psicanálise e a abordagem comportamental, há muito de costas voltadas, parecem começar a virar-se uma para a outra. O O outro no Eu! Personalidade 22 Helena Espirito Santo! 1996 indivíduo passa a ser considerado como um agente no seu desenvolvimento, onde os outros têm um papel de relevo. Estamos a referirmo-nos às abordagens interpessoais, em que é compartilhada a ideia de que os indivíduos desenvolvem precocemente esquemas de interacção eu-outro, que modelam interacções subsequentes ao longo da vida. Nesse sentido, os comportamentos de uma pessoa num contexto de interacção tendem a desencadear comportamentos previsíveis nos outros (Andrews, 1991; Kiesler, 1972; Safran, McMain, 1992; Safran, Segal, 1990). 1. 3. Integração teórica Como podemos constatar, a Personalidade tornou-se terreno comum de diálogo para diversas teorias. Mas o mais importante é que possamos entrever a importância das diferentes perspectivas através de uma meta-perspectiva. O comportamento é a evidência externa da Personalidade de uma pessoa. Refere-se às qualidades da pessoa, tal como são observadas pelos outros. Desta forma, as estruturas subjacentes terão de ser forçosamente inferidas, pelo que a descrição da Personalidade será, então, uma tarefa teórica. Se a noção de Personalidade se baseia numa inferência a partir de constatações,ela é então um mero constructo teórico. As constatações são que os comportamentos se situam no interior de um esquema bastante estável e consistente que lhe confere uma certa unidade e continuidade de significações (Joyce- Moniz, 1993). Os comportamentos não constituem, desse modo, uma série de elementos justapostos e variáveis ao acaso. A noção de Personalidade corresponde, então, à noção de uma organização mais ou menos estável e relativamente idêntica a si mesma no funcionamento psíquico do indivíduo. Nas palavras de Mahoney (1991, p. 213): O outro no Eu! Personalidade 23 Helena Espirito Santo! 1996 "Cada Personalidade é um processo epistémico e experiencial único, exibido de forma mais saliente nos padrões individuais do afecto, da construção de significado e na acção." A definição de Millon (1981) surge neste âmbito integradora. Para o autor da teoria bio-social da aprendizagem a Personalidade é o "complexo padrão de características psicológicas profundamente enraizadas, dificilmente erradicáveis, que se exprimem de forma automática em cada faceta do funcionamento individual". Enquanto organização da forma particular de um indivíduo perceber, pensar, sentir e se relacionar com o seu meio ambiente, deve ser entendida como "resultante nunca acabada de um processo dinâmico de desenvolvimento determinado por uma permanente e intrincada transacção entre factores biológicos e situacionais" (Millon, 1981, p. 103). A Personalidade é, assim, constituída por traços intrínsecos e abrangentes que emergem de uma matriz complexa de disposições biológicas e de aprendizagem. A Personalidade compreende, enquanto expressão, um padrão distinto individual de percepção, sentimento, pensamento e de coping. O fundamento da teoria de Millon encontra- se nesta interacção entre factores de diversa ordem que determina o desenvolvimento em espiral da Personalidade. Em acréscimo, talvez para se entender a Personalidade seja também importante perguntarmo-nos: "para que serve a Personalidade?" Fazer esta pergunta deu já resultado noutros contextos. Na história da Medicina verificamos que a compreensão de alguns orgãos do nosso corpo resultou da resposta à pergunta "Para que serve?" (Minsky, 1986). A resposta talvez a possamos encontrar através da sua significação original —máscara . Na sua etimologia, como máscara, ela representava o objecto que punha em interacção o actor com o seu público. Não será então verdade que a personalidade é aquilo que nos permite relacionar com os outros e até connosco mesmos? O outro no Eu! Personalidade 24 Helena Espirito Santo! 1996 De facto, os estudos do desenvolvimento humano colocam em foco o desenvolvimento da personalidade como um processo complexamente interpessoal e intrapessoal (Bowlby, 1990, 1993a, 1993b, 1993c; Stern, 1985, Tyson, Tyson, 1993). 2. O Estatuto do Conceito Na Psicologia a generalização do reconhecimento e do uso do conceito de Personalidade fazem dele uma noção nuclear. Apesar de sempre ter havido teóricos que negaram ou ignoraram a sua importância, a concepção de Personalidade nunca deixou de estar presente. De facto, os vários sistemas, escolas ou quadros teóricos explicativos do comportamento humano utilizaram e utilizam ainda largamente esta concepção. Para além deste uso, começou a surgir uma quase "meta- perspectiva", no sentido do conceito se ter tornado terreno comum de diálogo para vários teóricos de diferentes domínios (Mahoney, 1991). As dificuldades conceptuais levantam-se por via do estatuto complexo, senão ambíguo, da noção de Personalidade. O conceito de Personalidade remete-se a uma realidade psicológica que é considerada, uma vezes, como variável independente, outras como variável dependente e outras simultaneamente como dependente e independente (Staats, 1975; Wylie, 1974). Como variável independente, ou até mesmo intermediária, a Personalidade é encarada como causa ou factor determinante do comportamento. Como variável dependente, é perspectivada como resultado de agentes ou processos vários. Neste lado da realidade levanta-se a questão: qual será o agente que melhor dá conta da sua origem? Será o Inconsciente, segundo a visão freudiana, ou os estádios da O outro no Eu! Personalidade 25 Helena Espirito Santo! 1996 sexualidade infantil? Serão os factores genéticos que esclarecem ou as predisposições biológicas fundamentais? Será o produto da experiência? Tal como idealizavam David Hume, John Locke e Thomas Hobbes no século XVII, de que não haveria mais do que uma associação e acumulação de experiências? Será o produto do condicionamento, segundo Pavlov e seus herdeiros? Ou ainda a alienação sócio-cultural — resposta universal do momento? Em Millon (1981, p.103) encontramos a resposta: "(…) a edificação e a revelação de uma Personalidade [supõem], para nós, o intrincar de vários factores (saídos da sociedade e da genética) (…) " Desde a antiguidade que se tem procurado delimitar o conceito de Personalidade nas mais diversas áreas do conhecimento. Deparamo-nos, no entanto, desde definições múltiplas a métodos prolixos de investigação, passando por concepções explicativas diversas. Ilustrativo desta situação foi o esforço de Allport em 1937 em inventariar mais de 50 definições diferentes e, daí para cá, muitas outras têm sido produzidas. Aprisionar um conceito tão complexo parece, de facto, tarefa árdua. Ainda que assim seja, nem a posição céptica, nem a eclética se revelarão eficazes no progresso científico (Abreu, 1980). Mais vantajoso será analisar as ideias subjacentes à multiplicidade de definições de Personalidade. Fazê-lo, poderá permitir uma via para uma opção fundamentada. 2.1. Separação de conceitos Nesta procura pela delimitação do conceito para o melhor definir, iremos aqui tentar separá-lo de outras noções. Separar, porque são usados alternadamente com o conceito de Personalidade, ou porque muitas vezes se sobrepõem ou ainda porque são usados como sinónimos ou como componentes. O outro no Eu! Personalidade 26 Helena Espirito Santo! 1996 Os conceitos que mais frequentemente têm sido empregues em alternância com o de Personalidade, são os de Temperamento e Carácter, os de Ego, Eu e Self. A ideia dos Temperamentos é talvez a mais antiga de que há registo em Psicologia, a que teve mais influência ao longo dos tempos e que ainda se encontra nos modernos estudos científicos. O termo Temperamento, que deriva do latim - temperamentum - significa no seu étimo "combinação, proporção, medida". Esta designação mantém na actualidade o seu conteúdo original, a correspondência com as disposições biológicas que subjazem ao humor do indivíduo; quer dizer, diz respeito à componente fisiológica e, em grande parte, estável e hereditária dos traços afectivos (Nuttin, 1982; Perry e Vaillant, 1980, 1988). A ligação evidente entre Personalidade, mecanismos fisiológicos vegetativos e endócrinos revela a importância e alcance destas noções. O termo Carácter, do grego ξηαραξτερ (gravar; sinal gravado, marca) ou do latim charǎctēr (marca feita com ferro) servia originalmente para designar o conjunto de características individuais que serviam de "marca" à pessoa. Em Psicologia a noção de carácter está longe de uma terminologia uniforme.Dois significados distintos desenvolveram-se ao longo do tempo. Para Wallon (cf. Thines e Lempereur, 1984) o carácter é a maneira de reagir habitual e constante própria de cada indivíduo. Ou, na definição do Dicionário Geral das Ciências Humanas (Thines e Lempereur, 1984, p. 137), é a "fisionomia original da individualidade psíquica, que agrupa um conjunto de traços que definem uma maneira habitual de se comportar: é o estilo de relação estabelecido pelo sujeito com os objectos do seu interesse." Esta concepção não andará longe da ideia original. O segundo sentido do termo carácter assumiu na linguagem contemporânea um aspecto mais controverso. Quando se fala do carácter de uma pessoa, associa-se a determinado julgamento moral O outro no Eu! Personalidade 27 Helena Espirito Santo! 1996 do comportamento. Neste sentido, o termo carácter foi limitado às dimensões de avaliação moral e social da Personalidade (Millon, 1981). O que é o mesmo que dizer que o carácter se refere às características que representam a aderência à sociedade. Daqui tem-se descrito o conceito como o reflexo da aprendizagem social, educação e internalização das relações e tradições sociais. Avancemos para outros conceitos e para os seus contextos de origem. A Psicologia durante muito tempo centrou-se no estudo do espírito, mas um espírito separado do corpo e separado dos outros. Este estado de coisas foi resultado do legado de Descartes e ainda hoje o dualismo cartesiano se faz sentir nas ciências humanas (Pio Abreu, 1996). Para que possamos compreender e explicar os restantes conceitos, é essencial dissecar a linha de pensamento cartesiano. De Descartes ficou-nos uma oposição essencial: mente (res cogitans) e extensão (res extensa), sendo o corpo parte da extensão. Porém, este dualismo encontra um obstáculo insuperável quando se tem em conta a experiência específica do corpo. O nosso corpo não é simplesmente um objecto entre os outros objectos do mundo extenso. É peculiarmente "meu"; é o meu corpo e não outro qualquer, o centro em redor do qual os outros objectos do mundo são colocados e organizados. O corpo é o centro da acção, um centro actuante (Hermans, Kempen, 1993). Relacionada estreitamente com o dualismo corpo-mente, encontramos ainda a separação eu-outro. O Cogito de Descartes implica um dualismo entre mente e corpo e também entre o eu e os outros (Abbagnano, 1992). Dificilmente o nosso pensamento se desliga deste dualismo. Quando nos referimos ao "mundo exterior", estamos a usar a terminologia cartesiana. Em termos cartesianos, significa que o mundo está fora da consciência e esta fora do mundo. Desta forma encontramos, não só a separação da mente do corpo, mas também uma pessoa de outra pessoa, o "Mim do Tu" (Hermans, Kempen, 1993, p. 3). O outro no Eu! Personalidade 28 Helena Espirito Santo! 1996 Para Hermans e Kempen (1993) o Eu cartesiano, assim descrito, não apresenta comunicação directa com Outros Eus. Nesta perspectiva a auto-consciência precede a consciência do mundo. Temos consciência de nós mesmos, sem termos necessariamente de estarmos conscientes de mais nada. Quando Descartes diz "Penso, logo existo", isso implica que o Eu seja uma entidade fixa, essencialmente isolada e incorpórea — um Eu lógico. Contudo, o conceito resultante de uma mente racional e individualista está em desacordo aparente com a experiência quotidiana. Desta experiência eu sinto o corpo como "Meu" e não simplesmente como um objecto no mundo. A outra pessoa resulta da presença imediata "para Mim", não é a mera consequência de um processo de raciocínio. A este propósito leia-se o trecho de Straus (1958, p.148): "Na experiência sensorial vivencio-me a mim próprio e o mundo ao mesmo tempo, não [me vivencio] a mim próprio directamente e o outro por inferência, não [me vivencio] a mim próprio antes do outro, não [me vivencio] a mim próprio sem o outro, nem o outro sem mim próprio." No rumo cartesiano o pensamento filosófico ocidental definiu sujeito e objecto como duas entidades mutuamente exclusivas. Fê-lo de uma forma tão antitética, que dificilmente sujeito e objecto podem manter transacção entre si. John Dewey surge neste contexto como figura essencial na restauração do carácter transaccional entre estes dois elementos (Hermans, Kempen, 1993). O autor define objecto, por um lado, como "aquilo a que se deve a frustração" e, por outro lado, como "o objectivo, a consumação final eventual, um estado de coisas independente e integrado de forma segura". Ao definir o termo sujeito, Dewey recorre à sua origem etimológica : "O sujeito é aquele que sofre, que é submetido e que sofre pressão e frustração, é também aquele que tenta a sujeição sob condições adversas, aquele que toma O outro no Eu! Personalidade 29 Helena Espirito Santo! 1996 iniciativa imediata" (citado por Hermans, Kempen, 1993). Dewey concebe, assim, um sujeito em termos de "submetido a " e não "acima da situação" e o objecto como uma força activa capaz de "objectar contra" mim. Desta forma o autor abre espaço a um quadro conceptual em que a relação transaccional é restaurada: o sujeito actua no mundo e o mundo sobre ele. William James (1890) é talvez pioneiro ao considerar o Self como composto pelo Eu e pelo Mim. O Eu é o Self como "sujeito" ou "conhecedor" e o Mim o Self como "objecto" ou conhecido". O Eu organiza constantemente e interpreta a experiência de uma forma subjectiva. Ele caracteriza-se por três aspectos: a continuidade, distinção e volição. A continuidade do Self como sujeito manifesta-se numa noção de identidade pessoal e na noção de igualdade4 através do tempo. O sentimento de distinção consiste em ter uma identidade própria, uma existência separada dos outros. A noção de volição pessoal expressa-se pela apropriação e rejeição contínua de pensamentos através dos quais o Self como sujeito se manifesta como um processador activo da experiência. Ao definir o Mim, James descreve uma transição gradual entre Mim e Meu. Ele identifica o Mim como o Self empírico; no seu sentido mais lato é descrito como tudo a que a pessoa pode chamar seu, "não só o seu corpo, as suas capacidades físicas, mas também as suas roupas e a sua casa, a sua mulher e os seus filhos, os seus antepassados e amigos, a sua reputação e trabalho" (citado por Hermans e Kempen, 1993, p. 45). James designa estes elementos primários por constituintes; estes constituintes revelam a característica básica do Self — a sua extensão.5 O autor distingue três constituintes do Self como objecto: o O outro no Eu! Personalidade 30 Helena Espirito Santo! 1996 4 Sameness no original. 5Segundo Rosemberg (1979) o self deixa assim de ser uma entidade separada do mundo, com uma existência por si mesmo. Ao invés, o self estende-se para aspectos específicos do ambiente. Self material ( inclui o corpo, família e propriedades pessoais) o Self espiritual (compreende as faculdades psíquicas, disposições e noção interna do ser) e o Self social (diz respeito às relações sociais e papéis). James propõe uma multiplicidade de Self s sociais, ao indicar a possibilidade de haver entre eles rivalidade e conflito. Esta extensão do Self em termos dos seus constituintes é de grande importância, pois evita que seconsidere a relação entre o Eu e o Mim como um processo que ocorre somente no interior da pessoa individual e separada das outras pessoas. A inclusão do Self social permite incluir a ideia de que o outro pode ser incorporado no Self, tornando-se parte integral dele. Desta forma James ultrapassa o solipsismo inerente à linha de pensamento de Descartes que assume uma consciência separada da existência dos outros. Outro aspecto que distingue o Self deste autor do Cogito de Descartes é a inclusão do corpo como parte do Self (material). O Eu não se separa do Mim e, consequentemente, não se separa do corpo. A relação intrínseca entre o Eu e o Mim faz com que o Eu esteja sempre ligado à existência do meu corpo (Hermans e Kempen, 1993). Para Mead (1934) a personalidade é um fenómeno social, por isso deve ser estudado em estreita relação com a sociedade. O modo como o Self funciona socialmente depende grandemente das instituições que jogam um papel central na sociedade. O conceito principal de Mead é o de "Outro generalizado", uma elaboração do "Mim social" de William James, que se refere ao grupo social que dá ao indivíduo a "unidade do self". Para o autor o Self emerge da interacção entre um elemento-sujeito (Eu), criador da ordem fisiológica, e um elemento-objecto (Mim), que constitui a internalização das atitudes dos outros e se traduz nas interacções sociais pela capacidade de assumir a posição do outro. A discussão de Mead sobre as alternância entre o "Eu" e o "Mim" fornece a base para a visão das acções organizadas como partes de um monodrama O outro no Eu! Personalidade 31 Helena Espirito Santo! 1996 executado num nível interno. Goffman complementou a ideia de monodrama de Mead ao colocar os actores num nível público. Ele percebe estas acções organizadas como papéis desempenhados com o intuito de resolver problemas de identidade (ref. por Hermans, Kempen, 1993). Para Hermans e Kempen (1993) os papéis representados na vida pública face a outros actores são incorporados no Self ("Self dialógico"). Os referentes para esses papéis são as relações constantemente emergentes entre o "Eu" e o "Mim". Se estes autores se nos revelam importantes, foi a partir de Freud que surgiram os modelos mais heurísticos no que toca à Personalidade. Mas também é com ele que a maior parte da confusão de conceitos se origina. O das Ich, que foi traduzido para Ego, apresentava dois significados no original alemão. Um referia-se a um Self vivencial , i.e., referia-se à pessoa total no sentido subjectivo de vivência de si própria. No outro significado o Ego era visto como uma estrutura psíquica. Os seus tradutores nem sempre concordaram sobre o que significava o termo nas diferentes obras de Freud. O motivo desta discordância prende-se com o facto de ter renovado sucessivamente a noção de "Ego" desde que escreveu "The Ego and the Id" em 1923, onde elabora o seu modelo da estrutura tripartida da mente. Mas já antes fala em "Ego", embora de uma forma pouco específica. De 1895 a 1900 o termo é usado com diferentes significados consoante os contextos. Na perspectiva de tratamento, o Ego é mais lato que a ideia de consciente; no modelo do conflito, designa um conjunto de representações e na primeira metapsicologia do aparelho psíquico é uma representação de representações, parte do aparelho psíquico. Mais tarde, entre 1900 e 1915, a sua noção caracteriza-se por um conjunto de hesitações. De 1914 a 1915 o Ego surge como resultado de identificações, como objecto de amor investido pelo Id. A data de 1920 foi a viragem para a segunda tópica que faz do Ego uma instância, um agente de defesa, onde o Id é o polo O outro no Eu! Personalidade 32 Helena Espirito Santo! 1996 pulsional e o Superego o sistema de interdições. A própria ideia de génese do Ego é cheia de ambiguidades, mantida em toda a obra de Freud (Laplanche, Pontalis, 1985). Em 1923 descreve o Ego como o sistema percepção-consciência: o que põe a pessoa em relação com o mundo exterior. É a parte do Id que se relaciona com a realidade. O Ego retira todas as suas forças do Id e é um aparelho de comando (o Ego seria o cavaleiro e o Id - a sua montada). O Superego é a componente testemunha e avaliadora, incluída na consciência e "Ideal do Ego". O Superego constitui-se por um primeiro esboço: o ideal do Ego, maneira de compensarmos o que somos e de nos representarmos no que gostaríamos de ser por referência a um ideal. O Ideal do Ego é a matéria da nossa relação com o outro. Se a relação com o outro fracassa, o Eu ao querer "embelezar-se", introduz em si o outro, fazendo parte do Eu. A personalidade forma-se em parte destas introjecções. Tal como Loevinger (1987) faz notar, os desacordos entre os Freudianos modernos sobre os termos Ego e Self são substanciais. Esta situação ficará de certo a dever-se à diversidade de contributos que se seguiram a Freud. O mais importante, talvez tenha sido Hartman (1958). E também o que deu origem a mais controvérsia. Para Hartman devem ser feitas distinções essenciais e que são de alguma utilidade: • O Ego é uma estrutura de personalidade, no sentido freudiano, • o Self é a "própria pessoa" — a pessoa total; • o Self é representado como parte do sistema do Ego, onde existe como a contrapartida da representação do Objecto. Esta exposição, já extensa, revela-nos um grande número de autores que se debruça sobre a distinção dos conceitos referidos. Muitos ficaram para trás. Esta diversidade representa, não só o interesse pelo tema, exprime igualmente uma variedade de modos de O outro no Eu! Personalidade 33 Helena Espirito Santo! 1996 a encarar, sendo extremamente difícil encontrar uma linha única de pensamento (Laplanche e Pontalis, 1985). 2.2. Um conceito importante O auto-conceito é um elemento integrador que dá ao indivíduo a sua unidade, identidade e coerência, apesar das variações (Vaz Serra, 1986). Nesse sentido é importante referi-lo na questão da Personalidade. Entendido como o conceito que o indivíduo faz de si próprio como ser físico, social e espiritual, ele será distintivo em relação aos outros, será, portanto, um processo simbólico de designação segundo classes de comportamentos (Gecas, 1982). É um constructo hipotético inferido a partir de acontecimentos pessoais (Vaz Serra, 1986). Os conteúdos do auto-conceito são constituídos pelos aspectos ou princípios valorizados pela sociedade ("papéis sociais internalizados", Mead, 1934). Estes conteúdos irão dar ao Eu um significado como objecto de observação ligando-o aos sistemas sociais. Como diz Nuttin (1982) o auto-conceito está muito ligado à imagem que, segundo a nossa percepção, os outros fazem de nós. O auto-conceito é um conjunto de generalizações cognitivas — esquemas — que organizam o processamento da informação relevante para o indivíduo. Estes esquemas vão-se tornando cada vez mais resistentes à informação que os contradiz. Esta protecção cognitiva é de uma importância considerável pois, não só organiza percepções, memórias e esquemas pessoais, como também organiza as próprias identidades com que o indivíduo se sente comprometido (Markus, 1977). Desta forma, o auto-conceito é estável e relativamente fixo. Ele é o ponto de referência para o indivíduo actuar com o Mundo, ainda que ele mude (Fitts, 1972; Wylie, 1974). O outro no Eu! Personalidade34 Helena Espirito Santo! 1996 Ele é tão importante, que há tendência para distorcer a realidade com o objectivo de se conseguir manter um auto-conceito positivo (Gecas, 1982; Rogers, 1951). Essa distorção pode ser conseguida escolhendo selectivamente as pessoas significativas, as comparações sociais e os aspectos centrais do auto-conceito; reconstruindo a história pessoal e a forma como a pessoa lida com os acontecimentos que a lesam. Isto prende-se com uma motivação universal, a da manutenção e de realce dos aspectos positivos de si próprio, i.e., da auto-estima (Rogers, 1951). Esta motivação pode apresentar dois aspectos distintos: a auto-saliência que procura o crescimento e o aumento da auto-estima e a auto-manutenção que tem como finalidade não perder o que a pessoa possui. Há um conjunto de designações que se interpenetram com a noção de auto-conceito. É de toda a utilidade separá-las. Uma delas é a noção de auto-imagem. Esta diz respeito ao conjunto de percepções sobre si mesmo — o indivíduo é o próprio objecto percebido. Da constituição do auto-conceito fazem também parte auto-imagens organizadas de uma forma hierárquica e significativa (Vaz Serra, 1986). Outra noção é a da auto-estima. Esta relaciona-se com o processo de avaliação sobre as qualidades ou desempenhos do indivíduo. É a componente afectiva do auto-conceito, em que o indivíduo faz juízos de valor sobre aspectos da sua identidade (Vaz Serra, 1986). Mas, como já referimos anteriormente, de acordo com Cooley (1902) e Mead (1934) as avaliações pessoais são um reflexo das respostas e avaliações dos outros. Podem também ser resultado de comparações sociais (um grupo é fonte de normas e valores) ou influenciadas pela atribuição do próprio ao seu comportamento observável (Vaz Serra, 1986). Esta breve passagem pela noção de auto-conceito revela-se essencial pelo carácter integrador que nos leva a reconhecer que o O outro no Eu! Personalidade 35 Helena Espirito Santo! 1996 indivíduo, apesar de revelar variações, apresenta uma coerência do comportamento e identidade pessoal. Adicionalmente, é salientada novamente a importância da dimensão interpessoal. 2.3. Integração de conceitos Numa tentativa de reunir contributos diversos das mais variadas áreas iremos tentar fazer a distrinça e simultaneamente a síntese desses conceitos, que acreditamos ser integrantes para a noção de personalidade. A Personalidade é o constructo científico que designa a maneira de ser e funcionar que caracteriza a pessoa. Sendo assim, não designa o indivíduo concreto (Nuttin, 1982). Tanto se refere à imagem que os outros fazem de uma pessoa, como se refere à imagem que a pessoa faz de si mesma. Advém da constatação da identidade que se estrutura através da continuidade dos processos de comportamento. I.e., podemos falar de um constructo designado por personalidade pelo reconhecimento da tendência para a pessoa se manter igual a si própria. O Self; (Si mesmo no português, Soi em francês) tem sido usado em Psicologia com sentidos diferentes. Podemos defini-lo como a noção que o indivíduo tem de si mesmo. É o aspecto auto-referente da Personalidade, próximo da noção de auto-conceito. Do que vimos anteriormente, o seu uso pode ser dicotomizado da seguinte forma: o Self como agente ou processo (Eu) e o Self como objecto do conhecimento e avaliação da própria pessoa (Mim) (James, 1890; Wylie, 1974)6. Sartre (1934) di-lo de outro modo: o Self é a unidade O outro no Eu! Personalidade 36 Helena Espirito Santo! 1996 6 Esta dicotomização está pouco próxima da realidade. Há teóricos que, aparentemente, se referem ao Self como objecto e, no entanto, não se interessam pelo conceito de Self (Auto-conceito). Em vez disso, atribuem ao conceito de Self características de determinação do comportamento, o que indica uma perspectiva mais activa do Self. Na perspectiva do Self como agente, alguns autores parecem também confundir esses dois aspectos na descrição dos processos. da fusão concreta do Eu — unidade transcendente dos actos— e do Mim — unidade transcendente dos estados7. Em Psicologia Geral o conceito de Self quase não se distingue da noção de Eu no sentido reflexo (Mim), i.e., como objecto do conhecimento ou da consciência. A distinção dos termos Eu e Mim parece-nos, apesar de tudo, especialmente útil para compreender as características subjectivas e objectivas da auto-referência (Self). O Eu (Je francês; I inglês; Ich alemão, Yo espanhol), como já referimos, designa a pessoa concreta enquanto sujeito ou agente da actividade psíquica - Self como conhecedor (James, 1890). É a identidade da pessoa. Designando a identidade o conjunto de traços atribuídos a uma pessoa que permitem descrevê-la (Self como sujeito). I.e., "identificá-la". A identidade resulta da noção de que nos mantemos os mesmos ao longo do tempo. Como diz Pio de Abreu (1994, p. 83) a identidade resulta: "(…) da constatação de que todas as formas, comportamentos e vivências, por diversas que tenham sido ao longo do tempo, têm algo em comum que as distingue singularmente: era eu próprio que existia através delas, noção esta que permanece mesmo que a personalidade se tenha desenvolvido e mudado." Podemos ainda dizer com Sartre (1934), que o Eu é a expressão da identidade entre a consciência irreflectida, inicial, e a reflectida, posterior e em que a vida interna é o seu objecto. Através do fluxo continuado de vivências, subsiste uma igualdade consigo mesmo — identidade. Desta forma a consciência obtém uma ligação contínua com todas as fases do seu desenvolvimento temporal. O Eu é esta forma como a consciência se afirma a si mesma em totalidade como um ser que se distingue radicalmente de todo e qualquer objecto. A consciência, ao unificar-se pelo fluxo subjectivo de vivências, permite O outro no Eu! Personalidade 37 Helena Espirito Santo! 1996 7 Um estado refere-se aos sentimentos que não se limitam a uma experiência. O estado ocorre em e por cada movimento em que o sentimento ocorre. a constituição do objecto na sua identidade8. O Eu conglomera-se numa unidade de indistinção que faz com que a história pessoal esteja sempre em cada momento presente. O Eu é elemento preponderante na construção do seu próprio mundo e autor da sua própria personagem. Ele integra o comportamento e interpreta a experiência de forma subjectiva, de tal modo que podemos dizer que todo o comportamento é personalizado. É a parte da personalidade que pensa, deseja, decide, aprecia e sofre. É factor de identidade, pois a pessoa mantém-se a mesma através das experiências. Todos nós vivenciamos a sensação de imutabilidade, apesar da mudança, em relação ao passado, mas também em relação ao futuro. Somos as mesmas pessoas desde os tempos em que não temos memórias de nós mesmos (Guidano 1987; Guidano, Liotti, 1983; Markus, 1977; Sartre, 1934; Popper, Eccles, 1977). É também factor de unidade, pois sintetiza os aspectos próprios, os aspectos biológicos (potenciais) — temperamento — e sociais — carácter. A unidade resulta da vivência em simultaneidade. Se a identidade se relaciona com a dimensão temporal; a unidade diz respeito à dimensão espaço: " (…) em cada momento existe um só eu" (Pio Abreu, 1994, p. 83). Debrucemo-nos sobre o outro polo do Self, o Mim. Integrando o que já dissemos anteriormente,