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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DOUTORADO EM EDUCAÇÃO LINHA DE PESQUISA CIÊNCIA CULTURA E EDUCAÇÃO LAÍS VIANNA DE OLIVEIRA SAMBA E EDUCAÇÃO: CRUZANDO POSSIBILIDADES PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E DECOLONIAL NITERÓI 2022 LAÍS VIANNA DE OLIVEIRA Samba e educação: cruzando possibilidades para uma educação antirracista e decolonial Tese presentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, como requisito necessário para a obtenção do título de Doutora em Educação. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Shaula Maíra Vicentini de Sampaio NITERÓI 2022 LAÍS VIANNA DE OLIVEIRA Samba e educação: cruzando possibilidades para uma educação antirracista e decolonial Aprovada em 22/12/2022 BANCA EXAMINADORA Shaula Maíra Vicentini de Sampaio (Orientador) Universidade Federal Fluminense Dinah Vasconcellos Terra Universidade Federal Fluminense Maria Jacqueline Girão Soares de Lima Universidade Federal Fluminense Marco Antonio Leandro Barzano Universidade Estadual de Feira de Santana Glória Regina Pessoa Campello Queiroz Universidade do Estado do Rio de Janeiro AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, ao meu companheiro de vida, Edu Lima, que foi meu porto seguro durante grande parte desse processo. Sem seu apoio incondicional, eu não teria chegado até aqui. Ao (sempre) Beto Fininho, grande compositor portelense, por ter compartilhado tanto comigo sobre uma de suas grandes paixões: o samba. Beto sempre foi mais que o “meu orientador” ou o “professor José Roberto Bernardo”, ele sonhou e construiu essa pesquisa comigo lado a lado enquanto pôde – infelizmente, por pouquíssimo tempo. Espero que – encantado onde estiver – esse texto lhe dê algum orgulho, mesmo que não tenha acontecido do jeito que nós imaginamos. À minha orientadora Shaula Sampaio, por ter aceitado o desafio de orientar minha pesquisa em um contexto tão delicado, e por ter estendido a mim o carinho que tinha pelo Beto. Aos professores da banca, Glória Queiroz, Marco Barzano, Dinah Terra e Jacqueline Girão, pela gentileza de terem aceitado o convite, minha imensa gratidão. À minha família, por toda motivação e orações. Especialmente, à minha avó Fátima Vianna, por todo investimento que fez em mim e na minha educação; e à minha tia Gláucia Vianna, a primeira doutora da família e minha primeira inspiração. Aos meus amigos, que me incentivaram sempre, entendendo minhas ausências. Agradeço especialmente a Daniele Feliz, Caio Sérgio Moraes, Julia Moura e Lúcia Soares por suas contribuições importantíssimas para esse trabalho acontecer. E ao Ygor Lioi; antes de tudo, por ser uma inspiração como professor e mobilizador cultural; por valorizar o meu trabalho e me convidar para projetos incríveis; e, por fim, por toda contribuição para esta tese. Ao Carlos Ferrão, por me ensinar tanto, incentivar, confiar no meu potencial e compreender minhas ausências - principalmente - na reta final do doutorado. À CAPES, pela bolsa concedida. E ao Programa de Pós-graduação em Educação da UFF, por toda compreensão e apoio prestado nesse período tão conturbado que foi o meu doutorado. Aos professores do programa, por todo conhecimento partilhado, especialmente à professora Iolanda Oliveira. E aos meus colegas borgeanos, que trouxeram alguma leveza para esse processo. A todos os portelenses, de hoje e de outrora, pela força arrebatadora desse rio que passou em minha vida. Especialmente, a um dos maiores portelenses que eu conheço, Társilo Coutinho, também pela entrevista concedida. RESUMO Propõe-se apresentar, nesta tese, possibilidades de práticas pedagógicas mobilizadas pelo samba com o objetivo de salientar a potência dessa prática cultural na construção de uma educação antirracista e decolonial. Para isso, foram analisados alguns dos dispositivos educativos mobilizados pela Escola de Samba Portela – no âmbito da educação não formal – e pela Organização não governamental Samba Educa – no contexto da educação formal. Buscou-se também compreender como o currículo muitas vezes reforça o projeto colonial no campo educacional. Para tal, são analisados os conceitos de colonialidade e decolonialidade a partir das análises de Fanon (1968), Hall (2011), Ballestrin (2013), Quijano (2010), Bernardino-Costa (2018) e Ferreira (2014). Em seguida, é feito um debate sobre como isso se expressa no currículo ao longo dos anos por meio das reflexões dos autores Gomes (2012), Ávila e Hypolito (2020), Silva, Souza e Ferraz (2022), Oliveira (2020) e Saviani (2016). Além disso, é apresentada uma reflexão sobre a trajetória do samba e sobre como seus terreiros são espaços/tempos de educação, que inventam uma pedagogia própria das culturas em diáspora no Brasil. Por fim, é evidenciado como o samba é um elemento primordial na desconstrução do projeto decolonial que ainda vigora no campo da educação. Palavras-chave: Educação Antirracista. Samba. Decolonialidade. ABSTRACT The present work aims to present possibilities of pedagogical practices concerning samba as a way to stress the power of this cultural practice in the construction of an Anti-racist and Decolonial Education practices. Therefore, we evaluated some educational tools by the Brazilian Samba School Portela and by the non-governmental organization Samba Educa – both in terms of formal and informal Education. We also aimed to understand how the school curriculum usually reinforces the colonial project in the Educational field. In order to do that, we analyze some concepts of coloniality and decoloniality as the following authors describe: Fanon (1968), Hall (2011), Ballestrin (2013), Quijano (2010), Bernardino-Costa (2018) and Ferreira (2014). Afterwards, we promote a debate about how this expresses in the curriculum along the years, according to Gomes (2012), Ávila and Hypolito (2020), Silva, Souza and Ferraz (2022), Oliveira (2020) and Saviani (2016). Besides that, we encourage reflection about the journey of samba and how their shrines are space and time for Education, which invent their own pedagogy of some cultures' diaspora in Brazil. Finally, we show how samba is a main element in the deconstruction of the decolonial project still in force in the field of Education. Keywords: Anti-racist Education. Samba. Decoloniality. LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Publicação do historiador Luiz Antonio Simas na rede social Facebook .......50 Figura 2- Destaque de carro alegórico da Paraíso do Tuiuti com a fantasia "Vampiro neoliberalista" ..................................................................................................................62 Figura 3 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 – capitão do mato ..................66 Figura 4 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 - grilhões ...............................66 Figura 5 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 – pretos-velhos ......................67 Figura 6 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 – quebra das correntes ..........67 Figura 7 - Desfile do Salgueiro 2018 – comissão de frente.............................................69 Figura 8 - Desfile do Salgueiro 2018 - yabá ....................................................................70 Figura 9 - Desfile do Salgueiro 2018 - carro alegórico ...................................................70 Figura 10 - Desfile do Salgueiro 2018 - destaque em carro alegórico ............................71 Figura 11 - Carro alegórico representando uma Pietá negra com o filho morto, com otexto de 'Quarto de despejo'. ............................................................................................72 Figura 12 - Bateria Salgueiro 2018..................................................................................74 Figura 13 - Alunos e colaboradores dos projetos sociais no palco posando para foto. ...76 Figura 14 - Publicação na rede social Twitter sobre a escolha do samba da Portela de 2022 .................................................................................................................................89 Figura 15 - Publicação na rede social Twitter sobre a escolha do samba da Portela de 2022 .................................................................................................................................89 Figura 16 - Publicação na rede social Twitter divulgando a série "Igi Osè Baobá é Afrobetizar" .....................................................................................................................90 Figura 17 - Publicação na rede social Twitter sobre a série "Igi Osè Baobá é Afrobetizar" .....................................................................................................................94 Figura 18 - Salão Rosa do Museu do Samba .................................................................103 LISTA DE TABELAS Tabela 1 - Episódios da série de vídeos "Igi Osè Baobá é Afrobetizar" .........................94 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty FLIPORTELA – Festa Literária da Portela FLUP – Festa Literária das Periferias GRES – Grêmio Recreativo Escola de Samba GRANES – Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba MIS – Museu da Imagem e do Som ONG – Organização Não Governamental PVS – Pré-vestibular Social UES – União das Escolas de Samba SUMÁRIO INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................12 1 EPISTEMOLOGIAS, PEDAGOGIAS E ENSINO .............................................................................19 1.1 POR UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL: SAMBA, TERREIROS E ANCESTRALIDADE ........25 1.2 DESCONSTRUINDO PARA CONSTRUIR: O CURRÍCULO COMO AÇÃO DINÂMICA NO ESPAÇO ESCOLAR ..............................................................................................................................30 1.3 A PEDAGOGIA DAS ENCRUZILHADAS COMO POSSIBILIDADE .........................................36 1.4 REVISÃO SOBRE SAMBA E EDUCAÇÃO ...................................................................................40 2 CAMINHOS METODOLÓGICOS ......................................................................................................47 3 DOS TERREIROS CARIOCAS PARA O TERREIRO MUNDO ....................................................52 3.1 AS ESCOLAS DE SAMBA CARIOCAS .........................................................................................53 3.1.1 O desfile- aula: “Vou começar a aula perante a comissão, muita atenção” ...........................58 3.1.1.1 Paraíso do Tuiuti 2018: Meu Deus, Meu Deus... Está extinta a escravidão?..................................... 63 3.1.1.2 Acadêmicos do Salgueiro 2018: Senhoras do Ventre do Mundo ...................................................... 68 4 SAMBA, ASSOCIATIVISMO E EDUCAÇÃO: INICIATIVAS POSSÍVEIS .................................75 4.1 PROJETOS SOCIAIS DO DEPARTAMENTO DE CIDADANIA ..................................................75 4.2 POR TELAS: OFICINA DE FORMAÇÃO AUDIOVISUAL ..........................................................77 4.3 FLIPORTELA: A FESTA LITERÁRIA DA PORTELA ..................................................................82 4.4 IGI OSÈ BAOBÁ É AFROBETIZAR ..................................................................................................86 4.4.1 Afrobetização.............................................................................................................................96 5 SAMBA EDUCA: POSSIBILIDADES DE ENSINO CRUZADO COM O SAMBA.....................100 5.1 O PRÉ-VESTIBULAR SOCIAL DONA ZICA ..............................................................................104 5.2 A DISCIPLINA HISTÓRIA DO SAMBA ......................................................................................106 5.3 PLATAFORMA DIGITAL LAROYÊ ............................................................................................110 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................119 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................122 ANEXO A .................................................................................................................................................... 128 ANEXO B .................................................................................................................................................... 130 ANEXO C .................................................................................................................................................... 132 ANEXO D .................................................................................................................................................... 133 APÊNDICE 1 – TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS ........................................................................ 137 12 INTRODUÇÃO Tendo feito uma pesquisa de mestrado na área da Memória Social, não poderia iniciar essa introdução de outra forma senão explicando minha relação com o samba. Como sabemos, “a memória é tecida por nossos afetos” (GONDAR, 2005), portanto é a partir do que nos afeta que escolhemos o que lembrar. O samba me afeta. Ressalto que começo pelo samba, pois meu envolvimento afetivo com a escola de samba ocorreu antes do meu envolvimento com a escola formal – não que haja uma ordem de importância – por isso, decidi narrar os fatos nessa ordem: a cronológica. Meu envolvimento com o que podemos chamar de “mundo do samba” ocorreu durante o mestrado. O que era antes apenas meu objeto de estudo se tornou parte da minha vida e do meu trabalho. Na dissertação “O axé da Portela voltou!”: atualização de Memórias e Tradições no GRES Portela (2013-2015), eu investiguei como o conceito de tradição portelense se atualiza de acordo com o contexto. Para tal investigação, além de entrevistas, fiz pesquisa de campo, estando presente na maioria dos eventos da Escola de Samba Portela no período de 2012 a 2015. Esse período bastou para que eu formasse uma rede de afetos e pertencimento: encantei-me com a história e as memórias da Portela, fiz amigos, passei a ter novos ídolos e comecei a fazer parte ativamente da agremiação como membro do Departamento Cultural, ao qual pertenci até o início de 2019. Essa minha atuação na Escola de Samba Portela é essencial para entender o início dos questionamentos desta pesquisa. Foi durante a minha vivência nessa escola que conheci o Beto Fininho, também conhecido como professor José Roberto da Rocha Bernardo, que, além de pesquisador do programa de Educação da UFF, foi compositor da Portela e sambista preocupado em pesquisar o samba e, sobretudo, sambas de terreiro. Nosso encontro ocorreu logo após meu encontro com a educação formal: após terminar o mestrado, voltei para a sala de aula, onde fui afetada novamente. Apesar das dificuldades que enfrentamos no campo da educação brasileira, estar na sala de aula é o que me realiza profissionalmente. Retornei, então, aos estudos na área da educação, dessa vez – diferentemente da graduação – com mais entusiasmo, ao fazer um curso de extensão na Faculdade de Educação da UFRJ1. O encontro com o professor José Roberto,que se tornou meu orientador no Programa de Pós-graduação da UFF, e seu interesse em pesquisar academicamente o 1 Inclusão em educação: gênero e diversidade sexual na escola em discussão (2015). 13 samba abriu-me a possibilidade de unir as áreas que mais me afetam, Samba e Educação, e fez emergir questões até então em estado latente. Desde a pesquisa etnográfica, nunca consegui abandonar meus olhos de pesquisadora, então permaneço observando constantemente os processos de interação entre os membros da Escola de Samba. Observar como ocorre a troca de saberes na Escola de Samba atualmente levou-me a questionar como ocorriam esses mesmos processos antes da institucionalização desses espaços na década de 1930, quando as escolas eram ainda terreiros. Foi assim que começou a nascer a minha ideia de pesquisa. Iniciei no doutorado com o tema “os terreiros de samba como espaços de educação: análise dos processos de troca de saberes entre os sambistas cariocas e seu impacto na escola de samba atual”. Para essa investigação, eu propus um corpus composto de dados de naturezas diversas: pesquisa bibliográfica na literatura especializada em samba, entrevistas com pessoas ligadas ao objeto de estudo e pesquisas em arquivos audiovisuais como os depoimentos gravados pelo Museu da Imagem e do Som (MIS), Museu do Samba (antigo Centro Cultural Cartola) e Departamentos Culturais de escolas de samba. E, ao considerar que, em se tratando de uma pesquisa qualitativa, não necessariamente todo o corpus ou todas as práticas interpretativas serão definidos com antecedência (DENZIN; LINCOLN, 2006, p.18), no decorrer das disciplinas cursadas e das trocas estabelecidas nos eventos acadêmicos, a pesquisa foi – como deve acontecer – tomando seus próprios contornos. Percebi que seria importante, também, fazer pesquisa de campo para observar na prática as trocas de saberes. Fiz, então, algumas observações de campo no Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela, inicialmente, devido à minha facilidade de inserção, já que eu faço parte da agremiação, mas a intenção era realizar essa observação também em outras escolas. Porém, durante uma das minhas idas ao campo, durante a festa de encerramento do Departamento de Cidadania, a Portela se mostrou como uma escola de samba completa para que eu pudesse observar múltiplas formas de ser/saber no cotidiano do samba. Foi a partir, então, da própria observação do campo que decidi delimitá-lo. Além disso, é importante lembrar que devido ao isolamento social praticado em decorrência da pandemia de Covid-19, não consegui estar no campo tanto quanto gostaria. Os sujeitos que entrevistei também foram escolhidos a partir das minhas impressões do campo. Realizei, portanto, algumas entrevistas semiestruturadas que provocassem narrativas, utilizando os referenciais da Sociolinguística Interacional e da Memória Social. 14 Diante das vivências e trocas acadêmicas possibilitadas pela participação no doutorado, ocorreu uma mudança significativa na pesquisa no que diz respeito ao recorte da temática enfocada. Tudo começou no meu primeiro semestre do doutorado, quando eu apresentava minha pesquisa pela primeira vez, no IV Seminário Discente do Programa de Pós-graduação da UFF. Quando recebi o aceite do trabalho, tive uma surpresa. Eu o havia inscrito no eixo temático “Memória, história e instituições educacionais”, que tinha a seguinte descrição: Pretende abrigar pesquisas que dialoguem sobre memória, seus processos de construção, esquecimentos e ênfases, lacunas e contradições. Também é o espaço dedicado a pesquisas que envolvam História, historiografia, suas perspectivas e desafios. Pesquisas relacionadas às Instituições Educacionais de qualquer modalidade, formais ou não, encontram nesse eixo acolhimento. Mas a minha pesquisa foi realocada no eixo “Inclusão, diversidade e acessibilidade”, que propunha o seguinte: Este eixo dedica-se a pesquisas relacionadas à inclusão na escola e na sociedade; as manifestações de diversidade de gênero, sexual, religiosa, da fala, quanto à educação inclusiva, as relações étnico-raciais, a educação quilombola, entre outras. Como também questões relacionadas as formas de acessibilidade existentes. O que se pretende é o diálogo com as diferenças. A maneira que a diferença é vista enquanto integrante da diversidade humana e como a falta de reconhecimento de tal condição pode gerar mecanismos de exclusão e preconceito. O momento é de luta por espaço na escola pública e pela afirmação da educação como direito. Como, inicialmente, meu trabalho buscava compreender os terreiros e escolas de samba como espaço de educação – portanto, instituições educacionais – a partir da perspectiva da Memória Social, causou-me um estranhamento que minha pesquisa não pudesse compor o eixo “Memória, história e instituições educacionais”. Estranhamento que se agravou no dia da apresentação, pois a roda de conversa em que eu fui inserida era composta por trabalhos sobre questões étnico-raciais na escola. No primeiro momento, minha interpretação foi que havia sido negada aos terreiros e Escolas de samba a possibilidade de serem entendidos como instituições educacionais. E que, já que se tratava se uma prática cultural afrodescendente, foram colocados em uma roda de conversa que falava sobre questões raciais sejam ela quais fossem, ou melhor, como se todas fossem uma coisa só. Incomodou-me, de alguma maneira, que o samba – por ser “assunto de pretos” – só pudesse ser discutido dentro de um eixo que tratasse de 15 questões raciais (mesmo que esse não fosse o enfoque do trabalho) e não em um eixo que discutia “Instituições Educacionais de qualquer modalidade, formais ou não”. Procurei a organização do evento, mandei inúmeros e-mails, mas não obtive resposta ou explicação sobre o que motivou a mudança de eixo. Até então, minha pesquisa não se aprofundara na questão racial, que era tratada “apenas” a título de contextualização da formação dos terreiros e da institucionalização das Escolas de Samba. Entretanto, esse acontecimento causou-me alguma inquietação e incentivou a minha reflexão acerca do assunto. Decidida de que essa discussão não poderia – mais – faltar na tese, matriculei-me na disciplina “Populações negras – raça e gênero”, ministrada pela professora Iolanda Oliveira, no PPG-Educação/UFF. Logo com os primeiros textos, cheguei ao entendimento tardio – provavelmente, devido à minha situação de privilégio enquanto pessoa branca – que pode ser resumido em uma frase dita pela professora: “não tem como estudar a educação no Brasil sem o recorte racial”. Não basta apenas afirmar o óbvio: que o samba foi perseguido por ser uma prática cultural afro-brasileira, inventada no processo da diáspora negra; é preciso lançar luz aos sofisticados processos de invenção, resistência e reexistência operados na fresta, na síncope. A Escola de Samba – assim como o jongo, o candomblé, a capoeira, entre tantos – é expressão de um povo que se recusou a deixar-se desencantar. E essa recusa se dá por meio de várias possibilidades: luta, resistência, mas também reinvenção, negociação. Pensar as Escolas de Samba como espaços de educação, é pensar numa pedagogia do encantamento, do reencantamento, do movimento, das possibilidades, da pluralidade de maneiras de vir a ser, da descolonização do pensamento. Isto posto, fui em busca, então, de um referencial teórico que desse conta da complexidade dos processos pedagógicos das culturas em diáspora no Brasil para analisar a educação nas Escolas de Samba. Sem deixar de levar em conta que nosso país passou por questões muito singulares dentre os países que passaram por regimes escravocratas – como o ideal de branqueamento – assumi a necessidade de buscar uma teoria brasileira, que falasse das nossas questões, e não somente de aproximações. É nesse momento queme encontro com a Pedagogia das Encruzilhadas, organizada por Luiz Rufino em sua tese de doutorado defendida em 2017 e publicada em livro em 2019, que versa sobre a dinâmica de mobilização de possibilidades de ser/saber no cruzo transatlântico inventadas em nossos terreiros. Até então, minha questão de pesquisa permanecia a mesma – entender os processos de mobilização de saberes nos terreiros cariocas e seus ecos na escola de samba 16 atual –, mas com um aprofundamento nas questões raciais que a permeavam. Outro objetivo começou a se desenhar para a tese, então, o de contribuir para a descolonização do pensamento ao lançar luz a formas de ser/saber que sofrem constantes tentativas de apagamento ou descredibilização. Mas não só isso. Também advertir sobre o que essas formas de ser/saber foram e são capazes: invenção de práticas culturais férteis, resistência e reexistência de grupos despedaçados na diáspora, a transgressão pela fresta, e muito mais. Dessa forma, no caso do objeto dessa pesquisa, revelar as possibilidades de ser/saber provocadas pelo espaço/tempo do samba – isto é, a sua pedagogia que transforma qualquer lugar no terreiro inventivo com o cruzo de diversas formas de saber que mobilizam outras formas de ser – para propor a terreirização do mundo como prática pedagógica antirracista e anticolonial. Como já foi dito nesta introdução, é de se esperar que a pesquisa mude ao longo do tempo, das reflexões, das disciplinas e das leituras realizadas durante o doutorado. Entretanto, a pandemia de Covid-19 trouxe a necessidade de outras mudanças – essas sim inesperadas. Precisei interromper a pesquisa de campo por conta do necessário isolamento social, bem como deixar de lado as entrevistas que ainda ocorreriam. Confesso que essa situação abrupta impactou muito na pesquisa, não só por essas questões práticas citadas, mas também por uma série de outras condições que a pandemia trouxe: problemas de saúde mental, o desmedido aumento da quantidade de trabalho e perda de familiares e pessoas próximas. Diante desse cenário, foi difícil dar conta da pesquisa, do emprego e das minhas atribuições de bolsista, tendo que priorizar estas em detrimento daquela. A situação que já parecia difícil se agravou pelo adoecimento e posterior falecimento do meu orientador. Embora o programa tenha se mobilizado rapidamente para me dar apoio nessa situação, indicando-me outra orientadora e concedendo-me a prorrogação da defesa, eu me senti muito perdida durante muito tempo. Essa introdução em tom de desabafo é para tentar contextualizar as constantes mudanças que o texto foi sofrendo ao longo do doutorado e para, de alguma forma, tentar justificar possíveis lacunas que tenham ficado. Depois de quase desistir (algumas vezes), redefini mais uma vez meu objetivo de pesquisa, que passou a ser buscar possibilidades no samba para uma educação antirracista e decolonial, aproveitando minha experiência em um projeto social que une samba e educação. Na Samba Educa, desde 2021, eu atuo como coordenadora pedagógica de um pré-vestibular e coordenadora de uma equipe de produção de materiais didáticos para esse segmento, que tem o samba como principal elemento transversal. Assim, minha pesquisa 17 acabou recaindo sobre a questão do currículo, que muitas vezes reforça o projeto colonial no campo educacional. A organização do texto se dá em quatro capítulos, que descrevo a seguir. No primeiro capítulo, faço algumas considerações sobre os conceitos de colonialidade, decolonial e decolonialidade a partir das análises de Fanon (1968), Hall (2011), Ballestrin (2013), Quijano (2010), Bernardino-Costa (2018) e Ferreira (2014). Em seguida, após a compreensão de que a colonialidade deixa um lastro nas sociedades mesmo após deixarem de ser oficialmente colônias, é feito um debate sobre como isso se expressa no currículo escolar ao longo dos anos por meio das reflexões dos autores Ávila e Hypolito (2020), Silva, Souza e Ferraz (2022), Oliveira (2020) e Saviani (2016). Ainda no capítulo 1, é proposta uma reflexão sobre a trajetória do samba e sobre como a educação pode ser uma prática emancipadora no tocante ao racismo. Por fim, evidencio a diversidade de possibilidades de significados reivindicados para educação e as pedagogias em disputa na sociedade, para destacar a dimensão política dessa discussão. Dessa maneira, justifico minha proposição de que os espaços de samba – assim como todos os espaços/tempo que comportam essas coletividades – são espaços de educação e que inventam uma pedagogia própria das culturas em diáspora no Brasil. Essa pedagogia foi organizada e nomeada por Luiz Rufino como Pedagogia das Encruzilhadas (RUFINO JUNIOR, 2017; RUFINO, 2019). Em seguida, é feito um levantamento de trabalhos acadêmicos que tratam das potencialidades do samba na educação. No capítulo seguinte, são feitos os apontamentos referentes à metodologia do trabalho. No terceiro capítulo, aponto a ampliação da noção de terreiro para pensar todo espaço/tempo em que está girando a Pedagogia das Encruzilhadas. Rufino (2017) propõe que pensemos o terreiro, a partir das culturas afro-diaspóricas como reinvenção do tempo/espaço no rito. Dessa maneira, somos convocados a terreirizar o mundo, isto é, encruzá-lo, para desconstruir a universalidade assumida pelo pensamento ocidental. Dessa forma, cada tempo/espaço que possibilita o cruzo, que inventa possibilidades, que nos convoca para outras maneiras de ser, será entendido como um terreiro. Portanto, que façamos da escola, da rua e de todas as instituições nossos terreiros. Como as Escolas de Samba são grandes exemplos de terreiros e o objeto desta pesquisa, realizo um breve contexto histórico e político da construção do samba carioca como prática cultural. No capítulo 4, ressalto a característica associativista das escolas de samba, e a importância que essas instituições dão para a educação, uma vez que a educação já era vista como uma via para a ascensão socioeconômica e para a conquista da cidadania, bem 18 como para a luta contra o racismo. Para essa análise, utilizei minhas observações realizadas durante minha pesquisa de campo na Portela sobre quatro ações praticadas pela escola. Por fim, no quinto capítulo são abordadas as propostas de ensino cruzado com o samba apontadas pela organização não governamental (ONG) Samba Educa, que busca provocar o aumento da empregabilidade e da renda de pessoas em vulnerabilidade social, incentivando a educação por meio da valorização da cultura afro-brasileira e da inclusão digital em comunidades ligadas ao samba. Para isso, analiso a primeira ação da Samba Educa, o Pré-vestibular Social (PVS) Dona Zica, e os caminhos percorridos para a abordagem do samba no curso pré-vestibular por meio de uma disciplina sobre a temática. Em seguida, discorro sobre um de seus desdobramentos – algo ainda embrionário –, que está em curso: a criação de uma plataforma de materiais digitais voltados para o conteúdo dos vestibulares e que tenham o samba como elemento transversal. Após uma breve contextualização de como se chegou a essa proposta, abordo os principais desafios e, finalmente, algumas possibilidades de ensino cruzado com o samba. 19 1 EPISTEMOLOGIAS, PEDAGOGIAS E ENSINO É relevante iniciar este capítulo trazendo algumas considerações sobre a palavra colonial. É a partir dela que será abordada, em seguida, a relevância e a importância do movimento decolonial. De modo mais genérico, colônia designa a ocupação e administração de um espaço por parte de um grupo ou governo que, por meio de força militar, se estabelece no local, gerindo, então, as fontes de riqueza e a vida social da região. A ocupação desse território se dá de modo truculento, com objetivo extrativista e impositivo. Dessa forma, grifa-se a opção teórica da presente pesquisa em se pautar naproposta de entendimento sobre colonialidade a partir dos escritos de Frantz Fanon (1968). De acordo com o autor, a violência é o que sustenta o sistema colonial. A violência do corpo, por meio de repressão estatal, e a violência mental, pautada na demonização das manifestações religiosas e culturais em forma de missões cristãs. Sobre o processo colonial, é importante salientar ainda que, enquanto fenômeno histórico, o colonialismo tem em seu cerne a expansão do capitalismo, uma vez que o antecede enquanto sistema de alcance mundial e o acompanha como política em suas mais distintas formas. Conforme Ferreira (2014, p. 255), “o capitalismo estendeu as relações coloniais sobre o espaço e as formas sociais, atualizando-o como componente estrutural de seu próprio sistema e amplificando de forma nunca antes vista sua dimensão e significado, tornando-o onipresente na história das diferentes sociedades”. Assim, para Ferreira (2014), o fator colonialismo na história moderna e contemporânea não implicou necessariamente sua problematização. Ao contrário, em diversos momentos e em diversas concepções, ele foi naturalizado no campo literário, ideológico e científico. A reflexão crítica sobre o colonialismo tem início de forma sistemática nas ciências sociais contemporâneas com as lutas revolucionárias, anticoloniais e com o processo de descolonização. Em relação ao fim da era colonial e seus limites temporais, Stuart Hall (2011, p. 95) provoca: Quando foi o Pós-colonial? O que deveria ser incluído e excluído de seus limites? Onde se encontra a fronteira invisível que o separa de seus “outros” (o colonialismo, o neocolonialismo, o Terceiro Mundo, o imperialismo) e em cujos limites ele se define incessantemente, sem superá-los em definitivo? [...] os pontos de interrogação que começam rapidamente a se aglutinar em torno da questão “pós-colonial” e da ideia de uma era pós-colonial. 20 Para Hall, a utilização do termo pós-colonialismo deveria ser aplicada com diferenciações, de acordo com cada caso. Para o autor, “nem todas as sociedades são pós- coloniais num mesmo sentido” (HALL, 2003, p.107). Dentro dessa lógica, o termo pós- colonial surge para entender o novo contexto em que não existe mais a relação de metrópole/colônia ou colonizador/colonizado. Novas relações foram criadas e pautadas no capitalismo, e dentro desse cenário, marcas do colonialismo ainda se faziam presentes. Frantz Fanon argumenta que o domínio estabelecido pela colônia aniquila e fragiliza culturalmente os nativos do território explorado. De acordo com o autor, O domínio colonial, porque total e simplificador, logo fez com que se desarticulasse de modo espetacular a existência cultural do povo subjugado. A negação da realidade nacional, as novas relações jurídicas introduzidas pela potência ocupante, o lançamento à periferia, pela sociedade colonial, dos indígenas e seus costumes, a usurpação, a escravização sistematizada dos homens e das mulheres tornam possível essa obliteração cultural. (FANON, 1968, p. 197) É a partir dessa perspectiva de invasão ao território e de violento estado de dominação que se faz necessário observar que, para além das estruturas econômicas, os invasores estabelecem também uma dinâmica de dominação psicológica. O colonialismo deixou uma espécie de lastro naquela sociedade. Assim, entende-se que a colonialidade decorre de um tipo de continuidade e perpetuação do pensamento colonial, algo como um servilismo contínuo, propagado nas relações de poder, saber e ser, conforme defende Ballestrin (2013). Em artigo sobre os estudos decoloniais no Atlântico Negro, Joaze Bernardino- Costa atenta para “o risco de um duplo apagamento ou dupla invisibilidade seja nas contribuições teóricas da decolonialidade, seja nos estudos sobre o Atlântico Negro” (2018, p.119). Como caminho para não cair nestas condições, o autor propõe radicalizar a tese da corpo-geopolítica do conhecimento, que para ele está “no coração do projeto decolonial”, além de buscar “enfatizar a importância das raízes (roots) nos estudos do Atlântico Negro” (2018, p.119). Bernardino-Costa argumenta que o giro decolonial é um projeto recente, mas que pode ser encontrada na “longa tradição de resistência e tentativa de ressignificação da humanidade articulada pela população negra e indígena”. (2018, p.121). Para o autor: Foi esse domínio colonial que permitiu a alguns definir a si mesmos como possuidores do conhecimento válido e verdadeiro, e a outros como destituídos de conhecimento. Deste modo, as múltiplas tradições indígenas, africanas, asiáticas, muçulmanas, hindus, entre outras, 21 sofreram um longo processo de deslegitimação no âmbito da modernidade/colonial. (2018, p.122) A colonialidade é, portanto, uma consequência dos anos de exploração colonial. Mesmo que o invasor não esteja mais no espaço dominado, ele deixa marcas permanentes naquela população e isso se perpetua ao longo do tempo. Podemos listar diversos exemplos sobre as marcas dessas ações. Fanon (1968) descreve, em Os condenados da terra, os métodos franceses de tortura quando os europeus invadem os territórios marroquinos e tunisinos, o autor trata também da questão dos desmembramentos familiares e da violência contra os costumes desses povos. Outro caso que demonstra de forma terrível o poder colonial no mundo é o caso da guerra civil ocorrida em Ruanda entre 1990 e 1994. Resultando em mais de 800 mil mortes da etnia denominada Tutsis, a tensão entre os povos que compõem a Ruanda – Utus, Twa e Tutsis – existe naquele território desde antes da ocupação europeia. No entanto, é preciso destacar que os europeus – primeiro os alemães, já no século XIX, num momento em que o mundo presenciava novo movimento de colonização – fomentaram essa rivalidade. Eles estabeleceram que os Tutsis deveriam ocupar os espaços de prestígio e poder naquele país. Com a ocupação belga, a ordem social pautada na manutenção de privilégio dos Tutsis permaneceu, porém se acirrou a questão supremacista. Os belgas alegavam que os Tutsis eram fenotipicamente superiores, estavam mais semelhantes aos europeus por isso. Mesmo após a independência, em 1962, a situação não foi amenizada, ao contrário, o processo revolucionário em curso inflamou ainda mais essa questão. Quando a situação estava totalmente fora de controle, a ONU e os países europeus envolvidos não agiram devidamente e muitas mortes foram geradas (CHRÉTIEN, 2014). Não foram só os países africanos que sofreram com essas intervenções que modificaram completamente o rumo histórico de seus povos. Os povos latino-americanos e asiáticos também sofreram com a tomada de seus territórios, esvaziamentos de suas culturas, guerras e depredação de espaços perpetrados por europeus (QUIJANO, 2010). São os brancos, oriundos dos países do hemisfério norte, autores da execução e expansão do capitalismo, e também quem imprimem há anos um padrão estético, cultural e religioso. A conversão religiosa também foi um modo de se impor e apagar vestígios da religião local. Em cartas trocadas entre jesuítas essa necessidade fica evidente. Na obra Auto de São Lourenço, o ímpeto de fé dos seguidores da Igreja Católica é teatralizado com viés salvador e, assim, os costumes locais são ridicularizados: 22 Dos vícios já desligados nos pajés não crendo mais, em suas danças rituais, nem seus mágicos cuidados. (ANCHIETA, 1973) É possível observar que a autoridade do pajé é negada, uma vez que simboliza o demônio. No segundo ato da peça é possível ler que: Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes são: Guaixará, que é o rei; Aimbirê e Saravaia, seus criados. (ANCHIETA, 1973) Nesse segundo ato, os nomes indígenas são associados à figurado demônio, são eles que tentam e colocam a comunidade local em perigo, na visão dos catequizadores. É sabido que o nome é algo profundamente íntimo e que está ligado à identidade pessoal dos indivíduos, portanto, quando um grupo estrangeiro cria a ideia de que determinados nomes não são positivos e que, pelo contrário, trazem perigo, são ruins, esse grupo está inferiorizando essas pessoas. Essa tática foi empregada pelos portugueses durante todo o processo colonial. Eles demonizaram o que não era europeu para estabelecer seu domínio. Como proposta de enfrentamento a esse tipo de colonialidade que ainda vigora em tempos atuais, uma vez que, séculos depois, ainda é comum que se atribua a lógica de que práticas culturais indígenas e africanas são demoníacas, o conceito de decolonialidade é uma possibilidade de desconstruir padrões eurocêntricos e valorizar as culturas ancestrais. O presente capítulo versa sobre as epistemologias que estão relacionadas ao campo da educação. No Brasil, a educação se forja no bojo das elites, composta por pessoas majoritariamente brancas, europeias, que sustentam o alicerce da educação nacional até os dias de hoje. Cristiane Ávila e Álvaro Hypolito (2020), em trabalho no qual analisam fatores que influenciam o currículo escolar dentro de ótica crítica, procuraram entender como esse currículo serviu para mediar questões étnico-raciais nas escolas. Para os autores, ao longo da história do Brasil, indígenas e africanos tiveram a educação formal negada, seus saberem continuaram a circular através da oralidade e dentro dos seus próprios grupos em atividades que faziam parte do cotidiano. A oralidade foi responsável por manter a tradição, em meio a uma disputa onde a cultura europeia, em especial a portuguesa, procurava se sobrepor. Mesmo com a abolição em 1888, africanos, seus descendentes e indígenas não faziam parte do projeto de nação que parte da elite social desenhava para o país, principalmente a população preta, que era vista como uma classe perigosa ou ociosa 23 (ALBUQUERQUE, 2009; CARVALHO, 1987; CHALHOUB, 1996; 2008; DANTAS, 2011; SEVCENKO, 1989; 2003). Apoiados na ideia de Mariléia Cruz, Ávila e Hypolito nos mostram que mesmo distantes das políticas públicas governamentais, o negro “esforçava-se para apropriar-se dos saberes formais exigidos socialmente” (2020, p.11). Sendo assim, os grupos formados por pessoas pertencentes às classes mais baixas da sociedade se organizaram em associações, clubes dançantes, sindicatos, agremiações carnavalescas, com a finalidade também educacional. A busca por educação formal era uma das estratégias que eram tecidas pelos africanos e seus descendentes para se colocarem em uma sociedade que procurava deixá- los às margens. A educação era vista como um caminho que permitiria uma ascensão socioeconômica (ÁVILA; HYPOLITO, 2020, p.11), ou como definiu Iris Verena Oliveira (2020, p.5), uma estratégia de emancipação: Fora do espaço da educação formal, sabe-se que as narrativas protagonizadas por pessoas negras remontam aos primórdios da história do Brasil. Recentemente, a historiografia tem evidenciado a atuação política mobilizada em torno de questões raciais, especialmente para o final do século XIX e início do XX. No período denominado pós- abolição, os pesquisadores apontam a construção de redes para atuação política, tal como a trajetória da Federação dos Negros do Brasil, em 1931, (DOMINGUES, 2011), da Frente Negra Brasileira, no mesmo ano, (GRAHAM, 2014), a União dos Negros de Cor, em 1930 e o Movimento Negro Unificado (MNU) em 1970 (SILVA, 2011). Quando as experiências de escolarização e iniciativas voltadas para a formação de pessoas negras são consideradas, inúmeras pesquisas apontam para as disputas protagonizadas por indivíduos que viam a educação como uma importante estratégia de emancipação. Com o passar das décadas e depois de muita luta de movimentos sociais pelo direito e acesso à educação formal, no início dos anos 2000, ocorreu, como nos mostra Oliveira (2020), uma “ocupação de espaços de poder” em importantes setores dos governos do Partido dos Trabalhadores por pessoas ligadas ao Movimento Negro, possibilitando assim, “uma disputa curricular sem precedentes na história do Brasil” (2020, p.5). Também foram aprovadas leis como a 10.639/03 e 11.645/08. O currículo já foi considerado uma técnica utilizada para planejar conteúdos que seriam passados aos alunos de acordo com a ocupação futura que desejassem. Essa ideia de currículo foi utilizada a partir do final do século XIX e início do XX, num contexto de industrialização, pós-guerra, imigração e massificação escolar. Diante desse cenário, o papel da escola passou a ser questionado e surgiu a necessidade de um currículo que “que 24 atendesse as necessidades da nova concepção de sociedade” (SILVA; SOUZA; FERRAZ, 2022, p.3). As teorias tradicionais ganharam destaque, seguindo duas tendências como a de Bobbitt e de Taylor, tendo por finalidade formar indivíduos que atendessem as necessidades da sociedade: Nesse contexto, as teorias tradicionais de currículo ganham destaque, evidenciando-se duas tendências: a de Bobbitt, pautada nos princípios da administração científica baseada em Taylor, onde é fundamental estabelecer padrões e em que a ideia central estava na organização e desenvolvimento do currículo (SILVA, 2017). Nesse modelo, a escola aqui é vista como uma empresa que deve ser eficiente, desenvolver as habilidades primordiais para as demandas profissionais, com o objetivo de formar o trabalhador especializado. Assim, vemos que nessa “perspectiva que considera que as finalidades da educação estão dadas pelas exigências profissionais da vida adulta, o currículo se resume a uma questão de desenvolvimento, a uma questão técnica” (SILVA, 2017, p. 24). (SILVA; SOUZA; FERRAZ, 2022, p.3-4) Ávila e Hypolito mostram que existiam outros modelos de currículo que também eram empregados com a finalidade de formar cidadãos “modelos” para a sociedade: Nos modelos curriculares tradicionais, a escolarização de massa tinha por objetivo “moldar corpos” para que os alunos aprendessem como se comportar em sociedade, afinal, os futuros trabalhadores precisam ter horários e posturas condizentes com o ambiente da fábrica. Para o funcionalismo, por exemplo, cada um tem seu lugar na sociedade e, para que o corpo funcione, todos os órgãos devem trabalhar em harmonia. (2020, p.12-13) Dentro dessa lógica, os autores criticam tais modelos, afirmando que essas práticas curriculares acabam muitas vezes fortalecendo a disposição social em que um manda e o outro obedece, aumentando assim a desigualdade social. Esses modelos, apresentados acima, fazem com que a escola acabe encaixando cada aluno em “seu lugar”. Como afirmam os autores, “Nesse sentido, explicam-se as diferentes estruturas escolares e os diferenciados tipos de currículos de acordo com os diferentes alunos que frequentam as instituições de ensino” (ÁVILA; HYPOLITO, 2020, p.13). Pensando na educação formal brasileira, o currículo apresentado a partir da massificação escolar buscou uma “visão geral das áreas do conhecimento, tendo por ênfase um currículo eurocêntrico” (ÁVILA; HYPOLITO, 2020, p.13) Este trabalho se propõe a traçar possibilidades de uso pedagógico de um elemento muito representativo da cultura brasileira: o samba. A proposta é que essa prática cultural seja mais uma aliada na educação decolonial. Mas cabe ressaltar que, como Luiz Antônio 25 Simas (2020) afirma, o decolonial é reler as sabedorias, encontrar, encruzilhar. Não é anular o pensamento ocidental em prol de outro. Sendo assim, configuradas as noções de colonial, colonialidade e decolonial, a seção seguinte se inicia com o objetivo de refletir sobre a trajetória do samba, a concepção de terreiro e como esses elementos criam uma simbologiaque sustenta toda uma tradição. 1.1 POR UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL: SAMBA, TERREIROS E ANCESTRALIDADE Tendo em vista que a decolonialidade é um movimento intelectual que busca realizar rupturas epistêmicas, releituras e reconfigurações do ser, do poder e do saber, inicio esta seção com o objetivo de discorrer sobre o samba, sobre a palavra terreiro e, por fim, sobre ancestralidade. Trago também uma reflexão sobre como a educação pode ser uma prática emancipadora no tocante ao racismo. Recorrendo à herança ancestral dos diversos povos africanos que foram trazidos ao Brasil forçadamente em um sistema de escravidão, as instituições políticas poderiam ofertar à população mecanismos suficientes de apropriação histórica de seus povos e suas culturas para que ocorresse alguma reparação do período de escravidão. A partir da segunda metade do século XIX e início do XX, ocorreu um intenso movimento migratório para o Rio de Janeiro, ocasionado por diversos fatores como: a proibição do tráfico intercontinental em 1831 e 1850, declínio da cafeicultura do Vale do Paraíba em 1870 e a abolição da escravatura em 1888. Essa onda migratória influenciou não apenas na densidade demográfica da cidade, como também no campo cultural e religioso.2 Para Moraes (2017, p.35), esse fluxo migratório no período do pós-abolição seria impulsionado também pela busca de oportunidades: Com a abolição, a mão de obra, que era escrava, tornou-se livre e dentro do mercado de trabalho ocupava posições inferiores ou compunha a massa desempregada. Nesse período, também ocorreu a migração de uma grande quantidade de pessoas vindas das regiões cafeeiras para a 2 Para mais ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Varíola, vacina e vacinofobia. In Cortiços e epidemias nas Corte Imperial. Editora Companhia das Letras.1996; FARIAS, J. B.; Mariza C. Soares. De gbe a iorubá: os pretos minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. África(s), v. 4, 2017; KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. Do que o “preto mina” é capaz: etnia e resistência entre africanos livres. Revista Afro-Ásia, 24 (2000); MORAES. Caio Sergio de. A Cidade do Feitiço – Feiticeiros no cotidiano carioca durante as primeiras décadas iniciais da Primeira República – 1890-1910. Universidade Federal Fluminense, Dissertação de Mestrado do departamento de História. 2017. 26 região central do Rio de Janeiro. Essa mudança ocorria pelo fato desses indivíduos acreditarem que encontrariam melhores condições de trabalho na Capital Federal. É preciso ter um cuidado especial ao tratar desses espaços de sociabilidade, pois se criou uma mística em torno deles – principalmente no que é conhecido como quintal da Tia Ciata – que merece ser observada minuciosamente. É comum, na literatura relacionada ao samba, os terreiros serem situados espacialmente apenas na região da Gamboa, chamada de Pequena África. Visão esta que foi amplamente difundida após a publicação do livro Tia Ciata e a pequena África do Rio de Janeiro, de Roberto Moura (1995). Neste livro, o autor propõe que a comunidade situada na região central da capital brasileira é a principal responsável pela construção da cultura popular carioca. Moura usa a casa da baiana Tia Ciata como símbolo desses espaços, o que ajudou a consagrá-lo no imaginário brasileiro como principal terreiro carioca. Embora não tenha excluído a participação de outros grupos nessa construção, eles vão ser esquecidos por toda uma historiografia subsequente. Porém, outros historiadores desconstroem essa visão da região central da cidade do Rio de Janeiro, apontando outros espaços próximos que contribuíram para a manutenção da herança africana Em Para além da casa da Tia Ciata: outras experiências no universo cultural carioca, Tiago Gomes (2003, p. 179) defende que “os baianos, por mais importantes que possam ter sido na constituição de uma cultura popular urbana na cidade do Rio de Janeiro, necessariamente dialogaram com tradições já existentes e com outros grupos recém-chegados”, fazendo referência aos então moradores da cidade e aos migrantes do Vale do Paraíba. A presença dos africanos de origem banto (centro- africanos) no Sudeste, em especial no Rio de Janeiro, contribuiu para a formação da identidade e da dinâmica da cidade. Destaca-se, como parte do cenário que os afro- baianos encontraram no Rio de Janeiro, além da língua, a parte religiosa como o calundu e outros ritos, onde mkisis eram cultuados e manipansos eram encontrados nas casas afrorreligiosas (KARASCH, 2000; POSSIDÔNIO, 2020). Como ressaltou Spirito Santo (2011), a cidade do Rio de Janeiro já estava ocupada por milhares de negros à época das migrações, pelo menos desde o século XVII. Por isso, questiona: Por que misteriosa razão esses escravos, a maioria deles realmente, como vimos, de origem bantu ou angolana, haveriam de esperar por mais de duzentos anos pela tal “liderança baiana”, para só então se “organizarem” culturalmente? (p.21) 27 O mesmo autor sugere que a explicação para a se atribuir o protagonismo dessa construção aos baianos é uma perspectiva racista, já que os negros dessa região seriam em grande parte de origem sudanesa, vistos durante muito tempo – devido a uma teoria do médico Nina Rodrigues – como superiores em relação aos bantu. Para Nina Rodrigues, os centro-africanos não eram desenvolvidos culturalmente como os sudaneses (os nagôs), e por isso não deu devida importância a eles em suas pesquisas (RODRIGUES, 2010). Já Gomes (2003, p. 177) atribui o sucesso dessa concepção de centralidade baiana ao ambiente no qual Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro foi lançado: Os anos 1980 assistiram a um vigoroso esforço de recuperação de visões alternativas aos projetos modernizadores levados à frente por grupos de elite da Primeira República. Dessa forma, a imagem de um grupo desterritorializado buscando reinventar sua identidade, e a partir daí criando as bases da sua luta por cidadania, caía como uma luva naquele contexto historiográfico. A ideia de uma “Pequena África”, portanto, aparece como uma estratégia de resistência política a projetos modernizadores da cidade, já que havia servido de contraponto às transformações impostas por Pereira Passos anos antes. Ambas as teorias são reflexos do momento político por que passava o Brasil na virada para o século XX. Com a abolição da escravidão e a Proclamação da República no ano seguinte, há um grande investimento dos primeiros governos republicanos na contenção desses negros recém-libertos. Diversas manifestações da cultura popular carioca, principalmente as de marcada influência africana, são incriminadas. No Código Penal de 1890, por exemplo, jogar capoeira passa a ser crime. Além disso, tendo o embranquecimento da população como projeto político, há grande incentivo das imigrações de europeus pelo poder público aliado a total falta de preocupação da inserção do ex-escravizado na sociedade. Segundo Moraes (2017, p. 41-42), Preocupados com as consequências da abolição, vários políticos pensaram em um projeto de lei para repressão à ociosidade. O surgimento de noções como “classes perigosas” e “classes pobres”, para apontar a mesma realidade das classes inferiores, estava ligado diretamente aos “homens de cor”, que nas ações policiais eram sempre os suspeitos preferenciais, tanto por causa do racismo científico quanto da experiência da escravidão. Para o autor, os espaços afrorreligiosos se tornam grandes locais de sociabilidade que permitem pessoas de diferentes status sociais a tecerem redes. Para nossa investigação, nesta seção, é menos importante chegar a uma resposta definitiva se houve 28 ou não prevalência de determinado grupo social que salientar a existência de uma disputa de narrativas sobre a formaçãodesses espaços. No início do século XX, o Rio de Janeiro passou por uma grande reforma urbana, fazendo com que a população pobre, composta na sua maioria por negros, passasse a ocupar não só alguns morros próximos à região central da cidade, como também o subúrbio. Essa reorganização urbana corrobora para o que chamaremos, agora no plural, de Pequenas Áfricas. Ou seja, em todo o Rio de Janeiro surgem esses espaços que congregam as pessoas em redes de sociabilidade para, através da festa e da fresta3 – essas frestas seriam os encontros, arranjos, os acontecimentos que dinamizavam esses grupos sociais –, ressignificarem sua experiência no mundo. A diáspora, desse modo, ao mesmo tempo em que rompe fronteiras e desfragmenta identidades, proporciona um novo entendimento das relações identitárias, uma alternativa à “metafísica da ‘raça’, da nação e de uma cultura territorialmente fechada” (GILROY, 2001). Hoje, considerados por alguns, espaços distantes um do outro, já houve um momento em que não se poderia dissociar o terreiro de candomblé do terreiro de samba. O chão onde os deuses africanos faziam sua dança sagrada e reconstruíam por um breve momento uma parte da África era o mesmo que acolhia os sambistas que se esquivavam da repressão, já que até a década de 1930, no Brasil, a lógica do Estado era a de criminalização das práticas culturais atribuídas aos negros, como a capoeira, o samba e o Candomblé. Eram, muitas vezes, os terreiros que acolhiam a comunidade negra, formando redes de proteção social fundamentais no processo de restabelecimento desse grupo social após a experiência da escravidão. Esses espaços chamados de terreiros são mais que um chão de terra batida onde se realizavam rituais de tradição africana ou onde se tocava samba, mas locais com grande importância política na construção da nossa sociedade. Lugar de reinvenção de uma memória propositalmente devastada, o terreiro é, além de um espaço de resistência, um dinamizador de práticas culturais basilares na formação da cultura popular, principalmente no Rio de Janeiro. Ressaltando que as culturas africanas não dissociavam, então, sagrado e profano, observamos como as práticas religiosas coexistiam com as práticas festivas musicais. Um dos terreiros mais reconhecidos na construção e consolidação do samba carioca é a já citada casa da Tia Ciata, baiana festeira que reunia 3 CUNHA, Maria Clementina Pereira(org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da cultura. São Paulo: Editora UNICAMP, CECULT, 2002 .447 pp. 29 músicos ao redor dos seus quitutes e que ajudaram a construir o modo carioca de fazer samba, entre eles estão Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha. O samba, portanto, não é apenas ritmo musical, é prática cultural, é forma de viver no mundo. De acordo com Simas (2015, p. 1), a história do samba é muito mais que a trajetória de um ritmo, de uma coreografia, ou de sua incorporação ao panorama mais amplo da música brasileira como um gênero seminal, com impressionante capacidade de dialogar e se redefinir a partir das circunstâncias. O samba é muito mais do que isso. Em torno dele circulam saberes, formas de apropriação do mundo, construção de identidades comunitárias, hábitos cotidianos, jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, celebrar os deuses e louvar os ancestrais. Tudo isso que se aprendia e se ensinava na Rua Visconde de Itaúna, 117. O terreiro da Tia Ciata, o de dona Esther, assim como tantos outros, eram então uma estratégia de resistência e reexistência dos povos negros. Dentre as inúmeras estratégias utilizadas por esse grupo na luta pela conquista de seus direitos, estão as diversas formas de ser organizarem enquanto coletividade, organizando festas e construindo sociabilidades em torno das macumbas de origem afro-brasileiras, da nascente umbanda, dos batuques dos sambas e das rodas de dança do jongo e do caxambu, danças oriundas dos negros bantos do Vale do Paraíba, os moradores construíam laços de pertencimento e identidade. (SIMAS, 2016, p. 4) Essas expressões artísticas, como vimos, funcionam como meios de essa população se manter não só organizada coletivamente, mas também agindo ativamente no mundo recriando sua realidade e sobrevivendo ao presente de repressões e privação de direitos. E alguns dos espaços que possibilitaram isso foram os terreiros. O samba, gestado nesses lugares, conquistou uma força cultural e política tão grande que foi transformado pelo poder público em um dos maiores símbolos da identidade nacional, que o utiliza para de certa forma manter o mito da democracia racial, não sem tentar modificá-lo “desafricanizando-o”. Quando adotado pela indústria fonográfica, o samba já havia sido modificado: em detrimento da percussão, foram inseridos mais instrumentos de corda, por exemplo. Esse é um dos exemplos de como esse processo de construção do samba não se deu de uma forma livre de conflitos, disputas, negociações e silenciamentos. Se atualmente o samba é um estilo que goza de algum prestígio, é relevante mencionar que foi um percurso tortuoso até seu processo de aceitação social. Conforme mencionado por Simas (2015), o samba é formado por diversos saberes, por práticas que 30 contam a história de um povo – de um povo perseguido, rejeitado socialmente por anos. E comprometer-se com o projeto educacional significa olhar além dos mecanismos teóricos e dispositivos clássicos fomentados por políticas que nem sempre priorizam as demandas da população. De acordo com Simas (2020, p. 55): Os comprometidos com a tarefa da invenção do país nas encruzilhadas da educação não poderão se esconder mais apenas em seus aparatos teóricos, leituras clássicas e ideologias redentoras. A educação está também fora dos muros escolares. Se a escola não reconhecer isso, pior para ela e para quem ela educa. Cabe ao educador comprometido se valer da realidade na qual está inserido, e neste trabalho, busco analisar como que o samba inspira novas possibilidades pedagógicas em seus terreiros e no terreiro escola - a escola formal propriamente dita -, por meio do uso de enredos, avaliando o trabalho dos desfiles e seu conteúdo cênico, por exemplo, e também na dimensão social, comunitária, no campo da ação. Já que “a escola colonial, tão presente, busca educar corpos para o desencanto e para os currais do mercado de trabalho, normatizados pelo medo de driblar/gingar/pecar” (SIMAS, 2020, p.56), o samba e todo seu repertório histórico são primordiais na desconstrução do projeto colonial que ainda vigora no campo educacional. 1.2 DESCONSTRUINDO PARA CONSTRUIR: O CURRÍCULO COMO AÇÃO DINÂMICA NO ESPAÇO ESCOLAR Ao analisar a história da educação formal no Brasil, desde a chegada dos portugueses, passando pelo período do Império, pós-abolição, República, Ditadura, e período de redemocratização do país, será possível perceber que o projeto educacional vigente nos respectivos momentos, com algumas poucas exceções, estava voltado para priorizar famílias abastadas. Como já dito, para Ávila e Hypolito (2020), o currículo apresentado no Brasil, a partir da massificação escolar, buscou dar uma “visão geral das áreas do conhecimento, tendo por ênfase um currículo eurocêntrico” (p.13). Os autores afirmam que os livros didáticos apresentam indígenas e africanos em situações de inferioridade, ideia reforçada muitas vezes por obras clássicas de artistas como Rugendas e Debret, e não mostrando atos de resistência. Neste contexto, são a essas representações que os alunos são submetidos “em relação a etnia africana e afro-brasileira” (2020, p.13). Outro exemplo é o período do pós-abolição, em que a família branca e patriarcal é modelo ideário para a 31 sociedade enquanto os negros são mostrados em condições subalternas. Os autores argumentam que “a cultura escolar pareceestar associada ao capital cultural das classes dominantes” (2020, p.13-14). Para Kátia Basílio, o currículo é “uma construção sistemática de conhecimentos socializado pelas instituições escolares e o contexto social, econômico, político e cultural que ele representa” (2018, p. 34). Foram anos de lutas dos movimentos negros para que, aos poucos, o acesso de pessoas pretas fosse melhorado. Nesse sentido, uma conquista importante aconteceu em 2003, quando foi sancionada a Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Foi preciso uma lei para que as instituições educacionais tratassem desta temática. A comunidade indígena também reivindica que suas particularidades sejam respeitadas e, então, em 2008, é promulgada a Lei 11.645, que institui a obrigatoriedade das temáticas indígenas na educação básica. Nilma Lino Gomes (2012, p. 105) apontou a potência que a Lei n° 10.639/03 tem para provocar o rompimento do silêncio em relação à discriminação social, porque legitima a abordagem das questões da história e culturas africana e afro-brasileiras: Nesse sentido, a mudança estrutural proposta por essa legislação abre caminhos para a construção de uma educação anti-racista que acarreta uma ruptura epistemológica e curricular, na medida em que torna público e legítimo o “falar” sobre a questão afro- brasileira e africana. Mas não é qualquer tipo de fala. É a fala pautada no diálogo intercultural. E não é qualquer diálogo intercultural. É aquele que se propõe ser emancipatório no interior da escola, ou seja, que pressupõe e considera a existência de um “outro”, conquanto sujeito ativo e concreto, com quem se fala e de quem se fala. E nesse sentido, incorpora conflitos, tensões e divergências. O conflito, dessa forma, faz parte de toda experiência pedagógica que se propõe a ser emancipatória, já que desestabiliza os modelos dominantes. O currículo é um elemento de grande relevância em toda a composição escolar, é ele que reúne as competências necessárias de um saber aprovado socialmente. Ele também é o responsável por dilatar as desigualdades encontradas nas instituições, uma vez que, independentemente das condições sociais e econômicas, os alunos são submetidos ao mesmo tipo de conteúdo. Demerval Saviani (2016, p. 55), quando define currículo, trata desse seu caráter decisivo em ação nos espaços escolares: O currículo em ato de uma escola não é outra coisa senão essa própria escola em pleno funcionamento, isto é, mobilizando todos os seus 32 recursos, materiais e humanos, na direção do objetivo que é a razão de ser de sua existência: a educação das crianças e jovens. Poderíamos dizer que, assim como o método procura responder à pergunta: como se deve fazer para atingir determinado objetivo, o currículo procura responder à pergunta: o que se deve fazer para atingir determinado objetivo. Diz respeito, pois, ao conteúdo da educação e sua distribuição no tempo e espaço que lhe são destinados. Se o currículo é a escola em movimento, em ação, é urgente romper com o projeto domesticador do domínio colonial que ainda se encontra nele. A partir do documento de orientação curricular do estado do Rio de Janeiro, aprovado em 2019 e colocado em uso a partir de 2020, foi possível observar que a proposta inicial curricular está alinhada ao ideal de diversidade, uma vez que: Considerando as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais, o Art. 26 da LDB (Lei 10.639/03 e 11.645/08), que versa sobre o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena na educação básica, a valorização da diversidade é fundamental para construção de uma nação democrática, na medida em que combate os preconceitos e promove a equidade. Neste sentido, destacamos a importância de uma orientação curricular que privilegie a diversidade de seus territórios em toda a sua abrangência, oportunizando aos seus atores identificar-se como parte do processo do seu lugar e de sua identidade. Assim, apontamos que trazer para o debate questões sobre racismo nos permite combatê-lo e trazer à tona, reflexões sobre tensões, igualdade, desigualdades, discriminação, diferenças e privilégios. Com isso, assinalamos que, cada território, escola pública ou privada, ao complementar e enriquecer sua proposta curricular possa abordar dentre outros, os temas apresentados a seguir, em uma perspectiva crítica, decolonial e antirracista: África como berço da humanidade; A diáspora africana no Brasil; África e suas tecnologias; Povos tradicionais, seus saberes e valores civilizatórios; A estética como um importante território de negação ou afirmação negra; Diversidade, na perspectiva daqueles que estão em situação de vulnerabilidade e ou exclusão; Trabalhar com as relações de gênero nas relações étnico-raciais, como o feminismo negro; A valorização de valores civilizatórios afro- indígenas como a oralidade e a circularidade, bem como as demais culturas locais e a Formação Continuada de professores(as) em Educação para as Relações Étnico-Raciais. (Base Nacional Comum – Documento de orientação curricular do estado do Rio de Janeiro – p. 27-28) O documento versa especificamente sobre a valorização da diversidade, sobre o combate ao preconceito, sobre abordagens decoloniais que emancipem e promovam a devida equidade entre aqueles que ocupam as escolas. Destaco “os que ocupam as escolas”, porque o currículo vai educar também todos os integrantes da equipe escolar e sua comunidade de inserção. Isso acontece, uma vez que uma atividade promovida no cerne de uma aula que tenha como objetivo, por exemplo, tratar dos sambas de Martinho 33 da Vila e sua biografia, e que seja exposta nas dependências do prédio escolar, poderá atingir de alguma forma funcionários da limpeza, trabalhadores da secretaria, os responsáveis pela merenda escolar, os responsáveis dos alunos, os demais professores e todos aqueles que circularem naquele espaço. Não existe isenção quando a questão é o currículo, pois “para o acesso ao saber sistematizado é que se torna necessária a escola” (SAVIANI, 2016, p. 55). Se a escola é composta pelo currículo e o currículo é a própria escola em funcionamento, tal conteúdo não tem como ser imparcial, uma vez que nele estão inseridas as concepções de mundo vigentes. Ali se concretizam as relações sócio-históricas de poder. Uma importante consideração a se fazer em relação à implementação da Educação das Relações Étnico- Raciais é que, inicialmente, conservadores do status quo viram na lei um tipo de empobrecimento intelectual e curricular; entretanto, diante das articulações dos movimentos sociais e dos professores comprometidos com a causa, a lei se estabeleceu e, quase 20 anos depois de sua implementação, a sociedade colhe seus frutos. Certamente, o cumprimento da lei não ocorre ainda da forma ideal, mas diante de suas consequências – mudança de perspectiva na produção de material didático, conteúdo cobrado em exames governamentais, como os vestibulares –, é possível perceber avanços. Conforme Nilma Lino Gomes (2012) aponta, muito já foi denunciado em relação ao desafio de descolonizar os currículos, mas é importante considerar as mudanças mobilizadas pelas lutas coletivas e individuais dos ditos excluídos: As mudanças sociais, os processos hegemônicos e contra-hegemônicos de globalização e as tensões políticas em torno do conhecimento e dos seus efeitos sobre a sociedade e o meio ambiente introduzem, cada vez mais, outra dinâmica cultural e societária que está a exigir uma nova relação entre desigualdade, diversidade cultural e conhecimento. (p. 102) As escolas e as universidades, instituições inseridas nesse complexo contexto, são convocadas a um “processo de renovação”.No entanto, segundo a autora, não mais uma renovação que está relacionada apenas à teoria, mas sim uma realmente comprometida com a relação entre a teoria e a prática, “uma renovação do imaginário pedagógico e da relação entre os sujeitos da educação” (p. 103). Dessa forma, o currículo passa a ser um território em disputa. A autora chama a atenção para a necessidade de compreendermos a Lei n° 10.639/03 como uma possibilidade de “mudança estrutural, conceitual, epistemológica e 34 política” (GOMES, 2012, p. 106) e não apenas como novos conteúdos escolares a serem introduzidos no currículo. Para isso, a autora cita um duplo desafio: explicar a relação colonial na construção da história do mundo ao mesmo tempo em que se propõe alternativas a essa leitura da história (p. 107). Dessa forma, embora haja avanços na mudança da perspectiva educacional brasileira, a lei sozinha não produz os efeitos que poderia no campo do social. Em Ensinando a transgredir, bell hooks escreve que teve uma experiência de aprendizado como revolução em sua escola. A autora, que teve parte de sua educação em uma escola frequentada somente por negros, afirma ainda que: Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo, à vida do intelecto, era um ato contra-hegemônico, um modo fundamentalmente de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista. [...] minhas professoras praticavam uma pedagogia revolucionária de resistência, uma pedagogia profundamente anticolonial. (HOOKS, 2019, p. 10) Ela traz em seu depoimento a relevância de um corpo docente comprometido com a questão da formação e do nível de conscientização que elas tinham. O aluno negro, pobre, tem dificuldade em se reconhecer como sujeito pertencente ao espaço escolar, pois há uma cisão entre a realidade experienciada na escola e a realidade vivida em casa e/ou na sua comunidade. A estrutura proposta pelas unidades escolares é fixa, estruturada de modo hierárquico em que o professor é a figura protagonista, numa espécie de palco projetado em algumas arquiteturas. As dinâmicas escolares não valorizam a partilha, o conhecimento parte do professor e ele transmite esse conhecimento aos seus alunos. bell hooks (2019, p.25) propõe, assim, uma pedagogia engajada, que consiste num entrosamento entre professor e aluno: “(...) não é o de simplesmente partilhar informações, mas sim o de participar do crescimento intelectual e espiritual dos nossos alunos”. O aprendizado não deve funcionar como uma rotina de linha de produção. No que diz respeito aos currículos oficiais, por mais que esses documentos tenham, ao longo dos anos, passado por inúmeras transformações, e que as metodologias educacionais tenham atualmente mais afinidade com o seu alunado, é preciso problematizar a questão de o currículo ser fixo e ainda assim ter como proposta dar conta de uma realidade complexa e diversa. O próprio currículo, quando aborda o tema voltado para a formação do povo negro na constituição do que atualmente é o Brasil, não oferece aporte ao professor sobre as etnias que compunham a sociedade, seus nomes, suas tradições. Em relação aos indígenas ocorre o mesmo, usam “negros” e “indígenas” de 35 forma única, como se não fossem povos, línguas e costumes distintos. O professor, ao optar por tal aprofundamento, deve preterir outro item de conhecimento. Assim, o currículo é limitante, porque, à medida em que os conhecimentos são selecionados, o docente não tem o tempo necessário para acompanhar o crescimento intelectual de seu alunado, já que os conhecimentos são hierarquizados. Por exemplo, Português e Matemática possuem mais tempo de ensino na carga horária, consequentemente, essas disciplinas são socialmente entendidas como mais importantes do que Artes e Geografia, que possuem menos tempo. A hierarquização das culturas aparece na formação desses currículos, em que a cultura do dominante se sobressai à do dominado. Ela deixa de ser democrática e isso interfere na formação curricular. Os Estudos Culturais surgem buscando romper com os modelos que enxergam “a cultura apenas a partir de um único ponto de vista, mas compreendendo que existem várias e buscando também romper com os binarismos” (SILVA; SOUZA; FERRAZ, 2022, p.5). Sendo assim, quando a cultura passa para o centro do debate, cria-se uma relação entre pedagogia e os Estudos Culturais em educação. Isso contribui para o processo de ensino-aprendizado e para o processo cultural, que tem “ações de aprendizagens na formação do sujeito, das suas identidades” (SILVA; SOUZA; FERRAZ, 2022, p.5-6). Em comunidades no Rio de Janeiro que têm forte ligação com a história do samba, como em Mangueira, por exemplo, a história local não poderia estar dissociada do saber escolarizado. A vivência daquelas pessoas, o samba, os compositores, não podem estar na escola apenas nas datas festivas, já que se trata de uma questão identitária relevante. E assim seria em todas as comunidades escolares brasileiras; cada local levando em conta a sua história, suas raízes. Entretanto, por trás da estrutura curricular está a manutenção de privilégios que beneficiam o grupo hegemônico que compõe a elite. Mesmo o Brasil tendo dimensões continentais, a política de uma base curricular comum vigora e ela sustenta os exames de acesso às universidades, acesso concorrido, mas com vagas preenchidas majoritariamente pela elite. Assim, o currículo sustenta e reproduz as desigualdades sociais. Ao professor capacitado, cabe fazer malabarismos para dar conta dos conteúdos de forma humanizada, possibilitando aos alunos uma visão crítica, mas também o direito de acesso ao mundo do trabalho no futuro. É preciso desconstruir a visão do currículo como único eixo possibilitador do conhecimento, ele deve funcionar como possibilidade de em que se parte dele didaticamente, mas que a escola não se limite ao campo do 36 conhecimento colonial. Nesse sentido, no Rio de Janeiro, fazer uso do samba como instrumento didático é ação, de revolução, uma forma de fortalecer os vínculos históricos positivos da comunidade negra, é também um recurso válido para o cumprimento do conteúdo das relações Étnico-Raciais. O samba ainda não é entendido em todas as suas potencialidades, os desfiles protagonizados no carnaval menos ainda. Esses eventos são valorosos instrumentos pedagógicos e as comunidades envolvidas levam um ano inteiro se preparando e ensaiando para o dia do desfile. Vários são os saberes envolvidos em toda essa produção, saberes matemáticos, históricos, habilidade de escrita, saber artístico, movimento corporal, conhecimentos geográficos, científicos, toda uma gama de conhecimento está inserida no momento auge da escola de samba. Se não por uma questão de colonialismo, por que nossas escolas priorizam os movimentos artísticos europeus e não valorizam o espetáculo do carnaval? O mesmo é possível pensar sobre como os deuses gregos são estudados de forma natural nas escolas, mas os Orixás são malvistos; ou então no campo dos esportes, em que o futebol e o vôlei são muito praticados nas aulas de Educação Física, já a capoeira não recebe o mesmo protagonismo. 1.3 A PEDAGOGIA DAS ENCRUZILHADAS COMO POSSIBILIDADE Tendo em vista a estrutura teórica apresentada até aqui, desenha-se a ideia principal de que o samba e seu arcabouço cultural são elementos pedagógicos decoloniais de suma importância. Apresento, portanto, nesta seção um conceito de grande valia para toda a pesquisa. Como já me deparei com muitos questionamentos sobre a legitimidade de entender os espaços/tempos de samba como espaços/tempos de educação, inicio apresentando a diversidade de possibilidades de significados reivindicados para educação e as pedagogias em disputa na sociedade para destacar a dimensão política dessa discussão. Dessa forma, justifico minha proposição de que os espaços de samba são,