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ENR5405 – Hidrologia Prof. Luiz C.P. Martini ENR/CCA/UFSC 1 Anotações de aula da disciplina Hidrologia 1. INTRODUÇÃO Costuma-se definir a hidrologia como a ciência que se preocupa em estudar, caracterizar e avaliar as águas. Ela trata dos fenômenos relativos à água em todos os seus estados, da sua distribuição e ocorrência na atmosfera, na superfície terrestre e no solo, e do seu relacionamento com as diversas atividades do homem. De modo mais formal, pode-se utilizar o conceito recomendado pelo United States Federal Council of Science e Technology, Committee for Scientific Hidrology (1962): “Hidrologia é a ciência que trata da água da terra, sua ocorrência, circulação e distribuição, suas propriedades físicas e químicas e suas reações com o ambiente, incluindo suas relações com a vida”. Esse conceito mostra a amplitude de abrangência dessa ciência. Destaque-se que hidrologia caracteriza-se por ser tipicamente interdisciplinar e dessa forma deve ser tratada, do contrário pode-se privilegiar o estudo de determinados aspectos e negligenciar outros, com riscos de se perder a interligação entre fenômenos. Mesmo assim, para Tucci (1993) a hidrologia pode ser dividida em dois grandes setores: � hidrologia científica, desenvolvida a partir de programas de observação e quantificação sistemática dos diferentes processos que ocorrem no ciclo hidrológico; trata da análise dos processos físicos que ocorrem numa bacia hidrográfica; � hidrologia aplicada, voltada para os diferentes problemas que envolvem a utilização dos recursos hídricos, inclusive da água no solo, da preservação do ambiente e ocupação da bacia. O desenvolvimento da hidrologia busca uma síntese entre as técnicas descritivas e quantitativas dos processos hidrológicos e as questões ligadas ao uso da água pelo homem, dos impactos sobre a bacia e os efeitos globais ocasionados pelas atividades antrópicas. Apesar de haver diversas segmentações, tais como a própria hidrologia agrícola, a hidrologia ambiental, drenagem urbana, hidrometeorologia etc., em qualquer uma, a rigor, o que se observa é que se parte de uma descrição-quantificação-análise de certos processos físicos e destina-se a uma aplicação em determinado problema ou setor. Dentro dessa visão, portanto, a hidrologia agrícola seria aquela aplicada ao meio rural. Contudo, esta é uma definição imperfeita, pois o “meio rural” é predominante na paisagem e, dessa forma, em virtude da escala empregada constituiria a própria hidrologia na maioria das aplicações. Numa definição mais consistente, pode-se dizer que a hidrologia agrícola preocupa-se mais com as relações solo-água-planta- atmosfera e os efeitos dessas relações ao sistema ambiental, incluindo o homem e suas atividades econômicas. A hidrologia agrícola relaciona-se com diversas outras ciências ou disciplinas, entre as quais se pode citar meteorologia e climatologia, geologia, hidráulica, estatística, ciência do solo, geografia e ciência da computação. Como ligação à vida prática, cumpre destacar algumas aplicações diretas da hidrologia agrícola: � projeto de obras hidráulicas: pontes, bueiros, açudes, diques, canais, terraços, aproveitamentos energéticos; � projetos de abastecimento de água para atendimento da população rural; � drenagem agrícola: dimensionamento das estruturas, recargas do lençol freático, escoamento em meio saturado; � irrigação: avaliação temporal e espacial das fontes de água, análise temporal das flutuações de água no solo, infiltração, evapotranspiração; � avaliação/controle de cheias: regularização dos cursos de água, estimativa de vazões máximas, áreas de inundação, zoneamento, análise de riscos; � avaliação/controle da emissão de resíduos poluentes: vazões mínimas e capacidade de assimilação dos corpos de água, produção de sedimentos, perdas de nutrientes do solo; Em qualquer disciplina curricular o tempo é o fator que limita o aprofundamento de conteúdos. Portanto, o ideal é que sejam selecionados temas que possam ser adequadamente revisados em um semestre curricular. Dessa forma, ao longo da disciplina serão abordados conteúdos que poderão atender os seguintes questionamentos: � Qual a dinâmica do processo hidrológico? � Em um estudo hidrológico, qual a porção de espaço geográfico a ser considerada? � É possível inferir sobre o comportamento hidrológico a partir das características do meio? � Há necessidade de previsões do estado futuro das águas? Quais informações são necessárias à realização de previsões? � De que maneiras podem ser quantificadas as disponibilidades hídricas em certo local? � Quais os impactos das atividades humanas às águas? Quais as formas de mitigação de danos? Deve-se atentar que para estudar os processos hidrológicos é necessário transitar por diversos campos de conhecimento, o que às vezes torna a tarefa um tanto árdua por ensejar conhecimentos de física, matemática, estatística, pedologia, fisiologia vegetal, geologia e tantas outras matérias. Mas os esforços certamente são recompensadores, pois permitem uma melhor compreensão do meio que nos cerca e das implicações de nossas atividades sobre os diferentes componentes ambientais. ENR5405 – Hidrologia Prof. Luiz C.P. Martini ENR/CCA/UFSC 2 2. CICLO HIDROLÓGICO Em termos globais, o ciclo hidrológico é um sistema fechado, com fluxos e armazenamentos de água na superfície do terreno, em rios, lagos, mares e oceanos, na atmosfera, no solo e no subsolo. Como descrição geral, observe-se pela Figura 2.1 que a água proveniente da atmosfera (chuva, neve, granizo), também denominada meteórica, precipita sobre a superfície e parte toma o caminho dos cursos d’água, lagos e oceanos, formando a denominada água superficial; a água armazenada superficialmente pode retornar para a atmosfera através da evaporação. Outra parte da água precipitada infiltra e armazena-se no solo – com retorno para a atmosfera através da evapotranspiração – ou percola para camadas mais profundas, compondo os aqüíferos. Destes, por sua vez, a água pode retornar à superfície por pontos de descarga, por meio de bombeamento ou pela transferência das camadas mais profundas para a região não saturada do solo (ascensão capilar). Figura 2.1 Ciclo hidrológico. Com o auxílio da Figura 2.2, obtida em MAIDMENT (1992), pode-se iniciar a descrição do ciclo hidrológico a partir da evaporação da água dos oceanos para a atmosfera. Em termos quantitativos, esse componente responde pela maior parte das transferências globais de água sob a forma de vapor, na ordem de 424 partes provenientes dos oceanos contra 61 partes da fração de terras emersas. O vapor de água resultante é transportado pelo movimento das massas de ar e, sob certas condições, é condensado e resulta na formação de nuvens, que por sua vez originam as precipitações. Observe-se que das 424 partes de água evaporadas nos oceanos, somente 385 a eles retornam como precipitação direta. O restante transfere-se para os continentes e permite que se forme o excedente hídrico gerador dos escoamentos em rios e no subsolo que, ao fim e ao cabo, faz retornar para os oceanos às águas que dele foram retiradas pela evaporação. Destaque-se que para acionar o processo são requeridas grandes quantidades de energia, naturalmente supridas pelo sol. Como resultado, juntamente com os fluxos de água evaporados seguem quantidades equivalentes de energia que são dissipadas ao longo do globo pelas massas de ar em circulação na atmosfera. Portanto, o ciclo hidrológico deve ser encarado como um processo que proporciona redistribuição de massa (principalmente água) e energia ao longo da Terra. Da atmosfera, a água retorna à superfície principalmente sob a forma de chuva. Quando a água precipitada atinge a superfície, parte pode sofrer interceptação pela vegetação, principalmente, ficando nela retidae de onde estará sujeita à evaporação ou consumo por espécies vegetais epífetas ou podendo re-precipitar ao solo a partir da folhagem ou do tronco das árvores. A interceptação pode abstrair considerável fração do total precipitado em locais densamente vegetados, como é o caso das florestas tropicais úmidas. Aliado a maior capacidade de infiltração de água em solos cobertos por florestas, esses locais possuem um alto poder de atenuação de chuvas intensas e promovem forte amortecimento do escoamento superficial de água, com conseqüente redução de impactos decorrentes da ação erosiva dos fluxos hídricos turbulentos. A água que supera a interceptação e chega à superfície infiltra totalmente até o momento em que a taxa de precipitação exceder a capacidade de infiltração do solo, quando então se inicia à acumulação de água nas irregularidades e microdepressões do terreno. Assim que for completado esse acúmulo de água, e persistindo a chuva, dá-se o início do escoamento superficial, que é impulsionado pela gravidade para as partes mais baixas do terreno. Deve-se atentar que o processo é progressivo e uma etapa não anula a outra, ou seja, a infiltração do solo não cessa de todo mesmo quando a chuva for muito prolongada, havendo certo momento em que a taxa de infiltração atinge um valor mínimo e torna-se praticamente constante ao longo do tempo. Em decorrência do escoamento superficial, a água concentra-se em veios líquidos, escoa pela rede de drenagem efêmera e converge para os cursos de água mais estáveis, que sucessivamente irão formando cursos de maior caudal que se destinam aos locais de acumulação, como oceanos, mares, lagos e reservatórios. Em qualquer instante durante o trajeto e no seu destino final, a água estará sujeita ao processo de evaporação, condicionado pelos fenômenos meteorológicos (radiação solar, temperatura, vento e umidade relativa do ar). Da água que infiltra, parte é armazenada no perfil do solo, ficando disponível às plantas e sendo removida através da evapotranspiração. O excedente da capacidade de armazenamento de água no solo pode ter dois caminhos principais: parte da água percola além da camada de extração de água pelas raízes, recarregando os aqüíferos mais profundos, e parte flui através do solo ocasionando um escoamento subsuperficial, o qual persiste muito tempo após o término da precipitação e do escoamento superficial, gerando o que é conhecido como fluxo de base – fonte de água que abastece os cursos de água permanentes. Na Figura 2.2, observe-se que de 100 unidades de precipitação sobre as terras emersas, 61 unidades retornam à atmosfera pela evapotranspiração e evaporação, 38 unidades formam as vazões de todos os rios que descarregam nos oceanos e ÁGUA ATMOSFÉRICA ÁGUA SUPERFICIAL ÁGUA DO SOLO ÁGUA SUBTERRÂNEA ENR5405 – Hidrologia Prof. Luiz C.P. Martini ENR/CCA/UFSC 3 apenas 1 unidade constitui a chamada descarga subterrânea. Conseqüentemente, pode-se notar a importância da evapotranspiração na transferência de água para a atmosfera e o papel exercido pela vegetação nesse processo. Com relação à distribuição das águas nos diversos compartimentos terrestres, a Tabela 2.1 apresenta uma quantificação aproximada dos diferentes reservatórios na Terra. Cabe ressaltar que as distribuições quantitativas não expressam uma ordem de importância tanto em relação ao ciclo hidrológico como para os interesses humanos. Por exemplo, a atmosfera retém uma quantidade relativamente pequena do total de água disponível, mas o vapor d’água é um fator chave na distribuição de energia e precipitação no planeta. Por outro lado, grandes quantidades de água doce estão imobilizadas em geleiras e neves eternas, praticamente indisponíveis ao homem (embora de importância fundamental na regulação térmica planetária e no nível dos oceanos). Sob o ponto de vista humano, deve-se observar que as reservas de água doce prontamente disponíveis são relativamente pequenas, o que é demonstrado pela escassez de água em muitas regiões. Destaque-se que a água subterrânea, com expressivo volume armazenado, está em grande parte localizada em grandes profundidades e é de difícil aproveitamento. A propósito, um dos grandes campos de atuação da hidrologia é justamente atenuar os problemas de escassez de água, principalmente através do dimensionamento de reservatórios e regularização de vazões. Note-se que a Tabela 2.1 atribui um percentual irrisório para as águas dos rios (0,006%), mas deve-se considerar tal percentual em um ponto de vista estático, isto é, ele se refere à água armazenada no leito dos rios em determinado momento. No entanto, a disponibilidade de água na rede hidrográfica deve ser considerada em um determinado intervalo de tempo, ou seja, para obter o potencial hídrico deve-se computar as vazões e não o volume armazenado no rio em dado instante. Digno de nota também é o percentual de água doce armazenado sob a forma de gelo polar, que compreende mais de dois terços da água doce total disponível na Terra. Essa água pode ser considerada como imobilizada, embora estudos apontem para uma progressiva redução das geleiras no Ártico e na Antártida em virtude do aquecimento global. A ser confirmado, o degelo da fração continental deverá alterar o nível dos oceanos e afetar no futuro vastas porções costeiras ao redor do mundo. Figura 2.2 Ciclo hidrológico, com volumes anuais de fluxo dados em unidades relativas à precipitação que ocorre sobre as superfícies terrestres. (Adaptado de Maidment, 1992). 424 Evaporação oceânica 38 descarga superficial 1 Escoamento subterrâneo 385 precipitação sobre o oceano 39 umidade sobre as terras evapotranspiração e evaporação 61 Evaporação das terras 100 precipitação sobre as terras Escoamento superficial armazenamento subterrâneo lençol freático Região impermeável infiltração ENR5405 – Hidrologia Prof. Luiz C.P. Martini ENR/CCA/UFSC 4 Tabela 2.1 Quantidades de água nas fases do ciclo hidrológico. Item Área (106 km 2) Volume (km 3) Percentagem do total de água Percentagem do total de água doce Oceanos 361,3 1.338.000.000 96,500 Água Subterrânea: Doce Salina 134,8 134,8 10.530.000 12.870.000 0,7600 0,9300 30,100 Água do solo 82,0 16.500 0,0012 0,050 Gelo polar 16,0 24.023.500 1,7000 68,600 Outros gelos e neve 0,3 340.600 0,0250 1,000 Lagos: Doces Salinos 1,2 0,8 91.000 85.400 0,0070 0,0060 0,260 Pântanos 2,7 11.470 0,0008 0,030 Rios 148,8 2.120 0,0002 0,006 Água biológica 510,0 1.120 0,0001 0,003 Água atmosférica 510,0 12.900 0,0010 0,040 Água total 510,0 1.385.984.610 100,0000 Água doce 148,8 2,5000 100,000 Fonte: Maidment (1992). BIBLIOGRAFIA TUCCI, CARLOS E.M. Hidrologia: ciência e aplicação. In.: Tucci, Carlos E.M. (org.). Hidrologia: ciência e aplicação. – Porto Alegre: Ed. da Universidade: ABRH:EDUSP, 1993. p.25-31. (Coleção ABRH de Recursos Hídricos; v.4) MAIDMENT, DAVID R. Hydrology. In: Maidment, David R. (ed.). Handbook of hydrology. McGraw-Hill, 1992. p.1.1–1.15.
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