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46 Unidade II Unidade II Para introduzir esta unidade, convém abordarmos rapidamente os temas concepção de pessoa, de saúde, doença e de cura e ação terapêutica. No âmbito das ciências biológicas, humanas e sociais, toda teoria, sem exceção, é construída tomando por base determinada concepção de pessoa. Teorias psicológicas são baseadas em distintas concepções de psiquismo. Ou seja, todas as teorias são construídas com base em determinado modo de compreender o ser humano e, por sua vez, as teorias psicológicas são construídas com base em determinado modo de compreender o ser humano e seu psiquismo. Por exemplo: o behaviorismo considera que o ser humano é completamente determinado pelo ambiente; a psicanálise de Freud considera que o psiquismo humano funciona como uma máquina; a psicologia fenomenológico‑existencial‑humanista compreende o ser humano como um ser livre, responsável, confiável, em busca de autorrealização; a psicologia transpessoal acrescenta o fator busca de autotranscendência às qualidades humanas reconhecidas pela psicologia fenomenológico‑existencial‑humanista. É impossível e indesejável trazermos para este livro‑texto o montante de conhecimentos produzidos pela psicologia ao longo de sua existência como ciência. Além de impossível, isso se mostra indesejável, neste momento de formação educacional de futuros fisioterapeutas. Dedicar‑nos‑emos, então, à tarefa de reunir tópicos que nos parecem relevantes para seu exercício profissional, graduando de Fisioterapia. 5 PSICOLOGIA DA PERSONALIDADE 5.1 Tópicos de psicologia da personalidade Figura 10 47 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA 5.1.1 Psicologia da personalidade: introdução Pinto (2009) assinala o fato de ser a personalidade um dos mais importantes temas da psicologia. Como não se deve tratar desiguais de modo igual, é preciso reconhecer que diferentes pessoas reagem de modo diferente a um mesmo estímulo e, dependendo das circunstâncias, uma determinada pessoa pode reagir de distintas maneiras a um único estímulo. Cada pessoa tem um modo particular de ser, fato que deve ser considerado em toda relação humana e, obviamente, também na relação estabelecida entre o fisioterapeuta e seu cliente. É preciso que todo profissional da saúde identifique os pontos de competência e de dificuldade de seus clientes para apoiá‑los em seus esforços por aceitar suas dificuldades ou superá‑las, e que reconheça também as próprias dificuldades e limitações para poder aceitá‑las como limites pessoais ou se propor a superá‑las. Conforme referido na introdução deste livro‑texto, toda corrente teórica da psicologia é subdividida em diversas teorias. Para atingir a finalidade de compreendermos o que é personalidade, tivemos que fazer um recorte, dada a extensão e complexidade do tema. Elegemos para apresentar a você, graduando de Fisioterapia, uma visão ampla dos conceitos de personalidade adotados pelo behaviorismo (primeira grande corrente), pela psicanálise (segunda grande corrente), pela psicologia fenomenológico‑existencial‑humanista (terceira grande corrente) e pela psicologia transpessoal (quarta grande corrente). Todas essas abordagens teóricas consideram, pelo menos, cinco componentes: • genético; • temporal (mudanças próprias do crescimento e do desenvolvimento); • familiar (hereditariedade e modo de apresentação do mundo); • histórico‑geográfico‑cultural (tempo e lugar); • classe socioeconômica. Assim, quando colocado diante de seu cliente, o fisioterapeuta realizará esforços para compreendê‑lo, considerando fatores genéticos (o que foi herdado) e mudanças ocorridas no decorrer do tempo (história familiar, localização espaçotemporal e pertença sociocultural e religiosa). Ao perguntarmos o que é personalidade, convém recorrermos novamente ao psicólogo Pinto (2009), que, apoiado em Allport, Filloux e Delisle, entre outros pensadores, destaca algumas definições. Vejamos. Para o estadunidense Gordon Allport, personalidade é “a organização dinâmica no indivíduo de sistemas psicofísicos que determinam suas adaptações singulares ao próprio meio” (apud PINTO, 2009, p. 6). 48 Unidade II Observação Em 1936, ao elaborar sua teoria dos traços de personalidade, Gordon Allport descobriu que um único dicionário de inglês continha mais de 4 mil palavras que descreviam traços de personalidade. Para o francês Jean‑Claude Filloux, filósofo e pedagogo, personalidade é a configuração única assumida no decurso da história de um indivíduo pelo conjunto de sistemas responsáveis por seu comportamento. A personalidade, segundo esse autor: • é única (própria de um único indivíduo); • é uma organização (e não apenas uma soma de funções); • é temporal (um indivíduo vive durante um certo período de tempo); • consiste em um estilo específico, que se manifesta por meio de comportamentos. Para Gilles Delisle (1999 apud PINTO, 2009), a personalidade é um modo específico e relativamente estável de organizar os componentes cognitivos, emotivos e comportamentais da própria experiência. Dessa organização de componentes decorre o senso individual de identidade. O interessante é que, por possuir componentes universais, típicos da espécie, toda pessoa é reconhecível como ser humano. Além disso, há semelhanças entre seres humanos no que diz respeito a estilos ou tipos de personalidade. No entanto, cada pessoa é absolutamente única. Figura 11 49 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Observação A palavra personalidade deriva da palavra persona, designativa da máscara utilizada em espetáculos teatrais gregos na Antiguidade Clássica. Essas máscaras, feitas de argila, ocultavam o rosto dos atores. Sem dúvida, um ator que cobre seu rosto com uma máscara para representar uma personagem de uma narrativa pode bem ser comparado com o que fazemos em nosso dia a dia: usamos distintas máscaras para representarmos distintos papéis sociais em distintos cenários de nossa vida – o que sou em minha família não é idêntico ao que sou em meu ambiente de trabalho, e não é idêntico ao que sou quando me encontro com amigos. Interagimos em nossos grupos de pertença com as personagens exigidas por cada um desses grupos. Não damos a conhecer nosso eu profundo. Aliás, não damos a conhecer nosso eu profundo nem mesmo para nós. Essa noção será melhor compreendida à medida que avançarmos na leitura deste livro‑texto. 5.1.2 Noções de psicanálise Das diversas teorias da personalidade, trazemos para este contexto alguns elementos da psicanálise, criada por Sigmund Freud em Viena, no início do século XX, e progressivamente ampliada e difundida desde então até os nossos dias. Essa abordagem da psicologia se caracteriza por considerar o inconsciente e os conteúdos nele presentes como fatores determinantes dos comportamentos humanos. Ao tratar do inconsciente, a psicanálise inclui entre seus objetos de estudo a relação entre desejos inconscientes, comportamentos e sentimentos. Sua ação clínica fundamenta‑se na escuta e na interpretação de conteúdos inconscientes manifestos em palavras, sonhos, ações e produções imaginárias, passíveis de serem observados por meio da livre associação e do processo de transferência que ocorre na relação psicoterápica. Entre seus principais conceitos se incluem o de instinto e de pulsão. Os instintos, biologicamente determinados, dirigem‑se a objetos específicos e levam indivíduos da mesma espécie a agirem de modo semelhante para atingir finalidades específicas. As pulsões – de vida (impulsos sexuais e de autopreservação) e de morte (impulsos agressivos e destrutivos), por outro lado, derivam da experiência humana e das tensões somáticas; têm diferentes fontes e formas de manifestação; dirigem a ação a determinado fim e descarregam temporariamente a tensão ao atingi‑lo (ANCONA‑LOPEZ; RIBEIRO; FRIAS, 2015). 50 Unidade II Figura 12 Com base na metapsicologia, Freud considerou três dimensões ao abordar o fenômeno do psiquismo: • Dimensão tópica: considera três instâncias dopsiquismo (consciente, pré‑consciente e inconsciente) e três aparelhos que operam nessas instâncias (id, ego e superego). • Dimensão dinâmica: considera as múltiplas pressões exercidas sobre o ego e o jogo de forças em conflito. • Dimensão econômica: trata da distribuição e mobilidade da quantidade de energia em circulação no aparelho psíquico. Bock, Furtado e Teixeira (1999), tratando da topologia do psiquismo, afirma que Freud (1987) definiu do seguinte modo as três instâncias do funcionamento psíquico: • No inconsciente estão situados os conteúdos reprimidos e não admitidos na consciência, devido às censuras internas. Seu funcionamento é regido por leis próprias, sendo atemporal, ou seja, desconsidera as noções de passado e presente. • No pré-consciente permanecem conteúdos próximos, a serem acessados pela consciência. • No consciente, situam‑se os conteúdos internos e externos que, articulados nessa instância, visam atender e equilibrar várias pressões por meio da percepção, da atenção e do raciocínio, que tendem, entretanto, a sofrer influências e deformações por parte dos conteúdos inconscientes. 51 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Figura 13 Entre 1920 e 1923, Freud ampliou seus postulados, ao introduzir o conceito de aparelho psíquico, composto de: • Id: estrutura inconsciente regida pelo princípio do prazer, na qual estão sediadas as pulsões de vida e de morte, bem como os instintos, correspondendo ao reservatório da energia psíquica. • Ego: estrutura reguladora regida pelo princípio da realidade, que busca o equilíbrio e opera na instância consciente, buscando coordenar e atender a diversas exigências internas (do id e do superego) e externas (da realidade), por meio das funções básicas – percepção, memória, sentimentos e pensamentos. • Superego: estrutura originária da internalização das proibições, regida pelo princípio da moralidade, dos limites e da autoridade, contendo os conteúdos morais definidos a partir das interações parentais e da interiorização das normas e exigências sociais e culturais. Configura‑se como aparelho autoritário que incide sobre o ego para repressão dos impulsos do id. Mecanismos de defesa do ego No bojo das contribuições da teoria psicanalítica, os mecanismos de defesa merecem especial atenção dos fisioterapeutas, por se apresentarem durante as intervenções realizadas junto aos pacientes. Isso porque a percepção das realidades interior e exterior pode causar dor e desorganização: para evitar sofrimentos, a pessoa distorce ou suprime elementos da realidade, como recurso para afastar da consciência conteúdos vividos como ameaçadores. E é exatamente para evitar sofrimentos que os mecanismos de defesa ocorrem, de modo inconsciente e a despeito da vontade do indivíduo. Diversas modalidades de defesa do ego podem ser observadas em nossos pacientes. Elas variam de pessoa para pessoa e também pode ocorrer de uma única pessoa adotar mais de um mecanismo em determinada 52 Unidade II situação, assim como pode ocorrer substituição de um mecanismo de defesa por outro durante a interação do ego com o fator gerador de tensão. Lembremos que esses mecanismos são acionados e operam em nível inconsciente para resguardar a integridade, a organização e o equilíbrio do ego. Entre os mecanismos de defesa mais comuns, podemos destacar: • Negação: aspectos inaceitáveis de uma situação tida como intolerável são suprimidos da percepção – não são percebidos, ou seja, são negados. • Regressão: frente a uma situação angustiante, ou devido à emergência de um conteúdo inconsciente ameaçador, o indivíduo retorna a etapas anteriores de seu desenvolvimento, nas quais ele sentia segurança e apresenta comportamentos regredidos, infantis ou primitivos, o que pode incluir excesso de lembranças e devaneios. Tal mecanismo pode ser observado, por exemplo, quando nasce um novo irmão e a criança mais velha apresenta comportamentos infantilizados, por medo de perder o amor dos pais. • Recalque ou repressão: tido como um dos mecanismos de defesa mais utilizados, caracteriza‑se pelo recurso de afastar da consciência conteúdos considerados ameaçadores e mantê‑los no inconsciente. • Formação reativa: com o objetivo de afastar da consciência um desejo ou conteúdo considerado ameaçador, o indivíduo adota uma atitude oposta à esperada como manifestação desse desejo ou conteúdo. Demonstrações de afeto e de superproteção exacerbadas podem estar encobrindo um impulso agressivo, assim como pode ocorrer que manifestações da agressividade podem estar encobrindo o medo. Por meio desse recurso, a mãe que sente raiva do filho que lhe acarreta muitas dificuldades pode, por exemplo, superprotegê‑lo para evitar admitir o sentimento de raiva presente em nível inconsciente. • Projeção: para evitar um conteúdo causador de sofrimento, o indivíduo o projeta no mundo exterior, ou seja, atribui a outra pessoa o que considera indesejável em si. Esse mecanismo é frequente e bastante observável em nosso cotidiano – graças a ele o indivíduo vê em outra pessoa conteúdos próprios vivenciados como se fossem dela e, sem se dar conta disso, poderá atacar em outrem o que não tolera reconhecer como próprio. • Racionalização: a fim de normatizar um aspecto próprio, considerado deficitário, o indivíduo constrói explicações racionais convincentes e aceitáveis, que justificam estados “deformados” da consciência. Por meio desse mecanismo, a razão fica a serviço do que é irracional e elementos da cultura, da ciência e da moralidade são utilizados para justificar impulsos destrutivos, como ocorre, por exemplo, em guerras e em manifestações de preconceitos, ocasiões em que elementos morais, culturais e científicos são utilizados para justificar o desejo de destruir. Outro exemplo pode ser observado em usuários de álcool e drogas ilícitas, que mencionam aspectos positivos e motivos para o uso supostamente benéfico de tais substâncias. 53 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA • Sublimação: mecanismo por meio do qual o indivíduo desvia impulsos sexuais e agressivos para atingir finalidades socialmente aceitas, por exemplo o trabalho. É considerado um dos mecanismos mais salutares, pelo fato de converter os impulsos em produtos socialmente aceitáveis. Temos um exemplo disso em práticas cirúrgicas que resultam da sublimação do desejo ou do impulso de ferir seres vivos. • Reparação: ocorre quando o indivíduo procura adotar condutas para consertar um objeto destruído internamente por um impulso agressivo e, assim, atenuar um sentimento de culpa. Por exemplo, quando o indivíduo reza para atenuar o sentimento de culpa por haver criticado sua instituição religiosa. • Compensação: para lidar com inadequações e insatisfações relativas à própria vida e à própria personalidade, o indivíduo constrói fantasias e narrativas capazes de enaltecê‑las. Com isso busca substituir sentimentos de inferioridade por outros que lhe permitam obter o reconhecimento de que necessita. • Introjeção: para suportar uma situação angustiante, o indivíduo toma para si características de outra pessoa, passando a reconhecer como próprio o valor ou o comportamento externo que foi internalizado. Temos um exemplo de uso desse mecanismo de defesa do ego em situações de violência, nas quais as vítimas interiorizam características do agressor. Aliás, esse mecanismo está presente na etiologia (origem) de comportamentos violentos. Figura 14 54 Unidade II Observação Há, ainda, outros mecanismos de defesa, entre os quais anulação, isolamento, idealização, deslocamento, identificação, volta contra o eu, fixação e cisão/dissociação, cuja descrição consideramos desnecessária no presente contexto. Figura 15 Os conceitos de personalidade são articulados a outros conceitos, entre os quais os de corpo humano, temperamento, caráter e identidade. Como o tema temperamento é diretamente relacionado ao tema corpo, apresentamos a seguir distintas concepções de corpo e de temperamento. 5.1.3Corpo e temperamento: concepções ocidentais e orientais Como não poderia deixar de ser, a noção de temperamento acha‑se intimamente relacionada à concepção de corpo humano e à noção de que corpo humano e pessoa constituem unidades psicossomáticas. Tais noções foram retomadas por Massimi (2005), que, revisitando concepções formuladas ao longo da tradição ocidental, privilegiou as desenvolvidas por pensadores da Grécia clássica, da tradição judaico‑cristã, da Idade Média, da Idade Moderna e do Brasil Colônia. Adotando uma perspectiva não cartesiana para abordar a questão do corpo humano, essa autora o concebe como intrinsecamente dotado de dimensões anímicas, espirituais e políticas. Para realizar um levantamento dessas perspectivas de corpo e suas dimensões, Massimi (2005) visitou a história de culturas ocidentais e de culturas brasileiras. De seu excelente trabalho recortamos, para trazer a este contexto, concepções ocidentais de corpo e de temperamento próprias da tradição filosófica e médica da Grécia clássica e da tradição judaico‑cristã. A medicina de Hipócrates, importante expoente da tradição filosófica e médica da Grécia, postulava haver profunda unidade entre o corpo e a alma, o que levava a supor a existência de enfermidades da alma. À medicina do corpo se unia, pois, uma medicina da alma, entendida a unidade corpo‑alma como 55 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA expressiva da unidade psicossomática do ser humano. Tendo o equilíbrio por princípio unitário da saúde, qualquer desequilíbrio, fosse no corpo, fosse no espírito, seria causa de doença. Apoiadas em uma visão integral de ser humano, as teorias platônicas (Timeu e República), aristotélicas (Política) e hipocráticas o entenderam como unidade psicossomática individual, social e cósmica. Platão (427‑347 a.C.), filósofo grego da Antiguidade, discípulo de Sócrates e considerado um dos principais pensadores da história da filosofia, considerava ilusório o mundo percebido por meio dos sentidos. Para ele, o ser humano é um conjunto estrutural – synamphoteron – de corpo e alma. Aristóteles (384‑322 a.C.), filósofo da Antiguidade, discípulo de Platão e mestre de Alexandre, o Grande, considerava o corpo como “executor” de operações anímicas e a alma como princípio vital; o corpo integrado à natureza humana, submetido à alma, não para lhe servir de instrumento, mas por terem a mesma finalidade. A relação entre corpo e alma, relação de amor e amizade, tendo por princípio unitário de saúde o equilíbrio, faz com que qualquer desequilíbrio (no corpo ou na alma) produza doenças. Hipócrates (460‑377 a.C.), considerando íntima a unidade entre corpo e alma, praticava e ensinava que à medicina do corpo corresponde uma medicina da alma, sendo a saúde da unidade corpo‑alma identificável por meio de avaliação do equilíbrio: qualquer desequilíbrio (no corpo ou na alma) causa doenças. Segundo essa concepção, um excesso de apetite sensorial (paixão) ou de determinado “humor”, por exemplo, podem causar doenças físicas e psicológicas. A Hipócrates devemos a primeira formulação da teoria dos humores, uma das teorias do temperamento. Recorrendo à tradição judaico-cristã, constatamos que os textos bíblicos retomam a visão aristotélica de uma sociedade civil estruturada com base na arquitetura de corpos viventes que, perseguindo o ideal de relacionamentos fraternos, ganha forma de corpo social e de lugar de intervenção divina na história. O homem, imagem e semelhança de Deus, por Ele modelado em argila, se torna ser vivente ao receber do Criador o sopro vital. No cristianismo, o homem é compreendido como constituído de corpo (“modelado de argila”), alma e espírito (“manifestações do sopro vital”). Ainda em âmbito ocidental, o racionalismo de René Descartes (1596‑1650), filósofo, físico e matemático francês, colaborou de modo expressivo para uma conceituação reducionista do corpo humano ao considerá‑lo restrito às suas dimensões de matéria e movimento. Mencionamos que as concepções de corpo e de homem selecionadas por Massimi (2005) se restringiram à tradição ocidental. É interessante nos afastarmos por um tempo desse universo e realizarmos uma breve incursão no universo negro‑africano, incursão essa bastante justificável: por ocasião da escravidão, que perdurou por 350 dos 520 anos da história do Brasil, um grande contingente de africanos (cerca de cem grupos étnicos distintos) foi trazido a nosso país e, evidentemente, participou de modo significativo da construção de nosso patrimônio demográfico, linguístico, social e cultural. Entre as etnias negro‑africanas trazidas da África Ocidental ao Brasil, está incluída a etnia iorubá, de expressiva presença em nosso país, que trouxe para cá a cultura e a religião de orixás, divindades de seu panteão, que marcam profundamente, com traços africanos, a identidade nacional. 56 Unidade II Os iorubás compreendem a pessoa como constituída de partes que estabelecem relações entre si e com forças cósmicas e naturais. Dessas partes apenas uma é considerada visível, sendo as demais, invisíveis: ara, ojiji, okan, emi e Ori. Somente é visível ara, o corpo físico. As demais instâncias do ser humano são invisíveis: ojiji, o “fantasma humano”, representa a essência espiritual e acompanha o homem durante toda a sua vida; okan, traduzido por “coração”, acha‑se intimamente associado ao sangue e representa o okan imaterial, sede da inteligência, do pensamento e da ação; emi, princípio vital, associado à respiração, é o “sopro divino”, que anima o homem, significando, também, “espírito” ou “ser”; Ori, essência do ser, guia e ajuda a pessoa desde antes do nascimento, durante toda a vida e após a morte. Ori acompanha o homem desde antes de seu nascimento, durante toda a experiência vivida no mundo material e após a morte, período durante o qual Ori continua acompanhando o homem, então na condição de ancestral, do mesmo modo que o acompanhou anteriormente. O sentido literal da palavra ori é “cabeça”. Ori, parcialmente independente, considerado divino, é cultuado, recebe oferendas e orações para estar bem, porque quando ori inu (cabeça interior) está bem, todo o ser do homem está em boas condições. O desenvolvimento humano obedece a um ritmo que, em nível individual, inclui vida pré‑natal em determinada comunidade de espíritos, nascimento, puberdade, casamento, procriação, velhice, morte, ingresso na comunidade de espíritos ancestrais e novo nascimento. Os iorubás consideram que as realizações fundamentais da existência dependem não apenas de inclinações naturais e/ou da sorte, mas também de esforços pessoais que, aliados às forças do destino, favorecem o desenvolvimento de um homem forte, rico em saúde (longevo), genitor de prole numerosa (fértil) e possuidor de respeitáveis recursos materiais (próspero). A concepção de saúde é a seguinte: ter saúde é ser forte. Ser forte é estar carregado de axé, a força vital. Para atingir o ideal de viver forte nos planos natural, social e espiritual, é preciso possuir axé, energia que flui em todos esses planos, força vital indispensável à consecução de qualquer objetivo. O axé, sendo energia, pode ser obtido ou perdido, acumulado ou esgotado, e também transmitido ou furtado. Seu acúmulo manifesta‑se física, psicológica e socialmente como poder, e seu esgotamento como doença física, mental ou adversidades de toda ordem. Se bem administrado, aumenta com o passar do tempo e o acúmulo de experiência, associando‑se a isso a fertilidade, a prosperidade e a longevidade. Resumindo em pouquíssimas palavras a filosofia iorubá, podemos dizer que, no universo entendido como uma grande rede de participação, em que ocorrências do plano visível relacionam‑se intimamente a outras, do plano invisível, a pessoa, constituída de porções visíveis e invisíveis, capaz de atuar conscientemente nos vários planos e instâncias e de neles manipular a força vital, pode promover o próprio desenvolvimento para tornar‑se forte (longeva, fecundae próspera) e contribuir para o bem‑estar de sua coletividade. Nesse complexo, ocupa lugar de honra o conselho, que deve ser solicitado, compreendido e obedecido. 57 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Disso se deduz a noção iorubá de saúde, entendida como muito mais abrangente do que apenas saúde de um corpo físico. Segundo essa concepção, doença é qualquer desequilíbrio energético – não apenas do corpo físico – e cura é o restabelecimento do equilíbrio energético. É interessante observar que há pontos de estreita aproximação entre a concepção de Hipócrates, tão distante de nós no tempo e no lugar, e a concepção iorubá, que vive no presente em países do continente africano e vive entre nós, brasileiros, preservada nas chamadas casas de axé, locais de prática de religiões brasileiras de matriz iorubá. No contexto da fisioterapia, o contato corporal é imprescindível, como sabemos. Muitos procedimentos demandam o toque corporal. E agora? Como entender o que de fato tocamos ao tocar o corpo de um cliente? A resposta a esta última pergunta depende da concepção de pessoa e da concepção de saúde, doença e cura adotadas pelo fisioterapeuta. Se sua concepção de pessoa é mecanicista, ao tocar o corpo de seu cliente, entende estar tocando somente o corpo de seu cliente e mais nada. Se sua compreensão de pessoa é mais ampla, se entende como verdadeiros os princípios da psicossomática ou do somatopsiquismo, ao tocar o corpo de seu cliente, estará tocando muito mais que um corpo físico: estará tocando também suas emoções, suas memórias, seu modo de ser, e tantos outros registros de seu sistema nervoso e de seu sistema muscular. E se, finalmente, sua compreensão de pessoa é ainda mais ampla, se entende como verdadeira a concepção de pessoa que considera o humano constituído de um corpo denso e diversos corpos sutis e que, além disso, esse corpo é morada temporária de um espírito, portanto sagrado, ao tocar o corpo de seu cliente, estará tocando muito mais que um corpo psicossomático: estará tocando também o relicário que abriga o sagrado presente no humano. É indispensável voltarmos o olhar para nós mesmos e nos perguntarmos: afinal, o que penso disso tudo? E como devo proceder para fazer de minha prática profissional uma oportunidade de concretização de minhas convicções e crenças, sem desrespeitar os parâmetros da ciência e da laicidade do Estado brasileiro? Lembrete Nossa prática profissional nas áreas da saúde e da educação, entre outras, depende de nossa concepção de universo, de pessoa e destino humano, de saúde, doença e cura. Concepções ocidentais e orientais de temperamento As teorias morfológicas, formuladas inicialmente pelo psiquiatra alemão Kretschmer, enfatizam aspectos estruturais do corpo e buscam reconhecer tipos corporais para definir uma tipologia. A possível relação entre estrutura corporal e personalidade levou a uma classificação segundo a qual um físico delgado e delicado estaria associado a um temperamento introvertido, enquanto um físico rotundo, 58 Unidade II pesado e curto estaria associado a um temperamento extrovertido e jovial. Kretschmer chegou a explicitar três tipos distintos de temperamento, correspondentes a certos tipos orgânicos, cujas características acham‑se reunidas no quadro a seguir. Quadro 1 Tipo físico Descrição Temperamento Descrição Pícnico Gordo, arredondado Ciclotímico diastésico Oscila entre tristeza e alegria Quando alegre: jovial, loquaz, otimista; quando deprimido: afável, tranquilo, silencioso Leptossômico Alto, esguio Esquizotímico psicoestésico Sensibilidade e frieza Idealista, reformador Atlético Robusto, muscular Ixotímico Tenaz e explosivo Fonte: Pasquali (2003, p. 9). Entre as teorias psicológicas, incluem‑se a teoria formulada por Sheldon, psicólogo norte‑americano, e seus colaboradores, que sofisticaram a proposta de Kretschmer e produziram detalhada descrição de variantes do temperamento. E ganha especial destaque a teoria dos tipos psicológicos, de Carl Gustav Jung (1967, 1974 apud PASQUALI, 2003). Jung propõe distinguir extroversão de introversão e postula a existência de quatro funções (processos cognitivos básicos): pensamento, sentimento, sensação e intuição, das quais derivam oito tipos de personalidade: • sensação extrovertida; • sensação introvertida; • intuição extrovertida; • intuição introvertida; • pensamento extrovertido; • pensamento introvertido; • sentimento extrovertido; • sentimento introvertido. Sensação e intuição são modalidades de percepção; pensamento e sentimento são modalidades de julgamento. 59 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Em artigo intitulado “Particularidades sobre o temperamento, a personalidade e o caráter, segundo a psicologia corporal”, Volpi (2004) assinala que as palavras temperamento, personalidade e caráter há muito são utilizadas com frequência sem uniformidade de conceituação. O mesmo interesse por uniformizar conceitos levou Pasquali (2003) e Massimi (2005) à procura de um arcabouço teórico que possibilitasse classificar de modo coerente esses termos. Uma vez identificado por esses autores que no âmbito da psicologia e em diversos outros âmbitos há ambiguidades relativas à compreensão do que seja temperamento, por vezes confundido com personalidade, por vezes considerado causa de reações emocionais, por vezes atribuído de outros significados, esses três autores, cada qual em âmbito próprio, decidiram se dedicar à tarefa de elucidar conceitos. Volpi (2004) lembra a origem etimológica da palavra “temperamento”: advinda do latim temperamentum, essa palavra, cujo significado é “medida”, designa peculiaridades e intensidade de afetos. Pasquali (2003) contribui informando que a palavra temperare, utilizada por Galeno de Pérgamo (129‑199 d.C.), designava o equilíbrio dos humores no corpo, equilíbrio desejável por ser condição indispensável de boa saúde. A palavra temperare teria dado origem à palavra “temperamento”. Esse significado original foi expandido para abranger referências à estrutura predominante do humor e da motivação de animais e de pessoas. Segundo Volpi (2004), entre os diversos sistemas básicos de explicação do temperamento, dois ganham destaque: o sistema humoral, de interesse histórico, que relaciona o estado do organismo com a proporção dos líquidos e humores que circulam no organismo, sendo a teoria de Hipócrates um bom exemplo. Outro sistema é o constitucional, que relaciona características físicas e psicológicas a compleições corporais. No âmbito do cristianismo, especificamente no campo do hermetismo cristão, temos a antroposofia, que reúne minuciosos estudos sobre natureza e desenvolvimento humanos e descreve o homem como cidadão de dois mundos – um material e outro sutil – e também descreve pormenorizadamente o temperamento humano relacionado a quatro elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. FogoAr ÁguaTerra Figura 16 60 Unidade II Concepções antroposóficas de corpo e de temperamento, e outras, próprias dos saberes tradicionais do taoísmo (continente asiático) e do povo iorubá (continente africano), servem de fundamento às práticas integrativas e complementares regulamentadas pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), aprovada pela Portaria n. 971, de 3 de maio de 2006, do Ministério da Saúde (BRASIL, 2006). Saiba mais Uma apresentação mais completa dos sistemas de explicação do temperamento é realizada na obra indicada a seguir: PASQUALI, L. Os tipos humanos: a teoria da personalidade. Petrópolis: Vozes, 2003. A teoria dos humores é própria da tradição filosófica do número 4, de Pitágoras (572‑497 a.C.), e da teoria cosmológica dos quatro elementos, de Empédocles de Acragas (495‑430 a.C.). Este filósofo sugere que toda substância é composta de quatro elementos: terra, fogo, água e ar. Aristóteles (384‑322 a.C.), além de concordar com a teoria dos quatro elementos, acrescentou que eles possuem propriedades básicas: à terraestão associados o frio e a secura; à água, a umidade e o frio; ao fogo, a secura e o calor; ao ar, o calor e a umidade. O já mencionado médico Hipócrates, considerado no ocidente o pai da Medicina, relacionou a teoria cósmica à saúde das pessoas, criando a teoria dos humores ou teoria dos temperamentos. De fato, para entendermos bem o significado de “humor”, é preciso recorrer à teoria hipocrática, formulada há cerca de 2.500 anos, a qual dizia que o corpo humano é constituído de quatro humores fundamentais: • bílis negra (atrabílis); • bílis amarela (bílis); • sangue; • fleuma (linfa). 61 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Sangue Fogo Ar Água Terra Fleuma Bílis amarela Bílis negra Quente Frio SecoÚmido Figura 17 Observação Bílis (ou bile) é um fluido produzido pelo fígado e armazenado na vesícula biliar, que atua na digestão de gorduras e na absorção de substâncias nutritivas da dieta alimentar. O excesso de um dos quatro humores provoca doenças no corpo e traços exagerados de personalidade. Do predomínio de determinado humor na constituição corporal decorre determinado temperamento: • Excesso de bílis negra determina temperamento melancólico, característico de pessoas tristes e sonhadoras, cujas reações são lentas e intensas. • Excesso de bílis amarela determina temperamento colérico ou bilioso, característico de pessoas dotadas de desejos fortes e sentimentos impulsivos, cujas reações são rápidas e intensas. • Excesso de sangue determina temperamento sanguíneo, característico de pessoas dotadas de humor oscilante, cujas reações são rápidas, porém débeis. • Excesso de água determina temperamento fleumático, característico de pessoas lentas e apáticas, de reações fracas e lentas. 62 Unidade II Coléricos Melancólicos Seco Úmido Sangue Coração Ar Água Cérebro Linfa Bílis amarela Fígado Fogo Terra Baço Bílis negra Quente Frio Sanguíneos Fleumáticos Figura 18 – Teoria dos humores Essa teoria, que afirma a química do corpo como determinante do tipo de temperamento, foi difundida posteriormente pelo greco‑romano Galeno de Pérgamo (129‑199 d.C.), que, conforme mencionado, considerava a boa saúde dependente do equilíbrio, da boa dosagem dos humores no corpo, do temperare dos humores, equilíbrio desejável por ser condição indispensável à boa saúde. Quadro 2 Humor predominante Temperamento Características pessoais Reações Bílis negra Melancólico Pessoas tristes e sonhadoras Lentas e intensas Bílis amarela Colérico (bilioso) Pessoas dotadas de desejos fortes e sentimentos impulsivos Rápidas e intensas Sangue Sanguíneo Pessoas de humor oscilante Rápidas e débeis Água Fleumático Pessoas lentas e apáticas Fracas e lentas Temperamento, caráter e personalidade Alguns estudiosos propuseram um modelo tridimensional da personalidade baseado em sete dimensões, quatro delas de temperamento (de base prioritariamente biológica) e três de caráter (de base prioritariamente psicológica). Volpi (2004), por sua vez, após enunciar diversas teorias psicológicas sobre o temperamento, afirma que o mais aceitável atualmente é admitir que certas características do temperamento se acham associadas a processos fisiológicos do sistema linfático e da ação endócrina de alguns hormônios. No âmbito dessa explicação, segundo a qual tanto a genética quanto o meio exercem ação sobre o temperamento, este pode ser compreendido como uma disposição pessoal, inata e particular, pronta a reagir a estímulos ambientais. Em outras palavras, temperamento seria o aspecto somático da personalidade. Segundo Navarro (1999 apud VOLPI, 2004, p. 2): encontramos diferentes tipos de temperamentos. Há pessoas basicamente tireóideas, hipo ou hipersuprarrenais, timolinfáficas... e isso faz parte do temperamento. Temos um normotipo, um longitipo, um braquitipo, (...) aspectos do temperamento de uma pessoa. 63 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Volpi (2004) afirma que o temperamento pode ser transmitido de pais para filhos e, embora não seja passível de aprendizagem, pode ser abrandado por meio de ação educacional, competindo ao caráter a tarefa modeladora. Da constituição da personalidade, processo que ocorre desde a gestação, participam elementos do temperamento, geneticamente herdados, e elementos de caráter, entre outros, adquiridos do meio ambiente. Strelau e Angleitner (1987 apud PASQUALI, 2003) descrevem cinco características que diferenciam temperamento de personalidade: • O temperamento é biologicamente determinado; a personalidade é produto do ambiente social. • Características temperamentais podem ser identificadas desde cedo na infância; a personalidade é moldada ao longo de todo o desenvolvimento infantil. • Diferenças individuais com características temperamentais, como ansiedade, extroversão/introversão, são observáveis também em animais; personalidade é prerrogativa de seres humanos. • O temperamento se expressa por meio de qualidades estilísticas; a personalidade se expressa por meio de comportamentos. • O temperamento não desempenha função integrativa no comportamento humano; a personalidade desempenha função integrativa no comportamento humano. O caráter, palavra advinda do grego charakter, que etimologicamente significa sinal e marca, designa fatores inscritos no psiquismo e no corpo das pessoas durante seu desenvolvimento. Entre as teorias psicológicas do caráter, a mais influente foi a elaborada por Wilhelm Reich (1995), que entende por caráter o conjunto de reações e hábitos de comportamento adquiridos ao longo da vida que constituem o modo específico de ser de cada pessoa. O caráter é composto, pois, de atitudes e hábitos de uma pessoa e de seu padrão consistente de respostas a diversas situações. O caráter inclui atitudes e valores conscientes, estilo de comportamento (timidez ou agressividade, por exemplo), postura, hábitos de manutenção e movimentação do corpo. Ele é, pois, o modo pelo qual uma pessoa se apresenta, com seu temperamento e sua personalidade. Ele expressa o temperamento e a personalidade de uma pessoa. Segundo essa concepção, poderíamos dizer, então, que por meio do caráter a personalidade e o temperamento se manifestam. Tendo sido apresentadas concepções ocidentais de temperamento, e considerando a importância das PNPICs, voltemos nosso olhar para outras concepções: a taoísta, própria de saberes tradicionais do continente asiático; e a iorubá, própria de saberes tradicionais do continente africano. É interessante observar que na tradição taoísta (China) são considerados cinco elementos básicos da constituição do mundo material (e não quatro): terra, água, fogo, madeira e metal. O conhecimento desses elementos e da dinâmica estabelecida entre eles é absolutamente indispensável para 64 Unidade II a compreensão da noção taoísta de universo e de homem, cujas consequências são importantíssimas para a educação e a saúde, sendo particularmente úteis na prática da medicina chinesa. A interação e o controle recíproco desses elementos encontram‑se em constante movimento, conforme representado na figura a seguir. Terra MetalÁgua Fogo Madeira Figura 19 Saiba mais Aos interessados em aprofundar conhecimentos sobre essa concepção chinesa de corpo e temperamentos, recomendamos o acesso ao site a seguir: https://www.taoismo.com.br Na tradição iorubá os elementos da natureza também são considerados para além de sua natureza física: à sua natureza anímica (ou espiritual) é atribuído significado místico e, como nas demais tradições aqui abordadas, são utilizados em processos de educação e cura. É interessante observar que a esses saberes tradicionais são associadas recomendações de cunho religioso, uma vez que os saberes tradicionais dialogam de modo íntimo com religiões, dada a proximidade de concepções de universo e de pessoa que há entre esses domínios humanos. 65 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Figura 20 Rodrigo Frias (2019), em sua tese de doutorado intitulada Metamorfosesidentitárias de lideranças religiosas não iorubás inspiradas no convívio com lideranças religiosas iorubás, apresenta algumas noções de identidade sob as perspectivas psicológica e cultural. Inicia citando Santos e Fernandes (2016 apud FRIAS, R. R., 2019), autores para os quais a identidade inclui componentes individuais e coletivos e remete às noções que o sujeito tem de si, dos outros e de seus grupos de pertença. A identidade é constituída na relação eu‑outro. Figura 21 Indícios Eu não me vejo, Mas os outros refletem Com que me pareço €_FR!@s Fonte: Frias, E. R. (2015). 66 Unidade II 5.1.4 Identidade pessoal A formação de vínculos entre um indivíduo e seu grupo ou comunidade se dá por meio da identificação de ideias e ideais e do compartilhamento de crenças, valores e ações. O brasileiro Ciampa (1987), psicólogo social, também se refere aos múltiplos componentes da identidade pessoal como personagens de comportamentos relativamente independentes, que habitam nossa subjetividade e interagem nesse cenário íntimo que é a nossa vida intrapsíquica. O indivíduo isolado é uma abstração, e a identidade pessoal se concretiza na relação com outras pessoas, em distintas circunstâncias de nossas atividades sociais. Uma identidade que não se realize na relação com o próximo é fictícia, é abstrata, é falsa. Estamos falando de seres que interagem em cenários de nossa interioridade psíquica. Nesse âmbito subjetivo, tudo se passa como numa obra teatral da qual participam diretor, ator e personagens. E, enquanto o drama interno se desenrola, vai ocorrendo um processo de contínua, permanente e inevitável metamorfose pessoal. Parece‑nos que Raul Seixas (1945‑1989), considerado pai do rock brasileiro, nosso “Maluco Beleza”, expressa muito bem essa dinâmica, ao cantar (SEIXAS, s.d.): Eu prefiro ser Essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Eu quero dizer Agora o oposto do que eu disse antes Eu prefiro ser Essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo Sobre o que é o amor Sobre que eu nem sei quem sou Se hoje eu sou estrela Amanhã já se apagou Se hoje eu te odeio Amanhã lhe tenho amor Lhe tenho amor Lhe tenho horror Lhe faço amor Eu sou um ator É chato chegar A um objetivo num instante Eu quero viver Nessa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo 67 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Saiba mais No YouTube, há vídeos sobre esse expoente da música brasileira, que captou com sensibilidade e expressou com precisão conceitos que demandam de teóricos da psicologia páginas e páginas de textos explicativos. Veja, por exemplo, o vídeo a seguir: SEIXAS, R. Metamorfose ambulante. [s.d.]. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=7VE6PNwmr9g. Acesso em: 23 mar. 2020. Prossigamos nos próximos parágrafos com a apresentação do pensamento de Ciampa (1987), para quem as personagens internas estabelecem relações entre si nesse espaço intrassubjetivo e estabelecem relações com pessoas e elementos da realidade externa. Em outras palavras, no âmbito da própria subjetividade, há um ator representando diversas personagens. Ao observarmos com atenção a identidade de uma pessoa qualquer, inicialmente a vemos como estática, definindo um indivíduo que nos parece isolado dos demais. Sua identidade, representada por um nome próprio, é vista inicialmente como algo imutável. No entanto, durante nossa interação com essa pessoa, outros predicados vão se revelando, ela vai dando a conhecer seus papéis sociais, algumas de suas diversas personagens interiores, representadas por um ator que nunca veremos. Assim, uma identidade nos aparece como a articulação de várias personagens, uma articulação de semelhanças e diferenças, que constituem determinada biografia. Por exemplo: damos uma passada na padaria para tomar um café e comer um pão de queijo. Jogo rápido. No banco ao lado do nosso, senta uma pessoa e puxa prosa. Trocamos nossos nomes e telefones, e isso é tudo. Conversa agradável, combinamos um encontro para nos conhecermos melhor: onde você trabalha? Faz o quê? Mora com quem? Torce para qual time? Estuda ou não? Pratica alguma religião? Acredita em Deus? Acredita em vida após a morte? Tem Facebook, Twitter, blog? E, assim, fazemos desfilar diante de nossos olhos muitas personagens representadas por um ator desconhecido. E, aqui estamos nós, novamente, produzindo longos – e talvez maçantes – textos para transmitir a você informações que possam ser úteis em sua prática profissional. De novo, somos obrigados a reconhecer que os poetas, com sua linguagem analógica, sua linguagem carregada de metáforas, são capazes de dar o mesmo recado com poucas palavras, e, ainda por cima, conseguem vesti‑las de beleza. 68 Unidade II Figura 22 Veja outro exemplo disso, no cantar de Chico Buarque (s.d.): Noite dos mascarados – Quem é você? – Adivinha, se gosta de mim! Hoje os dois mascarados Procuram os seus namorados Perguntando assim: – Quem é você, diga logo... – Que eu quero saber o seu jogo... – Que eu quero morrer no seu bloco... – Que eu quero me arder no seu fogo. – Eu sou seresteiro, Poeta e cantor. – O meu tempo inteiro Só zombo do amor. – Eu tenho um pandeiro. – Só quero um violão. – Eu nado em dinheiro. – Não tenho um tostão. Fui porta‑estandarte, Não sei mais dançar. – Eu, modéstia à parte, Nasci pra sambar. 69 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA – Eu sou tão menina... – Meu tempo passou... – Eu sou colombina! – Eu sou pierrô! Mas é carnaval! Não me diga mais quem é você! Amanhã tudo volta ao normal. Deixa a festa acabar, Deixa o barco correr. Deixa o dia raiar, que hoje eu sou Da maneira que você me quer. O que você pedir, eu lhe dou, Seja você quem for, Seja o que Deus quiser! Saiba mais No YouTube, há vídeos de Chico Buarque interpretando essa música. Vale a pena conferir, por exemplo, o vídeo a seguir: BUARQUE, C. Noite dos mascarados. [s.d.]. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=fjjd2u_kSWY. Acesso em: 23 mar. 2020. Veja também o vencedor do Oscar de melhor filme em 2017: MOONLIGHT: sob a luz do luar. Direção: Barry Jenkins. EUA, 2017. 91 min. Pois bem. Identidade é processo, é história, e não há personagens fora de uma história. Do mesmo modo, não pode haver história sem personagens. E, ao longo da trajetória existencial, cada identidade pessoal vai se configurando em meio a relações sociais ocorridas em determinada estrutura social e determinado momento histórico. Foi constatando esse fato que nosso amigo, Antônio da Costa Ciampa (1987), produziu a obra A estória do Severino e a história da Severina: um ensaio de psicologia social. Severino é um personagem ficcional, idealizado pelo poeta João Cabral de Melo Neto e personagem principal do poema Morte e vida Severina; a retirante Severina é uma mulher de carne e osso, que chega do sertão da Bahia para viver em ruas de São Paulo. Ciampa (1987) narra as trajetórias biográficas de ambos e, apoiado nessas narrativas, constrói a teoria apresentada a você neste livro‑texto. Estamos diante de duas identidades dinâmicas, em constante mutação, em contínua 70 Unidade II metamorfose. Para melhor conhecê‑las, é preciso acompanhá‑las em seu caminho de vida. Não é possível conhecermos de modo imediato a identidade de alguém. Caminhando lado a lado e testemunhando a contínua metamorfose de uma pessoa, maiores chances temos de conhecê‑la. Figura 23 Saiba mais No YouTube, assista a vídeos de entrevistas concedidas por A. C. Ciampa e da peça musical de teatro derivada do poema Morte e vida severina. Faça isso. Dificilmente se arrependerá: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA 6ª REGIÃO. Teaser – videodocumentário Antônio da Costa Ciampa. 24 jul. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=osz2oJjowZw. Acesso em: 23 mar. 2020. LÍTERABRASIL. Morte e vida severina: resumão#11. 7 jun. 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jYjJ9DkZ5BA. Acesso em: 23 mar. 2020. A partirdo que foi dito até agora sobre identidade, não há dúvida: identidade não pode ser entendida somente como uma questão científica ou acadêmica: ela é também uma questão social, uma questão política. Retomando a peculiar condição de metamorfose permanente das identidades pessoais, é interessante lembrar que qualquer objeto, mesmo que seja mineral ou vegetal, quando entregue à própria natureza, se transforma: o metal oxida, a peça de roupa desbota, o alimento deteriora. 71 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Como diz a sabedoria chinesa, absolutamente tudo se encontra em contínuo processo de mutação. A única coisa que não muda é o fato de que tudo muda. É impossível, pois, evitar a transformação, manter‑se inalterado. É possível apenas manter uma aparência de estabilidade absoluta. Como diretores de cena e atores, representamos a nós mesmos nas distintas situações sociais. Nunca expressamos a totalidade de nossos seres: falamos e agimos sempre como representantes de nós mesmos, adequando personagens aos cenários e às cenas de nossa rotina social. E toda pessoa com a qual interagimos também se apresenta diante de nós representada por alguma de suas personagens. Comparecemos uns diante dos outros como representantes de nós mesmos, apresentando uma face, um aspecto, de nossa totalidade. Com base nas contribuições de Ciampa (1987) e de Santos e Fernandes (2016), Rodrigo Frias (2019) infere que, para a psicologia, a identidade é constituída de diversas “partes”, diversos aspectos pessoais inerentes, outros aspectos obtidos e/ou cultivados nos grupos aos quais a pessoa pertence, em representações de si e do outro, em atitudes e comportamentos, bem como de relações do indivíduo com membros de seus grupos de pertença e de suas relações com outras pessoas. Fatores biológicos, culturais, históricos, geográficos e socioeconômicos participam ativamente do processo de constituição, preservação e mutação de aspectos da identidade. A cultura é cada vez mais considerada por pesquisadores das ciências psi como uma das chaves para a compreensão da construção e do funcionamento da identidade e de suas relações com o outro, especialmente em seus grupos de pertença. Como vimos, Ciampa publicou seu trabalho em 1987. Poucos anos depois, seríamos contemplados com a produção de um conjunto de obras condizentes com o pensamento de Ciampa e complementares à sua obra. Estamos nos referindo a Zygmunt Bauman (1925‑2017), sociólogo polonês nascido em 1925, que iniciou carreira na Universidade de Varsóvia e publicou mais de quarenta livros, entre os quais Modernidade líquida (2001), Amor líquido (2004), Identidade (2005) e Ética pós‑moderna (2006). Observação Mesmo reconhecendo que esses conceitos da psicologia são complexos e exigem esforços para serem bem entendidos, nós, autores deste livro‑texto, optamos por apresentá‑los a você por serem fundamentais para os profissionais da educação e da saúde. Então, sugerimos que realize mais de uma leitura deste material. Caso fiquem dúvidas neste momento da graduação, certamente a compreensão será maior quando você fizer novas leituras em estágios mais avançados de seu percurso acadêmico e profissional. Vamos prosseguir na exposição das ideias de Bauman. Em Modernidade líquida, Bauman (2001) explicita o uso que faz do termo liquidez: os líquidos não têm forma e, sendo fluidos, se moldam 72 Unidade II facilmente aos recipientes que os contêm. Não são como os sólidos, que precisam ser submetidos a fortes tensões de forças para serem moldados e adquirirem novas formas. Os líquidos penetram nos lugares, nas pessoas, contornam obstáculos. Um estado de liquidez permeia a emancipação, a individualidade, o tempo e o espaço, o trabalho e a comunidade. Bauman distingue, pois, modernidade sólida de modernidade líquida. A modernidade sólida, concreta, precedeu a modernidade líquida. A modernidade sólida possuía um caráter marcantemente totalitário, sendo, por isso, rígida, dificilmente adaptável a novas formas. Os indivíduos se mostravam mais passivos, incapazes de tomar decisões. Presos em suas próprias limitações, se deixavam levar pela modernidade sólida, e a individualidade era experienciada como uma fatalidade, que impossibilitava a autoafirmação. Na modernidade líquida, vivida por nós atualmente, o indivíduo procura influenciar o meio para atingir seus objetivos, fazer amigos, trabalhar em redes sociais complexas, marcadamente fluidas, carregadas de agentes ativos. Nessa versão líquida da modernidade, o indivíduo elege como deseja e como acha necessário se identificar para dar a conhecer a própria identidade. Identidades individuais permanecem em contínuo estado de nascimento e, para exemplificar isso, Bauman (2001) recorre a uma metáfora: a identidade substituiu suas raízes por âncoras que, sendo mais versáteis do que raízes, possibilitam que a importância do compromisso e da lealdade seja relativizada, ou mesmo negada. Na modernidade líquida, as metamorfoses da identidade se tornaram muito mais rápidas. Bauman (2001) utiliza a seguinte metáfora: agora não somos mais como árvores presas ao solo por raízes, agora somos como navios que utilizam âncoras para permanecerem temporariamente em alguns portos. Possuidores de âncoras e não de raízes, basta erguermos nossas âncoras para que nosso navio possa ser conduzido a outro porto. Sabemos que a pertença a coletivos define em boa parte as identidades: ao nos apresentarmos, nos referimos a nossos coletivos de pertença. Dizemos, por exemplo, “sou brasileiro“ (pertenço à nação brasileira), “sou negro“ (pertenço ao coletivo étnico‑racial de negros), “sou corintiano“ (pertenço ao coletivo de torcedores do Corinthians), “sou católico“ (pertenço ao catolicismo), e assim por diante. Mas, no novo contexto de uma sociedade líquida e de identidades líquidas, como fica a relação dos indivíduos com suas comunidades de referência? Entendidas as identidades como navios que ancoram e as comunidades como portos, locais de estadia breve, que não têm como impor limites rigorosos ao trânsito de navios, as comunidades servem a la carte indivíduos que buscam um lugar no mundo. Esse fenômeno denominado por Bauman (2001) identidades líquidas em comunidades líquidas sugere a ocorrência de alta mobilidade e de contínuas metamorfoses identitárias. Melhor compreensão desses postulados de Bauman (2001) pode ser obtida se voltarmos nosso olhar para a construção de identidades em redes sociais virtuais. O artigo “A construção de identidades nas redes sociais”, de Lívia de Pádua Nóbrega (2010), reúne elementos que nos ajudam a compreender melhor o fenômeno descrito por Bauman (2001), fenômeno 73 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA próprio das ocorrências no ciberespaço, no universo virtual. Vejamos, pois, o que nos apresenta Nóbrega (2010), quando particulariza características da construção de identidades em redes sociais. Observando que a mídia virtual oferece modelos capazes de nortear a autorrepresentação de sujeitos na sociedade, ou seja, observando o modo pelo qual as redes virtuais de relacionamento se configuram como ferramenta de construção de identidades pessoais, Nóbrega (2010) se propôs a analisar com maior acuidade esse fenômeno contemporâneo. Não estamos nos referindo a algo abstrato, estranho, de difícil compreensão. Não. Estamos nos referindo a essa experiência que todos nós temos diariamente ao ingressarmos num chat, no Facebook, no Instagram, no YouTube, e assim por diante. Você, nosso aluno, nossa aluna, nosso querido aprendiz, dificilmente se afasta de seu aparelho celular, de seu tablet, da tela de sua smart TV. Andamos pelas ruas presenciando relações absorventes de humanos com máquinas de acesso virtual a indivíduos e a grupos. Isso não é diferente para nós, que estamos aqui produzindo este livro‑texto para você. Nós, como você, integramos diversos coletivos no WhatsApp, no Instagram, no Facebook... Neste momento em que escrevemos, por diversas vezes interrompemosa redação para atender a chamados de indivíduos desses nossos grupos de pertença, para dar uma espiada em outras redes sociais virtuais, igualmente atraentes, para ingressar em coletivos pensantes que disponibilizam generosamente resultados de seus estudos e de suas reflexões. E nem precisamos ir mais longe com essa história toda, porque sabemos que este livro‑texto que agora você tem em mãos foi produzido para ser lido por dezenas, ou, quem sabe, centenas de pessoas, cujos rostos não veremos, cujos corpos jamais abraçaremos. Aquele que realiza seu processo de aprendizagem on‑line entende perfeitamente o que estamos dizendo: pertencemos a comunidades de aprendizagem, entre outras comunidades virtuais, que definem, em parte, nossas identidades. Houve um tempo em que as identidades eram dadas com o nascimento e pronto. Você nascia filho de um casal que lhe atribuía um nome e, logo de cara, já estava definida sua pertença a um grupo familiar, uma classe social, uma religião, uma etnia, e assim por diante. Havia pouca mobilidade social e, assim, as pessoas nasciam e morriam de acordo com uma instância classificada por Kellner (2001 apud NÓBREGA, 2010) como fixa e imutável. Stuart Hall (1997 apud NÓBREGA, 2010) nos oferece um histórico interessante, que inclui três importantes e decisivos períodos que foram atravessados por concepções identitárias. No primeiro desses momentos, durante o Iluminismo, período em que vigorava a concepção de que os indivíduos eram uma espécie de monobloco, a identidade era compreendida como se um núcleo interior, que emergia pela primeira vez com o nascimento do sujeito, desabrochasse pouco a pouco, sem que o sujeito se modificasse muito, como se ele permanecesse essencialmente o mesmo, até o final de sua vida. Em um período posterior, essa noção de indivíduo dotado de identidade fixa foi substituída pela noção de sujeito sociológico, que se dava conta de que a complexidade do mundo moderno afetava decisivamente sua composição identitária e a composição identitária de todas as outras pessoas. 74 Unidade II A identidade passou a ser considerada resultante da interação entre o indivíduo e a sociedade na qual esse indivíduo estava inserido, sujeita, pois, a transformações. Finalmente, num terceiro período histórico, surgiu a noção de sujeito pós‑moderno, profundamente marcado pela liquidez dos novos tempos, como diz Bauman (2001). A identidade desse sujeito imerso em um mundo fluido – fluido porque as transformações são rápidas e constantes – também precisa ser fluida, porosa, de difícil delimitação. Sendo fluida, essa identidade precisa ser múltipla e multifacetada. Aquela identidade assegurada pelo grupo, assumida como questão pessoal e subjetiva, é substituída por uma identidade que sofre contínuas e rápidas metamorfoses. Em outras palavras, ela deixou de ser algo dado com o nascimento e passou a ser algo em constante construção e transformação. A identidade desse terceiro período não é imposta: ela decorre de escolhas. Nas palavras de Hall (1997), a identidade não é mais uma questão de ser, e sim uma questão de tornar-se. Trazendo essas reflexões para nosso dia a dia: quem não se reconhece como uma pessoa que vive nesse período de transformações rápidas e constantes? Quem não reconhece a si mesmo como alguém que tem a liberdade de escolher o modo pelo qual quer se apresentar? Certamente, essas concepções se tornam mais compreensíveis quando refletimos sobre nossa presença em redes sociais da internet, em comunidades virtuais. Comunidades virtuais são bailes de máscaras que permitem aos indivíduos que troquem de identidade a seu bel‑prazer e que transitem livremente pelas diversas e incontáveis opções identitárias. No ciberespaço, diversos modelos de sujeito e de posicionamento estão disponíveis para que os indivíduos realizem escolhas identitárias. Bauman (2005) está certo ao afirmar que houve um tempo em que a identidade de uma pessoa era determinada fundamentalmente pelo trabalho produtivo desempenhado na divisão social do trabalho e hoje ela é fruto de escolhas em meio a inúmeras possibilidades? Dificilmente podemos negar o que Bauman (2005) afirma: a pós‑modernidade propiciou condições para que as identidades se formassem em torno do lazer, da aparência, da imagem e do consumo. É muito importante enfatizar que todas essas lúcidas considerações a respeito da construção de identidades nas redes sociais aqui apresentadas têm por fonte o já mencionado trabalho de Lívia de Pádua Nóbrega (2010). Essa autora prossegue em suas reflexões, ao afirmar que as redes sociais de relacionamentos configuram um espaço de construção de sujeitos, que possibilita e permite construir e divulgar identidades baseadas no que somos e naquilo que almejamos ser. Interessante é o fato de que, do mesmo modo que nossa identidade é definida em parte por nossa pertença a coletivos nos quais as pessoas interagem em carne e osso, ela também é em parte definida por nossa pertença a comunidades virtuais, nas quais compartilhamos um mesmo território virtual, expressamos nossos sentimentos, compartilhamos impressões, nos apresentamos do modo que nos pareça mais conveniente, compartilhamos ideias e ideais com pessoas que pensam como nós e, juntos, fortalecemos um ideal de grupo. 75 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Observação Sinceramente, querid@ leitor, esse trabalho da Lívia de Pádua Nóbrega (2010) é ou não é formidável? Essa leitura nos permite ver a nós mesmos como diante de um espelho. Essa leitura sobre a atual modalidade de construção de identidades nos alerta para o fato de que tanto as identidades concretas, por nós exibidas em nossos grupos de encontros físicos, quanto as identidades virtuais, por nós exibidas nas redes sociais on‑line, todas essas representações de nós mesmos, são simbólicas. Reconhecer isso contribui para nossas reflexões e nos proporciona a oportunidade de autoconhecimento. Figura 24 Nóbrega (2010) prossegue assinalando que toda concepção identitária é uma forma de representação e que, no caso das redes virtuais de relacionamento, a representação do indivíduo se dá por meio da publicização do eu, isto é, para representar a mim mesmo, utilizo um meio de “publicar” a imagem de mim, que eu mesmo escolho. Ao projetar na rede a imagem que escolhi para me representar, ingresso nesse cenário virtual como personagem de uma peça teatral que ingressa num palco de teatro. Figura 25 76 Unidade II Em ambientes de rede, um indivíduo pode se apresentar como quiser, pode se representar como desejar e encontrar a solidariedade de outros indivíduos na rede que, como tribo, o acolhem. Sabemos que as identidades se afirmam em processos de alteridade: conheço a mim mesmo quando interajo com outrem. O mesmo princípio vale para os coletivos: identidades coletivas se afirmam “em oposição” a outras identidades coletivas. Grupos e comunidades virtuais reúnem indivíduos semelhantes e constituem um “nós” que se coloca em oposição a um “eles”, “os outros”. Aplicativos de redes sociais e comunidades virtuais permitem, e, mais que isso, estimulam, a construção de falas por meio das quais os indivíduos representam a si mesmos. Não se trata de saber, nem de “descobrir” se as identidades publicizadas são verdadeiras ou falsas. O que realmente importa é perceber com nitidez o fato de que sujeitos utilizam ferramentas das redes sociais para construírem suas identidades pessoais. Redes sociais são espaços de convivência. Nesses espaços, as subjetividades interagem. Para, finalmente, concluirmos estas considerações sobre identidade e pertença grupal e retornarmos ao motivo pelo qual nos demoramos tanto nesse assunto, cabe observar que, no momento em que eu, fisioterapeuta, me encontro com meu cliente, cada um de nós leva no bolso ou na bolsa um aparelho celular. Cada um de nós pode estar portando um tablet ou um notebook. Nessas caixinhas mágicas, carregamos nossa multiplicidade de identidades possíveis. Olhamo‑noscomo indivíduos certamente pertencentes a diversos coletivos – concretos e virtuais. Tempos atrás, ao realizar uma anamnese, as perguntas feitas a nossos clientes para melhor conhecê‑los tinham por finalidade nos dar a conhecer um pouco de seus grupos de pertença – o familiar, o escolar ou acadêmico, o de convivência religiosa, e assim por diante. Os tópicos da anamnese demandaram ampliação: para eu saber quem é você, preciso que me conte também um pouco de sua vida nos espaços virtuais, me fale das tribos a que pertence quando navega no ciberespaço, como se relaciona com seus pares em tribos de sua escolha, como você, de determinada tribo, se relaciona com indivíduos de outras tribos. Que formidável ampliação! E quanto assunto a ser abordado durante um processo de atendimento fisioterapêutico! Figura 26 77 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Porque nos foi dito que emoções produzidas nas interações humanas, sejam alegrias ou tristezas, sejam interações concretas ou virtuais, guardam memória em nossa musculatura, em nossos ossos, em nosso sangue. Quando eu, fisioterapeuta, toco o corpo de meu cliente, toco mistérios múltiplos. Tateio o que há de sagrado nesse corpo, busco desfazer tensões originadas em interações humanas propiciadoras de sofrimento. Assagioli (apud MATTOS, 2012) considera que o desenvolvimento da personalidade demanda integração de componentes físicos, mentais e espirituais. Sustenta a ideia de que esse desenvolvimento, embora determinado por impulso pessoal, demanda esforços por tratar‑se de uma meta a ser atingida. Em outras palavras, podemos dizer que distintas concepções relativas ao que seja o homem e seu psiquismo determinaram a elaboração de muitas teorias de personalidade. Segundo Schultz e Schultz (2002), os aspectos enfatizados em cada teoria se organizam em contínuos estabelecidos entre dois polos. Por exemplo: • determinismo versus livre‑arbítrio; • peculiaridade versus universalidade; • importância do passado versus importância do presente. O termo versus utilizado nesses binômios sugere haver uma oposição radical entre os polos. No entanto, podemos observar nas teorias de personalidade que nem sempre os fatores são colocados em oposição: muitas vezes, o que temos são diferentes atribuições de relevância a um ou a outro fator. Podemos dizer que um indivíduo é inteiramente livre? Em que medida ele está sujeito a determinações de ordem biológica e sociocultural? Podemos falar em ação do destino? Podemos considerar o homem como líder de seu caminho de vida? Essas são questões relativas ao binômio determinismo/livre-arbítrio. O homem representa a culminância de um processo de evolução natural ou foi criado já em sua condição humana? Essa questão é relativa ao binômio natureza/criação. Ao considerarmos questões da personalidade, os fatos do passado são tão relevantes quanto os fatos do presente? Essa questão é relativa ao binômio importância do passado/importância do presente. A despeito de sua singularidade, as pessoas compartilham características que definem seu pertencimento a coletivos humanos? Essa questão é relativa ao binômio peculiaridade/universalidade. Saiba mais Aprenda mais sobre as grandes correntes da psicologia: FERREIRA, C. As 3 grandes forças em psicologia. Sociedade dos Psicólogos, 13 jan. 2019. Disponível em: https://spsicologos.com/2019/01/13/as‑3‑ grandes‑forcas‑em‑psicologia/. Acesso em: 16 mar. 2020. 78 Unidade II Assim como um fisioterapeuta pode se beneficiar de conhecimentos sobre a dinâmica normal da personalidade, é igualmente preciso que ele reúna conhecimentos básicos de psicopatologia para o caso de ser preciso encaminhar algum de seus pacientes para atendimento psiquiátrico e/ou psicológico. Pensando nisso, reunimos na seção a seguir noções de psicopatologia. 5.1.5 Noções de psicopatologia Ao considerarmos as diferentes modalidades de quadros psicopatológicos, vemos que eles decorrem de situações e ocorrências que ultrapassam a possibilidade de uso dos mecanismos de defesa da integridade do ego. Quando esses mecanismos se mostram incapazes de proteger o ego íntegro, condições atípicas de funcionamento cognitivo e psíquico são desencadeadas, tais como alterações perceptuais e comportamentais promotoras de sofrimento. Segundo Jaspers (1973), a psicopatologia configura‑se como ciência natural complexa, que tem por objetivo explicar a relação causal entre sintomas e fenômenos psíquicos. Propõe que a partir da observação das manifestações e evidências concretas (sintomas) é possível compreender nexos e significados internos que esses fenômenos têm para os indivíduos. Para Campbell (1986 apud DALGALARRONDO, 2000), a psicopatologia abrange o conjunto de conhecimentos relativos aos processos de adoecimento mental do ser humano, incluindo o estudo de suas causas, das transformações estruturais e funcionais ocorridas, bem como das formas de manifestação dos distúrbios psicopatológicos. Figura 27 Com suporte nos postulados de Barlow e Durand (2008), a psicopatologia considera que os transtornos psicológicos, ou comportamentos anormais, acarretam sofrimento caracterizado por angústia e redução da capacidade adaptativa do indivíduo por implicar comportamentos não aceitos pelo meio social. 79 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA De acordo com Jaspers (1973), podem ser classificados como enfermidades: • os processos psicossomáticos que acarretam desordens orgânicas; • os acontecimentos traumáticos que acarretam ruptura com a realidade e com a própria identidade; • os desvios relativos ao conceito do normal estatístico, ou seja, aspectos desviantes do padrão apresentado pela maioria dos indivíduos e que são tidos como indesejáveis tanto pelo indivíduo como por seu meio social. Alterações patológicas e quadros psicopatológicos Entre os quadros patológicos mais comuns estão incluídos os seguintes distúrbios: • Distúrbios do desenvolvimento e da continuidade: retardos mentais ou oligofrenias – possuem distintas etiologias (origens) e são cuidados por meio de estimulação adequada, que possibilite aos indivíduos o máximo de desenvolvimento possível. • Distúrbios da harmonia intrapsíquica/neuroses: originados de impulsos e instintos de expressão incompatível com a realidade que, ao serem reprimidos, acarretam mal‑estar. Há diversos sintomas de neurose – sentimento de culpa, mania de limpeza, obsessões, fobias, alterações de humor, preocupações constantes, angústia, ansiedade e muitos outros, sendo indicado o tratamento psicoterápico. • Distúrbios do caráter: comportamentos dissociais, antissociais e psicopáticos, que surgem durante o desenvolvimento e podem ser alterados por medidas socioeducativas. Exceto no caso de psicopatia, que até o momento não possui indicação de tratamento ou cura. Figura 28 80 Unidade II • Distúrbios das sensações, da percepção e do juízo crítico/psicoses: tais distúrbios acarretam ruptura com a realidade, implicam sofrimento e inadaptação social, sendo descritos pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID‑10) (OMS, 1996) como diferentes modalidades de psicose, entre as quais, as esquizofrenias, a depressão, a mania, as parafrenias e a paranoia, além de inúmeros transtornos decorrentes do abuso de álcool e drogas. As psicoses demandam cuidados psiquiátricos e, em alguns casos, demandam também o apoio de psicólogos. O surto psicótico pode ser entendido como um estado mental agudo, caracterizado por desorganização psíquica grave, acompanhada de fenômenos delirantes e alucinatórios, bem como pela perda do juízo crítico da realidade. Tais condições podem ser ocasionadas por situações exteriores (extrínsecas) e em alguns casos, pela emergência de condições internas (intrínsecas), ou seja, já latentes no indivíduo e que vieram a desencadear uma psicose sem que tenha havido um fator externo de pressão. Nesse estado, a pessoa adoecida permanece mergulhada em uma realidade fantasiosa,na qual acredita intensamente, a ponto de refutar a realidade social e as pessoas que a cercam. De acordo com Jaspers (1973), o delírio corresponde a um juízo falseado pela condição patológica, caracterizado por: • uma convicção subjetiva inabalável, irremovível e inalterável frente à argumentação lógica; • um pensamento impenetrável e incompreensível para indivíduos psicologicamente normais; • representações fundamentadas sem conteúdo de realidade. Conforme Britto (2004), os delírios se desviam da realidade e da lógica, conduzindo o indivíduo à formação de juízos anormais, bem como à produção de raciocínios distorcidos, de alucinações, percepções e ideias delirantes. As alucinações, configuradas como ilusões e distorções perceptuais, são de diversos tipos e se relacionam com delírios, vindo a atestar e comprovar para o doente o conteúdo delirante de seus pensamentos e juízos. Entre as alucinações, destacam‑se: • Alucinações auditivas: a pessoa escuta zumbidos, campainhas, ruídos, vozes, ou o próprio pensamento como se fosse sonorizado. • Alucinações visuais: a pessoa enxerga outras pessoas e/ou elementos em realidade ausentes. • Alucinações táteis: a pessoa experimenta sensações táteis, tais como picadas, queimaduras, insetos andando pela pele. 81 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA • Alucinações olftativas e gustativas: a pessoa tem a percepção de gostos e odores em realidade ausentes. • Alucinações cinestésicas: a pessoa experimenta sensações de movimentos relacionados ao sistema motor, sem a presença de estímulos. • Alucinações cenestésicas: a pessoa experimenta sensações catastróficas e dramáticas do próprio organismo, sem a presença de estímulos. Quando um fisioterapeuta constata a presença de pensamentos e juízos delirantes ou observa a ocorrência de alucinações, deverá encaminhar o paciente a profissionais dos cuidados psiquiátricos e psicológicos. Avaliação de condições psicopatológicas A avaliação das condições psicopatológicas é em geral realizada por psiquiatra ou psicólogo, como parte do processo de diagnóstico que inclui um exame das funções psíquicas, ou exame da consciência, durante o qual são observados determinados aspectos que permitem verificar a condição subjetiva da pessoa, bem como sua necessidade de cuidado. Esses aspectos, quando observados no exercício da fisioterapia, permitem identificar condições alteradas do psiquismo, que motivam e fornecem subsídios ao encaminhamento do paciente para atendimento psiquiátrico e/ou psicológico. Para identificar a presença de indicadores de transtornos psicopatológicos, Dalgalarrondo (2000) propõe que sejam observadas as seguintes funções psíquicas: • Consciência: observar se a consciência está clara ou obnubilada. • Atenção: observar se a pessoa demonstra capacidade de prestar atenção às orientações recebidas e aos comandos de realização de exercícios. • Orientação e vivências de tempo e espaço: observar se a pessoa sabe onde se encontra e em que data está. • Sensopercepção: observar se a pessoa apresenta ilusões perceptuais ou alucinações. • Memória: observar se a pessoa é capaz de recordar acontecimentos imediatos e remotos e observar se sua afetividade e sua vontade estão preservadas ou se ela está muito apática ou muito eufórica. • Psicomotricidade: observar se a pessoa está apática ou agitada, se estão preservados seu juízo de realidade e sua lógica de raciocínio, ou se há delírios; observar sua expressão verbal, se está verborrágica ou excessivamente calada e qual o teor do que diz. 82 Unidade II Ou seja, durante o atendimento fisioterápico é possível conhecer a condição geral do paciente por meio da observação dos aspectos aqui destacados e, sendo preciso, a descrição desses aspectos servirá de importante subsídio para os encaminhamentos. 6 PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E DA APRENDIZAGEM 6.1 Tópicos de psicologia do desenvolvimento Vimos a surpreendente quantidade de perspectivas teóricas da psicologia, a enorme diversidade existente no campo teórico dessa ciência. Cada uma dessas perspectivas teóricas se fundamenta em pressupostos sobre a natureza humana, sobre o psiquismo humano, sendo diferentes, em função disso, os métodos de pesquisa e as técnicas de intervenção nesse campo do saber. As diversas psicologias foram construídas em distintos contextos e distintas épocas. Por isso, muitos fatores interagem nesse complexo sistema. Quando nos propomos a particularizar questões relativas ao desenvolvimento do ser humano e de suas funções psíquicas, encontramos o mesmo formidável conjunto de informações. Como nos situarmos nesse universo e como extrairmos dele informações que possam ser úteis para nossa prática profissional? Responsáveis pela elaboração deste livro‑texto, nós, autores, tivemos como primeira preocupação a seguinte: como selecionar, em meio a essa floresta de palavras, de conceitos, de propostas de intervenção, o que possa ser realmente útil a você, querido graduando de Fisioterapia? Não queremos pecar por falta, mas, principalmente, não queremos pecar por excesso. Não queremos que você se veja obrigado a engolir uma pilha de informações inúteis para sua formação. Não queremos adotar os recursos didáticos daquela horrorosa proposta de ensino, que o educador Paulo Freire denunciou, ao denominá‑la educação bancária: ao professor compete “depositar” informações, grande parte dela inútil, para, depois, por meio de provas, “realizar saques” dos montantes depositados. Não queremos nada disso. Ao elaborarmos esta seção, por exemplo, em que são reunidos tópicos de psicologia do desenvolvimento, nos perguntamos: de que adiantará para você conhecer pormenores das propostas teóricas de tantos e tantos expoentes da psicologia? Optamos por selecionar alguns poucos teóricos da psicologia do desenvolvimento. Nós, da psicologia, percorremos ao longo de anos e anos esse campo extenso, em contínua expansão, e somos convidados, continuamente, a realizar escolhas: temos que decidir o que interessa a cada um de nós retirar desse tesouro fundamentos teóricos e propostas metodológicas de pesquisa e de intervenção. E o que devemos retirar desse tesouro para que sua leitura, graduando de Fisioterapia, seja agradável e contribua para essa formação profissional que dará legitimidade acadêmica e jurídica aos cuidados que você ofertará a seus clientes e a outras pessoas que dependem de fisioterapeutas para um bom viver? 83 PSICOLOGIA APLICADA À FISIOTERAPIA Nesta seção, estão reunidos alguns elementos básicos de psicologia do desenvolvimento, que podem estimular o desejo ou a necessidade de conhecer mais. Quando você estiver cuidando de uma criança, enfrentará desafios distintos de outros, que serão enfrentados ao cuidar de adolescentes, de adultos, de idosos. E, no interior de cada uma dessas faixas etárias, há segmentos de vida com características distintas. Para começo de conversa, abordaremos a questão do binômio hereditariedade versus meio ambiente: como essas forças interagem na nossa constituição e em nosso desenvolvimento? Igualmente importante é constatar que toda teoria de desenvolvimento coloca marcos ao longo do percurso biográfico das pessoas. Demarca etapas ou fases de desenvolvimento psíquico, colocando marcos cronológicos. Como assim? Padrões de desenvolvimento comuns a todos são reconhecidos por meio de estudos e pesquisas. É o que fizeram, por exemplo, Freud e Piaget. Freud, tratando da dinâmica estabelecida entre instâncias da personalidade, Piaget tratando da epistemologia genética, buscando reconhecer padrões de desenvolvimento do conhecimento. Com isso, damos um passo à frente: no âmbito da psicologia do desenvolvimento, há estudos sobre o desenvolvimento da inteligência, o desenvolvimento emocional e o desenvolvimento social, entre outros. E, havendo, como vimos, diversas abordagens psicológicas possíveis, encontramos uma diversidade de abordagens de temas em cada um desses âmbitos do psiquismo. Por exemplo: consideremos,
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