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o '<L)^U Jo .Y Raciocínio VITOR DE PAULA RAMOS Prova documentaI Do Documento aos Documentos. Do Suporte à lnformação Coordenação: VITOR DE PAULA RAMOS 2021 ¿ EDITORA ¡.¿sPODIVM Probatório wwweditorajuspodivm.com.br I'ROVA I)OCI'MFNTAL VITOR DE PAU LA RAIVlOS 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUI\4ENTOS llnr colrclusão ao presente item, parece-me importan- It' tlcstacar, destarte, que os documentos com símbolos, com nraior razão ainda devem ser analisados sob o prisma da pos- sibilidade ou não de alteração posterior dos signos apostos, sendo objeto de prova combinada. Afinal, considerando que esses nem mesmo em tese guardam qualquer relação causal obrigatória com a realidade, é possível que um(a) médico(a) refira, por exemplo, todo um histórico de atendimento a de- terminado(a) paciente que, entretanto, nunca foi por ele(a) sequer examinado; ou mesmo de um paciente que jamais exis- tiu. Sempre que um documento com símbolos for apresentado será necessário investigar sobre o contexto da sua formação e sobre a forma de aposição dos signos, o que, novamente, de- mandará a produção e a análise de provas combinadas. 3.3. O DOCUMENTO EA FONTE Depois de analisar no item anterior a importância que o tipo de signo contido em um documento pode ter para a valoração sobre o conteúdo probatório desse, cumpre agora analisar as diferentes fontes de que um documento pode pro- vir. E tais fontes, como já adiantado, são ou seres humanos ou máquinas. No primeiro item do presente capítulo, portanto, aborda- rei os documentos que possuem fonte em máquinas, analisan- do as dificuldades e questões que podem surgir no processo de produção do documento. No segundo item, abordarei os documentos com fonte em seres humanos, analisando as difi- culdades e as questões que podem surgir no processo de pro- dução do documento. 3.3.1. Fonte em máquinas e instrumentos 3.3.1.1. Mente estendida? Confiançq rcrcionql em instrumentos e métodos: q teorid por trás Há, na minha opinião, muita confusão a respeito da utili- zaçao das máquinas e instrumentos para a prova de fatos, prin- cipalmente diante da tese que ficou conhecida como da mente estendida - segundo a qual confiar em algum objeto externo (como um GPS, um celular etc.) poderiafazer com que o obje- to passasse a ser uma extensão da mente de uma pessoar43, ou um "sistema acoplado "aa. O exemplo fictício, formulado pelos criadores de tal ideia, é de um menino chamado Otto, um personagem que sofre- ria de Alzheimer e que, para driblar os problemas da doença, passaria a fazer anotações em seu caderno; com o tempo, a relação de Otto com o caderno, na opinião dos autores, tor- nar-se-ia uma relação de mente estendidø.Isto é, Otto passaria a ter capacidades de memória fora de si mesmo, por conta do caderno. A teoria, então, pretende-se aplicável para as diversas situações do dia-a-dia em que, por exemplo, alguém conduz um veículo usando o aplicativo Google Maps, simplesmente indo onde o aplicativo mandar. A teoria, em minha opinião, "esconde" dois raciocínios extremamente importantes: a diferença entre uma justifica- ção epistêmica e uma justificação pragmâtica e o desenvol- vimento, racional ou não, da confiança. Abordarei cada um 1 43. CL¡nr ¡ Cu¡rvens, 1998:'12. 1 44. Pnrrnvos, 201 4: 39. 228 229 I'lr()v^ t)()( l,Mt NrAL VITOR DE PAU LA RAIVIOS 3 ' DO DOCUMENTO AO5 I)( )( I rMl I I lr I rl's ,rs¡rt'ctt)s, visando a desfazer as confusões e a demonstrar ( ()ilro, cm ambientes em que a verdade importa (como é o caso tlo processo judicial), a justificação e a confiança não podem scr meramente pragmáticas em relação a documentos gerados por máquinas ou instrumentos. Para isso, retomarei rapidamente os dois pontos. Em re- lação à justificação, essa será epistêmica quando necessitar de que sejam obtidos conhecimentos suficientes para amparar a hipótese. Trata-se do caso do(a) médico(a) que aplica um tratamento a um(a) paciente por entender existentes provas suficientes na literatura médica a amparar a hipótese da eficá- cia e da segurança daquele para o caso. Nesse caso, o paciente jamais aceitaria que o(a) médico(a), questionado(a) sobre o porquê da úllizaçãto desse tratamento específico, dissesse que usa esse tratamento porque um(a) amigo(a) disse que é bom. Em relação à justificação pragmática, poï outro lado, tra- ta-se de casos em que a verdade não desempenha papel fun- damental, ou em que a relação custo-benefício não recomenda uma verdadeira busca de justificação epistêmica. Trata-se do caso em que alguém quefazturismo em outra cidade pergunta a um transeunte local onde fica aigreja. Será suficiente, nes- se caso, afirmar que está percorrendo aquele caminho porque um desconhecido indicou. Tratar-se-á de uma justificação pragmática, sem consequências maiores. A confiança, de seu turno, trata-se de uma "vulnerabili- dade aceita" (accepted vulnerøbility) ra5: é acreditar que alguém 145. Bnnr¡a, 1986'.235 que, em tese, teria condiçoes de enganar ou mal Pl()( ('(l('l rr'r0 o farâta'. Tal confiança, como abordado no item 2'l'5, ¡rotlt't'r se dar por bases racionais ou irracionais, em graus maiores ott menores, e de forma epistêmica ou pragmáticataT' Dito isso, ao analisar os pontos centrais da tese da mente estendida, parece-me que a constataçâo das confusões geradas é bastante ricapara que se desfaçam alguns lugares comuns - como é o caso da falsa crença de que alargautilização ou a po- pularidade, na sociedade, de equipamentos ou instrumentos pudesse fazer com que fosse automaticamente racionøI con- fiar em docutnentos gerados por instrumentos ou máquinas também em juízo. Entretanto, sabendo que 'b mero fato de algo ser popular não garante sua correção ou utilidade"l4s' é necessário que a instituição probatória no direito utilize justi- ficações verdadeiramente epistêmicas. Quando se imagina que uma pessoa que utiliza o Google Maps para ir de sua casa ao trabalho esteja usando capacidades "fora da sua mente" (ou passando a ter uma "mente estendida") estão-se, com efeito, dizendo, na minha opinião, duas coisas' A primeira é que se está diante de um contexto em que é sufi- ciente uma justificação pragmâtica; a segunda é que o sujeito, em tal contexto (e imaginando que o equipamento funcione para o uso a que se destina), desenvolve uma confiança cada vez maior no uso do equipamento, conforme vão aumentando as horas de uso, passando a "automatizar" tal confiança' 146. Bnnr¡n,1986:235 147. V¡¡r Crev¡, 2006: 68. 148. Mrrren r RrcoRo, 2017:1949. 230 231 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS O primeiro ponto tem relação com o fato de que o moto- rista não precisa de forma alguma conhecer o funcionamento do programa. O raciocínio utlizado para chegar ao resultado apontado, com efeito, não interessa ao motorista: interessa-lhe tão somente que o aplicativo indique um caminho para chegar ao lugar pretendido, potencialmente o caminho com menos trânsito. Trata-se, nesse caso, de uma justificação pragmática: para o motorista é mais fácil seguir o que o aplicativo indica, ainda que não conheça o seu funcionamento. O segundo ponto tem relação com o fato de que uma pessoa que aprende a uttlizar o aplicativo, depois de muitas horas de uso, passa a ter "intimidade" com esse, desenvoltura no seu manejo, qu:e faz com que se automati ze a confiança ha- vida no aparelho. O processo de confiança no aparelho, como mencionado, pode ser racional ou irracional, e pode se dar em maiores ou menores graus. Um usuário mais desconfiado, por exemplo, na primeira vez que usa Google Maps, pode checar e rechecar as informações dadas pelo programa, "relaxando,, sua vigilância depois de muitos usos em que encontra conformi- dade entre o que o software indica e o mundo lá fora. Tal relaxamento diz respeito ao processo de confiança, que se torna, em determinado momento, automático (como é, hoje em dia, a confiança no funcionamento de um veículo, de um telefone celular, da internet etc.). Nesse tipo de casos, fri- se-se, é suficiente referir que"sei que devo dobrar na próxima à direita, pois o Google Maps indicou'l Tornar-se automática a confiança não quer dizer, entretanto, que se torne inexistente. Pelo contrário: se em alguma circunstância o Google Maps su- gerir que alguém ingresse em uma estrada fechada, ou em uma rua que é contramão, o usuário imediatamente suspenderá a 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUMENTOS confiança - ainda que não saiba o que deu errado com o sof tware -, passando a buscar outros elementos para localizar-se. Se, em um contexto em que a justificação pragmática é sufìciente, um usuário sem muito conhecimento sobre o Goo- gle Maps aceitaria fazer o primeiro uso, de teste, para chegar ao trabalho, o mesmo não ocorreria em um contexto em que a verdade tivesse papel mais central. O mesmo motorista, com efeito, jamais tentaria o primeiro uso do Google Maps para le- var algum parente próximo em um quadro de urgência médica ao pronto-socorro. |ustamente porque, nesse caso, a verdade importaria muito mais. Quando as informações obtidas em equipamentos e má- quinas são utilizadas em contextos em que a relação com a verdade pode trazer consequências mais graves, dessa forma - como quando se pretende ttllizar os resultados de um exame feito mediante o uso de uma máquina para determinar o trata- mento de um(a) paciente -, é necessária uma justificaçao epis- têmicø, com um determinado grau de suficiência. Com efeito, os equipamentos que hoje são usados em hospitais, antes de lá chegarem, já foram testados e retestados inúmeras vezes por diversos estudos empíricos, justamente para que seu funciona- mento seja conhecido nas mais diversas circunstâncias. Com o passar do tempo, o uso de tais equipamentos vai se tornando tão conhecido e contando com um grau tão ele- vado de corroboração que a justificação epistêmica que está por debaixo do equipamento vai sendo simplesmente subs- tituída pela confiança, que vai, também, tornando-se auto- mática. Um ortopedista que utiliza um exame de raio-X hoje em dia, destarte, não para habitualmente para refletir sobre 232 233 PROVA DOCUMENTAL o funcionamento desse equipamento; justamente pelos anos e anos de experiência e pelas múltiplas testagens pelas quais o aparelho já passou. lJm equipamento com uma tecnologia nova, por outro lado, não só passará por inúmeras testagens em estudos empíricos até ser considerado seguro e eficaz para utllização em hospitais, como também por inúmeras testagens pelos(as) próprios(as) serviços que trabalharão com esse, até que desenvolvam confiança nesse. Èm contexios eiìì que a justiíicação rneranlcnte piagniá- tica não basta, ademais, para o estabelecimento das bases da confiança também não poderão bastar justificativas mera- mente pragmáticas. Um(a) médico(a), nesse sentido, jamais poderia dizer " sei que o paciente está doente, pois essa máqui- na, que meu amigo diz que é ótima, diz que sim'l Ainda que o(a) médico(a) não saiba eventualmente os detalhes técnicos do equipamento (por exemplo, no raio-X, qual isótopo é utili- zado), a confiança desse(a) na máquina deve necessariamente ter suporte epistêmico, o que será buscado, via de regra, na literatura médica. O ponto central que pretendo mostrar com todo o raciocí- nio até aqui apresentado é que o ambiente judicial se aproxima mais do segundo exemplo do que do primeiro. Isso é, a utiliza- ção de documentos gerados por máquinas em juízo depende necessariamente de um entendimento a respeito da justifica- ção epistêmica existente no funcionamento do instrumento ou máquina; e mais, da eventual confiança nesse depositada. Isso somente será possível, entre outras coisas, mediante o co- nhecimento prévio da teoria por trás do equipamento ou ins- trumento: isso é, de que seu funcionamento seja baseado em conhecimentos válidos e corroborados. 3 . DO DOCUI\4ENTOAOS DOCUI\4ENTOS O mero fato de um documento gerado por uma máqui- na referir, por exemplo, "resultado: fratura" não pode ser tido diretamente por verdadeiro, sem mais, considerando-se que "Fulano tem uma fratura, porque a máquina afirmou que sim"; deve ser analisada a máquina em questão, entendendo-se o seu funcionamento e a'teoria por trás" da máquina. E isso será ne- cessário tanto para máquinas que sejam usadas somente para medições ou aferições quanto para aquelas que possuem racio- cínios agregados. Conforme abordei no item 2.1.3, assim, o primeiro tipo de máquinas é aquele em que se entende existente a corres- pondência, por exemplo, "entre dois estados do mundo, a tem- peratura de um objeto e a posição do mercúrio em um ter- mômetro"lae; a pressão atmosférica e a altura da coluna de um barômetrorsO; a velocidade do vento e o ângulo do ponteiro de um anemômetrot51 etc. Assim, para usar o mesmo exemplo dado no item 2.1.3., para que se possa afirmar que 37 centímetros em um termô- metro determinado significa ter sido medida a temperatura de 37 oC, é necessário analisar qual teoria embasa tais conclusões. Naturalmente, uma grande parte do raciocínio dependerá dos conhecimentos já existentes a respeito do mercúrio, da pressão atmosférica e de diversos outros conhecimentos prévios a res- peito de fenômenos físico-químicos. 1 49. LrHnrn, 1 995: 1 60. 1 50. Burucr, 2O1O:87. 151. Burucr,201O:87. VITOR DE PAULA RAMOS 234 235 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS A existência e a forma da ligação causal com o mundols' de um documento produzido por uma máquina, em contextos jurídicos, não poderá, assim, ser simplesmente presumida com base em confiança irracional, ou sem justificativas epistêmicas. Imaginando-se que uma máquina detecte a presença e a quanti- dade de determinada substância poluente, produzindo um do- cumento com os resultados - em um caso em que for relevante saber se em determinado momento e em determinado local há a presença do poluente em determinada quantidade -, não se poderá, sem mais, simplesmente assumir que o resultado dado pelo documento produzido pelo equipamento está correto. Dever-se-á buscar, como abordei no item 2.1.3, saber (a) se o cálculo ou o raciocínio utilizado para estabelecer as esca- las tem correspondência com o mundo, isto é, se a teoria por trás do equipamento está correta ou não; (b) se o equipamento está realmente 'talibrado"ls3 e se não estava sujeito a outras influências que pudessem alterar indevidamente o resultado; e (c) se a leitura do documento foi feita de maneira correta. Quanto ao segundo tipo de documentos produzidos por máquinas, da mesma forma, aquele em que a própria máquina desenvolve um raciocínio, será necessário também conhecer a teoria por trás não só da própria medição, mas também do ra- ciocínio agregado pela máquina. Assim, por exemplo, imagi- nando-se que uma máquina faça comparação de amostras de DNA, além das três etapas acima, será necessário um quarto passo: conhecer como e com base em quais critérios a máqui- na chegou à conclusão de se tratar de um "match'. 152. HnnnÉ,2010:32. 1 53. RorH, 2017:1990. 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUMENTOS Como já explorado no item 2.I.3, portanto, o rcsultittlo apresentado no documento que'digd' ter havido um "mtttcli' entre as duas amostras deveria ser submetido ao mesmo tiptr de raciocínio utilizado para o exemplo anterior - isto é, (a) se o cálculo ou o raciocínio utilizado tem correspondência com o mundo; (b) se o equipamento está realmente 'talibrado"tsa; e (c) se a leitura foi feita de maneira correta. Agregar-se-á, en- tretanto, a quarta etapa: (d) saber se o raciocínio utilizado pela máquina para chegar à conclusão do "match' está amparado por conhecimentos sólidos. O mero oferecimento de documentos produzidos por má- quinas em juizo, sem mais, como costuma ocorrer nas cortes de civillaw, nâo tem condiçöes, em outras palavras, de oferecer provas, e muito menos justificaçoes e corroborações verdadei- ramente epistêmicas, a respeito de tais etapas, podendo dar lu- gar a inúmeras e perigosíssimas consequências. Imagine-se que uma empresa fornecesse um softwarepara análise e interpretação de DNA e que seus desenvolve- dores, racistas, programassem a máquina para sempre que analisasse o DNA de determinada etnia desse o resultado "match". A programação seria a que segue: "se da etnia X, en- tâo, møtch". Esse raciocínio, como é fâc1l perceber, não pos- sui qualquer amparo epistêmico, de modo que simplesmente não pode ser aceito em juízo - ambiente em que a verdade dos fatos é relevantíssima e central para justificar, por exem- plo, uma condenaçáo. 236 1 54. R¡cono, 201 0: 3. 237 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS A mera juntada de um documento produzido por uma máquina, portanto, nada diz a respeito do funcionamento dessa, não sendo possível simplesmente adotar uma espécie de presuntivismo, como se tudo o que a máquina fizesse esti- vesse correto. Mesmo para máquinas amplamente utilizadas no dia-a-dia, assim, a demonstração da sua justificação epis- têmica será imprescindível, até que o funcionamento daquela máquina e seus usos já sejam passíveis do desenvolvimento de confiança racional - isto é, de uma justificação epistêmica em nível suficiente no âmbito social (como é o caso do telefone). Seja como for, tais análises a respeito das teorias por trás e dos raciocínios e equivalências somente serão possíveis se o algoritmo utilizado pelo equipamento puder ser acessado, algo que será tema do próximo item. 3.3.1.2. A necessidade de olgoritmos dbertos e de øcesso s dmostrss e dødos originois: con- troditório e controle pelo rqciocínio e não somente pelo resultsdo É habitual, na vida cotidiana, que não se pare para ques- tionar sobre o modo de funcionamento dos equipamentos e máquinas utilizados. Isso, conforme sustentei no capítulo an- terior, é, em geral, próprio de ambientes em que a justificaçao e a confiançapragmâticas bastam. No contexto jurídico-pro- batório, entretanto, a justificação das inferências probatórias deve necessariamente ser epistêmica. A questão que se coloca, hoje em dia, é que cada vez mais as máquinas vão assumindo protagonismos em nossas 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUIVIENTOS sociedades, realizando medições, raciocínios e análises que, por vezes, sequer são alcançáveis em um curto espaço de tempo por seres humanos. É o caso dos softwares que não só "fotografam" os perfis genéticos, mas também realizam os ra- ciocínios e fornecem as interpretaçõest's, alguns desses tendo por base mais de 170.000 linhas de algoritmors6. E a tecnologia acaba dividindo as pessoas entre aqueles que "são favoráveis ao uso de novas tecnologias" e aqueles que "são contra', havendo, na minha opinião, equívocos em ambos os raciocínios. O raciocínio probatório, como referi no item 2.1.1, supra, envolve fazer conjecturas, desenvolvê-las, testá-las e avaliar a probabilidade de que sejam verdadeirastsT. lJma vez que a jus- tificação vem em grauslss, o papel de quem apura a verdade dos fatos deve ser entender quais provas são relevantes, buscar aumentar a qualidade e a quantidade das provas relevantes, testar as hipóteses com base nas provas, retestar com base em eventuais provas novas; e tudo isso fará aumentar o grau de corroboração das conclusões a que se chegar. Isso quer dizer que o raciocínio probatório terá que pas- sar pelas mesmas etapas para estar justificado epistemica- mente quando é feito por um cientista ganhador do prêmio Nobel que busca a cura de uma doença, por um índio do interior da Amazônia que busque entender o porquê de de- terminada planta não sobreviver em seu jardim, ou por um 155. Ror¡,2011:2019 156. RorH,2017:2035. 1 57. Hnncx, 1 993: '1 06; Hn¡cx, 201 4: 34; T¡nurro, 2009: 167; Gorovnru, 1999:285 1 58. He¡cr, 2009:126. 238 r20 I PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS algoritmo programado para fazer cálculos a respeito da pro- babilidade de que uma amostra de DNA e outra pertençam à mesma pessoa. Apesar de o raciocínio probatório ser muito mais com- plexo do que um raciocínio matemático, o exemplo simples de fazer uma multiplicação "3 x7" pode ser útil para elucidar a ausência de diferença, do ponto de vista da correção, de um raciocínio feito por um ser humano ou por uma máquina. As- sim, no caso de tal multiplicação estarão equivocados tanto seres humanos quanto máquinas de calcular que chegarem a resultados diferentes de2I. E, no extremo oposto, estarão cor- retos tanto seres humanos quanto máquinas de calcular que chegarem ao resultado 2l.Imaginando agora que se pretenda fazer uma multiplicação com 170.000 parcelas - "3 x 7 x2x 45 x32...1' - a dificuldade, apesar de ser muito maior, terá um resultado, que poderá ser calculado tanto por um ser humano quanto por uma máquina - por exemplo, uma planilha de Ex- cel. E, novamente, o resultado estará correto se e somente se estiver correto: dir-se-á que a multiplicação estará equivocada, tanto para a planilha de Excel quanto para o ser humano, se o resultado não corresponder ao resultado correto. Se isso é assim com um raciocínio qualquer, imagine-se como as coisas podem tornar-se mais complexas diante de um raciocínio probatório, que envolve todas as inúmeras eta- pas mencionadas acima. Tanto um ser humano quanto um algoritmo, nesses casos, terão de selecionar as provas rele- vantes e testar hipóteses com base nas provas e nos conhe- cimentos previamente existentes. A qualidade do raciocínio probatório será tanto maior quanto maior forem as qualida- des de tais etapas. 3 . DO DOCUI\4ENTO AOS l)( )( l'Ml N lr )' Assim, tanto um algoritmo quanto [rrìt s('t lturtt,ttt,', ¡','¡ exemplo, que exclua provas relevantes do raciot irrro lr'r.r rrrrr raciocínio probatório pior do que outro que, fcilo ¡rot ltttnr.r nos ou algoritmos, inclua as provas relevantes clis¡rorrivcis. Tanto um algoritmo quanto um ser humano que utilize lirlsas testagens das provas terá um raciocínio probatório pior do cluc outro que teste verdadeiramente as hipóteses. E tanto um algo- ritmo quanto um ser humano que utilize'tonhecimentos" fal- sos (ou preconceituosos, que também são falsos) terá um ra- ciocínio pior do que outro que utilize conhecimentos válidos. Imagine-se duas comparações de perfis de DNA, uma fei- ta por um ser humano e outra por um software. E imagine- -se que em ambos os casos o raciocínio desenvolvido parta de uma premissa falsa e preconceituosa: de que "pessoas ruivas são criminosas'lse. Assim, tanto o softwøre como o humano, ao detectarem um gene de uma pessoa ruiva, chegarão à con- clusão de se tratar de um criminoso. "Se ruivo(a), então crimi- noso(a)'1 E ambos os raciocínios, por usarem'tonhecimentos" falsos, estarão equivocados. Se tal 'tonhecimento' estiver, en- tretanto, em uma das 170.000linhas de algoritmos do software e não se permitir acesso a esse, o raciocínio estará presente, operante, mas oculto; impassível de detecção. Tudo isso demonstra, na minha opinião, qve sem conhecer o que foi analisado e qual foi o raciocínio desenvolvido Por uma máquina não é possível avøIiar a sua correção e adequação, pors- co importando se o resultado oferecido seja "matcti' ou "não 159. Trata-se de um exemplo hipotético e propositalmente absurdo, sem qualquer relação com a realidade, a fim de expor os diversos e graves problemas de um raciocínio preconceituoso. 240 241 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAIVIOS matchl Afinal, para que o resultado "match" ou "não match' possa ser justificado a ponto de poder ser utilizado em um pro- cesso judicial é necessário, também, que haja uma justificação epistêmica, o que não será possível simplesmente se presumindo que tudo o que a máquina fizer estarâ correto. Dizer o contrário é permitir, por exemplo, que algoritmos programados para ser racistas, ou simplesmente equivocados, passem despercebidos, aumentando as probabilidades de erro no processo. É importantíssimo salientar, por fim, que não suprirá a falta da abertura do algoritmo (ou dos raciocínios efetuados) o eventual conhecimento a respeito da quantidade de acertos da máquina nos últimos casos, ou em um número determinadode casos, ou mesmo sua margem de erro em geral. E isso por não ser possível estabelecer, desde logo, quais variáveis podem ou não ser relevantes para fazer com que o software erce. Imagine-se no exemplo do software programado com pre- conceito contra ruivos(as) descrito acima, que esse tenha sido previamente utilizado em 10.000 casos. Imagine-se agora que se diga que, em tais testagens, obtiveram-se resultados corretos em 99,5o/o dos casos, tendo apenas 0,5%o de erros. O software, então, sem que seja possível acessar seu algoritmo, apresenta um "ma- tch" entre uma amostra de DNA retirada da cena do crime e de um(a) suspeito(a) ruivo(a). E quem apresenta o exame alega que o software, que errou somente em0,5o/o dos últimos 10.000 casos em que foi testado, é uma prova cabal da culpabilidade do sujeito. O que não será possível apurar sem acessar o algoritmo utilizado pelo software sera saber que entre os 10.000 casos testados, os(as) 35 ruivos(as) que foram testados deram falsos positivos. Ou seja, apesar de o erro global ter sido de 0,5% de 3 . DO DOCUI\4ENTO AOS DOCUMI N I()' 10.000, analisando-se somente os sujeitos ruivos lt'sl.rrLr',, , erro foi de 1007o. E o fator relevante para o erro, scnì (luc s(' ( ( ) nheça o algoritmo, jamais poderá ser detectado; al'inal, r¡ lllor relvante poderá, em tese, ser qualquer um: ser ser ruivo(a), scr alto(a), ser baixo(a), ser branco(a), ser negro(a), ser pardo(a), ter pé grande, ter muitos pelos, poucos pelos etc., ou mesmo combinações de hipóteses (como seria o caso de o software er- rar sempre que colocado diante de ruivos(as), baixos(as), com pé grande)160. Enfim, infinitas e inimagináveis possibilidades. É fundamental, também para tomar carona no exemplo, o acesso (obviamente supervisionado ou seguro) às amostras originais, a fim de que a parte contrária possa, ainda, realizar suas próprias testagens, fornecendo, por exemplo, resultados diferentes a que se chega com a utilização de métodos diferen- tes. Sem acesso às amostras ou aos raciocínios utilizados, em resumo, não há possibilitade de criticar ou contrastar efetiva- mente as provas produzidas. Assim, é indispensável, além de conhecer e testar o track record de uma máquina, conhecer os materiais, dados, amos- tras etc. e os raciocínios por essa utilizados, o que somente pode ser feito mediante a análise dos algoritmos. 3.3.1.3. Conteúdo testemunhql e opiniões dgregados Nem sempre uma máquina trabalha sozinha, somen- te com informações geradas por ela própria. De fato, muitas 160. Sobre o complexo processo de "escolha" de variáveis relevantes vide F¡nnra, 2007: 98 e ss. 242 243 PROVA DOCUMENTAL vezes são os dados e informações introduzidos por seres hu- manos a base das mediçoes ou dos raciocínios realizados pelas máquinas e instrumentos. Assim, quando a polícia afirma que o suspeito de um crime foi preso no local com as coordenadas 48" 51'41" N 2" 20, 6,, F,, juntando um documento gerado no Google Maps, a informação a respeito das coordenadas seguirá sendo testemunhal, baseada na palawa dos policiais. Obviamente, tal prova poderá ser com- binada com outras,para demonstrar que o local mostrado no Google Earth é o mesmo, por exemplo, que aquele que aparece em uma fotografia tirada pela polícia no momento da prisão. Por vezes, ainda, a informação testemunhal ou a opinião estarão inseridas em alguma etapa do processo. Imagine-se que, durante uma comparação de amostras de DNA, o softwa- re demande que o(a) profissional encarregado(a) do processo insira informações, como a data em que as amostras foram re- colhidas; e a partir dessas informações é que o softwøreinicia- rá ou prosseguirá com suas análises. Também nesse caso será importante detectar conteúdos inseridos, a fim de que possa ser verificada a sua corroboração ou não. Imaginando-se, com efeito, um funcionamento impecável do Google Earth ou do softwøre de DNA, com l007o de preci- são e acerto, se a informação introduzida estiver equivocada, o raciocínio efetuado, apesar de abstratamente correto, não dirá respeito ao caso concreto, fazendo com que a prova se distan_ cie da busca da verdade. Assim sendo, mesmo em documentos gerados a partir de máquinas cujo funcionamento seja conhecido e cujos algorit- mos possam ser analisados, será imprescindível saber quais 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUMENTOS informações são agregadas e de que forma, a fim de que essas também possam ser controladas. 3.3.1.4. Interpretoção de resultddos e provo combinqdo Conhecendo-se o funcionamento de uma máquina ou equipamento será possível conhecer, por fim, os resultados possíveis, isto é, os resultados que podem ser esperados, bem como o seu alcance. Por vezes, o resultado será acessível a qualquer pessoa (como é o caso de um software que refira um "match" entre duas amostras de DNA); em outros casos (como quando da análise de uma radiografia) será necessário que o intérprete possua conhecimento especializado16l. No primeiro caso, apesar de acessível a leitura dos signos, será necessário que o intérprete ou quem estiver conduzindo a apuração dos fatos tenha condições de conhecer o funciona- mento da máquina, a forma com que o raciocínio é feito, bem como as probabilidades de erro conhecidas. Na segunda hi- pótese, mesmo em casos em que haja bastante indexicalidade (como é o caso da radiografia) o experú deverá utilizar seu co- nhecimento para fornecer um bom testemunho, defendendo e demonstrando os raciocínios e conhecimentos utilizados para, por exemplo, concluir que o tipo de mancha que aparece na radiografia corresponde, de acordo com a literatura médica, à fratura do tipo X. 161. Não pretendo aqui desenvolver todo o debate a respeito do conhecimento técnico e sua utilização em juízo. Pretendo, ¡sto sim, demonstrar que a utilização de conhecimentos técnicos em documentos não "neutraliza" ou "objetiviza" tal conhecimento, como se dispensando qualquer análise ou debate posterior. VITOR DE PAULA RAMOS 244 245 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMO:- Se um software comprovadamente muito seguro, ao fazer a comparação de duas amostras de DNA, fornece o resultado "match', será necessário, da mesma forma, conhecer os algorit mos e o raciocínio utilizado, principalmente para saber'b qud'a máquina considera um "match'e como chegou a esse resultado. Entretanto, ainda diante de um raciocínio muito bem feito por uma máquina que funciona extremamente bem, surgindo uma prova que demonstre que o(a) suspeito(a) se encontrava em ou- tro lugar no momento em que o crime foi cometido (exemplo: o suspeito estava preso por dirigir alcoolizado) fará com que a hi- pótese de sua culpabilidade deva ser definitivamente afastadat62. Seja como for, para resumir sinteticamente tudo o que foi dito neste item sobre máquinas e instrumentos, pode-se dizer que s¿ o resultado produzido por máquinas ou instrumentos for simplesmente presumido verdadeiro, dispensando-se a produção de outras provas relevøntes, eventuais erros do software jamais s er ã o en c o ntr a do s. E a úllização de s oft w ar e.s, m áquinas, instru - mentos etc., ao invés de auxiliar na busca da verdade, passará a ser um salvo-conduto para distorcê-la ou desencaminhá-la. 3.3.2. Fontes em seres humanos Depois de abordar, nos itens anteriores, os documentos gerados por obra de máquinas, no presente item abordarei os documentos criados com signos agregados por humanos. Nesse sentido, serão importantes para a análise dois tipos de 162. lsso, claro, caso confirmada a hipótese da prisão no momento em que o crime estava sendo cometido e caso confirmado que o momento em que se imagina que o crime foi cometido realmente esteja correto. 3 . DO DOCUIVIENTO AOS DOCUMENTOS manifestações humanas que interessam, em geral, ao direito: as manifestações de cunho testemunhal e as manifestações de vontades. 3.3.2.1. Conteúdo testemunhol leigo e expert Como já visto, sempre que alguém, com um ato de comu- nicação escrito, sonoro ou visual, afirma que p, sendo p umes- tado de coisas presente ou pretérito, está fbnieccridu urir lc'ste- munho. O conteúdo testemunhal poderá, portanto, aparecer a partir da interpretação de determinados documentos; muitos outros, entretanto, não conterão conteúdo testemunhal algum. Uma filmagem feita, por exemplo, em um caixa de banco, em que fica registrado um assalto, não revela qualquer teste- munho. Outra filmagem, em que um bombeiro apareça con- tando como sua equipe combateu determinado incêndio, terá conteúdo testemunhal. Um documento escrito que contenha uma narrativa fictícia não terá conteúdo testemunhal; um diá- rio terá conteúdo testemunhal. Alguns exemplos de documen- tos com conteúdo testemunhal podem ser uma reportagem de jornal, um laudo de um(a) médico(a) legista, o prontuário odontológico, a ata notarial, uma declaração de Imposto de Renda, o livro contábil de uma empresa, o croqui sobre a di- nâmica de um acidente, uma placa de trânsito que indique a direção para se chegar a uma cidade etc. Não bastasse isso, tanto o que se costuma chamar no direito de testemunha quanto o que se costuma chamar de expert sao pessoas que, do ponto de vista epistêmico, fornecem testemunhos. Quando um(a) tabeliã(o) produz uma ata notarial descrevendo 246 247 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS cena de um acidente de trânsito, trata-se a ata notarial de um do- cumento com conteúdo testemunhal. O mesmo ocorre quando um(a) perito(a) engenheiro(a) relata ter estado em uma obra, tes- temunhando sobre eventuais fissuras observadasl63. Não pretendo com o presente capítulo abordar a comple- xa problemática sobre as formas de obtenção de testemunhos, e muito menos a ainda mais complexa questão a respeito da forma como o julgador dos fatos pode aprender de um expert. O que pretendo, isto sim, é traçar alguns limites à forma, na minha opinião equivocada, como documentos dotados de tes- temunhos leigos e experts penetram no processo nos sistemas de civil law, sendo o seu conteúdo muitas vezes tratado como algo objetivo e praticamente inquestionável. Tanto o testemunho fornecido por um leigo quanto o teste- munho fornecido por um(a) expert deverão demandar respon- sabilidade epistêmica de quem fornece o testemunho e de quem recebe. No caso do testemunho leigo, não é possível o desenvol- vimento de um trøck-record, isto é, de um histórico. Um(a) tran- seunte, que passa pela rua e vê um acidente de trânsito, ou o(a) porteiro(a) de um prédio que testemunha, por acaso, um atro- pelamento não possuem track-record possível. Ainda que uma pessoa tenha servido como testemunha muitas vezes em juizo, por exemplo, não será possívelfazer um histórico - algo que se- riaaté mesmo estranho de imaginar: "Maria foi testemunha em 32 acidentes de trânsito, sendo sempre uma boa testemunha'i O especialista, por outro lado, pode, com o tempo, ir de- senvolvendo trabalhos em diversas ocasiões, sendo conhecida 163. No mesmo sentido, Vnzquez, 2015: M. 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUIVIENTOS e reconhecida a qualidade do ser background knowledge, a correção habitual dos seus raciocínios e a sua integridadel6a. Isso permitirá que se reconheça, com o tempo, a confiabilidade daquele(a) perito(a) para desempenhar determinadas tarefas em determinadaârea. Ainda assim, entretanto, o exercício da confiança, racional e epistêmica no perito, jamais poderá ser suficiente, em si, para que simplesmente se presuma a corre- ção daquilo que diz o expert em um documento - algo que significaria a total, e absurda, eliminação de toda e qualquer responsabilidade epistêmica do (a) juiz(a). Os documentos gerados com testemunhos leigos ou ex- perts deverão, assim, sempre ser reconhecidos como versões sobre a realidade (no sentido de não serem totais e de depen- derem da observação e do eventual raciocínio de alguém, que podem estar equivocados) e sempre, como será abordado nos itens seguintes, dar acesso automático a que a parte contrária e também o(a) juiz(a) da causa ouçam as pessoas citadas nos do- cumentos em juizo,como elemento inerente do direito ao con- traditório. E isso, naturalmente, jamais partindo da premissa de que o que está no documento é simplesmente verdadeiro, sem mais, o que significaria assumir uma indesejável postura presuntiv i st ø e, portanto, ingênua. Seja como for, a percepção de que diversos documentos pos- suem conteúdo testemunhal leigo ou expert éimprescindível para que se esteja atento, também, às formas de criticar, corroborar ou refutar as informações fornecidas nos documentos. Entre outras 1 64. Nesse sentido vide VAZquez, 201 5: 242, f alando sobre o perito de confia n- ça do juiz. 248 249 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMO'' coisas, como será abordado no próximo item, tanto no caso cltr conhecimento de um leigo como no caso do conhecimento pro- veniente de um expert aposlos a documentos, será necessário per quirir sobre os limites e a forma de controle desses. 3.3.2.1.1. Limites da observaçõo e da recuperação O testemunho em documentos poderá ter os seus signtls gravados de forma pretensamente permanentel6s, e essa é uma diferença substancial em relação à memória humana, cujtr funcionamenfo fisiológico é ir perdendo detalhes e qualidacìc com a passagem do tempo. Entretanto, os signos provenientcs de informação testemunhal, quando apostos a um documen- to, não fazem com que os demais problemas do testemunhtr deixem de existir. Com efeito, o testemunho dado por alguénr, seja quando dado ao vivo, seja quando registado em um docu- mento, padecerá das mesmas dificuldades relacionadas a erros honestost66 e mentirast'T . 1 65. Vide o item 2.2.3, supra, a respeito das alterações patológicas e fisiológicas, is temPo decorrido entre o *lli;?ili"l?iil"iå:i es de contaminação dessas recordações. E isso poderá acarretar erros no testemunho que não sejam sabidos nem mesmo por quem deu o testemunho. Sobre o tema, vide, in- clusive para ampla bibliografìa de estudos empíricos, PnuL¡ R¡tr¡os, 2018a: 95. 167. Em relação às mentiras, por outro lado, a grande dificuldade ex¡stente - tanto em testemunhos dados em viva voz quanto em testemunhos 250 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUMENTOS O testemunho dado a respeito de eventos, assim, regis- tados ou não, não poderão prescindir, para sua interpretação e utilização como prova, da perquirição sobre o contexto em que os fatos originais foram percebidos e do contexto em que a testemunha declarou: quais perguntas foram feitas, quanto tempo depois dos fatos, onde estava a atenção da testemunha quando da sua ocorrência etc. Além disso, seja um testemunho registado, seja um for- necido de viva voz, possui os limites naturais da observação humana: desde observar detalhes e cores em condiçöes de bai- xa luminosidade, apurar velocidade, apurar distâncias, apurar pesos etc. até coisas fora da capacidade de seus órgãos senso- riais - como ouvir sons de frequência inferior a 20 e superior a 20.000H2, luz abaixo de 400THz e superior a700THz etc. Em um testemunho exPert, da mesma forma, se um(a) médico(a) que trabalha em uma ambulância declara ter exa- minado uma vítima no local do acidente, será importante não só entender os signos apostos ao documento, mas também sa- ber os métodos usados e os limites de sua observação naquele contexto. É possível, por exemplo, em um exame rápido detec- tar o tipo de lesão referido? Quais foram os exames realizados? Quais métodos? O(a) médico(a) certamente poderá referir que uma pessoa teve um dedo amputado, mas será um limite de sua observação, por exemplo, alocalizaçâo de um microtumor registados em documentos - é a impossibilidade de sua detecção. Como demonstrei em estudo anterior, com efeito, os seres humanos não detectam melhor mentiras do que a sorte, capacidade essa que não aumenta com a experiência e nem com o uso de tecnologia potencial- mente desenvolvidas para esse fim. Sobre o tema, vide, inclusive para ampla bibliografia de estudos empíricos, P¡urn R¡vos, 2018a: 95. 251 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOSno rim somente com a observação. Ou seja, o próprio conhi- mento e sua obtenção possuem limites inerentes. Isso sem falar em quando o documento, em realidade, é fruto de wtestemunho sobre um outro testemunho. É o cascr de declarações, como aquelas muitas vezes colhidas em órgãos policiais ou em determinados juízos, em que a declaração da testemunha vai "resumida" por alguém que datilografa o teste- munho. A testemunha, então, de viva-voz afirma algo como "vi quando o homem entrou com a arma" e o(a) responsável pela datilografia escreve: 'que viu quando o homem entrou com a armd'. O mesmo ocorre quando algum técnico da polícia, por exemplo, faz a degravação de diálogos gravados obtidos por interceptações telefônicas. Nesse caso, também, haverá um testemunho de quem degrava sobre o testemunho que consta na gravação (com avantagem de que, nesse caso, ao contrário do anterior, será sempre possível ouvir a fita novamente)168. 168. No âmbito criminal, a respeito de conversas gravadas por meio de interceptação telefônica, apesar da referência legal à "possibilidade" de gravação (art.6o. I 1o. da lei9296/96), no atual estágio de desen- volvimento das tecnologias entendo que tem razão Brornó, 2020'.606, para quem "todas as interceptações devem ser gravadas, sob pena de impossibilitar o exercício do contraditório e da ampla defesa em relação ao seu conteúdo" (no mesmo sentido, Snruroao, Tnvnnes e Govrs, 2017'.616). Apesar de o art. 6o. 5 1o. da lei 9296/96 referir que, uma vez gravada, "será determinada a sua transcrição", a jurisprudência vem adotando o entendimento de ser desnecessária a transcrição integral dos diálogos. Nesse sentido, por exemplo "PROCESSUAL PE- NAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. CERCEAMENTO DE DEFESA. ¡NDEFE- RIMENTO DE DILIGÊNCIA PROBATÓRIA. OFENSA REFLEXA. INTERCEP- TAçÕ85 TELE FON rCAS J U D TCTALM ENrE AUTORTZADAS. D EG RAVAçÃO INTEGRAL. DESNECESSIDADE AGRAVO IMPROVIDO. I - Este Tribunal tem decidido no sentido de que o indeferimento de diligência proba- tória, tida por desnecessária pelo juízo a quo, não viola os princípios do contraditório e da ampla defesa. Precedentes. ll- No julgamento do HC 91.207-MC/RJ, Rel. para o acórdão Min. Cármen Lúcia, esta Corte 252 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUI\4ENTOS Por fim, vale lembrar que um expert que forneça algum documento escrito poderá, também, mentir. Um(a) dentis- ta(a) que cometeu um erro em uma cirurgia, por exemplo, Po- derá buscar registar no prontuário uma condição menos grave do que a real do(a) paciente, a fìm de proteger-se em futuro processo contra si. O(a) engenheiro(a) responsável por uma obra poderá buscar omitir do diário de obra a ocorrência de fatos que, em tese, poderiam ser prejudiciais para si - como, por exemplo, que naquele dia funcionários sem capacete den- tro da obra foram atingidos por algo que caíra de uma estru- tura em construção. Assim sendo, deve-se ter sempre em mente, tanto em ca- sos de testemunhos leigos quanto de testemunhos experts, a seguinte regra de ouro: o mero fato de um testemunho estar registado em signos, com potenciøl de permanência no tempo - sendo capaz, em tese, de diminuir problemas reløtivos à memó- ria do próprio registo -, nao faz com que o testemunho ganhe, em si, um status epistêmico superior em relação ao seu conteúdo, isto é, à sua justificação epistêmica. assentou ser desnecessária a juntada do conteúdo integral das degra- vações das escutas telefônicas, sendo bastante que se tenham degra- vados os excertos necessários ao embasamento da denúncia ofere- cida. lll - lmpossibilidade de reexame do conjunto fático probatório Súmula 279 do Sf F.lV - Agravo regimental improvìdo" (STF, 1". Turma. Agravo Regimental no Al 685878. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 05/05/2009, dj 12/06/2009). Parece-me ter razão Lrv,q, 2020: 846, ao afirmar que apesar de não haver "necessidade de transcrìção total das gravações, é dever do Estado disponibilizar a integralidade das conver- sas captadas, sendo inadmissível a sua seleção pelas autoridades da persecução de partes dos áudios interceptados". 253 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS 3.3.2.1.2. A eventual irrepetibilidade da provo Quando um(a) engenheiro(a) refere em um laudo peri- cial a existência de uma fissura em determinada estrutura de concreto, mesmo depois do laudo é possível a esse(a) profis- sional ou a quaisquer outros(as) interessados(as) retornar ao local. Imaginando-se um cenário que não se altere em curto espaço de tempo, será possível refazer o exame, controlando as conclusões do perito com novas provas. Da mesma forma, um exame de DNA que aponte um "match" entre uma amostra de sangue colhida na cena do crime e uma amostra retirada do suspeito poderá ser refeito, inclusive poï outro laboratório. Não obstante, isso não é possível em todos os casos, pois há, de fato, situações em que a prova é total ou parcialmente irrepetível. Quando um(a) médico(a) legista realiza uma necropsia em alguém que, ao que tudo indica, foi vítima de um assassi- nato, o testemunho desse(a) expert a respeito das perfurações no crânio poderá, grosso modo, ser objeto de reanálise poten- cialmente ilimitada, pois a perfuração seguirá presente nos os- sos (que, como ressabido, mesmo quando enterrados não se decompõem por milênios). Por outro lado, cortes ou manchas na pele, depois da decomposição dos tecidos, não poderão mais ser confirmadas ou refutadas. Da mesma forma, quan- do constatadas fissuras em um edifício que, posteriormente ao laudo, vem a tombar, jánao será mais possível voltar a analisar as fissuras originais. Nesses casos em que a prova é irrepetível, o fato de os re- sultados e métodos não poderem ser refutados ou reanalisados 254 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUIVIENTOS por novas provas náo faz com que esses possam simplesmente ser considerados verdadeiros e irrefutáveis. Pelo contrário: um laudo incompleto e irrepetível continuará sendo incompleto e, por isso, aportando graus de corroboração bastante baixos. Caso contrário, entre outras coisas, o estímulo para a parte que produz um laudo de engenharia em um edifício prestes a cair seria de fazer o laudo mais incompleto possível - o "melhor" laudo seria aquele em que o perito dissesse simplesmente, por exemplo, "fissuras de 5m existentes. Culpa certamente é do construtor'] sem qualquer explicação ulterior, algo que não poderia de forma alguma ser refutado por contraprovas. O mesmo ocorre com testemunhos leigos registados logo após a ocorrência de um evento. Trata-se, de acordo com os conhecimentos atuais da ciênciar6e, do momento ótimo para a colheita do testemunho (quando conduzida mediante en- trevista que se preocupe com a preservação da memória, os resultados serão os melhores possíveis). Uma vez colhida tal prova, entretanto, a testemunha passará a sofrer com os inú- meros fatores de distorção da sua memória, já, nâo sendo pos- sível garantir que eventuais declarações posteriores (ainda que se imaginando, para fins do exemplo, que sejam sinceras) provenham das memórias originais - e não de informações recebidas pós-evento e incorporadas inconscientemente pela testemunha. Tanto em testemunhos experfs quanto em testemunhos leigos irrepetíveis constantes em documentos devem-se, 169. Pnurn Rnvos, 2018a: 110, inclusive para ampla literatura científica sobre o tema 255 PROVA DOCUMENIAL ademais, registar e analisar os silêncios, isto é, os fatos so- bre quais a testemunha não se manifestou. Se, por exemplo, o(a) perito(a) engenheiro(a) contratado por uma parte ana- lisa somente o primeiro andar de um edifício, tal fato deve constar expressamente. O fato de o laudo não referir quais andares foram analisados jamais poderá fazer presumir que o(a) perito(a) tenha avaliado todos os andares; somente será possível presumir que o(a) perito(a) não descreveu de maneira adequada a forma de sua análise - o que torna o laudo pior. Assim sendo, a eventual irrepetibilidade da prova deve- râ fazer com que quem prodvz aprova tenha cuidado ainda maiorna sua produção, buscando registar de maneira minu_ ciosa todos os detalhes possíveis. No caso do conhecimento expert, o que foi analisado e o que não foi, quais foram os mé_ todos utilizados, fotografias, vídeos e outras provas que em_ basem as conclusões e raciocínios formulados etc. No caso de conhecimento leigo, buscar registar toda a entrevista, as per- guntas feitas, o contexto etc. Tudo de modo a fornecer o me- lhor testemunho possível, agindo em conformidade com suas responsabilidades epistêmicas. Afinal, e uma vez mais, uma vez produzido o documento, ficam os signos, mas a interpretação estará a cargo de quem, posteriormente, vier a analisá-lo. E quanto menos o intérprete puder obter no próprio documento a respeito do contexto, dos métodos, dos locais analisados etc., menor será o valor proba- tório que o documento em questão, em tese, terá. 256 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUMENTOS 3.3.2.1.3. A importôncio e a forma de exercício do contra- ditório Como manifestado no item 1.3.1, com efeito, o alcance do contraditório em relação ao documento juntado é, em geral, limitado ao próprio documento e o seu conteúdo, ou à pos- sibilidade de se fazer contraprova. A parte tem direito a falar sobre o conteúdo, sobre a forma, sobre consequências lógicas e jurídicas etc., ou mesmo a possibilidade de fazer provas desti- nadas a contrapor a prova apresentada. |untado o documento, no sistema brasileiro, abre-se vista para a parte contrária, nos termos do art. 436 ot437,51o. do CPC brasileiro, e essa se manifesta. Talvisão, na minha opinião, é fruto de que, nos ordenamen- tos de civil law, se imagine que o documento seja objetivo, no sentido de não necessitar supostamentede interpretação; como consequência, a formação do documento e a aposição dos seus signos não seriam importantes, mas tão somente o documento em si. Entretanto, sem que seja possível analisar as condições em que o documento se formou, contextos etc. não será possível nem de longe exercer o contraditório de maneira efetiva. Assim como nos documentos produzidos por máquinas deve-se possibilitar o acesso ao algoritmo e à própria máquina para o pleno exercício do contraditório, nos documentos pro- duzidos com testemunhos humanos é imprescindível a pos- sibilidade de que a parte contrária (e mesmo o juízo) tenham acesso aos dados, locais, amostras etc., para poderem exercer suas análises e raciocínios independentes. 257 VITOR DE PAULA RAMOS PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS Se uma parte junta a um processo um laudo privado, produzido por um(a) perito(a) engenheiro(a) alegando que o edifício em questão conteria inúmeros vícios, isso deveria automøticamente permitir, para o pleno exercício do contrøditó_ rio, que a parte que juntou o documento franqueasse acesso ao perito dø parte contrária aos locais vistoriødos, garøntindo as mesmas condições de trqbalho dødas ao(à) "seu(sua)" perito(a); tudo para que esse(a) possa repetir os testes e raciocínios feitos pelo(a) perito(a) ønterior, ou mesmo realizar outros. Assim, um perito de parte que junte em seu laudo fotogra- fias, alegando serem de uma fissura com 5m de comprimento localizada na saída de emergência da ala leste do segundo pa- vimento, o(a) perito(a) da parte contrária terá condições de ir ao local e fazer suas próprias análises; seja para constatar que, de fato, há uma fissura de 5m de comprimento, seja para demonstrar que o(a) perito(a) em questão distorceu os fatos, pois não há fissura, ou porque essa tem um comprimento não de 5, mas de2m. Da mesma forma, uma parte que fornece o laudo emitido por um(a) médico(a) que, analisando os exames e o quadro clínico, chega à conclusão de que o(a) paciente possui uma do- ença, deveria, automaticamente, ter que franquear à parte con- trária acesso aos exames feitos e todos os demais documentos que embasaram a opinião do(a) médico(a). Isso sem falar da necessidade de que o(a) médico(a) compareça em juízo para ser inquirido a respeito dos fatos testemunhados. Assim procedendo, por ambos os lados estar-se-ia estimuian_ do a melhor prática possível, melhorando a qualidade epistêmica: ou o(a) médico(a) indicará todos os exames que embasaram suas 258 3 . DO DOCUMENTO AOS DOCUMENTOS opiniões, caso em que deverá ser dado acesso a tais documentos também para a parte contrária, a fim de que essa possa criticar seu raciocínio, suas conclusões, ou mesmo apontar exarnes relevantes deixados de fora; ou o(a) médico(a) não indicará os exames que embasaram suas conclusões, caso em que seu testemunho - ao não demonstrar suas premissas, os dados de que partiu e o desen- volvimento de seus raciocínios - será um testemunho ruim. Note-se que, ao contrário do que se defende habitualmen- te, isso nada tem de relação com um documento ser ou não unilateral. Um laudo pericial produzido unilateralmente, por exemplo, que decline métodos, coloque o local em questão e os materiais utilizados à disposição da parte contrária, pode ser um excelente laudo pericial. E um laudo produzido com a pre- sença de ambas as partes, por um perito de confiança do juízo que não indique o porquê de ter tirado as conclusões A ou B, que não decline o método utilizado etc. será um laudo ruim. Isso não quer dizer que não se deva estimular que um do- cumento seja produzido, sempre que possível, com o contra- ditório na origem; afinal, a produção "bilateral'] entre outras coisas, faz com que, pela máxima do nemo potest venire contra factum proprium, seja muito mais difícil para uma das partes alegar que não conhecia um vício construtivo, por exemplo, ou que o perito nunca esteve no local da perícia. O que quer, isto sim, dizer é que o fato de ser ou não unilateral não confere, automaticamente, nem maior e nem menor valor epistêmico a um documento. Será necessário averiguar a sua forma de pro- duÇão, em que se baseou etc. Nesse sentido, uma mesma planilha de portaria, ainda que preenchida somente por funcionários do edificio, terá muito 2s9 PROVA DOCUMENTAL mais valor probatório se for comprovado, por exemplo, que, para sua confecção, cada funcionário fica em uma sala dife- rente, sem comunicação entre si ou com o ambiente externo, relatando por escrito o que viu pela câmera. E, ainda, que, uma vez inseridas as informações, essas não podem ser alteradas. Tþndo três registos concomitantes, feitos por três funcionários diferentes, apontando que "às 13:43 do dia 13 de abril uma mulher loira parou em frente ao edifício', essas informações, apesar de unilaterais, terão um nível maior de corroboração, uma corroborando a outra. De uma forma geral, portanto, enfocando exclusivamente em saber se houve ou não manifestação a respeito dos docu- mentos, e se esses foram produzidos de maneira unilateral ou não, os ordenamentos de civil law acabam considerando que basta que o documento refira "há lesão", "há vício construtivo" etc. para que tal fato seja, sem mais, muitas vezes considera- do provado; e tudo isso, ainda, imaginando-se que somente a 'ãbertura de vistd' para a parte contrária seja suficiente para preservar o direito ao contraditório. Dessa forma, acabam sendo dados estímulos a que as partes produzam documen- tos cada vez mais obscuros, incompletos e sem embasamento, pois isso, em geral, isso aumentará suas chances de triunfar em juízo. Por fim, vale salientar que quando a prova for irrepetível, quem produz o documento deverá se preocupar, sendo pos- sível, em chamar a parte contrária ou eventuais interessados para acompanharem a produção. Além disso, e principalmen- te em situações em que isso não for possível (por exemplo, porque ainda não se sabe quem será a parte contrária em fu- turo litígio, algo que será apurado justamente com a prova), é 260 3 . DO DOCUMENTOAOS DOCUMENTOS necessário que quem produz o documento preocupe-se em ter outras formas de demonstrar os Pontos de partida, os métodos e raciocínios utilizados etc. - algo que poderá semPre ser feito mediante o recurso à combinação de provas' g.g.2.2.Mønifestações de vontode- Ilmo cøtegorio sutônoma?170 Para final\zar a análise dos documentos gerados Por se- res humanos vale aprofundar uma das distinções apresentadas pela doutrina que não me parecem úteis, conforme aPresen- tado no item 3.1.1: a classificação de documentos de cunho declarativo, que se dividiria em declaraçóes testemunhais (nar- rativas que somente visariam a representar um estado de coi- sas)r7t, ou constitutivøs, qttevisariam a modificar um estado de coisas172. A manifestação de vontade pode ter inúmeros signifi- cados e pode set provada de muitas formas diferentes' com inúmeras consequências diferentes, jurídicas e näo jurídicas. Quando alguém manda uma mensagem de Whatsapp combi- nando de ir ao cinema com outra pessoa não há, em princípio' consequências jurídicas nem para o sim' nem para o não: o documento será, em princípio, juridicamente irrelevante' pois se alguém tem ou não vontade de ir ao cinema é um fato tam- bém geralmente irrelevante para o direito' Por outro lado' se 170. Agradeço a Antônio do Passo Cnener pela sugestão de abordagem deste tema. 171. Drolen r Bnrc¡, 2014:' 4. 1 72. C¡n¡rrrurl, 1 936: 695. 261 VITOR DE PAULA RAMOS PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS alguém se compromete, por uma mensagem de \A/hatsapp (ou por um áudio, ou por um vídeo etc.), a transferir o domínio de certa coisa, e a outra pessoa, em resposta, compromete-se a pagar-lhe certo preço em dinheiro, haverá, em tese, conse- quências jurídicas previamente atribuídas (no caso brasileiro pelo art.481 do Código Civil). A questão aqui será entender se o contexto objetivo da comunicação permite ou não concluir se tratar de uma ma- nifestação de vontade, um fato do mundo real a que o direito brasileiro atribui consequências jurídicas. Nesse caso, os fatos a serem provados são os comportamentos conclttdentestT3, que podem ser provados de diversas formas: por uma mensagem de Whatsapp que narre que uma pessoa pegou um produto na prateleira do supermercado, levando-o até o caixa e pagando; um vídeo que mostre essa mesma cena, um áudio etc. Todos esses, analisados no contexto e com provas combinadas, pode- rão demonstrar que o contrato foi concluído, uma vez que se considere provado o comportamento concludente. Do ponto de vista da relação da prova com o direito material, portanto, a manifestação no sentido de que 'þuero comprar seu relógio' será tão objeto de interpretação para 3 . DO DOCUMENTOAOS DOCUMENTOS reconstrução do significado e do conteúdo probatório quanto uma declaração sobre "vou te matar": será, em ambos os casos, o direito a atribuir consequências jurídicas aos fatos provados pelos sentidos reconstruídos com a interpretação de docu- mentos com símbolos. Outro é o caso em que o documento é da substância do ato. Nesse caso, já não se trata de provar simplesmente que a manifestação de vontade ocorreu, mas sim de uma determina- ção jurídica no sentido de que a manifestação deve ocorrer de determinøda forma, exigida por lei. Note-se, aí, que, do ponto de vista epistêmico, por exemplo, a prova da vontade de dois nubentes que pretendem se casar poderia, em abstrato, ser fei- ta de qualquer forma (mensagens de Whatsapp, telefonemas, gravações, testemunhas etc.), mas o direito brasileiro exige, no art. 1.514 do Código Civil, que os nubentes manifestem, perante o jtiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, sendo o casamento passível de prova, no Brasil, somente pela certidão de registro (art. 1.543). Nesse caso, será relevante para a existência, validade e efi- cácia do casamento a prova não só de um fato - isso é, da ma- nifestação de vontade - mas sim de dois: da manifestação de vontade e da forma exigida juridicamente. Não me parece, tudo somado, entretanto, que os chamados "documentos constitutivos" sejam uma categoria autônoma de documentos, como a doutrina clássica sustentava. Afinal, ou o documento é usado, como quaisquer outras provas, como elemento de prova de fatos a que o direito atribui relevância (como ocorre com qualquer outra prova), ou é o resultado de uma exigência legal a respeito de uma forma específica. Nesse 263 173. Sobre os comportamentos concludentes e as manifestações de vontade vide Roppo, 2011;37 e ss. e TnrvnncHr, 1986: 286. Roppo, 2011:40, com efeito, fala sobre como, paulatinamente, passou-se por uma objetivi- zação do contrato, saindo da esfera psíquica do sujeito para analisar "em particular o modo com que o vontade do parte é percebida pela porte contrório. Essa percepção depende essencialmente do modo em que a vontade é manifestada ao exterior, isso é 'declarada,: portanto, do teor objetivo da declaração de vontade" (grifos mantidos do original. A última expressão, "teor objetivo da declaração de vontade,,, consta no original em negrito). 262 PROVA DOCUMENTAL VITOR DE PAULA RAMOS último caso, o conteúdo probatório e epistêmico do documen_ to é o mesmo, mas o direito lhe atribui consequências legais diferentes, por vezes utilizando regras de prova legal. 264
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