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TRAVESSIAS, ENCONTROS, DIÁLOGOS NOS ESTUDOS GERMANÍSTICOS NO BRASIL Mônica Maria Guimarães Savedra Ebal Sant’Anna Bolacio Filho Mergenfel A. Vaz Ferreira (orgs.) © 2021 Mônica Maria Guimarães Savedra, Ebal Sant’Anna Bolacio Filho e Mergenfel Andromergena Vaz Ferreira (orgs.) É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora. A publicação do livro contou com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Equipe de realização Editor responsável: Renato Franco Coordenador de produção: Ricardo Borges Revisão: Sonia de Onofre Normalização: Camilla Almeida Projeto gráfico, capa e diagramação: Thomás Cavalcanti Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - faleconosco.eduff@id.uff.br Publicado no Brasil, 2021. Foi feito o depósito legal. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação – CIP T781 Travessias, encontros, diálogos nos estudos germanísticos no Brasil [recurso eletrônico] / Mônica Maria Guimarães Savedra, Ebal Sant’Anna Bolacio Filho e Mergenfel Andromergena Vaz Ferreira (organizadores). – Niterói : Eduff, 2021. – 5.150 Kb. ; ePUB. Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5831-088-4 BISAC FOR009000 FOREIGN LANGUAGE STUDY / German 1. Língua alemã. 2. Ensino. 3. Tradução. 4. Estudos germanísticos. I. Savedra, Mônica Maria Guimarães. II. Bolacio Filho, Ebal Sant’Anna. III. Ferreira, Mergenfel Andromergena Vaz. IV. Título. CDD 430.8 Ficha catalográfica elaborada por Márcia Cristina dos Santos (CRB7-4700) 18 O ENSINO DE VARIEDADES GERMÂNICAS EM CONTEXTOS DE CONTATO LINGUÍSTICO: CONCEITOS, PRINCÍPIOS E DIRETRIZES MÔNICA MARIA GUIMARÃES SAVEDRA (UFF/CNPQ) KAREN PUPP SP INASSÉ (UFRGS) RESUMO Este capítulo busca discutir questões pertinentes ao ensi- no de variedades germânicas (standards ou substandards) em con- textos de imigração. Trazemos, como recorte, o Hunsrückisch e o Pomerano e, a partir de seus exemplos, revisitamos alguns conceitos teóricos de base, que são relevantes para o contexto de línguas de imigração em situação minoritária, a fim de apontar princípios e diretrizes para o âmbito escolar. Palavras-chave: Língua de Imigração; Cultura de Herança; Língua-ponte. ZUSAMMENFASSUNG In diesem Kapitel sollen für den Unterricht germani- scher (Standard- oder Substandard-) Varietäten in Einwande- rungskontexten relevante Aspekte erörtert werden. Basierend auf unseren Erfahrungen mit dem Hunsrückischen und dem Pommeranischen wird hier auf einige grundlegende theoreti- sche Konzepte eingegangen, die für den Kontext der Minder- heiten-Migrationssprachen relevant sind, um Prinzipien und Richtlinien für die schulische Praxis aufzuzeigen. 19 Schlüsselwörter: Migrationssprache; Heritage Culture; Brückensprache. INTRODUÇÃO Como um país de fato pluri/multilíngue (MORELLO, 2015), temos, no Brasil, inúmeras línguas que são faladas pa- ralelamente ao Português, seja em famílias, tribos, comuni- dade ou até mesmo em situações oficiais. Entretanto, a partir da visão monolinguista que temos arraigada no país (MARIA- NI, 2004), que sempre pregou o Brasil como um país onde só se fala o Português, essas línguas acabam sendo invisibilizadas na esfera nacional, e seus falantes não conseguem exercer ple- namente seus direitos linguísticos (OLIVEIRA, 2004). Trata-se das assim denominadas línguas minoritárias, que recebem essa denominação não por levar-se em conta o número de falantes que cada uma tem, que pode ser bastante representativo, mas por elas não usufruírem do mesmo prestígio e do mesmo espa- ço que o Português, a língua majoritária. Ou seja, não se trata absolutamente de línguas “menores”, faladas por uma minoria, pois tal ranqueamento nem mesmo existe;1 trata-se de línguas que são minorizadas por questões sociais e políticas. O conceito de línguas minoritárias e/ou minorizadas vem sendo discutido em estudos recentes. Savedra e Mazzelli (2020), por exemplo, optam pelo uso dos termos “língua minorizada” ou “língua em situação minoritária” para abordar as variedades identificadas nos contextos de imigração. As autoras justificam sua escolha, baseadas em Bagno (2017), o qual usa “língua mi- noritária” para referir-se a uma língua que é falada em um ter- ritório dentro de um Estado, por indivíduos que constituem um grupo numericamente inferior ao restante da população des- se Estado; e “língua minorizada” para caracterizar aquela que, apesar de ser uma língua própria de um determinado território 1 Sobre a não presença de uma pergunta sobre as línguas faladas em casa no Censo de 2010, cf. Oliveira e Altenhofen (2011). 20 (uma província, um estado, região autônoma etc.), “sofre uma restrição de seus âmbitos e funções de uso nesse mesmo terri- tório” (BAGNO, 2017, p. 239). Dentro de uma perspectiva seme- lhante, Lagares (2018) também justifica a preferência pelo uso do termo língua minorizada, e ainda sugere a terminologia “lín- gua em situação minoritária” para aludir “aos idiomas que não dispõem dos equipamentos a serviço das línguas hegemônicas; ou bem às situações em que uma língua se encontra à margem das estruturas de poder” (LAGARES, 2018, p. 121). Neste capí- tulo, daremos preferência por empregar esse conceito para as línguas abordadas. No Brasil, temos diferentes categorias de línguas em si- tuação minoritária: as línguas indígenas, que, segundo o Censo 2010 do IBGE, contabilizam 274 variedades de 305 diferentes et- nias;2 as línguas de imigração, que, segundo Altenhofen (2013, p. 106), somam 56 variedades; as línguas dos surdos, sendo a Libras a mais conhecida dentre elas; as línguas faladas em contextos de fronteira; e as línguas faladas em comunidades quilombolas – e, para alguns autores, somar-se-iam a elas ainda as varieda- des desprestigiadas do próprio Português (VIANNA, 2015, p. 9). Todas as variedades em questão são influenciadas pelo contato linguístico com o Português ou mesmo entre si, o que leva a em- préstimos, mas também, em alguns casos, à sua substituição. Neste estudo, iremos nos ater à problemática das lín- guas de imigração, usando, como recorte, exemplos relaciona- dos a línguas de imigração de base germânica, em especial ao Hunsrückisch e ao Pomerano, línguas com as quais as autoras já trabalham há mais tempo. Acreditamos, contudo, que nos- sa contribuição possa ser interessante também para o contex- to de outras línguas em situação minoritária, já que discutire- mos qual papel essas variedades podem ter em sala de aula, em ambiente escolar. Em situações de contato linguístico envolvendo línguas de imigração, temos vivenciado atualmente, em nosso país, al- gumas ações de políticas linguísticas e educacionais que pro- 2 Disponível em: https://cod.ibge.gov.br/3K96V. Acesso em: 29 ago. 2020. 21 movem o ensino dessas línguas, em especial nas séries iniciais, em um movimento de prestígio da etnicidade linguística e cul- tural de tais comunidades. Tais ações vêm se delineando como relevantes para o desenvolvimento do plurilinguismo individual e social, e abordam o ensino das línguas de imigração no âm- bito da Didática do Multilinguismo (PUPP SPINASSÉ; KÄFER, 2017). Essa abordagem prevê, dentre outros elementos de rele- vância para o tema, atividades que integrem as línguas presen- tes ao repertório do aluno, com vistas não só ao aprendizado de línguas, mas também à sensibilização para a diversidade lin- guística da região onde é implementada, abordando, a partir de um locus geográfico mais amplo, a perspectiva dos estudos sobre “língua e espaço”. Nesse sentido, discutiremos, aqui, diretrizes sob a pers- pectiva de políticas linguísticas e educacionais já implemen- tadas ou em fase de implementação, que envolvem o fomento de línguas em situação minoritária em ambiente escolar, bem como princípios didático-pedagógicos que foram observadosa partir da realização de atividades práticas em escolas de comu- nidades de imigração de variedades germânicas no Brasil. BALIZANDO CONCEITOS Plurilinguismo/Multilinguismo O uso dos termos plurilinguismo/multilinguismo não encontra uma aceitação unânime na literatura sobre os estu- dos de sociolinguística de contato. Com base na Carta europeia do plurilinguismo, disponível no site do Observatório Europeu do Plurilinguismo em 19 línguas diferentes,3 “plurilinguismo” é de- finido como “a utilização de várias línguas por um indivíduo”. Portanto, a acepção de plurilinguismo se distingue do conceito de multilinguismo, que, segundo o mesmo documento, “signifi- ca a coexistência de várias línguas num grupo social”. 3 A versão em Português está disponível em: https://www.observatoireplurilinguisme.eu/ images/Charte/Charteplurilinguisme_ptV2.13.pdf. Acesso em: 19 ago. 2020. 22 A Carta europeia é um documento que se alinha com o Qua- dro europeu comum de referência para as línguas (QECR), influente documento publicado pela União Europeia em 2001, que esta- belece diretrizes para a descrição dos níveis de competência linguística para o aprendizado e ensino de línguas. No quadro, multilinguismo é definido como a “coexistência de diferentes línguas em uma dada sociedade”, enquanto plurilinguismo, por sua vez, seria “o conhecimento de um certo número de línguas” pelo indivíduo (CONSELHO DA EUROPA, 2001, p. 23). Sob a perspectiva do contato, entendemos, assim, que as situações compostas majoritariamente por indivíduos que são capazes de exprimir-se ou de interagir, em diferentes ní- veis de competência, em mais de uma língua podem ser con- sideradas uma situação de contato multilíngue e plurilíngue. Entretanto, situações de contato multilíngue podem ser com- postas também por indivíduos monolíngues que ignoram a(s) língua(s) dos outros. Ao tratar das práticas linguísticas de imigrantes brasilei- ros no Suriname, antiga colônia holandesa de grande riqueza cultural e linguística, Savedra e Perez (2017) ressaltam que pu- blicações em línguas germânicas, como o Alemão e o Holandês, por exemplo, não costumam adotar tal distinção, referindo-se a ambas as situações pelos termos únicos Mehrsprachigkeit e meer- taligheid, respectivamente. Os autores, então, optam por utilizar os conceitos de plurilinguismo social, para definir situações onde se falam muitas línguas, e plurilinguismo individual, para definir situações nas quais indivíduos falam mais de uma língua. Neste estudo, portanto, concordamos com a distinção conceitual entre ambas as esferas, utilizando, sem diferencia- ção, “plurilinguismo individual” e/ou apenas “plurilinguismo” para a esfera individual, assim como usaremos “plurilinguismo social” e/ou “multilinguismo” para a coexistência e o contato de duas ou mais línguas. 23 Língua Alóctone/Língua Neoautóctone “Língua alóctone” é um termo comumente utilizado para denominar aquelas variedades decorrentes de processos migra- tórios e, portanto, cujo local de origem difere daquele(s) onde são faladas atualmente pelos descendentes dos indivíduos exó- genes ao local – em contraposição ao termo “língua autóctone”, que são aquelas variedades faladas por descendentes de povos originários daquele local ou país (no caso do Brasil, costuma-se empregar o temo para as línguas indígenas) (OLIVEIRA, 2002, p. 83-84; ALTENHOFEN, 2006, p. 173). Entretanto, Savedra e Mazzelli (2017) propõem classifi- car o Pomerano falado no Espírito Santo como uma varieda- de “neoautóctone” brasileira. As autoras consideram, para tal, a vitalidade da língua e o seu uso contínuo nas regiões de fala durante o longo período desde a imigração até a atualidade. A discussão se desenvolve sob as perspectivas histórica e linguís- tica, relacionando, a partir dos estudos de Tacke (2015) e Zenker (2011), conceitos referentes à língua de imigração, à territoriali- dade e à autoctonia (apud SAVEDRA; MAZZELLI, 2017). A partir da ambientação sócio-histórica do Brasil à época da imigração (segunda metade do século XIX), as autoras discu- tem a vitalidade, o uso atual e a condição de língua cooficial do Pomerano em oito municípios no país, propondo, então, o reco- nhecimento da variedade como sendo uma língua neoautóctone brasileira, ou seja, com o estatuto de uma língua brasileira. Assim como o Pomerano, também outras línguas de imi- gração, como o Hunsrückisch, afastaram-se da sua língua-teto, desenvolvendo-se muito independentemente de sua variedade de origem, em território brasileiro, sob condições apenas possí- veis por estarem aqui. Não se está querendo, com isso, negar o histórico dessas línguas na época pré-imigração e nem seu pro- cesso de introdução no Brasil. Apenas pontuar que seu histórico no país influenciou sobremaneira sua existência e configuração atual, e essas variedades criaram raízes aqui, como também o fizeram seus falantes – há gerações, todos já nascidos brasilei- ros. Desta forma, tanto a noção de língua, quanto a noção de 24 território (e com ela, a de pertencimento) podem estar relacio- nadas ao Brasil. Assim, se o Pomerano, o Hunsrückisch, bem como outras variedades de imigração, já cooficializadas atualmente no país, são línguas brasileiras, devem deixar, a nosso ver, de ser reco- nhecidas pela categoria de alóctone. Línguas de Imigração/Línguas de Herança No mesmo sentido que o defendido acima, assumindo que as línguas de imigração, em especial, as já cooficializadas no Brasil, como o Hunsrückisch, o Pomerano, o Talian e a va- riedade local do Alemão (Hochdeutsch; ALTENHOFEN, 2013, p. 106),4 são línguas brasileiras, também nos parece inadequado denominá-las como línguas de herança. “Língua de Herança” (LH), como o próprio nome já pres- supõe, é uma língua “herdada” dos pais (ALVAREZ, 2018, p. 779). Trata-se, portanto, de uma língua materna herdada no seio fa- miliar e usada primordialmente em casa, não sendo necessária a inserção em uma comunidade externa para a interação na mesma. Ao passo que, para o uso do conceito Segunda Língua, por exemplo, é necessária uma situação de integração social (PUPP SPINASSÉ, 2006, p. 6), a LH pode ser restrita, dentro de uma sociedade, a apenas uma família, ou a apenas alguns mem- bros de uma família, e atinge especialmente a segunda geração de imigrantes, ou seja, os filhos dos imigrados (BENMAMOUN; MONTRUL; POLINSKY, 2013, p. 132). 4 O Pomerano é cooficial em seis municípios do Espírito Santo: Domingo Martins, Laranja da Terra, Itarana, Pancas, Santa Maria de Jetibá e Vila Pavão; em um município de Santa Catarina: Pomerode; e em um município do Rio Grande do Sul: Canguçu. O Hunsrückisch foi cooficializado em um município de Santa Catarina: Antônio Carlos. O Talian é cooficial em um município de Santa Catarina: Nova Erechim, e em vários municípios do Rio Gran- de do Sul: Antônio Prado, Bento Gonçalves, Camargo, Fagundes Varela, Flores da Cunha, Guajibu, Ivorá, Nova Pádua (em fase de discussão), Nova Roma do Sul e Serafina Correa; e segunda língua oficial em Caxias do Sul e Paraí. Também o Alemão Padrão local (Hoch- deutsch) é língua cooficial em três municípios de Santa Catarina: Bela Vista, Pomerode e São João da Boa Vista. Disponível em: http://ipol.org.br/lista-de-linguas-cooficiais-em- -municipios-brasileiros/. Acesso em: 29 ago. 2020. 25 A título de ilustração, citamos a situação dos filhos de uma brasileira com um islandês, que nasceram e residem na Is- lândia, não precisando conhecer outros brasileiros no país para que a língua portuguesa, na variedade brasileira, praticada em casa pela e com a mãe, seja para eles uma língua de herança. Eles a herdaram da mãe e interagem nela com a mãe para as situações necessárias – ou, pelo menos, o fizeram até certa ida- de (FLORES; MELO-PFEIFER, 2014, p. 17). A LH, portanto, é ca- racterizada por uma exposição reduzida e, muitas vezes, pelo desempenho desigual nas competências, se comparada à língua da sociedade na qual o indivíduo está inserido(ou seja, língua majoritária), que “geralmente é a língua dominante da criança devido às situações de socialização mais frequentes” (FLORES; MELO-PFEIFER, 2014, p. 17). E por mais que haja por perto ou- tros falantes de Português e interações em língua portuguesa (em diferentes variedades) fora de casa, a língua continua tendo um caráter mais familiar e restrito a um grupo de falantes, sen- do visto pelo país hospedeiro como uma língua estrangeira pre- sente em seu território. Da mesma forma que, por exemplo, um pai australiano que vive no Brasil e fala Inglês com seus filhos está contribuindo para a diversidade linguística em território nacional, mas não está conferindo ao Inglês, com essa ação, um novo lugar na nossa sociedade. Uma língua de imigração também é uma língua “herdada” como L1 e também pode ser uma língua em situação minoritá- ria, uma vez que, por meio do contexto de imigração, foi inseri- da em uma sociedade na qual outra língua majoritária é falada e detém o prestígio de língua nacional. Do mesmo modo, línguas de herança, comumente em situação minoritária, podem estar em contexto de imigração. Contudo, não vemos os dois concei- tos como sinônimos e identificamos distinções entre ambas as categorias, a partir do momento em que diferenciamos o pro- cesso e o produto. Em um primeiro momento na nova pátria, os filhos de imigrantes/refugiados/diplomatas/etc., aprendem a língua dos pais como uma língua de herança, ou seja, como uma bagagem étnico-linguística e cultural de seus pais. Contudo, o que temos 26 no Brasil com as línguas de imigração, em especial, as aqui in- troduzidas no contexto do século XIX, desenvolve-se em situa- ção distinta. Tais línguas se afastaram de suas matrizes – como é o caso do Hunsrückisch e do Pomerano, foco deste estudo –, enquanto as crianças islandesas citadas acima terão o Português standard brasileiro como referência para sua língua de herança, e, caso parem de falar a língua na infância, podem facilmente voltar a estudá-la em um ambiente formal de aprendizagem mais tarde, pois a língua é ainda falada no país de origem. Já os falantes das línguas de imigração aqui citadas, não possuem essa referência, uma vez que a história de sua constituição e as raízes socioculturais de tais variedades já estão no Brasil, e não mais no local de origem dos imigrantes. Assim, vemos que o caráter social das línguas de imigra- ção é crucial, pois caracteriza uma comunidade pertencente ao país onde se encontra, e não uma relação “indireta”, “passageira”, distante ou até mesmo aleatória, como pode ser o caso das LHs. Por isso, optamos, neste capítulo, por caracterizar as va- riedades em questão como línguas de imigração e não como lín- guas de herança, para poder diferenciar o contexto de contato do Hunsrückisch e do Pomerano de outros contextos de pluri- linguismo, tanto individual como social, quanto os exemplifi- cados acima. Portanto, para nós, elas não configuram línguas de herança no sentido conceitual, mas uma “cultura de herança” (SAVEDRA; ROSENBERG, 2019). Conscientização Linguística Um dos conceitos mais cruciais quando tratamos de lín- guas em situação minoritária no contexto de ensino é a cons- cientização linguística, que, segundo a Association for Lan- guage Awareness, é definida como um “conhecimento explícito sobre a língua e uma percepção consciente e sensibilidade em aprender a língua, ensinar a língua e usar a língua”.5 Ou seja, o 5 No original: “Explicit knowledge about language, and conscious perception and sensitivity in lan- guage learning, language teaching and language use”. Disponível em: https://www.languagea- 27 indivíduo deve ser levado a fazer reflexões sobre sua(s) língua(s) e sobre as demais línguas às quais esteja exposto, a fim de, tor- nando o seu processo de aprendizado e o seu conhecimento lin- guístico explícitos, conseguir estabelecer relações entre elas e estar sensível à diversidade e às peculiaridades de cada idioma. Para Hawkins (1999), em uma abordagem didática que leve em consideração a conscientização linguística, deve-se le- var o aluno a fazer questionamentos sobre o funcionamento e sobre a função das respectivas línguas em sua vida, valorizando, para tanto, aspectos sociais, culturais e políticos. Em alguns casos, a implementação de abordagens plurais (CANDELIER, 2010) para o ensino de línguas em situação mino- ritária serve de ponte para o aprendizado de outras línguas, em uma perspectiva que envolve a “intercompreensão linguística” e a “translinguagem” (HUFEISEN; NEUNER, 2003; JESSNER, 2008; BAUR; HUFEISEN, 2011; GARCIA; WEY, 2014). Como as línguas de imigração geralmente são marca- das pelo desprestígio, sofrendo, em muitos casos, preconcei- to linguístico, é muito comum que seus falantes a considerem uma língua menor ou uma variedade “quebrada”, “feia”, “erra- da” (PUPP SPINASSÉ, 2016; 2017a). Nesse sentido, trabalhar a conscientização linguística e levar as crianças falantes de uma língua minoritária a refletir sobre a relação desta com outras línguas – principalmente com as tipologicamente próximas – é uma estratégia didática que pode tanto fomentar o ensino de línguas, por meio da valorização do plurilinguismo, quanto dar sua contribuição social para a quebra de tabus e a desconstrução de mitos relacionados a ela. Deste modo, acreditamos que permitir a entrada da lín- gua minoritária em sala de aula (seja ensinando-a, seja apenas dando espaço para sua manifestação) é uma importante medida a ser tomada. Como estudos já mostraram, é possível fazer uso da língua minoritária como língua-ponte para o aprendizado de outras línguas, conferindo-lhe mais uma função, a qual pode ser wareness.org/?page_id=48. Acesso em: 20 ago. 2020. 28 reconhecida como vantajosa pelo senso comum (PUPP SPINAS- SÉ; KÄFER, 2017). Com o termo “língua-ponte”, entendemos o papel que de- terminada variedade pode desempenhar como uma ferramenta útil para que o aluno, em seu processo de aprendizado de outra língua, trave paralelos entre ambos os sistemas, a fim de utilizar os conhecimentos que tem em uma língua para construir seu conhecimento e sua competência na outra, desenvolvendo, para tanto, estratégias individuais de aprendizagem. Utilizar a lín- gua de imigração como língua-ponte é, portanto, uma estraté- gia linguística, uma estratégia de aprendizado e uma estratégia política (PUPP SPINASSÉ, 2016). CONTEXTUALIZANDO DIFERENTES REALIDADES ESCOLARES O Hunsrückisch no Rio Grande do Sul Muitas escolas em contextos de contato Português-Huns- rückisch oferecem ensino de Alemão standard como língua es- trangeira no currículo regular, mas nem sempre instituição e professores sabem lidar com o bilinguismo que as crianças tra- zem de casa ou com o fato de que elas já possuem determinados pré-conhecimentos da língua alemã, devido ao fato de falarem uma língua tipologicamente próxima dessa língua-alvo. Ou seja, essa capacidade, de forma geral, acaba não sendo nem aprovei- tada e nem incentivada por parte da escola – e isso muito graças aos preconceitos que cercam a língua minoritária, vista, em ge- ral, como uma língua de menor valor. Assim, ela acaba excluída do contexto escolar, o que acarreta impactos sociais diretos. Nesse sentido, vemos na Didática do Multilinguismo uma possibilidade de integrar melhor as línguas que cercam os alunos, com o objetivo não só de tornar o processo de aprendi- zado mais efetivo, mas também, com um propósito social, de fomentar a língua minoritária, legitimando-a como integrante do contexto escolar (PUPP SPINASSÉ, 2016; PUPP SPINASSÉ; 29 KÄFER, 2017). Como o Hunsrückisch não faz parte do currículo escolar, legitimá-lo como língua-ponte para o aprendizado do Alemão standard é a forma de garantir um espaço nesse contex- to institucional. Em nossas visitas a essas escolas, trabalhamos, no âmbito de nossos projetos de pesquisa-ação, com as crianças do sexto ao nono ano, falantes e não falantes de Hunsrückisch, nomo- mento da aula de Alemão. Nosso intuito é abordar: 1) mitos e crenças sobre a língua de imigração, a partir das reações de alu- nos e alunas com a presença da língua em sala de aula, a fim de questioná-los e confrontá-los criticamente e fornecer informa- ções históricas sobre a língua e seu desenvolvimento; 2) a partir de tarefas que fomentam a comparação entre as línguas, ativar reflexões metalinguísticas sobre as línguas de seu repertório, bem como a constatação de semelhanças sintáticas e lexicais en- tre elas; e 3) fomentar o plurilinguismo dos alunos, levando-os a refletirem sobre os diferentes papéis que diferentes línguas desempenham para o indivíduo e sobre o fato de que o mundo é multilíngue, e todas as línguas devem ocupar o seu espaço, já que têm o mesmo valor. O Pomerano no Espírito Santo O Pomerano (Pommersch, Pommerschplatt ou Pommeranisch) é uma variedade germânica, da subfamília do Baixo-Alemão, e é reconhecido como língua cooficial em oito municípios do Bra- sil, sendo, como já explicitado anteriormente, uma variedade neoautóctone brasileira, a partir das noções antropológicas de língua e território e da noção de vitalidade linguística (SAVE- DRA; MAZZELLI, 2017). Dentro da perspectiva de manutenção e a revitalização do Pomerano, e ainda com o objetivo de desenvolver práticas edu- cacionais diferenciadas para uma comunidade na qual a língua é reconhecida como sendo preferencialmente a primeira língua de uso em diversos domínios (familiar, social, administrativo, dentre outros), foi implementado o ensino oficial da língua nos 30 municípios onde o Pomerano já estava cooficializado ou em fase de cooficialização. Assim, no início do século atual, ou seja, muito tempo após o início da imigração pomerana para o Brasil, no século XIX, teve início a discussão oficial de um programa de educação escolar que integrasse o Pomerano na matriz curricu- lar das escolas públicas. Em 2005, foi implementado o Progra- ma de Educação Escolar Pomerana (Proepo/Proepo-Schaulpro- gram) nas escolas da rede municipal dos municípios de Santa Maria de Jetibá, Domingos Martins, Laranja da Terra, Pancas e Vila Pavão, no estado do Espírito Santo. Como exemplo, tomamos a situação do município de Santa Maria de Jetibá, onde o Pomerano é língua cooficial desde 2009, e, com o decreto de oficialização, é obrigatório “incentivar o aprendizado e o uso da língua pomerana, nas escolas e nos meios de comunicação”.6 Em estudos anteriores, já foi provado que Santa Maria de Jetibá é um município reconhecidamente bilíngue em Pomerano e Português (SAVEDRA; HÖHMANN, 2013; BREMENKAMP, 2014; FOERSTE; FOERSTE, 2017). En- tretanto, devido a várias limitações (de cunho linguístico, de gestão de conteúdos na grade oficial educacional, de formação continuada de professores, dentre outras), em Santa Maria, as- sim como na maioria dos municípios do estado, o Pomerano é ensinado em poucas horas semanais, com uma metodologia de ensino similar à do ensino de línguas estrangeiras, o que, para a realidade do município, não procede. Desta forma, ampara- dos por estudos já desenvolvidos, reforçados pela observação de campo que realizamos no período de 2015 a 2019, propomos a inserção de um projeto-piloto que possa privilegiar o ensino do Pomerano, a partir da alfabetização.7 Tal projeto é inspirado em uma experiência exitosa, desenvolvida em três países da Europa de língua germânica – Alemanha, Áustria e Suíça –, onde 16 es- 6 Trecho da Lei n° 1136, de 26 de junho de 2009, que dispõe sobre a cooficialização da lín- gua pomerana no município de Santa Maria de Jetibá. Disponível em: http://www.legisla- caocompilada.com.br/santamaria/Arquivo/Documents/legislacao/html/L11362009.html. Acesso em: 29 ago. 2020. 7 Tal proposta é fruto da pesquisa de pós-doutorado de Ismael Tressman, realizado no âm- bito do projeto Probral existente entre a Universidade Federal Fluminense e a Europa-Uni- versität Viadrina, e tem como título proposto: Projeto de Educação Multilíngue “Pommerisch in der Schule? Sprachrevitalisierung und Transkulturalisierung”. 31 colas implementaram projetos-piloto, nas quais os(as) estudan- tes, após serem alfabetizados(as) na língua materna (o Alemão), adquirem/aprendem mais outras três ou quatro línguas, como o Neerlandês, o Sueco, o Inglês e/ou o Islandês. A proposta parte da premissa da inteligibilidade linguís- tica (PUPP SPINASSÉ; SALGADO, 2019) e do conceito de língua- -ponte, visando a três línguas germânicas: Pomerano, Alemão e Inglês. Assim, pretende-se uma alfabetização bilíngue Pomera- no-Português, havendo a introdução do Alemão no terceiro ano, a partir do Pomerano, e, no quinto ano, do Inglês, a partir do Pomerano e do Alemão. AÇÕES PARA A SALA DE AULA Como dito anteriormente, a existência de grande contin- gente de alunos falantes de línguas de imigração de base germâ- nica no Brasil nos levou à reflexão e à pesquisa empírica em re- lação à metodologia de ensino utilizada para se ensinar Alemão standard em escolas de região de contato linguísticos, visando fomentar uma Didática do Multilinguismo. Para tanto, a partir de nossas experiências em campo, lis- tamos os seguintes princípios para nossos projetos de pesquisa: – O Alemão standard não deve ser visto como língua es- trangeira, mas como uma língua adicional – nos ter- mos de Pupp Spinassé (2017b) –, para que a metodo- logia empregada possa partir da realidade dos alunos, da bagagem linguística que eles trazem consigo; – o conhecimento da língua de imigração deve ser vis- to como conhecimento prévio das estruturas-alvo no caso do aprendizado do Alemão standard, já que são línguas tipologicamente próximas; – ela serve como língua-ponte, podendo ser ensinada e aprendida como tal; – compartilhar informações positivas sobre a língua de imigração pode motivar ao seu uso e sua manuten- 32 ção, bem como aumentar o respeito em relação a ela por parte de não falantes; – estar “bem-resolvido” com suas línguas pode motivar o falante ao aprendizado de outras. Assim, devem-se desenvolver atividades didáticas que procurem estar em consonância com esses princípios e enga- jadas em pensar abordagens que contemplem a Didática do Multilinguismo (CANDELIER, 2010; PUPP SPINASSÉ, 2016; WÜRZIUS, 2018). O objetivo de nossas atividades é promover a conscientização linguística e a contrastividade entre as crian- ças e sensibilizá-las em relação ao plurilinguismo e à diversi- dade linguística. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi nosso objetivo, neste capítulo, discutir conceitos re- levantes para estudo e pesquisa sobre línguas de imigração no Brasil, em especial, aquelas que são aqui introduzidas no século XIX. Além disso, apresentamos diretrizes para a elaboração de atividades pedagógicas, a partir de experiências já desenvolvi- das e/ou propostas por nós, que trabalhem a conscientização linguística e visem ao plurilinguismo social e individual e a di- dática do multilinguismo como ferramenta de ensino, a fim de legitimar a língua de imigração em situação minoritária como língua-ponte para o aprendizado da variedade standard em es- colas de contexto bi/plurilíngue de contato. REFERÊNCIAS ALTENHOFEN, C. V. Interfaces entre dialetologia e história. In: MOTA, J. A.; CAR- DOSO, S. A. M. (orgs.). Documentos 2: projeto atlas lingüístico do Brasil. Salvador: Quarteto, 2006, p. 159-182. ______. Bases para uma política linguística das línguas minoritárias no Brasil. In: NICOLAIDES, C. et al. Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes, 2013, p. 93-116. 33 ALVAREZ, M. L. O. português como língua estrangeira, português como língua de herança (PLH), português como língua adicional (PLA). 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