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A escola e a droga do ponto


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Droga: o ponto, boca-de-fumo: a escola. 
Prof. Pedro Gontijo 
 
Não sei bem se isso ocorre em muitos lugares, se 
ocorre em outros países ou outros estados, mas é o que 
vejo acontecer nas escolas públicas na periferia de 
Brasília. Tenho razões para acreditar que não deve ser 
uma realidade somente deste local, como sei também, 
que há lugares em que o aqui dito pode não se 
encaixar. Mais que descrever ou analisar uma 
realidade, o que quero mesmo é produzir um texto que 
possa fazer sentido para alguns professores e pessoas 
ligadas a educação. Não tenho pretensões a consensos, 
pelo contrário, tomara que os afetamentos provocados 
possam produzir novos fluxos do pensar a educação e 
suas coisas. 
 Do que quero falar? A sociedade não querendo ou não 
sabendo (não vou fazer juízos de valor) o que fazer 
com crianças e adolescentes, como ocupar o seu 
tempo, confinou estes em um local determinado, que 
costumamos chamar de escola. Para se manter um 
certo controle sobre as crianças e adolescentes, 
inventaram uma droga: a nota, e mais especificamente: 
pontos. Para distribuir esta droga foram treinadas 
pessoas, “atravessadores”, em cursos de magistério de 
nível médio e em cursos superiores. Lá onde se 
formaram estes atuais atravessadores da tal droga, eles 
aprenderam a chamá-la de avaliação (acho que foi lá, 
mas não tenho certeza). Não me pergunte de onde 
tiraram este nome, pois não há produção teórica crítica 
ou pós-crítica que ligue tão automaticamente estas 
duas coisas - avaliação e a distribuição desta droga 
chamada ponto. É este o nome da droga distribuída 
oficialmente nas escolas de norte a sul, de leste a oeste: 
PONTO. 
Ela, geralmente, não só é distribuída legalmente como 
é incentivada. Observe que acompanhar a distribuição 
de pontos nas escolas parece mais importante que 
aquilo que chamamos aprendizagem (ou outro nome 
mais bonito, dependendo da corrente epistemológica 
de quem analisa a função da escola). Escolas que 
pouco distribuem pontos são mal vistas em 
determinados gabinetes governamentais. Às vezes, os 
alunos não têm acesso a computadores e nem a 
internet nas escolas, mas as secretarias de muitas 
escolas possuem equipamentos modernos para 
registrar como vem sendo administrada esta droga do 
ponto. A cada dois meses os professores devem prestar 
contas da distribuição da droga. É gerado no 
computador ou de outra forma, um boletim de cada 
aluno revelando quem conseguiu consumir mais 
pontos. Faz-se até reunião com pais para distribuir 
estes boletins. 
Como os atravessadores, “camelos”, como alguns os 
chamam em outras bocas, não receberam treinamento 
para conseguir outra forma de controlar as crianças e 
adolescentes, estes usam apenas a droga do ponto para 
ir controlando o comportamento dos iniciantes no 
consumo escolar do ponto. 
A administração desta droga é baseada no mesmo 
princípio dos condicionamentos como numa Caixa de 
Skinner. Relação de estímulo-resposta. O que muda é 
que a caixa agora é a escola e em vez de ratos, temos 
alunos e alunas. Dá-se um ponto para que as crianças 
venham a escola, um ponto para que fiquem quietas, 
um ponto para que escrevam no caderno, um ponto 
para que façam as atividades de casa. A cada resposta 
positiva como se quer, uma premiação – o ponto. Há a 
crença de que o reforço – ponto - estimula 
comportamentos cada vez mais positivos. 
Na verdade, trata-se de uma droga tão ou mais 
perigosa que outras, mas com um detalhe: esta destrói 
e constrói futuros coletivos quase que 
imperceptivelmente, pois opera sutil como um 
“elefante”. Não entendo muito de como é feita a 
distribuição em escolas particulares, mas nas escolas 
públicas que conheço é feita com uma tecnologia 
muito eficiente. Há uma série de mecanismos e tarefas 
para garantir tal distribuição. Alguns professores usam 
planilhas em computadores para calcular direito como 
fazer tal distribuição de droga. Alguns usam, ou talvez 
abusam até de uma coisa chamada avaliação formativa, 
que muitas vezes leva a distribuir a droga do ponto a 
qualquer sinal de adestramento perfeito. A droga age 
no cérebro e nas emoções dos ditos estudantes. Em 
poucos anos consegue-se que a criatividade, 
espontaneidade, interesse de muitas crianças e 
adolescentes diminuam significativamente. A droga 
faz a palavra conhecimento, aprendizagem, estudo, e 
outras similares gerarem urticária nos estudantes. A 
droga é forte. Eles passam somente a se mover no 
ambiente da escola em função da droga do ponto. 
Para os atravessadores, também chamados de 
professores, este é um recurso ótimo. Como não 
conseguem prender a atenção dos alunos com nada, 
pois os assuntos que tratam com os alunos ou são 
distantes da vida destes, ou a metodologia não 
acompanha nada o que hoje pode parecer interessante 
na forma de apresentar qualquer assunto, ou também o 
assunto, digo conteúdo é mesmo inútil para a vida da 
grande maioria. Não sei as razões de quererem ensinar 
coisas inúteis, mas não vou entrar no mérito. Em 
função desta situação, a melhor arma para conseguir 
ter controle sobre as turmas é a droga do ponto. Nada 
como um pontinho. Alguns atravessadores são 
terríveis, dando pontos demais nas primeiras 
atividades e fazendo alguns alunos terem overdose na 
primeira parte do ano, a tal ponto que já não 
conseguem fazer mais nada na disciplina na segunda 
metade do ano. Outros são mais sofisticados e sabendo 
que, se devem de um lado evitar a overdose, devem 
também evitar a crise de abstinência que sofrem 
aqueles que ficam muito tempo sem consumir uns 
pontinhos. Assim organizam seus encontros com os 
alunos de modo a dar um pontinho aqui outro ali e vão 
assim conduzindo a situação. 
Eu fico às vezes sem entender alguns atravessadores 
que de alto e bom som reclamam junto a outros 
professores que já não sabem o que fazer. Em reuniões 
entre atravessadores/professores para organizar como 
distribuir melhor a droga, que atividades que 
merecerão a droga e que atividades que não merecem 
mais nada, escuto volta e meia alguns atravessadores 
dizendo: “poxa, estes alunos não se mexem mais se 
não tiver ponto”, “não me ajudam em nada, não 
colaboram com nada e tudo o que peço para que 
façam, eles logo me perguntam: vale ponto?”. E a 
ladainha sobre o vício dos alunos continua. Outros 
atravessadores fazem coro a estas queixas. Eu fico cá 
com meus botões me perguntando: não foi tanto 
esforço para viciar estes meninos e meninas em pontos 
ao longo dos anos? Agora que eles estão totalmente 
dominados não deveríamos era comemorar? Alguns 
lançam desafios: “quero ver estes meninos e meninas 
fazerem alguma coisa sem valer ponto”. Desafio como 
este é fácil de fazer. Claro que o professor, digo, 
atravessador sabe que isso dificilmente acontecerá. 
Assim também como é muito difícil para estes 
atravessadores acostumados a comodamente 
encantarem seus alunos com os pontos, conseguirem 
motivá-los com alguma outra coisa. 
Parecem existir situações em que por mais que se 
distribua a droga do ponto já não produz o mesmo 
efeito controlador de mentes e corpos. Volta e meia há 
convulsões individuais e coletivas. Há alguns que já 
nem se importam tanto com os pontos e nem ir para a 
escola desejam mais. A droga tomada já os incapacitou 
para mais coisas. Ou então pode ser que seus corpos 
sem que suas cabeças saibam, rejeitando e expelindo a 
droga consumida, procurem impedir a continuidade do 
vício. Como o vício não é adequadamente 
diagnosticado, fica-se perdido sobre o que fazer e até 
passa-se a usar outras drogas. 
Veja bem que aqui não se quer condenar nenhum 
destes atravessadores, nem culpá-los por sua 
cumplicidade com este sistema que não sabe ou não 
quer fazer algo de interessante ou diferente na 
socialização das novas gerações. Eles também são 
vítimas. Muitos não sabem fazer outra coisa na vida e 
nem sabem se relacionarcom os alunos sem a droga 
do ponto. Talvez alguns nunca foram formados para 
estabelecer outro tipo de relação. Parece que esta droga 
contamina quem está perto do mesmo jeito que 
contamina quem a consome. Há professores que irão 
enlouquecer se não tiverem pontos para distribuir. Até 
alguns que não precisariam distribuir pontos, correm 
para fazer associações com outros e garantir uns 
pontinhos para distribuir. Parece que professor 
importante é o que tem pontos para oferecer. Também 
onde já viu viciado procurar e valorizar atravessador 
que não tem droga para distribuir? Temos que 
reconhecer que a estratégia do ponto é ótima, traz 
excelentes resultados em muitos momentos. Controla-
se bem muitas turmas de estudantes. Talvez 
professores que gostariam de estabelecer outra forma 
de relacionar com os alunos, que não esteja mediada 
pela droga do ponto, sintam o peso dos donos das 
“bocas-de-fumo” obrigando-os a agir assim. Aos 
donos das bocas-de-fumo (quem seriam? Os 
governantes? As elites? O capital financeiro? Sei lá...) 
interessa e muito que a escola seja espaço de 
distribuição e consumo de pontos e não de outras 
coisas que possam fazer sentido na vida de estudantes. 
A droga do ponto desestrutura até famílias. E estas não 
se dão conta disso. Os pais, irmãos mais novos e mais 
velhos, vizinhos e outros ficam dependentes dos 
pontos dos estudantes. Viciaram nos pontos dos outros. 
Em geral, perguntam aos estudantes sobre quantos 
pontos se ganhou (ou qual a nota tirou) e não o que foi 
que se aprendeu ou se o que se aprendeu é ou não 
significativo. Quanto mais pontos consumidos, ou 
melhor, ganhos, mais alegria nos sorrisos de todos. Se 
um estudante ganhou poucos pontos de modo que leve 
a uma reprovação, pode levar algumas famílias a 
brigas e crises internas e demoradas, mas se ganhou 
muitos pontos, a paz pode reinar, mesmo se aprendeu 
coisas inúteis para sua vida. 
A droga do ponto cria dependentes em todos os 
lugares. Até as Secretarias de Educação e governos 
ficam viciados com o consumo de pontos dos alunos. 
Nos governos não interessa tanto as condições físicas e 
pedagógicas das escolas, dos professores, dos alunos. 
Interessa sim as estatísticas para saber se o número de 
pontos foi suficiente para aprovar percentuais cada vez 
maiores de alunos. Mas talvez seja chegada a hora de 
reconhecer que os pontos servem mesmo é para viciar 
em pontos e nada mais. 
É verdade que este texto generaliza e muito. Se isto é 
um pecado, é assumido. É claro que tem alunos que 
aprendem e desenvolvem gosto pelo estudar “apesar” 
da escola como vemos hoje. É claro que há professores 
que não trabalham com esta lógica de distribuição da 
droga do ponto, mas provavelmente estão demitidos, 
ou estão escondidos. No mínimo, seus diários são 
iguais aos dos demais para disfarçar, pois o sistema 
não comporta outra forma que não seja o consumo da 
droga do ponto. Talvez estes professores nem possam 
se revelar. Vivem nas catacumbas das escolas.

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