Prévia do material em texto
Ao apresentar a trajetória de Macunaíma, a mitologia indígena se funde com a piada, a brincadeira e a malandragem nacional, que definirão o prota- gonista como “o herói sem nenhum caráter”. Espaço e tempo são arbitrários, porque estão diretamente relacionados às aventuras do herói, muitas vezes definidas pelo elemento fantástico, que surge de modo inesperado. Síntese das reflexões de Mário de Andrade sobre o Brasil, resultado de anos de pesquisas históricas, etnográficas, musicais, Macunaíma pode ser visto, como sugeriu o próprio autor, como uma alegoria dos destinos do país, que escolheu caminhos europeus em lugar de explorar as possibilidades de construir uma grande civilização tropical. Na obra de Mário de Andrade, também merecem destaque os contos que escreveu. Reunidos em três publicações (Primeiro andar, 1926, Belazarte, 1934, e Contos novos, publicado postumamente em 1956), eles têm a capacidade de traçar breves quadros do cotidiano, capturando importantes aspectos da realidade brasileira. No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava: — Ai! que preguiça!... [...] ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 30. ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1997. p. 9. (Fragmento). I — Macunaíma Neste trecho, o “herói sem nenhum caráter” é apresentado com as características que o definirão no romance. [...] Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabe- ça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. [...] No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele para fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo. [...] Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta”, e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente. Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca ra- lando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não. Macunaíma choramingou dia inteiro. De-noite continuou chorando. [...]. A mãe [...] pediu pra nora, companheira de Jiguê que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava Sofará. Muiraquitã proveniente da região de Santarém, Pará. Talhado geralmente em forma de sapo, tartaruga, peixe ou cobra, o muiraquitã era usado como amuleto para prevenir doenças e evitar a infertilidade. Em busca da muiraquitã Quando a narrativa co- meça, Macunaíma vive às margens do rio Uraricoera em meio à tribo onde nasceu. Com a morte da mulher (Ci, a mãe do mato, transformada em estrela), o “herói” perde a muiraquitã, amuleto má- gico que Ci havia lhe dado de presente. Sabendo que a muiraquitã está nas mãos de Venceslau Pietro Pietra, mas- cate morador de São Paulo, Macunaíma deixa a mata e, acompanhado pelos irmãos, inicia sua viagem para re- cuperar o amuleto. A maior parte da narrativa conta as tentativas de Macunaíma para reaver a muiraquitã das mãos de Venceslau Pietra, que, como se descobre de- pois, era Piaimã, o gigante comedor de gente. Quando consegue derrotar Piaimã e recuperar o amuleto, o herói volta para o Amazonas e acaba se transformando na constelação da Ursa Maior. Sarapantar: espantar. TEXTO PARA ANÁLISE Material complementar Moderna PLUS http://www.modernaplus.com.br Exercícios adicionais. 574 U n id ad e 7 • O M od er ni sm o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap25_C.indd 574 11/11/10 4:14:53 PM 1. Que características de Macunaíma, apresentadas no trecho, indicam sua “falta” de caráter? Quais são as suas características positivas?ff 2. O romance de Mário de Andrade cumpre o projeto modernista de resgatar aspectos originais da cultura brasileira. Que elementos dessa cultura são apresentados no trecho? 3. A narrativa conta com vários elementos “fantásticos”. No trecho transcrito, em que momento o fantástico aparece? 4. Leia o trecho a seguir. “No mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele para fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava.” Como aparece nesse trecho a preocupação de Mário de Andrade ff de criar uma língua que representasse a linguagem do povo bra- sileiro? 5. Macunaíma não corresponde à imagem de herói apresentada nos romances indianistas. Explique por quê. Macunaíma é o símbolo do povo brasileiro. De que maneira a cons-ff trução dessa personagem revela a intenção de caracterizar, por meio de seu herói, o povo brasileiro de forma crítica? Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. [...]. A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo. Andaram por lá muito. [...] ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 30. ed. Belo Horizonte: Villa Rica, 1997. p. 9-10. (Fragmento). Manuel Bandeira: olhar terno para o cotidiano Conhecer a vida de Manuel Bandeira é, de certa maneira, co- nhecer alguns aspectos fundamentais de sua obra. Nascido no Recife em 1886, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde permaneceu por quase toda sua vida. Em 1904, um ano após iniciar os estudos na Escola Politécnica de São Paulo, teve de abandonar o curso e dedicar-se ao tratamento de uma doença que, naquela época, ainda era vista como incurável: a tuberculose. Em 1913, foi tratar-se em um sanatório na Suíça. Lá, o médico traçou-lhe com franqueza uma perspectiva bastante incerta: “Pode viver cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer?”. A poesia passou a representar uma saída para o desconsolo em que vivia Bandeira desde a descoberta da tuberculose. É através do exercício literário que o poeta reflete sobre a vida, fala sobre suas memórias de menino, registra cenas do cotidiano e, acima de tudo, aprende a lidar com a ameaça da doença e da morte, como nos versos de “Testamento”. Jaime Ovalle (à direita) e Manuel Bandeira, 1920. Jirau: armação de madeira parecida com um estrado ou palanque. Paxiúba: tipo de palmeira. Cunhatã: menina, jovem mulher. Pajelança: ritual realizado pelo pajé indígena com o objetivo de cura ou de magia. Cevadeira: dispositivo que rala ou mói a mandioca para fazer farinha. Aninga: tipo de planta. Derrame: declive de morro. Tiriricas: tipo de erva daninha. Tajás: planta comestível nativa das regiões tropicais. Trapoerabas: planta medicinal. Serrapilheira: camada de folhas e ramos que cobre o solo de florestas e bosques. 575 C ap ít u lo 2 5 • M od er ni sm o no B ra si l. P ri m ei ra g er aç ão : o us ad ia e in ov ação R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap25_C.indd 575 11/11/10 4:14:53 PM Evocação do Recife O de amendoim que se chamava midubim e não era [torrado era cozido Me lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi há muito tempo... A vida não me chegava pelos jornais nem pelos [livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil [...] Recife Não a Veneza americana Não a Mauritsstad dos armadores das Índias [Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois — Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância [...] Rua da União onde todas as tardes passava a preta [das bananas com o xale vistoso de pano da Costa E o vendedor de roletes de cana Esses versos se referem à sombra que a tuberculose projetou em sua vida. Ironicamente, uma vida que se imaginava breve em função da doença durou até o dia 13 de outubro de 1968. Manuel Bandeira tinha então 82 anos e havia criado um novo rumo para a poesia brasileira. Entre seus principais livros, encontram-se Libertinagem (1930), Estrela da manhã (1936), Mafuá do Malungo (1948), Lira dos cinquent’anos e Belo belo (publicados em diferentes edições sob o título de Poesias completas, em 1948 e 1951, respectivamente), Estrela da tarde (1958) e Estrela da vida inteira (1966). A poesia da mais simples ternura Uma das inovações da obra de Manuel Bandeira é o uso que faz da lin- guagem na apresentação das situações cotidianas. A capacidade de ver as cenas prosaicas, as situações mais banais do dia a dia filtradas por lentes líricas, e de recriá-las poeticamente por meio de uma linguagem simples são as características mais marcantes da sua poesia. A evocação do passado• As memórias da infância vivida no Recife têm lugar especial entre os poemas de Bandeira. Cenas de rua, pessoas com quem conviveu vão revi- vendo em versos inesquecíveis. [...] Criou-me, desde eu menino, Para arquiteto meu pai. Foi-se-me um dia a saúde... Fiz-me arquiteto? Não pude! Sou poeta menor, perdoai! [...] BANDEIRA, Manuel. Lira dos cinquent’anos. In: Poesia completa e prosa. Organização de André Seffrin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. p. 161-162. (Fragmento). BANDEIRA, Manuel. Libertinagem. In: Poesia completa e prosa. Organização de André Seffrin. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2009. p. 107-108. (Fragmento). © dos poemas de Manuel Bandeira, do Condomínio dos Proprietários dos Direitos Intelectuais de Manuel Bandeira (In: Estrela da vida inteira — Editora Nova Fronteira) — Direitos cedidos por Solombra — Agência Literária (solombra@solombra.org). POST, F. Mauritsstad e Recife. 1653. Óleo sobre madeira, 48,2 3 83,6 cm. Muito da arquitetura original encontra-se preservada na parte antiga de Recife. Mauritsstad: nome em holandês de Cidade Maurícia, erguida por Maurício de Nassau no século XVII. Atualmente, faz parte da cidade do Recife. Pataca: moeda antiga de prata no valor de 320 réis. 576 U n id ad e 7 • O M od er ni sm o R ep ro du çã o pr oi bi da . A rt . 1 84 d o C ód ig o P en al e L ei 9 .6 10 d e 19 d e fe ve re iro d e 19 98 . I_plus_literatura_cap25_C.indd 576 11/11/10 4:14:55 PM