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ASTROLETIVA – CURSO DE FORMAÇÃO EM ASTROLOGIA Terra do Juremá Comunicação Ltda. Nível: Especialização – Curso: O uso da mitologia na consulta astrológica Texto: Fernando Fernandse Peter Pan: A Terra do Nunca e Woodstock Poucos personagens, no século XX, foram tão populares quanto Peter Pan. Criado por Sir James Matthew Barrie, em 1904, e retomado por Walt Disney no desenho animado de longa-metragem de 1953, Peter Pan jamais deixou de fazer parte do imaginário infantil. Neste artigo, analisam- se as muitas coincidências entre as cartas astrológicas da peça de 1904, de seu autor e do filme de Disney. Um baronete que gostava de meninos Nascido e criado em Kirriemuir, uma pequena cidade escocesa, James Matthew Barrie formou- se na universidade de Edimburgo e mudou-se depois para Nottingham, na Inglaterra, onde passou a exercer a profissão de jornalista. Aos poucos, suas obras literárias e peças teatrais começaram a cair no gosto do público, a ponto de permitir a Barrie viver exclusivamente como um escritor profissional. Quando a peça Peter Pan, o menino que não queria crescer foi levada à cena pela primeira vez, em 27 de dezembro de 1904, Barrie já era um autor conhecido e de reputação firmada. Em 1913, foi elevado à categoria de baronete, o que lhe permitiu utilizar o título de Sir. Em 1930, foi nomeado chanceler da Universidade de Edimburgo. Faleceu em 1937, aos setenta e sete anos. Barrie foi casado, mas divorciou-se e jamais teve filhos. Contudo, tornou-se tutor de quatro crianças, após o falecimento de um casal amigo. Vários biógrafos apontam em Sir James Barrie um componente de pedofilia (uma fixação erótica em crianças). Como Lewis Carrol, autor de Alice no país das maravilhas – e sobre quem pesam as mesmas suspeitas – Barrie era também fotógrafo e deixou uma grande quantidade de fotos em tom sépia de meninos ingleses entretidos com seus folguedos. No livro The little white bird, de 1902, Barrie descreve detalhadamente a atração de um solteirão de meia idade por um garotinho. Alguns trechos causaram escândalo junto aos leitores da época: Eu sabia, intuitivamente, que ele esperava que eu tirasse suas botinas. Fi-lo com toda a frieza de uma velha mão experiente, e depois coloquei-o sobre meus joelhos e tirei sua blusa. Foi uma experiência deliciosa (...) “Por que, David,” disse eu, sentando-me, “você quer vir para minha cama?” “Mamãe disse que eu não devia querer a menos que você também quisesse,” ele choramingou. “Mas é o que eu venho querendo o tempo todo,” disse eu, e sem mais delongas a pequena figura levantou-se e pulou em cima de mim. Pelo resto da noite (...) às vezes seus pés estavam junto aos pés da cama e às vezes sobre o travesseiro, mas em nenhum momento ele largou meu dedo... Fico pensando nesse menininho, que, em meio às suas brincadeiras, de repente enterrou a cabeça em meus joelhos, enquanto eu o desnudava... (...) e como tentei agarrá-lo durante o banho, e ele escorregava de meus braços feito uma truta. E como fiquei junto à porta aberta, ouvindo sua doce respiração (...) Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 2 É exatamente nesta obra cheia de insinuações libidinosas que o personagem Peter Pan é citado pela primeira vez. Mas o personagem só ganha contornos definitivos dois anos depois, quando do lançamento da peça teatral. Para compreender astrologicamente o personagem, consideraremos três mapas: • o da estreia da peça em Londres, já que é o mapa do nascimento do personagem para o mundo; • o de Sir James Matthews Barrie, seu autor, calculado para 9 de maio de 1860, às 6h30 (horário local), em Kirriemuir, Escócia; • o do lançamento do desenho animado de Walt Disney, que marca a releitura moderna do personagem, em 5 de fevereiro de 1953. Peter Pan, estreia – 27.12.1904, 14h LMT, Londres. Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 3 Para a estreia da peça, utilizamos o horário das 14h, citado textualmente no programa do espetáculo, encenado pela primeira vez em 27 de dezembro de 1904, no Duke of York Theatre, Londres. No caso da estreia do filme, os dados, obtidos na biografia de Disney são totalmente vagos, sequer informando a cidade. O que levantamos é uma carta solar, para Los Angeles (sede dos estúdios Disney). Mesmo com tais imprecisões, as cartas já fornecem informações suficientes para uma primeira análise. Wendy, o anjo do destino Uma surpresa inicial é descobrir que o lançamento de Peter Pan é marcado por um forte Saturno, dispositor final do mapa. Isto significa que, considerando o esquema de regências tradicional, Saturno é o único planeta em domicílio, e todos os outros caem, direta ou indiretamente, sob seu controle. Saturno é o senhor do tempo, o significador da maturidade e do processo de envelhecimento. Exatamente aquilo que Peter Pan rejeita. Saturno faz conjunção com Vênus, uma indicação de seriedade e contenção afetiva. Sol e Mercúrio estão no estruturado signo de Capricórnio enquanto a Lua, fator de imaginação, ocupa o crítico e recatado signo de Virgem. À primeira vista, nem sinal da exuberante vitalidade da mais famosa história infantil produzida no século XX. Contudo, ela está lá, na oposição Júpiter-Marte (aspecto de coragem, temeridade, transbordamento de ação e entusiasmo) e na conjunção Sol-Urano (a excitação e a vontade dirigida para a liberdade). O Sol também se opõe a Netuno no emocional signo de Câncer, e temos aí um aspecto realmente elucidativo: Netuno é escape, fantasia, recusa da realidade e de seus cinzentos compromissos. Netuno é o voo de imaginação. E ei-lo em Câncer, signo da nutrição, da infância, dos valores noturnos e lunares. Peter Pan foge de casa no primeiro dia de vida, ao ouvir o pai e a mãe discutindo sobre o que ele seria quando crescesse. Assusta-se com a ideia de escravizar-se aos compromissos e à estreiteza de perspectivas da vida adulta, razão que o leva a viver numa realidade paralela, um ilha protegida pelo oceano (elemento Água, Lua e Netuno) e permanentemente imersa na bruma (as névoas – Netuno, outra vez), à qual só é possível chegar usando o pó das fadas (fairy dust, traduzido em português como pó de pirlimpimpim). Pó... uma droga? Estaríamos diante do voo como estado de alteração de consciência? Eis que surge outra vez um sentido netuniano. E se lembrarmos que o nome da ilha de fantasia em que vive Peter Pan chama-se Terra do Nunca (Neverland) – um lugar fora da realidade cronológica, portanto – fica clara também a compreensão deste personagem como um símbolo da negação dos conteúdos de Saturno, que são o dever, a responsabilidade e a assunção de papéis no mundo adulto. Aí começamos a compreender por que Saturno é o planeta mais destacado do mapa da estreia da peça: na verdade, Peter Pan não é uma história para crianças, mas uma sofisticada e deliciosa história sobre o mundo infantil contada a partir de uma perspectiva adulta. Pouco tempo depois da estreia da peça, Sir Barrie colocou-a em livro, em forma de romance. O texto é pleno de referências sobre os mecanismos da imaginação e da fantasia – e de como são progressivamente embotados frente às exigências da realidade objetiva. Não sei se você já viu alguma vez o mapa da mente de alguém. Os médicos às vezes desenham mapas de outras partes de você (...) mas observe-os Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 4 tentando desenhar o mapa da mente de uma criança, que não apenas é confusa, mas onde nada permanece no lugar. Há ziguezagues (...) e provavelmente estradas numa ilha, porque a Terra do Nunca sempre é uma espécie de ilha, com surpreendentes variações de cores aqui e ali, e recifes de coral (...), e gnomos que geralmente são alfaiates, e cavernas por onde correm rios, e príncipescom seis irmãos mais velhos (...) e uma velhinha muito pequena com um grande nariz adunco. E completa o autor, com um toque de desencanto: Seria um mapa simples se isso fosse tudo, mas há o primeiro dia de aula, a religião, os pais, (...) assassinos, enforcamentos, verbos de conjugação complicada (...) O que Barrie descreve é a progressiva perda da inocência, a destruição do Jardim do Éden da imaginação infantil, que se inicia no primeiro dia de aula e atinge o clímax na descoberta das verdades da vida: o crime, a religião (a moral e o pecado), o rigor da sociedade na punição dos comportamentos desviantes. A Terra do Nunca surge, assim, como um paraíso perdido, um paraíso que nunca existiu no mundo real, mas apenas na geografia interior de cada mente: É claro que as Terras do Nunca variam um bocado. A de John, por exemplo, tinha uma lagoa sobre a qual voavam flamingos que John podia caçar, enquanto a de Michael, que era menorzinho, tinha um flamingo com lagoas voando em cima dele. As referências cultas estão presentes o tempo todo. O nome completo da menina Wendy, por exemplo, é Wendy Moira Angela Darling. As Moiras, na mitologia grega, eram três fiandeiras que personificavam o destino de cada indivíduo: uma fiava, outra enrolava e a terceira cortava o fio, marcando o momento da morte. Darling é querida, e Angela é anjo. Portanto, o sobrenome da menina é um jogo de palavras que poderia ser livremente traduzido por algo como “querido anjo do destino”, como a dizer que Wendy é um símbolo de todas as crianças que, depois de experimentar a fantasia e a irresponsabilidade da fase lunar, são inexoravelmente expulsas do paraíso e condenadas a amadurecer (Saturno). Neste sentido, a história de Peter Pan é a versão britânica e vitoriana do mito de Adão e Eva. Sir Barrie e o fardo saturnino Uma olhada no mapa de Barrie confirma estas suposições. Seu Ascendente é Câncer, signo da vinculação ao passado e do alimento emocional, da imaginação fecunda e da identificação com os conteúdos da infância. Um Ascendente em ressonância, aliás, com o mapa de Walt Disney, que transportaria Peter Pan para o cinema cinquenta anos depois.1 A Lua, regente de Câncer, está na casa 7, exilada em Capricórnio, formando oposição com Vênus na 12, bem junto ao eixo Ascendente-Descendente. Barrie tem o Sol em Touro, a apenas três graus da cúspide da casa 12, e em quadratura quase exata com Saturno na 3. Portanto, o autor de Peter Pan apresenta tanto o Sol como a Lua sob o efeito restritivo de Saturno, o que reitera o tom capricorniano do mapa da estreia da peça. Uma possibilidade bastante forte é de que Barrie tenha sido obrigado a assumir precocemente o papel de um pequeno adulto, suprimindo, assim, muito da espontaneidade e leveza do comportamento infantil. Quando Barrie contava seis anos de idade, seu irmão mais velho, que era o favorito da mãe, faleceu repentinamente. O jovem Barrie sentiu-se na obrigação de 1 Disney tinha o Ascendente no final de Virgem e a Lua, regente de Câncer, no início de Libra, na casa 1. Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 5 proteger e consolar a mãe (um típico papel canceriano), atribuindo a este fato, mais tarde, o início de sua vocação literária. Veja-se que a casa 3, que tanto significa os irmãos quanto a escrita, tem como ocupante Saturno em exílio em quadratura com o Sol, regente da 3 e da 4 (bases familiares) na 12. Tal aspecto pode indicar perdas, restrições, supressão, identificação com um papel responsável e amadurecimento antes do tempo. A Lua exilada e oposta a Vênus pode apontar também para carência de nutrição afetiva e dificuldades no relacionamento com a mãe e outras mulheres. James Matthews Barrie – 9.5.1860, 6h30 LMT - Kirriemuir, Escócia. A secretária de Barrie, Lady Cynthia Asquith, escreveu sobre ele uma biografia que o descreve como um homem cordial, bem relacionado (um de seus melhores amigos foi Conan Doyle, criador de Sherlock Holmes), uma brilhante celebridade com traços maníaco-depressivos. Sua extensa obra de romancista e dramaturgo revela humor sofisticado e uma forte veia satírica. Quem viu o filme Em algum lugar do passado deve lembrar-se que o personagem vivido por Christopher Reeve viaja no tempo para encontrar uma atriz do início do século XX, por quem Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 6 se apaixona. E quem é o autor da peça em que ela trabalha? Exatamente Sir James Matthew Barrie. Sol-Saturno vinculados à casa 3, da produção literária, mostram Barrie como um autor cuidadoso, preciso, bem informado, que realmente leva a sério seu ofício. É alguém que se sente na obrigação de provar que é competente naquilo que faz. Peter Pan não é uma obra espontânea e descuidada, mas sim uma construção intelectual em que o brilho solar é obtido através do duro trabalho de lapidação de Saturno. Este planeta também faz trígono a Mercúrio em Áries, mostrando um escritor que não desperdiça palavras, utilizando-as com comedida intencionalidade. A maior parte da obra de Barrie tem como cenário sua própria cidade natal, numa permanente e nostálgica revisitação dos anos de infância. A propalada pedofilia do autor parece-nos um tanto forçada, se bem que a hipótese não seja de todo descartável. O que ocorre é uma erotização do mundo infantil, talvez porque Barrie identificasse na criança uma possibilidade do livre fluir de sentimentos e desejos cuja expressão adulta estaria refreada pela culpa e pela repressão. Enfim: o autor de Peter Pan seria um reprimido que transferia para os personagens as vivências que a si mesmo proibia. O toque adolescente do mapa de Barrie é Júpiter na casa 1, em Câncer, oposto a Marte e em sextil com o Sol. Temos aí o gosto pela aventura, a jovialidade, o entusiasmo pela ação, num aspecto, aliás, reiterado no mapa da estreia de Peter Pan, onde a oposição Júpiter-Marte aparece no eixo Áries-Libra, em quadratura com a oposição do mapa de Barrie. Eis aí a descarga de adrenalina que permeia toda a história do menino turbulento e suas peripécias com piratas, índios e sereias. Outra ativação a considerar é a da conjunção Sol-Urano da estreia de Peter Pan sobre o eixo Ascendente-Descendente e a oposição Vênus-Lua do autor. Reúnem-se aí os significados de imaginação, prazer, pregação libertária e aguda consciência dos limites sociais. De 1904 em diante, Peter Pan não parou de fazer sucesso em livro e em diversas remontagens teatrais, incluindo um grande musical na Broadway. Os direitos autorais da peça mantêm até hoje um hospital para crianças doentes, em Londres. Mas nada contribuiu tanto para a permanência do personagem quanto o desenho animado dos estúdios Disney, em 1953. O pirata perseguido pelo tempo O desenho animado de Disney em parte reitera e em parte reinterpreta as diretrizes básicas da obra de Barrie. A história perde muito de seu caráter de confronto entre as cosmovisões adulta e infantil para tornar-se fundamentalmente uma aventura de ação. Um sintoma disso é a inexistência de qualquer planeta em Capricórnio e a presença de Saturno em conjunção com Netuno em Libra, como a indicar a tentativa de conciliar as tensões presentes nas cartas anteriores. Os elementos de fantasia continuam em destaque e fluem agora sem qualquer obstáculo (Netuno em trígono com Mercúrio e Sol). Ao contrário da peça, que foi escrita de um ponto de vista adulto, o filme é decididamente infanto-juvenil. Peter Pan está bem representado pela conjunção Sol-Mercúrio em Aquário, signo do libertário Urano, com quem o Sol faz um fechado quincúncio. A quadratura do Sol com Júpiter em Touro fala de entusiasmo e diversão: é um desenho animado alegre, extrovertido e cheio de movimento. Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – FernandoFernandse – 7 Se Peter Pan é Sol em Aquário, o único planeta que lhe faz oposição – Plutão em Leão – está aqui para representar seu maior rival, o Capitão Gancho. Tentemos entender melhor este personagem. O Capitão Gancho tem tripla conotação lunar: em primeiro lugar, por tratar-se de um lobo do mar, domínio tradicional da Lua e de Netuno; e ainda pela dupla repetição da forma do quarto crescente magro (ou do quarto minguante) em sua aparência física, seja no formato do rosto, seja no gancho que ostenta em um dos braços. O Capitão Gancho foi o primeiro personagem retratado pelos estúdios Disney como um portador de deficiências físicas. Na verdade, é um mutilado, tanto pela perda da mão, substituída por um gancho de metal, como pelo olho vazado e permanentemente coberto por um pano preto. A Lua em queda no sombrio signo de Escorpião está de acordo com algumas características deste pirata que, apesar de mutilado, é ardiloso e perspicaz o suficiente para criar toda sorte de problemas ao menino que não queria crescer. Mas o Capitão Gancho não se conforma facilmente aos padrões do elemento Água. À sua moda, é um amante da liberdade. É também um predador, como são todos os piratas. Violento, traz uma arma – o gancho metálico – agregada ao nome e ao próprio corpo. Lidera com despotismo sua pequena comunidade de piratas e é um dos personagens mais vaidosos da galeria Disney. Apesar das mutilações, não se pode dizer que faça má figura, com os longos cabelos negros sempre bem penteados, o bigode aparado e a roupa de capitão caindo-lhe impecavelmente pelo corpo atlético. A despeito da opção pela pirataria, não deixa de ter um quê de aristocrata e de galanteador. É um exibicionista, que faz excelente imagem de si próprio e apruma-se no tombadilho do veleiro como se estivesse no palco, sob a luz dos refletores. Por tudo isso, Capitão Gancho é um leonino. Não lhe falta sequer a cabeleira em forma de juba, o andar altivo e fanfarrão e o perfil de felino, com as abas da casaca a sugerir a cauda do animal. Mas é um leonino que brilha como um sol a se pôr no horizonte líquido do oceano, a indicar a combinação entre Leão e os signos do elemento Água. Capitão Gancho é uma versão para crianças do gângster despótico e ciumento de seu poder (Plutão em Leão). Mantém com Peter Pan uma surda disputa pelo controle da Terra do Nunca (oposição Sol-Plutão), onde os fins justificam os meios: Gancho ameaça, sequestra e manipula, reunindo simultaneamente traços do leão predador e do escorpião traiçoeiro. No fundo, porém, Peter Pan e Capitão Gancho são facetas diferentes do mesmo processo, já que, em ambos, a problemática do tempo assume dimensão dominante. No menino Peter, temos a ilusão feliz da possibilidade de deter o tempo; em Gancho, o que vemos é o efeito devastador da passagem dos anos criando um personagem patético, o adulto que brinca de pirata e cuja bela cabeleira negra não passa de uma peruca a esconder a calvície. O grande terror de Gancho é o crocodilo que deseja devorá-lo e cuja aproximação é marcada pelo tique-taque do relógio que o réptil engolira algum tempo antes. Relógios?... Outra vez Saturno, o marcador inexorável do fluxo cronológico. A imagem é clara: o crocodilo está ali para lembrar a Gancho sua condição de adulto, para estragar a brincadeira pueril e chamá-lo à realidade. Literalmente, ele devora a fantasia, e Gancho, que já perdeu um braço (comido pelo crocodilo), um olho e os cabelos, apresenta no corpo as evidências do colapso físico. A presença na Terra do Nunca de um pirata decrépito e de um crocodilo-despertador deixa evidente a fragilidade do sonho lunar-netuniano. Recusar um papel no mundo adulto é possível, mas não para sempre, já que o chamado do crescimento é inexorável e irrecusável. O destino de todos é amadurecer, razão pela qual a menina Wendy, que também é Moira, acaba voltando para casa, como já acontecera com sua mãe e, muitos anos depois, aconteceria também com sua filha. Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 8 A “família” de Peter Pan é a comunidade dos meninos abandonados que ele leva para a Terra do Nunca e de cuja segurança se encarrega, assumindo o título de “capitão”. Essa ideia de comunidade ideal faz pensar em Aquário e na casa 11. Peter Pan é um rebelde, um inconformado, um insatisfeito com as condições sociais que vê em volta de si. Antecipa em algumas décadas o comportamento do movimento hippie, a celebração dos valores da juventude em contraposição à violência e à esterilidade do mundo adulto. Não é difícil imaginar Peter Pan puxando o coro de uma canção de protesto em Woodstock e convidando os jovens a rasgar seus documentos de alistamento militar, enquanto a plateia vai ao delírio envolta numa nuvem de pó de pirlimpimpim. A retórica de Peter Pan tem algo a ver com as letras das canções de Bob Dylan. Estreia do desenho Peter Pan – 5.2.1953, carta solar calculada para Los Angeles. No desenho de Disney, os recursos com que Peter enfrenta os riscos – especialmente a eterna perseguição movida pelo Capitão Gancho – são todos oriundos dos signos de Ar: é a palavra Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 9 (Peter é fértil em ideias e bom de papo), é a incrível agilidade, a leveza, a facilidade de movimentos, a capacidade estratégica. O corpo magro, esguio, faz pensar em Gêmeos. A inventividade e a intransigência com que se apega aos valores de seu projeto pessoal apontam para Aquário. Poderíamos pensar em Libra, mas Peter Pan não é dado a compromissos: sente- se melhor lidando com o coletivo do que enfrentando o desafio da relação num nível mais pessoal. É um articulador de grupos e um perturbador da ordem, se bem que este comportamento não implique qualquer intenção destrutiva. Contudo, Peter Pan não compreende com clareza as consequências dos desenraizamentos afetivos que estimula. Para ele, soa um tanto estranha a saudade que a menina Wendy tem de casa, assim como a preocupação dela com os pais. Peter Pan funciona num nível mental, longe da sutileza dos afetos. No desenho dos estúdios Disney, o conflito Peter Pan versus Capitão Gancho expressa bem a tensão entre o ego leonino em sua forma menos desenvolvida – inflado, autocrático e despótico – e o impulso libertário-coletivista de Aquário. Contudo, na obra original de Barrie tanto Peter Pan quanto Capitão Gancho são manifestações do mesmo comportamento, o da recusa intransigente da passagem do tempo. Ambos simbolizam a tentativa lunar e netuniana de fugir para um mundo idealizado e driblar Saturno. Para Peter Pan, o Puer Aeternus em estado puro, acreditar na fantasia ainda é possível. Já para Gancho não há saída: ele é apenas o Puer Aeternus envelhecido, que vive a fantasia como desespero e fuga A geração-saúde e os roqueiros jurássicos Artistas e escritores são considerados as antenas da sociedade. São eles que captam primeiro algumas questões cruciais, transformando-as em matéria-prima para a imaginação criadora. As modernas obras de ficção, sejam histórias em quadrinhos, filmes ou novelas de TV, cumprem a mesma função dos antigos mitos, expressando, em forma simbólica, alguns conteúdos que permeiam o imaginário de toda a comunidade. Mesmo em personagens criados sob medida para o sucesso de bilheteria, às vezes a dimensão “mítica” impõe-se acima das contingências do marketing, e a criação ganha uma perenidade jamais sonhada por seus autores. É o caso de Super-Homem, de Pinóquio, de Sherlock Holmes e também de Peter Pan. Por que o menino que não queria crescer e sua Terra do Nunca transformaram-se em ícones instantâneos para todas as gerações de crianças do século XX? Porque expressam um drama comum a todas as sociedades modernas: o peso cada vez maior colocado nos ombros de crianças e adolescentes,submetidos desde muito cedo a um processo de socialização que objetiva transformá-los não em seres humanos integrais, mas em elos da cadeia produtiva, onde deverão participar simultaneamente como profissionais qualificados (daí as exigências cada vez maiores do sistema educacional) e como consumidores cujo impulso aquisitivo irá alimentar mais aumentos de produção. Neste sentido, é sintomático que Peter Pan tenha sido lançado exatamente em Londres, a capital do mundo industrial e civilizado do início do século. Na esteira desses processos de inserção social, recai sobre a criança a enorme responsabilidade de transformar-se num adulto bem sucedido. Preparada para “vencer na vida”, ela é treinada desde cedo para competir por boas notas com colegas de escola, para fazer boa figura junto aos amigos da família e para bater recordes em competições esportivas (pensemos, por exemplo, na rotina massacrante das meninas que se dedicam à ginástica olímpica). Algumas se rebelam. Peter Pan expressa uma das formas que pode assumir esta rebeldia, que é o escape para um mundo paralelo onde a realidade cronológica é recusada. Astroletiva – O uso da mitologia na consulta astrológica – Peter Pan – Fernando Fernandse – 10 No mapas de Barrie e da estreia de Peter Pan em 1904, o tema dominante é a sujeição do indivíduo às duras exigências da vida em sociedade. Crescer significa internalizar valores restritivos e sufocar o desejo. É uma construção ficcional que reflete criticamente a Inglaterra moralista e repressiva das décadas em que a rainha Vitória esteve no poder. Astrologicamente, corresponde ao conflito simbolizado por Saturno e Capricórnio em contraponto aos significados de Netuno, Lua e Câncer. Na obra de Disney, tal sentido se perde em parte, fazendo com que o significado universal de Peter Pan como representação da inteireza primordial de todo ser humano ceda lugar a mais uma aventura de ação onde o Bem (Peter Pan, o Sol) enfrenta e vence o Mal (Capitão Gancho, Plutão, o “mafioso”). É um desenho animado para crianças americanas, que valoriza os predicados do elemento Ar, em concordância com as cararacterísticas dessa sociedade obcecada com a racionalidade e a tecnologia. O que há de comum em todas as cartas é a ênfase jupiteriana: em Barrie e no mapa de 1904, Júpiter opõe-se a Marte; na carta de 1953, Júpiter faz quadratura com o Sol e Marte está em Peixes, signo jupiteriano. O outro destaque é para Urano, conjunto ao Sol no mapa da peça e dispositor do Sol na estreia do filme. Júpiter e Urano são planetas expansivos e mais voltados para as novas experiências do que para o passado. O desenho de Disney antecipa em poucos anos a explosão da cultura adolescente nos Estados Unidos, primeiro com o rock visceral do final dos anos cinquenta, depois com os movimentos hippie e pacifista, as canções de protesto e os grandes festivais dos anos sessenta, como Woodstock. A fixação no “forever young” atravessou os últimos quarenta anos e é visível ainda hoje no delírio dos concertos de rock em que respeitáveis executivos saracoteiam ao som de bandas “jurássicas” como os Roling Stones. Neste sentido, Mick Jagger e outros monstros sagrados são versões atualizadas do Capitão Gancho, o adulto que jamais desistiu de brincar de pirata.