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Varizes dos Membros Inferiores Aspetos Práticos Editores C. Pereira Alves, C. Costa Almeida, A. Pratas Balhau 2018 1 Sociedade Portuguesa de Cirurgia Capítulo de Cirurgia Vascular Varizes dos Membros Inferiores Aspetos Práticos Editores C. Pereira Alves, C. Costa Almeida, A. Pratas Balhau 2018 2 2 Esta publicação faz parte da atividade educacional do Capítulo de Cirurgia Vascular da Sociedade Portuguesa da Cirurgia. As opiniões expressas são da responsabilidade dos autores, assim como seguir ou não o Acordo Ortográfico de 1996. 3 3 AUTORES Aida Paulino Assistente Graduado, Serviço de Cirurgia Geral, ULS Castelo Branco, Hospital Amato Lusitano, Castelo Branco Vogal da Coordenação do Capítulo de Cirurgia Vascular da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Álvaro Pratas Balhau Assistente Graduado Sénior em Cirurgia Geral, Hospital de Santa Maria Maior, Barcelos Assistente Hospitalar de Cirurgia Vascular Mestre em Patologia Experimental Diretor do Serviço de Cirurgia Geral do Hospital de Santa Maria Maior, Barcelos Coordenador do Capítulo de Cirurgia Vascular da Sociedade Portuguesa de Cirurgia Ana Formiga Assistente Graduado, Serviço de Cirurgia Geral, Centro Hospitalar Lisboa Central, Lisboa Ana Lourenço Interna do 3º ano da Formação Específica de Radiologia no Centro Hospitalar Lisboa Central, Lisboa Ângela Marques Assistente Graduada de Radiologia do Centro Hospitalar Lisboa Central, Lisboa Beatriz Mourato Assistente Hospitalar, Serviço de Cirurgia Geral, ULS Norte Alentejano, Hospital Dr. José Maria Grande, Portalegre Carlos Pereira Alves Professor de Cirurgia Cirurgião Vascular Clínica de Veias, Hospital da Ordem Terceira-‐Chiado, Lisboa Carlos Costa Almeida Cirurgião Geral e Vascular Assistente Graduado Sénior de Cirurgia Geral Diretor do Serviço de Cirurgia C do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra Hospital Geral (Covões), Coimbra Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Regente da Cadeira de Cirurgia Vascular Carlos Eduardo Costa Almeida Assistente Hospitalar de Cirurgia Geral, Serviço de Cirurgia C, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra - Hospital Geral (Covões), Coimbra Assistente da Faculdade de Medicina de Coimbra - Autores 4 4 Diogo Casal Assistente Hospitalar de Cirurgia Plástica e Reconstrutiva e Unidade de Queimados no Centro Hospitalar Lisboa Central, Lisboa Professor Auxiliar do Departamento de Anatomia da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa Élia Coimbra Assistente Graduada Sénior de Radiologia Diretora da Unidade de Radiologia de Intervenção do Centro Hospitalar de Lisboa Central, Hospital Curry Cabral, e da Unidade de Radiologia de Intervenção do Hospital da Cruz Vermelha, Lisboa Membro do Conselho Diretivo da Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear. Filipe Veloso Gomes Médico Radiologista de Intervenção Assistente de Radiologia, Unidade de Radiologia de Intervenção do Centro Hospitalar de Lisboa Central, Hospital Curry Cabral, e da Unidade de Radiologia de Intervenção do Hospital da Cruz Vermelha, Lisboa Membro da Secção de Radiologia de Intervenção da Sociedade Portuguesa de Radiologia e Medicina Nuclear Assistente Convidado da Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Nova de Lisboa. João Magro Assistente Graduado Sénior, Serviço de Cirurgia Geral, ULS Norte Alentejano, Hospital Dr. José Maria Grande, Portalegre Luís Filipe Pinheiro Assistente Graduado Sénior, Serviço de Cirurgia Geral, Hospital de São Teotónio, Viseu Luís Silveira Assistente Graduado Sénior de Cirurgia Geral, aposentado Doutorado em Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra Professor Associado Convidado da Faculdade de Ciências da Saúde da UBI, Covilhã Diretor do Laboratório de Gestos Cirúrgicos da FCS da UBI, Covilhã Mariana Lima Interna do 5º ano da Formação Específica de Radiologia no Centro Hospitalar Lisboa Central, Lisboa Nuno Pratas Interno do 4º ano da Formação Específica em Cirurgia Geral, ULS Norte Alentejano, Hospital Dr. José Maria Grande, Portalegre Representante dos Internos na ULSNA Autores 5 5 Pedro Vaz Assistente Hospitalar, Serviço de Cirurgia Geral, ULS Castelo Branco, Hospital Amato Lusitano, Castelo Branco Diretor-‐Executivo do Laboratório de Gestos Cirúrgicos da FCS da UBI, Covilhã Sara Correia Assistente Hospitalar, Serviço de Cirurgia Geral, ULS Castelo Branco, Hospital Amato Lusitano, Castelo Branco Tiago Bilhin European Board of Interventional Radiology Radiologista de Intervenção, Centro Hepato-‐bílio-‐pancreático, Hospital Curry Cabral, Centro Hospitalar Lisboa Central e Hospital de Saint Louis, Lisboa Professor Auxiliar Convidado da NOVA Medical School, Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa Editor Associado do Journal of Vascular and Interventional Radiology e da Acta Radiológica Portuguesa Membro editorial do Cardiovascular and Interventional Radiology Corresponding Fellow Society of Interventional Radiology (SIR); Fellow Cardiovascular and Interventional Radiological Society of Europe (CIRSE) Autores 6 7 6 ÍNDICE Pág. -‐ Introdução Carlos Pereira Alves .............................................................. -‐ Aspetos históricos das veias e das varizes Luís Silveira ............................................................................ -‐ Anatomia das veias dos membros inferiores Tiago Bilhim e Diogo Casal .................................................... -‐ Fisiopatologia da insuficiência venosa crónica Carlos M Costa Almeida ......................................................... -‐ Epidemiologia e fatores de risco Sara Correia, Aida Paulino e Luís Silveira ...............................-‐ Classificação CEAP – Luís Filipe Pinheiro .................................................................. -‐ Clínica: sintomas e sinais Beatriz Mourato, Nuno Pratas e João Magro ......................... -‐ EcoDoppler na avaliação da doença venosa crónica Ana Lourenço, Mariana Lima e Ângela Marques ................... -‐ Medicamentos venoativos Carlos Pereira Alves ................................................................ -‐ Terapêutica compressiva Carlos Pereira Alves ................................................................ -‐ Cirurgia das Varizes dos membros inferiores Carlos Pereira Alves ................................................................ -‐ Tratamento endovascular Filipe Veloso Gomes e Élia Coimbra ........................................ -‐ Tratamento das perfurantes Carlos Eduardo Costa Almeida ................................................ -‐ Escleroterapia química Pratas Balhau ......................................................................... -‐ Tratamento das complicações: . Tromboflebite superficial (varicoflebite) Pedro Vaz ................................................................................ . Hemorragia varicosa (varicorragia) Sara Correia, Aida Paulino e Luís Silveira ................................ -‐ Varizes e gravidez Ana Formiga ............................................................................ -‐ Anexo 1 – Folheto informativo ao doente Pereira Alves ............................................................................ Indíce 9 13 53 61 69 77 83 91 101 113 121 137 145 159 191 195 201 222 8 97 INTRODUÇÃO As varizes dos membros inferiores, são extremamente frequentes, com grande impacto no SNS em termos de custos e grande impacto na qualidade de vida do cidadão. Se se incluírem todas as classes clínicas da classificação CEAP, a prevalência geral é cerca de 50 % da população, com 20 a 25 % a terem varizes (C2), 6 % com insuficiência venosa crónica (C3, 4), 2 % com úlcera venosa cicatrizada (C5) e 0,5 % com úlcera aberta (C6). A prevalência aumenta com a idade. A maior prevalência no sexo feminino parece não ser real, mas resultante de uma maior preocupação com aspetos estéticos. Apesar de frequentes e as suas referências históricas serem mais antigas que as das doenças arteriais, as varizes continuam a ser olhadas como situação banal e a não terem a valorização necessária, nem conhecimentos atualizados. No plano anatómico as duas veias tronculares dos membros inferiores são a veia safena interna, hoje designada de grande veia safena, e a veia safena externa, hoje designada de pequena veia safena, com colaterais a nível da coxa e da perna designadas colaterais safenianas, para as distinguir de colaterais sem relação com a safena, designadas colaterais não safenianas. O ecoDoppler veio mostrar que a grande veia safena e a pequena veia safena, não são veias superficiais, mas sim veias interfasciais, com um compartimento próprio, o compartimento safeniano. As colaterais, safenianas ou não safenianas, estas sim, são veias superficiais, que quando dilatadas constituem as varizes, que por definição são veias superficiais dilatadas e tortuosas. As veias safenas podem ou não estar dilatadas e com refluxo de extensão variável, axial ou segmentar. A causa das varizes e do seu desenvolvimento, continuam por estabelecer, continuando a discussão se na etiologia das varizes a dilatação venosa é secundária a Introdução 10 8 um problema primário da parede venosa (teoria parietal) ou a um problema primário de uma ou mais válvulas venosas (teoria valvular) sendo que qualquer dos casos leva a uma dilatação venosa segmentar com consequente incompetência valvular, já que as válvulas estão inseridas na parede venosa. Continuam, também, mal compreendidos os mecanismos da insuficiência venosa crónica (IVC), ganhando influência crescente o facto da hipertensão venosa, ao sobrecarregar a microcirculação, resultar em extravasamento de macromoléculas e eritrócitos, que vão provocar uma ativação e migração leucocitárias e iniciar uma reação inflamatória com libertação de fatores inflamatórios e síntese aumentada de MMP-‐2, que favorecem a evolução desta doença. Medicamentos com ação sobre a ativação leucocitária, como verificado com o MPFF (Micronized Purified Flavonoid Fraction – Fracção Flavonóica Purificada Micronizada), podem, assim, ser úteis no tratamento da IVC. Nos aspetos clínicos a classificação CEAP tem vindo a ter uso crescente, com atualização constante e permitindo melhor definição dos sintomas e sinais da doença venosa crónica. As últimas décadas, têm sido marcadas por uma melhor compreensão da anatomia e fisiopatologia, sobretudo devido ao exame do ecoDoppler com cor. O tratamento dos doentes com varizes deve cada vez mais seguir o conceito de “one stop clinic”, no qual, de maneira sequencial e rápida, a avaliação clinica e o exame físico, estabelecem a classe clínica, seguindo-‐se, com a menor demora, a realização de exame ecoDoppler, se indicado, para complementar a classificação CEAP e subsequente decisão de tratamento. Esta metodologia, exige conhecimentos e prática clínica atualizados, impondo cada vez mais a flebologia como especialização. O ecoDoppler com cor ou ultrassonografia duplex, é, hoje, o método de escolha na avaliação da doença venosa, permitindo detetar refluxo e/ou obstrução nas veias em estudo. A realização do ecoDoppler venoso dos membrosinferiores tem hoje metodologia própria. O seu objetivo é, não só determinar a presença de refluxo e ou obstrução, mas definir os padrões de refluxo, se axial ou segmentar, o que obriga a estudar a grande veia Introdução 11 9 safena em todo o seu trajeto, desde a região inguinal ao maléolo interno, bem como determinar o seu calibre abaixo da crossa, hoje designada junção safeno-‐femoral. O exame ecoDoppler, se não realizado pelo próprio cirurgião, deverá ter sempre informação clínica da razão do pedido do exame e realizado por imagiologista com conhecimento e prática de imagiologia venosa. Em função da classe clínica CEAP e dos padrões de refluxo, será tomada a decisão terapêutica. O tratamento poderá ser conservador, com prescrição de medicamentos venoativos ou de meias elásticas, para as classes C0s e C1s) ou incluir cirurgia para as classes C2 Na classe C1, poderá ser considerada a escleroterapia. O tratamento com medicamentos venoativos tem hoje efeito bem estabelecido no alívio sintomático e no alívio/resolução do edema. O MPFF mostrou ainda efeito benéfico nas úlceras venosas. Estudos recentes sugerem que o MPFF possa ter efeito preventivo na evolução da doença venosa crónica, exigindo e estimulando futura investigação. O tratamento com meias elásticas, ao reduzir o volume venoso, contribui para restaurar o normal retorno venoso, tendo assim efeito no alívio dos sintomas e do edema. As meias elásticas são tratamento de escolha nas úlceras venosas (kit ulcera) e a sua manutenção após a cicatrização da úlcera, parece prevenir/diminuir a recorrência. As meias elásticas devem ser usadas diariamente e substituídas regularmente. A cirurgia de desconexão da junção safenofemural ou poplítea, “stripping” de invaginação da grande safena até abaixo do joelho e excisão das colaterais varicosas com múltiplas incisões cutâneas, continua a ser o método que permite, com a mesma técnica e no mesmo tempo operatório, tratar as colaterais varicosas e o tronco das safenas, quando indicado. A oclusão endovascular do tronco das safenas, em alternativa ao “stripping” tem tido excelentes taxas de oclusão, mas não trata as colaterais varicosas. A escleroterapia, útil no tratamento de telangiectasias e varizes reticulares e residuais, continua a mostrar, no tratamento das varizes tronculares, maior recorrência a longo termo. Introdução 12 10 A necessidade de tratamento das perfurantes incompetentes da perna com SEPS, técnicas endovasculares ou escleroterapia eco guiada, continua assunto controverso, surgindo a SEPS como técnica preferencial. A varicoflebite (trombose venosa superficial de veia varicosa) nem sempre é benigna podendo associar-‐se a trombose venosa profunda. O ecoDoppler permite confirmar o diagnóstico e definir a extensão. O tratamento é feito com anti-‐inflamatórios e anticoagulantes, não tendo indicação prescrever antibióticos. Outra complicação a hemorragia varicosa ou varicorragia, pode ser provocada por traumatismo ou expontânea e deve ser tratada com urgência. A elevação do membro e compressão do ponto hemorrágico, pára a hemorragia. É bem conhecido que durante a gravidez, as veias se dilatam por fatores hormonais e pela compressão do útero gravídico. Em regra, as varizes da gravidez regridem após o parto, regressão que vai diminuindo com futuras gravidezes. A indicação de tratamento das varizes a seguir à gravidez, deve, assim, ser protelada entre seis meses a um ano. Estes diferentes aspetos das varizes dos membros inferiores, são consideradas pelos autores da presente publicação. Esta publicação, pelo Capítulo Vascular da Sociedade Portuguesa de Cirurgia, destina-‐ se essencialmente aos médicos de Medicina Geral e Familiar e aos Cirurgiões com interesse na Doença Venosa Crónica. Aos especialistas em Medicina Geral e Familiar, porque são muitas vezes o primeiro contato do doente com varizes e poderão ter a seu cargo o tratamento conservador, com medicamentos venoativos e meias elásticas dos doentes das classes clínicas CEAP, C0s e C1s e referenciar para o cirurgião as classes clínicas C2 a C6. Aos cirurgiões com interesse pela doença venosa crónica, porque esse interesse exige conhecimentos atualizados e prática clínica frequente. Introdução 13 11 ASPETOS HISTÓRICOS DAS VEIAS E VARIZES Luís Silveira As varizes são um problema de saúde pública tão importante, que justificam a elaboração deste livro, para orientação dos Cirurgiões Gerais e consulta dos colegas de Medicina Geral e Familiar. É nosso dever lembrar, agradecendo, os que contribuíram para o que atualmente sabemos sobre anatomia do sistema venoso, etiopatogenia, diagnóstico e tratamento da insuficiência venosa crónica (IVC) e das varizes. Como é difícil separar a história destas doenças da evolução do conhecimento sobre as veias, a este nos referiremos pontualmente. Esperamos que vos seja útil na prática clínica. Quando Huang Ti (2697-‐2597 aC), o Imperador Amarelo, cerca de 2600 aC, perguntou “Como ocorrem os edemas? Quais são as origens?”, Qi Bo disse: "O qi (energia vital) protetor no corpo circula junto com as veias e canais para seguir as divisões da carne... Quando há edema, é preciso investigar os canais, as veias e os lábios.” e preconiza o seu tratamento comacupuntura. Não refere, especificamente, varizes, mas atribui o edema ao mau funcionamento das veias.1 Encontrámos a primeira referência, escrita, a varizes, no Papiro de Ebers, datado de cerca de 1550 aC 1, no governo do faraó Amenhotep I, “Quando encontra um Tumor do Metu no lado interno de qualquer Membro, ele cresce e vê que serpenteia como cobras enquanto forma muitas proeminências e estas são como coisas movidas pelo vento... “, aconselha a não lhe tocar (talvez sugerindo que o tratamento não é cirúrgico) apresentando, em seguida, uma Fórmula Mágica que deve ser repetida por quatro manhãs, mas que é incompreensível e de impossível tradução, por deterioração do papiro.2 Sushruta (séc. VI aC), cirurgião indiano, também se referiu a varizes, e foi o primeiro a referir-‐se à ETIOPATOGENIA, quando no seu tratado Sushruta Samhita, Cap. XL -‐ Sirá-‐ Granthi (aneurisma ou veias varicosas), diz “O corpo Vàyu em pessoas fracas e 1 Tem trechos datados de cerca de 3400 aC, data em que, provavelmente, começou a ser escrito. Aspetos históricos das veias e varizes 14 12 debilitadas, cansado por exercícios físicos excessivos, por esforço ou por pressão, contrai, seca ou desenha as ramificações de veias (Sirà) ou artérias (do local afetado) (aneurisma) e rapidamente dá origem a uma formação nodosa em relevo que se chama Sirà-‐Granthi... ”3 Em Agrigento, Empedócles (490-‐430 aC), defendia a Teoria dos Elementos – ar, água, fogo e terra – que foi a base da Escola Pneumática de Medicina, baseada nos conceitos “o sangue é a vida” e “o coração é o centro do sistema vascular e o pneuma é transportado pelos vasos sanguíneos”. Esta teoria foi seguida por Diogenes (499-‐428 aC), de Apolónia, um dos primeiros a estudar a circulação sanguínea e a descrever um sistema vascular4a. Segundo Caggiati e Allegra5, foi Hippocrates (460-‐375 aC), de Cós, quem, pela primeira vez se referiu à patogénese e à epidemiologia da doença varicosa, quando afirmou que as varizes eram mais frequentes nos Citas (antigo povo iraniano de pastores nómadas equestres), devido ao tempo prolongado que passavam no dorso do cavalo, com as pernas penduradas. Hippocrates era defensor da Teoria dos Humores “O corpo humano contém sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra... A saúde é principalmente o estado em que estas substâncias constituintes estão em proporção correta entre si, tanto em força como em quantidade, e estão bem misturadas.”6 Um desequilíbrio entre os humores, originaria uma doença. Deixem-‐nos juntar duas opiniões interessantes, que, a propósito de varizes, Hippocrates referiu nos seus Aforismas: 21. “Nas afeções maníacas, se aparecem varizes ou hemorróidas, estas curam a mania.”7a; e 34. “Pessoas que ficaram carecas não sofrem de grandes varizes; mas se varizes aparecerem em alguém que é calvo, então o seu cabelo cresce de novo espesso.”7b Talvez a vossa experiência clínica, confirme estas afirmações. Aristóteles (384-‐322 aC), de Atenas, frequentemente citado quando se fala da história das varizes, não se pronunciou, especificamente, sobre esta patologia. Tinha opiniões erradas acerca da circulação, quando afirmava que “O coração apresenta três cavidades;... ”8a, “Há dois vasos no tórax... O maior fica mais à frente, o mais pequeno, atrás dele;... há quem chame a este último aorta... Estes vasos têm origem no coração.”8b Só se refere a varizes, quando diz “Mas as mulheres estão menos sujeitas a doenças do que os homens. São raras as que sofrem de varizes, de hemorróidas ou de Aspetos históricos das veias e varizes 15 13 hemorragias nasais. Se lhes acontecer algum destes percalços, a menstruação não se faz normalmente.”8c, mas não as define. Embora faça a distinção entre aorta e grande veia (cava), fale nas artéria e veia pulmonares e outras ramificações daquelas, não faz a distinção entre artérias e veias. Dá-‐lhes o mesmo nome, phlebs -‐ vaso sanguíneo. Esta distinção só foi feita por Praxagoras (340-‐séc. III? aC), de Cós, que, também, descreveu as diferentes funções delas. Chamou veias (phlebes), aos vasos que saem do ventrículo direito do coração, e artérias (artēriai), aos que emergem do esquerdo9a. Uma sua teoria central, a Teoria Pneumática, era a noção que as artérias transportavam pneuma (alma, vida, ar e respiração) e as veias sangue, porque no cadáver as primeiras estavam vazias (já não havia alma, vida, ar, nem respiração) e as segundas continham sangue9b. Um seu pupilo, Herophilus (335-‐280 aC), de Alexandria, considerado o Pai da Anatomia, foi o primeiro a chamar artéria pulmonar (artéria tipo-‐veia), ao vaso que sai do ventrículo direito e a distinguir anatómica e funcionalmente as artérias das veias. Não concordando com o seu mestre, defendia que as artérias não só transportavam pneuma, mas também sangue9c. Erasistratus (304-‐250 aC), de Alexandria, aprofundou o conceito da existência de dois sistemas diferentes, o arterial e o venoso, mas, quanto aos vasos pulmonares, porque “... as veias pertencem ao sistema pneumático, são consideradas artérias... “e chamou-‐lhe veia arteriosa, e porque “... a artéria pulmonar é suposto existir para levar nutrientes (sangue formado dos alimentos digestivos) para os pulmões, pertence ao sistema venoso.”, pelo que seria artéria venosa10. Percebeu que o sangue passava das artérias para as veias através de intercomunicações muito finas entre os dois tipos de vasos, ou seja, a existência do sistema capilar4b, embora não o tivesse afirmado. Nenhum destes autores se pronunciou sobre varizes dos membros inferiores. No museu de Atenas, na Grécia, encontra-‐se uma peça que é uma imagem esculpida em pedra que, de maneira muito clara, mostra uma veia varicosa numa perna masculina. Esta imagem, que foi encontrada no templo de Amynos, próximo da Acrópole de Atenas, é datada de 350 aC. Foi uma oferenda votiva a Asclepius levada ao templo por motivos religiosos, como agradecimento pela cura de varizes (Fig. 1). A Teoria Pneumática, continuou a ser defendida por Rufus D’Éphèse (70-‐120), mas Galeno (129-‐200), de Pergamo, embora não discordasse desta, concordava com Aspetos históricos das veias e varizes 16 14 Hippocrates, pois era adepto da Teoria dos quatro Humores11, que se manteve até ao séc. XVI. Também defendia que o sangue era gerado no fígado, por transformação dos alimentos, era distribuído pelas veias e renovado no coração pela mistura com o ar. As cavidades direitas do coração recebiam o sangue das veias, enquanto que as esquerdas recebiam a mistura. O fígado, considerado o centro da circulação, impelia o sangue suavemente pelas veias, ao passo que a metade esquerda do coração insuflava o ar cheio de “espíritos vitais” para todo o organismo, através da “fonte da vida”, as artérias12. Mas haveria uma comunicação entre estas duas partes cardíacas. Esta teoria foi adotada pela Igreja e quem se lhe opunha, ou apresentasse outra diferente, corria o risco de excomunhão101a. Fig. 1 -‐ Oferenda votiva a Asclepius, em mármore, agradecendo a cura de varizes. 350 aC. Museu Nacional, Atenas. A Teoria dos quatro Humores também foi defendida na Escola de Salerno, famosa pelos mestres que nela lecionavam, como Constantino, O Africano (1020-‐1087), Mestre Nicolau (1150-‐1200) e o anatomista Copho (séc. XIV). O segundo autor, na Anatomia Magistri Nicolai Physici, também defendia que todas as veias nascem do fígado e refere-‐se a varizes, mas com outra conotação, quando diz “Duas veias Aspetos históricos das veias e varizes 17 15 chamadas varicæ também surgem da veia cava; elas vão até à parte de trás dos joelhos e quando são cortadas obliquamente, fazem homens varicosos, isto é, fechados... ”13 Seguem-‐se várias indicações de flebotomias para tratamento de múltiplas doenças. Para Guy de Chauliac (1298-‐1368), de Avignon, ainda adepto daquela teoria, “As causas destas doenças são... sangue muito melancólico e fleumático e cálido...“14a Dos médicos portugueses, Pedro Hispano (1215-‐1277) não se pronunciou, especificamente, sobre varizes, mas Amato Lusitano (1511-‐1568), porque lecionou em Ferrara, com Giambattista Canano (1515-‐1579), defendia que este foi o primeiro a descrever as válvulas venosas, em 1957. Amato, em dois locais das suas Centúrias (Primeira Centúria, Cura LII15a e V Centúria, Cura LXX15b), se refere às válvulas da veia ázigos e comprova a sua função, quando diz “Mas se abrirmos a veia sem par na parte mais baixa e com um canudo, ou caninha, metido dentro, soprarmos para a parte superior, não há dúvida que a veia cava não inchará, não ficará entumescida, visto que o ar, contido na veia sem par, não pode sair, por causa dos ostíolos ou opérculos que tem no seu orifício junto da veia cava. Donde é certo que se o ar não pode derivar da veia sem par para a veia cava, com mais razão (a fortiori) o sangue, mais encorpado que o ar, não refluirá.”15a, logo impedem o refluxo sanguíneo. Esta verificação foi feita “... no ano de 1547, em Ferrara, fizemos dissecar doze corpos humanos e de animais, e vimos, que em todos assim sucedera... “15a Leonardo da Vinci (1452-‐1519), fez grandes descrições e desenhos do sistema circulatório, mas, em alguns casos, não são do homem, provavelmente do boi16. Berengarius da Carpi (1460-‐1530), anatomista de Bolonha, o primeiro a publicar desenhos anatómicos em livros de medicina, em 1522, também fez desenhos e relatos da anatomia circulatória17, nomeadamente das veias safenas, mas não tão perfeitos como os realizados por Andreas Vesalius (1514-‐1564), no seu tratado De Humani Corporis Fabrica, publicado em 1543. Baseado em disseções cadavéricas, no Terceiro Livro, desenhou todas as ramificações das veia porta, veia cava, aorta e do cérebro18, e toda a circulação, com exceção das válvulas e das perfurantes. Os seus desenhos têm uma característica singular, são anatomicamente artísticos, mas têm falhas, como a de, ainda, julgar que existia uma comunicação interventricular. Aspetos históricos das veias e varizes 18 16 Também Bartolommeo Eustachi (1500/1513-‐1574), de Roma, desenhou sistemas arteriais19a, e venosos19b, 19c, com alguma precisão, no compêndio publicado em 1552, Tabulӕ Anatomicӕ. Embora só tenha sido traduzido em 1527, por Andréa de Belluno, no séc. XVI, o árabe Ibn Al-‐Nafis(1213-‐1288), a lecionar no Cairo, no seu livro Comentário à Anatomia do Canon de Avicenna, faz a primeira descrição da circulação pulmonar ou pequena circulação, “... passa na veia arteriosa para o pulmão para permear sua substância e misturar-‐se ao ar, a sua parte fina é purificada; e depois passa na artéria venosa para alcançar a cavidade esquerda das duas cavidades do coração; tendo-‐se misturado com o ar e tornado apto para a criação do espírito.”20 Porque não era conhecido este documento, aquela descrição foi atribuída a Miguel Servet (1509-‐1553), espanhol de Saragoça que lecionou em Genebra e Viena, no livro Christianismi Restitutio21, publicado em 1553, “Da mesma forma, não apenas ar, mas ar misturado com sangue, é enviado dos pulmões para o coração através da veia pulmonar; Portanto, a mistura ocorre nos pulmões. Essa cor amarela avermelhada é dada ao sangue espirituoso pelos pulmões; não é do coração.”, referência à oxigenação do sangue nos pulmões. É uma descrição anatómica (diferente da de Galeno) e religiosa, que o levaria à morte pelo fogo, sentenciada pela Inquisição. Este documento foi escondido pela Igreja e esquecido, tendo ressurgido com Harvey, como se referirá mais à frente. Também Realdo Colombo (1516-‐1559), sucessor de Vesalius na cadeira de Anatomia, em Pádua, descreveu a circulação pulmonar, no livro De Re Anatomica, publicado em 1559, depois da sua morte101b. As teorias destes três autores, por vários motivos, não foram conhecidas na sua época, pelo que as descobertas de Harvey tiveram mais impacto. Embora, na área anatómica, as opiniões de Galeno tenham sido contraditas pelas de Vesalius, a Teoria dos Humores só o foi no séc. XVIII, por Benjamin Bell. Assim, Ambroise Paré (1509-‐1590), o primeiro Mestre Cirurgião-‐barbeiro, afirmava “As varizes desenvolvem-‐se nas pessoas que são melancólicas, e que se alimentam de carnes melancólicas. As mulheres grávidas são frequentemente afetadas, por causa do sangue melancólico que, retido durante a gravidez, faz com que as veias se dilatem e se tornem varicosas... “22a, foi o primeiro a considerar a gravidez como causa de varizes, e, também que varizes são causas do aparecimento de úlceras e fatores de atraso da sua cicatrização22b. Aspetos históricos das veias e varizes 19 17 Em Pádua, Hieronymus Fabricius Ab Aquapendente (1533-‐1619), professor (talvez o primeiro Professor de Medicina digno desse nome) e diretor dos teatros anatómicos, descreveu, pela primeira vez, as válvulas das veias com algum pormenor, no seu livro De venarum ostiolis, publicado em 1603. Alguns autores, como Riju Ramachandron Menon23 e Amato Lusitano (como já dissemos), afirmam que Giovanni Battista Canano, em 1540, terá descrito as válvulas nas veias renal, ázigos e ilíacas externas, que Ludovicus Vassaeus, em 1544, descreveu algumas válvulas, e, um ano depois, também o terá feito Charles d’Estiènne (ou Carolo Stefano) (1504-‐1564)24, tendo as primeiras ilustrações sido apresentadas por Salomon Alberti, em De valvulis membraneis vasorum, publicado em 1585. Fabricius Ab Aquapendente, embora não tivesse tido conhecimento cabal da função das válvulas, foi o primeiro a considerar a insuficiência valvular como causa das varizes, quando referiu “Em algumas pessoas, de facto, como porteiros e camponeses, parecem inchar (as veias) como varizes: mas aqui devo corrigir-‐me. Deve ser claramente indicado que as varizes reais são devidas inteiramente à dilatação das válvulas e veias por uma retenção muito longa e espessamento do sangue nas válvulas; uma vez que, na ausência de válvulas, as veias deveriam inchar e dilatar uniformemente ao longo do seu comprimento, diferindo assim das varizes.”25a Também as representou em desenho (Fig. 2)25b, mostrando dilatações venosas, correspondentes a válvulas, no antebraço quando se coloca um garrote no braço. Fig. 2 – De venarum ostiolis, pp. 80 e 81. Tabula ii: A Figura i mostra as veias cefálica (AB), basílica (CD) e mediana (EF) e dilatações (o, o, o) correspondentes às válvulas, quando se coloca um garrote no braço; A Figura ii representa duas veias da perna, AB e CD e válvulas (o, o, o) por fora das veias, estando na primeira vazias e em CD cheias de sangue. William Harvey (1578-‐1657), aluno de Fabricius, em 1628, no livro Exercitatio anatómica de MOTU CORDIS et sanguinis in animalibus (Estudos anatómicos sobre o Aspetos históricos das veias e varizes 20 18 movimento do coração e do sangue em animais), veio mostrar, cientificamente, a circulação sanguínea e o papel das válvulas das veias26a. “As válvulas estão presentes para que o sangue não possa mover-‐se das veias maiores para as mais pequenas, a não ser em caso de rotura ou de varizes, e para que não avance do centro do corpo para a periferia através delas, mas sim das extremidades até ao centro. Este último movimento é facilitado por estas válvulas delicadas, o contrário é completamente impedido.”26b Fig. 3 – A Figura 1 mostra dilatações venosas correspondentes às válvulas (igual à de Fabricius, mas invertida na horizontal); as seguintes figuras mostram a eficácia das válvulas. Muito influente foi Richard Wiseman (1621-‐1676), de Londres, que em 1676, no tratado SeverallChirurgicall Treatises, foi o primeiro a sugerir que a incompetência valvular resultava da dilatação de uma veia27 e que a compressão e/ou a trombose podem ser causas de varizes, quando diz “Mas, também, ocorre de forma não natural, tanto nos Tumores da Mama e noutras Partes: em todos os que podem (mas mais visivelmente em Cancros) os Vasos alargam, e as Veias tornam-‐se varicosas. A causa disto pode ser referida à coagulação do Soro, ou à espessura do Sangue, ou à obstrução da Veia em algum lugar em sua passagem por alguma angulação provocada pelo Tumor; de onde acontecerá, muitas vezes, que a Veia para trás dela tenha parado, Aspetos históricos das veias e varizes 21 19 e é forçada a inchar. Não, não só a contração dos Vasos pelo não natural Tumor faz isso, mas também por qualquer outra Pressão. Como na Mulher com Criança, o peso deitado sobre o Ramus iliacus em qualquer lado do corpo, torna varicosos a Coxa e a Perna em todo esse lado.”27 Richard Lower (1631-‐1691), em 1670, descreveu o vis a tergo, o tónus venoso e o efeito da bomba muscular no retorno venoso, grande avanço no conhecimento da fisiologia da circulação5 e Antonio Valsalva (1666-‐1723), em 1710, descreveu o vis a fronte, devido às alterações rítmicas respiratórias da pressão tóraco-‐abdominal5. Pierre Dionis (1643-‐1718), de Paris, em 1708, concordou plenamente com Wiseman quanto às causas das varizes, mas explicou-‐as melhor: uma causa interna “... quando o sangue se torna espesso... não podendo correr nas veias, e pára em qualquer dos seus ramos, ou coagula... obriga a veia a dilatar-‐se.“; e outra externa, um traumatismo, grandes esforços, ou a gravidez28a. Em 1794, John Hunter (1728-‐1793), de Londres, descreveu no seu tratado A treatise on the blood, inflammation and gun-‐shot wounds, a contribuição das artérias para o retorno venoso, “Nessas veias que são acompanhadas por artérias, a pulsação da artéria auxilia na propulsão do sangue para o coração.”29a e confirmou, no cão, as observações de Valsalva “Mesmo a respiração produz uma estagnação perto do tórax; pois durante a inspiração as veias esvaziam-‐se rapidamente; mas na expiração há um certo grau de estagnação.”29b Justus Loder (1753-‐1832), em 1803, publica as Tabulæ anatomicæ, e na Tab. CXXVII um desenho, muito pormenorizado, das perfurantes do membro inferior30. Em 1806, Tommaso Rima (1775-‐1843), foi o primeiro a considerar o refluxo como causa de varizes quando diz “os argumentos que sustentam nossa teoria do movimento inverso do sangue como a causa próxima das varizes... “31a e descreveu uma manobra para o demonstrar, da qual falaremos mais à frente. Em 1824, Paul Briquet (17XX-‐18YY), de Paris, verificou que a hipertensão do sistema venoso profundo podia provocar varizes “No lugar onde a flebectasia é mais pronunciada, há comunicações muito grandes com as veias profundas, que são amplas no local de onde parte o ramo anastomótico,... ”32a, sugeriu uma doença da parede da veia, como causa da dilatação venosa “Seria demais dizer que está estabelecido nos vasos que deve se tornar uma espécie de inflamação lenta que começa a suavizar o Aspetos históricos das veias e varizes 22 20 tecido e prepara a dilatação?”32b introduzindo o conceito de “inflamação” da parede da veia como causa das varizes, que só mais de 150 anos depois começou a ser investigado. Por fim, a propósito do tipo de sangue presente nas veias, refere “O que acabei de dizer leva-‐me a inserir algumas palavras sobre o estado do sangue nas varizes. Encontra-‐se em massas, rutilantes, quase análogas à cor do sangue arterial. Quando se incisa uma variz, muitas vezes o jacto é muito forte; Eu vi-‐o entrecortado; a hemorragia é muito considerável; Esta força do jacto, que atingiu J. L. Petit, parece-‐me ser um indício de desenvolvimento dos capilares e de uma comunicação livre entre os sistemas arterial e venoso por este intermediário dilatado.”32c, sugerindo a existência de fístulas artério-‐venosas em algumas varizes. Benjamin Brodie (1783-‐1862), em 1846, embora já tenhamos demonstrado que assim não aconteceu, foi apontado como o primeiro a considerar o refluxo como causa de varizes, quando disse, no seu livro Lectures illustrative of varius subjects in pathology and surgery, capítulo sobre Veias varicosas e úlceras das pernas, “As veias profundas nunca se tornam varicosas, porque há a pressão de outros órgãos sobre elas por todos os lados, o que impede sua dilatação. São apenas as veias superficiais que são afetadas; especialmente os ramos da veia safena major, mas às vezes da veia safena posterior. Mas as válvulas não aumentam com a dilatação da veia, permanecem do tamanho original. A consequência é que as válvulas não protegem os ramos venosos abaixo da pressão da coluna de sangue acima; que deixam de responder ao propósito das válvulas; e a ausência de ação das válvulas tende, naturalmente, a agravar a doença.”33a John Gay (1813-‐1885), de Londres, no seu tratado On varicose disease of the lower extremities, publicado em 1867, faz um apanhado dos fatores etiológicos das varizes34a. Refere as causas que provocam excesso de sangue, no sentido do fluxo(hábitos, idade, sexo, fístulas artério-‐venosas, por exemplo), como no sentido contrário (ação da gravidade, insuficiência valvular, tumores abdominais, etc.), para além da hereditariedade, obesidade e lesões traumáticas. Lista bastante completa, mas que, apesar de incluir a tromboflebite, não menciona a trombose venosa profunda (TVP), embora tenha sido objeto do seu estudo, pois em cinco dos 24 casos clínicos que descreveu, estavam presentes “... coágulos nos troncos venosos profundos.”34b Aspetos históricos das veias e varizes 23 21 Continuando com a pesquisa sobre fístulas artério-‐venosas (FAV) como causa de varizes, em 1949, Pratt, descreveu uma síndrome Varizes arteriais, que, afirma, ocorrem muito mais comumente do que se supõe, 24 % na sua casuística. Refere “Esta situação deve ser suspeitada se as veias aparecerem rapidamente nas porções lateral ou posterior das pernas, se o paciente for relativamente jovem, se houver aumento de calor local e se as veias voltarem após a cirurgia da veia competente anterior... A tendência destas varizes arteriais a recorrer parece inerente.”35 Piulachs, em 1953, afirmou depois de estudar de 157 casos “... chegámos à conclusão que todas as veias varicosas, tanto idiopáticas quanto pós-‐flebíticas, são devidas a uma patogenia inicial comum e começam em ambos os casos através da existência de múltiplos canais artério-‐venosos congénitos de pequeno tamanho que estão presentes em todas as pessoas, embora variando em número e tamanho... ”36. Schalin, em 1953, publicou um estudo de varicosidades, localizou as FAVs por termografia detetando o aumento do calor da pele sobre as varicosidades e fez a dissecção microcirúrgica das varizes (n = 14) com conexão, tributárias venosas e anastomoses artério-‐venosas, que foram observadas em microscopia de luz. Concluiu que “1) FAVs para veias varicosas, comprovadas em cortes morfológicos, apresentam uma via anatómica para explicar 2) a manutenção arterial de veias varicosas com sangue quente, explicando o aumento do calor da pele sobre as varicosidades, 3) apoia a teoria sugerida de enrolamento varicoso. 4) Não há explicação alternativa para alterações endoteliais opostas ao orifício da comunicação artério-‐venosa.”37 Por fim, Kimura, em 1991, num estudo de 56 indivíduos, concluiu que “... houve diferenças significativas entre as tensões oxidativas dos pontos quentes e das veias femoral ou safena nos pacientes com varizes (p <0,01, p <0,05). Na operação, os pontos quentes foram investigados por disseção operatória e microscopia. Foram observadas pequenas artérias pulsantes nos locais que correspondiam aos pontos quentes.”38 e todos nos fazem refletir sobre a causa das varizes. No nosso país, António Coito (1921-‐2005), de Lisboa, em 1957, na tese de Doutoramento, pronunciou-‐se sobre a etiopatogenia das varizes, referindo “As válvulas são os elementos anatómicos que dão individualidade fisiopatológica ao sistema venoso dos membros inferiores; as válvulas podem deixar de ser suficientes por dilatação da parede da veia ou por destruição durante a recanalização do trombo, mas Aspetos históricos das veias e varizes 24 22 as consequências fisiopatológicas são as mesmas;... “, conhecimentos estes baseados na sua experiência39a. O conceito de que era sempre a insuficiência das crossas que dava origem às varizes, começou a ser posto em causa, por alguns autores. Destacamos Pereira Alves, de Lisboa, que na tese de Doutoramento apresentada em 2001, mostra que “Na insuficiência venosa superficial primária tudo começaria por um segmento venoso superficial com refluxo: ponto inicial de refluxo... não sendo obrigatório haver refluxo nas crossas... Estes segmentos venosos com refluxo seriam devidos a alterações constitucionais da veia... Com o tempo e em função da sobrecarga... esta dilatação progressiva ascendente e descendente, progrediria até pontos de comunicação com o sistema venoso profundo: pontos distais de refluxo... ”40a e se estes não forem corrigidos, dilatam-‐se outros segmentos venosos superficiais e perfurantes, que ficarão insuficientes. “A hipertensão venosa iniciar-‐se-‐ia no sistema venoso superficial e seria, a partir daí, transmitida às veias perfurantes e profundas, levando com o tempo à insuficiência destes dois sistemas. O processo seria assim de fora para dentro, ou seja, das veias superficiais para as profundas, e não o inverso, como considerado até hoje.”40b Pereira Alves considera, fruto da sua experiência, que há refluxos (R) axiais e segmentares e, dentro destes, três subtipos: R limitados aos ramos superficiais, Rs1; R que envolve os ramos superficiais e igualmente segmentos venosos da safena, Rs2; R 41 Russell Mellor, de Londres, introduziu a genética na etiologia das varizes, quando, em 2007, mostrou que o funcionamento do gene FOXC2 é necessário para uma função venosa normal, e mais especificamente para o desenvolvimento das válvulas e/ou a sua manutenção em humanos. FOXC2 desempenha um papel importante no desenvolvimento dos sistemas linfático e venoso, causando as mutações disfunção daqueles sistemas. As vias e mecanismos pelos quais o FOXC2 atua no desenvolvimento e manutenção das válvulas venosas, requerem futura elucidação42. Em 2010, YingXiao, de Cantão, chegou à conclusão que a expressão do gene da desmuslina é necessária para a manutenção do fenótipo das células musculares lisas dos vasos (CMLV). A diminuição da expressão da desmuslina pode afetar a diferenciação das CMLV e contribuir para o desenvolvimento de veias varicosas. Aspetos históricos das veias e varizes 25 23 Também descobriu que a expressão da metaloproteinase (MMP)-‐2 se encontrava significativamente aumentada em CMLV transfetadas com desmuslina43. Segundo Krysa, de Dunedin, em artigo publicado em 2011, refere que “Deve ser considerado um amplo estudo de associação genómica para ajudar a aprofundar a nossa compreensão da base genética da doença venosa. Devido aos grandes tamanhos de amostra necessários para a descoberta e validação, usando as novas gerações de tecnologias moleculares, será importante formar grupos de colaboração para avançar com sucesso no campo da genética das doenças venosas.”44. Pratas Balhau (1952-‐), de Barcelos, em 2013, desenvolveu, na sua tese de Mestrado45, um projeto experimental que teve como objetivo provocar varizes num modelo animal, produzindo hipertensão numa veia em ortostatismo. Foi laqueada a veia auricular intermediária da orelha esquerda de 18 coelhos gigantes Belier-‐francês, servindo a direita de controlo. Verificou: dilatação da veia com espessamento da parede, bem como áreas de atrofia da parede da mesma veia, para o mesmo corte histológico; com alterações do endotélio; alterações na espessura da média da veia, para a mesma secção transversal, bem como lúmens muito diferentes, muitas vezes assimétrico e colapsado; a média exibia áreas de hipertrofia e áreas de atrofia; algumas áreas revelaram redução de fibras musculares e alteração da orientação das fibras, alterações idênticas às encontradas nas varizes humanas46. Estavam colocados os problemas principais, as doenças da parede venosa e das válvulas das veias. Nos últimos anos do séc. XX e nos primeiros do séc. XXI, estas questões começaram a ser estudadas “à lupa”, ou seja, a pesquisa sobre a constituição molecular das válvulas e da parede venosas detetou várias alterações nestas estruturas, que CS Lim muito bem resumiu no artigo “Pathogenesis of primary varicose veins”47. É, também, uma boa introdução ao papel das MMPs e dos seus inibidores tissulares (TIMP), relacionadas com a adesão e ativação dos leucócitos e a atividade do transforming growth factor beta one (TGF-‐β1), na parede venosa que levam à sua fragilização, com consequente dilatação e formação de varizes. A estas questões dedicou-‐se Pedro Serralheiro (1981-‐), pois sabendo que o TGF-‐β1 influencia diretamente MMPs e TIMPs na parede venosa e, mais concretamente, na doença venosa crónica, e que MMPs e TIMPs têm um papel importante na evolução desta, resolveu aprofundar o conhecimento da sua fisiopatologia, fazendo o estudo genético Aspetos históricos das veias e varizes 26 24 e imunohistoquímico das MMPs, TIMPs e dos recetores de TGF-‐β1, ao longo da evolução da DVC. Concluiu que: “... as MMP9, MMP12, TIMP1 e TIMP2 são influenciadas diretamente pelo TGF-‐β1, na parede venosa da veia grande safena.”48 e foi o primeiro a demonstrá-‐lo; “... existem aparentemente duas fases de ação das MMPs e TIMPs, ao longo da evolução da DVC, que o TGF-‐β1 parece não influenciar em estádios avançados, ao contrario do que acontece em estádios mais precoces.”49, 50 Quanto ao DIAGNÓSTICO, se definimos varizes como veias dilatadas e tortuosas, o primeiro é feito pela observação clínica. Podemos então dizer que o primeiro a fazer o diagnóstico foi Sushruta, pelo séc. VI aC, quando refere no seu tratado a passagem já referida “... uma formação nodosa em relevo que se chama Sirà-‐Granthi... ”3 A primeira manobra para demonstrar o refluxo foi descrita por Tommaso Rima, em 1806, “... em todos os indivíduos afetados por escassas varizes em suas pernas mostravam-‐se evidentes que na mudança de posição do corpo de horizontal para vertical, o sangue poderia ser visto a partir do crural na grande safena de cima para baixo preenchendo os vários ramos menores do membro... O sangue comprimido da coluna que gravita acima dela na parte superior está sempre pronto para descer, assim que for removida a obstrução temporária, ou seja, a ligadura... ”31b, ou seja, percursora da prova, mais tarde chamada de Brodie / Trendelenburg. Em 1824, Paul Briquet, de Paris, fez uma tese de Doutoramento Dissertation sur la phlébectasie, onde aponta uma manobra para diagnóstico “Outras vezes, dando com o dedo, numa veia safena grande e varicosa ao longo do comprimento do membro, um golpe seco na parte superior da coxa, vemos a ondulação propagar-‐se até ao meio da perna, e o fluxo ser percetível ao toque.”32a, em tudo idêntica à sugerida por Schwartz, em finais do séc. XIX. Benjamin Brodie, em 1846, relatou um teste para confirmação de variz por refluxo de válvulas incompetentes “Descobri, ao retirar o curativo, o paciente estava na postura erecta, que o conjunto de veias abaixo preenchia muito devagar e apenas dos vasos capilares. Mas se, com o paciente na postura ereta, remover a pressão na veia, as válvulas sendo inúteis,o sangue precipita-‐se para baixo pelo seu próprio peso, ao contrário do curso da circulação, e enche o aglomerado varicoso abaixo quase instantaneamente.”33b, que ficou com o seu nome e de Trendelenbourg, que o Aspetos históricos das veias e varizes 27 25 vulgarizou. Só em 1896, Georg Perthes (1869-‐1927), descreveu a manobra para estudo da permeabilidade do sistema venoso profundo51. John Homans (1877-‐1954), de Boston, em 1916-‐17, descreveu o sinal, que ficou com o seu nome, para diagnóstico da TVP “Os músculos da barriga da perna, entre os quais a trombose começa, muitas vezes resistem à dorsiflexão do pé, com ou sem desconforto por trás do joelho – sinal da dorsiflexão.”52a Só no séc. XX começaram a surgir outros meios complementares de diagnóstico: em 1923, Berberich e Hirsch, relataram a primeira flebografia com brometo de estrôncio53; um ano depois, Sicard e Forestier, pela primeira vez utilizaram Lipiodol para fazer a flebografia5, muito útil para diagnóstico da trombose venosa profunda assintomática (pós-‐operatória); em 1929, McPheeters e Rice realizaram a primeira varicografia5; Ratschow, em 1930, introduziu a angiografia com contraste solúvel em água5. Merece referência especial João Cid dos Santos (1907-‐1975), de Lisboa, que em 1937, num extenso artigo A flebografia (Lisboa: Centro Tipográfico Colonial, que não conseguimos consultar), traduzido para francês em 1938, La flebographie directe, sugeriu realizar a flebografia, não só ascendente, mas também descendente, com o doente em pé, por via retrógrada, aproveitando a gravidade, para melhor detetar as insuficiências valvulares. Nas suas conclusões, descreve as patologias onde esta técnica poderá dar indicações, como “... origem das varizes; extensão da rede varicosa; circulação venosa nas extremidades varicosas; estudo das afeções venosas congénitas.”54, para só mencionar as que se referem a varizes. Com este autor concorda um seu discípulo, António Coito, quando, em 1957, considera que “... a flebografia vertical permite um melhor estudo das válvulas e para apreciar o seu estado funcional deve empregar-‐se a técnica descendente com a manobra de Valsalva, durante a injeção do contraste;...“39a, apesar de ter dado importante contributo para a flebografia ascendente, quando sugeriu a aplicação do garrote inframaleolar, que permitiu melhor visualização dos sistemas tibial posterior e peroneal39b. Aproveitando estes estudos de Cid dos Santos, Gunnar Bauer, em 1941, demonstrou por flebografia a relação entre trombose e úlcera e o local da trombose, o efeito da anticoagulação na TVP e, em 1942, a importância do estudo flebográfico na síndrome pós-‐trombótica55. Não podemos deixar de referir que J Salvador Marques, de Lisboa, outro pupilo de João Cid dos Santos, foi o primeiro que demonstrou, através de estudo Aspetos históricos das veias e varizes 28 26 esteroflebográfico, que em cerca de 20 % dos casos que estudou “As varizes essenciais da safena interna não são sempre originadas pela insuficiência valvular da crossa.”102 Isto quer dizer que não se justifica fazer a laqueação da junção safenofemoral, se esta não é refluxiva. Este conceito, pioneiro na altura, foi pouco valorizado e, por rotina, na operação às varizes era efetuada a laqueação alta da veia grande safena. Só mais tarde, com a utilização do ecoDoppler, alguns autores, entre os quais Pereira Alves, fizeram demonstração daquela variação e sugeriram alteração do procedimento, como referiremos mais à frente. Em 1842, o matemático e físico Christian Doppler (1803-‐1853), em Praga, apresentou um trabalho Über das farbige Licht der Doppelsterne und einiger anderer Gestirne des Himmels56 (Sobre a luz colorida das estrelas duplas e outras estrelas do céu) sobre um método de determinação das ondas de frequência, que determinado corpo emite, e a sua tradução em cores quando se aproximam ou afastam do observador, que ficou conhecido como Efeito Doppler. Foi um grande avanço qualitativo no estudo das doenças venosas e, porque se trata de um método de estudo venoso não invasivo, rapidamente foi utilizado, “destronando” a flebografia. Polly Feigl, de Minnesota, em 1968, publicou o primeiro artigo sobre a utilidade do ecoDoppler no diagnóstico das doenças venosas dos membros inferiores57, Claude Franceschi de Paris, em 1977, vulgarizou o ecoDoppler para estudo da patologia venosa58, e, como veremos mais à frente, utilizou-‐o para tratar varizes, e Alfred Persson, de Boston, com Edward R Jewell, de Burlington, demonstraram as vantagens deste método em relação à venografia59. Pereira Alves considera que o ecoDoppler deve ser um exame obrigatório para estudo pré-‐operatório dos doentes com IVC e os dados por ele fornecidos “... podem vir a permitir uma cirurgia das varizes adaptada ao tipo dos refluxos.”40c, sendo, atualmente, imprescindível para estudo e tratamento da insuficiência venosa crónica, nomeadamente, das varizes. A partir de 1980 foram introduzidas a TAC e a RM para avaliação dos vasos profundos dos membros inferiores, mas também para diagnóstico da tromboembolia pulmonar, a TAC 3D para avaliação pré-‐operatória de varizes e a RM com venografia5. Aspetos históricos das veias e varizes 2927 Quanto ao TRATAMENTO das varizes, foi ainda, o indiano