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SambaeEducação_LaísOliveira_tesefinal (1)

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO 
DOUTORADO EM EDUCAÇÃO 
LINHA DE PESQUISA CIÊNCIA CULTURA E EDUCAÇÃO 
 
 
 
LAÍS VIANNA DE OLIVEIRA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SAMBA E EDUCAÇÃO: 
CRUZANDO POSSIBILIDADES PARA UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA E 
DECOLONIAL 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NITERÓI 
2022 
 
 
LAÍS VIANNA DE OLIVEIRA 
 
 
 
 
 
Samba e educação: cruzando possibilidades para uma educação antirracista e decolonial 
 
 
 
 
Tese presentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade 
Federal Fluminense, como requisito necessário 
para a obtenção do título de Doutora em 
Educação. 
 
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Shaula Maíra Vicentini 
de Sampaio 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
NITERÓI 
2022 
 
 
 
 
 
 
LAÍS VIANNA DE OLIVEIRA 
Samba e educação: cruzando possibilidades para uma educação antirracista e decolonial 
 
 
Aprovada em 22/12/2022 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
Shaula Maíra Vicentini de Sampaio (Orientador) 
Universidade Federal Fluminense 
 
 
 
Dinah Vasconcellos Terra 
 Universidade Federal Fluminense 
 
 
 
Maria Jacqueline Girão Soares de Lima 
 Universidade Federal Fluminense 
 
 
 
Marco Antonio Leandro Barzano 
Universidade Estadual de Feira de Santana 
 
 
 
Glória Regina Pessoa Campello Queiroz 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro 
 
 
AGRADECIMENTOS 
 
Agradeço, primeiramente, ao meu companheiro de vida, Edu Lima, que foi meu 
porto seguro durante grande parte desse processo. Sem seu apoio incondicional, eu não 
teria chegado até aqui. 
Ao (sempre) Beto Fininho, grande compositor portelense, por ter compartilhado 
tanto comigo sobre uma de suas grandes paixões: o samba. Beto sempre foi mais que o 
“meu orientador” ou o “professor José Roberto Bernardo”, ele sonhou e construiu essa 
pesquisa comigo lado a lado enquanto pôde – infelizmente, por pouquíssimo tempo. 
Espero que – encantado onde estiver – esse texto lhe dê algum orgulho, mesmo que não 
tenha acontecido do jeito que nós imaginamos. 
À minha orientadora Shaula Sampaio, por ter aceitado o desafio de orientar minha 
pesquisa em um contexto tão delicado, e por ter estendido a mim o carinho que tinha pelo 
Beto. 
Aos professores da banca, Glória Queiroz, Marco Barzano, Dinah Terra e 
Jacqueline Girão, pela gentileza de terem aceitado o convite, minha imensa gratidão. 
À minha família, por toda motivação e orações. Especialmente, à minha avó 
Fátima Vianna, por todo investimento que fez em mim e na minha educação; e à minha 
tia Gláucia Vianna, a primeira doutora da família e minha primeira inspiração. 
Aos meus amigos, que me incentivaram sempre, entendendo minhas ausências. 
Agradeço especialmente a Daniele Feliz, Caio Sérgio Moraes, Julia Moura e Lúcia Soares 
por suas contribuições importantíssimas para esse trabalho acontecer. E ao Ygor Lioi; 
antes de tudo, por ser uma inspiração como professor e mobilizador cultural; por valorizar 
o meu trabalho e me convidar para projetos incríveis; e, por fim, por toda contribuição 
para esta tese. 
Ao Carlos Ferrão, por me ensinar tanto, incentivar, confiar no meu potencial e 
compreender minhas ausências - principalmente - na reta final do doutorado. 
À CAPES, pela bolsa concedida. E ao Programa de Pós-graduação em Educação 
da UFF, por toda compreensão e apoio prestado nesse período tão conturbado que foi o 
meu doutorado. Aos professores do programa, por todo conhecimento partilhado, 
especialmente à professora Iolanda Oliveira. E aos meus colegas borgeanos, que 
trouxeram alguma leveza para esse processo. 
 
 
A todos os portelenses, de hoje e de outrora, pela força arrebatadora desse rio que 
passou em minha vida. Especialmente, a um dos maiores portelenses que eu conheço, 
Társilo Coutinho, também pela entrevista concedida. 
 
 
 
RESUMO 
 
Propõe-se apresentar, nesta tese, possibilidades de práticas pedagógicas mobilizadas pelo 
samba com o objetivo de salientar a potência dessa prática cultural na construção de uma 
educação antirracista e decolonial. Para isso, foram analisados alguns dos dispositivos 
educativos mobilizados pela Escola de Samba Portela – no âmbito da educação não 
formal – e pela Organização não governamental Samba Educa – no contexto da educação 
formal. Buscou-se também compreender como o currículo muitas vezes reforça o projeto 
colonial no campo educacional. Para tal, são analisados os conceitos de colonialidade e 
decolonialidade a partir das análises de Fanon (1968), Hall (2011), Ballestrin (2013), 
Quijano (2010), Bernardino-Costa (2018) e Ferreira (2014). Em seguida, é feito um 
debate sobre como isso se expressa no currículo ao longo dos anos por meio das reflexões 
dos autores Gomes (2012), Ávila e Hypolito (2020), Silva, Souza e Ferraz (2022), 
Oliveira (2020) e Saviani (2016). Além disso, é apresentada uma reflexão sobre a 
trajetória do samba e sobre como seus terreiros são espaços/tempos de educação, que 
inventam uma pedagogia própria das culturas em diáspora no Brasil. Por fim, é 
evidenciado como o samba é um elemento primordial na desconstrução do projeto 
decolonial que ainda vigora no campo da educação. 
 
Palavras-chave: Educação Antirracista. Samba. Decolonialidade. 
 
 
 
 
ABSTRACT 
 
The present work aims to present possibilities of pedagogical practices concerning samba 
as a way to stress the power of this cultural practice in the construction of an Anti-racist 
and Decolonial Education practices. Therefore, we evaluated some educational tools by 
the Brazilian Samba School Portela and by the non-governmental organization Samba 
Educa – both in terms of formal and informal Education. We also aimed to understand 
how the school curriculum usually reinforces the colonial project in the Educational field. 
In order to do that, we analyze some concepts of coloniality and decoloniality as the 
following authors describe: Fanon (1968), Hall (2011), Ballestrin (2013), Quijano (2010), 
Bernardino-Costa (2018) and Ferreira (2014). Afterwards, we promote a debate about 
how this expresses in the curriculum along the years, according to Gomes (2012), Ávila 
and Hypolito (2020), Silva, Souza and Ferraz (2022), Oliveira (2020) and Saviani (2016). 
Besides that, we encourage reflection about the journey of samba and how their shrines 
are space and time for Education, which invent their own pedagogy of some cultures' 
diaspora in Brazil. Finally, we show how samba is a main element in the deconstruction 
of the decolonial project still in force in the field of Education. 
 
Keywords: Anti-racist Education. Samba. Decoloniality. 
 
 
 
LISTA DE FIGURAS 
 
Figura 1 - Publicação do historiador Luiz Antonio Simas na rede social Facebook .......50 
Figura 2- Destaque de carro alegórico da Paraíso do Tuiuti com a fantasia "Vampiro 
neoliberalista" ..................................................................................................................62 
Figura 3 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 – capitão do mato ..................66 
Figura 4 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 - grilhões ...............................66 
Figura 5 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 – pretos-velhos ......................67 
Figura 6 - Comissão de frente da Paraíso do Tuiuti 2018 – quebra das correntes ..........67 
Figura 7 - Desfile do Salgueiro 2018 – comissão de frente.............................................69 
Figura 8 - Desfile do Salgueiro 2018 - yabá ....................................................................70 
Figura 9 - Desfile do Salgueiro 2018 - carro alegórico ...................................................70 
Figura 10 - Desfile do Salgueiro 2018 - destaque em carro alegórico ............................71 
Figura 11 - Carro alegórico representando uma Pietá negra com o filho morto, com otexto de 'Quarto de despejo'. ............................................................................................72 
Figura 12 - Bateria Salgueiro 2018..................................................................................74 
Figura 13 - Alunos e colaboradores dos projetos sociais no palco posando para foto. ...76 
Figura 14 - Publicação na rede social Twitter sobre a escolha do samba da Portela de 
2022 .................................................................................................................................89 
Figura 15 - Publicação na rede social Twitter sobre a escolha do samba da Portela de 
2022 .................................................................................................................................89 
Figura 16 - Publicação na rede social Twitter divulgando a série "Igi Osè Baobá é 
Afrobetizar" .....................................................................................................................90 
Figura 17 - Publicação na rede social Twitter sobre a série "Igi Osè Baobá é 
Afrobetizar" .....................................................................................................................94 
Figura 18 - Salão Rosa do Museu do Samba .................................................................103 
 
 
 
 
LISTA DE TABELAS 
 
Tabela 1 - Episódios da série de vídeos "Igi Osè Baobá é Afrobetizar" .........................94 
 
 
 
 
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 
 
FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty 
FLIPORTELA – Festa Literária da Portela 
FLUP – Festa Literária das Periferias 
GRES – Grêmio Recreativo Escola de Samba 
GRANES – Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba 
MIS – Museu da Imagem e do Som 
ONG – Organização Não Governamental 
PVS – Pré-vestibular Social 
UES – União das Escolas de Samba 
 
 
 
SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................12 
1 EPISTEMOLOGIAS, PEDAGOGIAS E ENSINO .............................................................................19 
1.1 POR UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL: SAMBA, TERREIROS E ANCESTRALIDADE ........25 
1.2 DESCONSTRUINDO PARA CONSTRUIR: O CURRÍCULO COMO AÇÃO DINÂMICA NO 
ESPAÇO ESCOLAR ..............................................................................................................................30 
1.3 A PEDAGOGIA DAS ENCRUZILHADAS COMO POSSIBILIDADE .........................................36 
1.4 REVISÃO SOBRE SAMBA E EDUCAÇÃO ...................................................................................40 
2 CAMINHOS METODOLÓGICOS ......................................................................................................47 
3 DOS TERREIROS CARIOCAS PARA O TERREIRO MUNDO ....................................................52 
3.1 AS ESCOLAS DE SAMBA CARIOCAS .........................................................................................53 
3.1.1 O desfile- aula: “Vou começar a aula perante a comissão, muita atenção” ...........................58 
3.1.1.1 Paraíso do Tuiuti 2018: Meu Deus, Meu Deus... Está extinta a escravidão?..................................... 63 
3.1.1.2 Acadêmicos do Salgueiro 2018: Senhoras do Ventre do Mundo ...................................................... 68 
4 SAMBA, ASSOCIATIVISMO E EDUCAÇÃO: INICIATIVAS POSSÍVEIS .................................75 
4.1 PROJETOS SOCIAIS DO DEPARTAMENTO DE CIDADANIA ..................................................75 
4.2 POR TELAS: OFICINA DE FORMAÇÃO AUDIOVISUAL ..........................................................77 
4.3 FLIPORTELA: A FESTA LITERÁRIA DA PORTELA ..................................................................82 
4.4 IGI OSÈ BAOBÁ É AFROBETIZAR ..................................................................................................86 
4.4.1 Afrobetização.............................................................................................................................96 
5 SAMBA EDUCA: POSSIBILIDADES DE ENSINO CRUZADO COM O SAMBA.....................100 
5.1 O PRÉ-VESTIBULAR SOCIAL DONA ZICA ..............................................................................104 
5.2 A DISCIPLINA HISTÓRIA DO SAMBA ......................................................................................106 
5.3 PLATAFORMA DIGITAL LAROYÊ ............................................................................................110 
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................119 
REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................122 
ANEXO A .................................................................................................................................................... 128 
ANEXO B .................................................................................................................................................... 130 
ANEXO C .................................................................................................................................................... 132 
ANEXO D .................................................................................................................................................... 133 
APÊNDICE 1 – TRANSCRIÇÕES DAS ENTREVISTAS ........................................................................ 137 
 
 
 
12 
 
INTRODUÇÃO 
 
Tendo feito uma pesquisa de mestrado na área da Memória Social, não poderia 
iniciar essa introdução de outra forma senão explicando minha relação com o samba. 
Como sabemos, “a memória é tecida por nossos afetos” (GONDAR, 2005), portanto é a 
partir do que nos afeta que escolhemos o que lembrar. O samba me afeta. Ressalto que 
começo pelo samba, pois meu envolvimento afetivo com a escola de samba ocorreu antes 
do meu envolvimento com a escola formal – não que haja uma ordem de importância – 
por isso, decidi narrar os fatos nessa ordem: a cronológica. 
Meu envolvimento com o que podemos chamar de “mundo do samba” ocorreu 
durante o mestrado. O que era antes apenas meu objeto de estudo se tornou parte da minha 
vida e do meu trabalho. Na dissertação “O axé da Portela voltou!”: atualização de 
Memórias e Tradições no GRES Portela (2013-2015), eu investiguei como o conceito de 
tradição portelense se atualiza de acordo com o contexto. Para tal investigação, além de 
entrevistas, fiz pesquisa de campo, estando presente na maioria dos eventos da Escola de 
Samba Portela no período de 2012 a 2015. Esse período bastou para que eu formasse uma 
rede de afetos e pertencimento: encantei-me com a história e as memórias da Portela, fiz 
amigos, passei a ter novos ídolos e comecei a fazer parte ativamente da agremiação como 
membro do Departamento Cultural, ao qual pertenci até o início de 2019. 
Essa minha atuação na Escola de Samba Portela é essencial para entender o início 
dos questionamentos desta pesquisa. Foi durante a minha vivência nessa escola que 
conheci o Beto Fininho, também conhecido como professor José Roberto da Rocha 
Bernardo, que, além de pesquisador do programa de Educação da UFF, foi compositor da 
Portela e sambista preocupado em pesquisar o samba e, sobretudo, sambas de terreiro. 
Nosso encontro ocorreu logo após meu encontro com a educação formal: após terminar o 
mestrado, voltei para a sala de aula, onde fui afetada novamente. Apesar das dificuldades 
que enfrentamos no campo da educação brasileira, estar na sala de aula é o que me realiza 
profissionalmente. Retornei, então, aos estudos na área da educação, dessa vez – 
diferentemente da graduação – com mais entusiasmo, ao fazer um curso de extensão na 
Faculdade de Educação da UFRJ1. 
O encontro com o professor José Roberto,que se tornou meu orientador no 
Programa de Pós-graduação da UFF, e seu interesse em pesquisar academicamente o 
 
1 Inclusão em educação: gênero e diversidade sexual na escola em discussão (2015). 
 
13 
samba abriu-me a possibilidade de unir as áreas que mais me afetam, Samba e Educação, 
e fez emergir questões até então em estado latente. Desde a pesquisa etnográfica, nunca 
consegui abandonar meus olhos de pesquisadora, então permaneço observando 
constantemente os processos de interação entre os membros da Escola de Samba. 
Observar como ocorre a troca de saberes na Escola de Samba atualmente levou-me a 
questionar como ocorriam esses mesmos processos antes da institucionalização desses 
espaços na década de 1930, quando as escolas eram ainda terreiros. Foi assim que 
começou a nascer a minha ideia de pesquisa. 
Iniciei no doutorado com o tema “os terreiros de samba como espaços de 
educação: análise dos processos de troca de saberes entre os sambistas cariocas e seu 
impacto na escola de samba atual”. Para essa investigação, eu propus um corpus 
composto de dados de naturezas diversas: pesquisa bibliográfica na literatura 
especializada em samba, entrevistas com pessoas ligadas ao objeto de estudo e pesquisas 
em arquivos audiovisuais como os depoimentos gravados pelo Museu da Imagem e do 
Som (MIS), Museu do Samba (antigo Centro Cultural Cartola) e Departamentos Culturais 
de escolas de samba. E, ao considerar que, em se tratando de uma pesquisa qualitativa, 
não necessariamente todo o corpus ou todas as práticas interpretativas serão definidos 
com antecedência (DENZIN; LINCOLN, 2006, p.18), no decorrer das disciplinas 
cursadas e das trocas estabelecidas nos eventos acadêmicos, a pesquisa foi – como deve 
acontecer – tomando seus próprios contornos. Percebi que seria importante, também, 
fazer pesquisa de campo para observar na prática as trocas de saberes. 
Fiz, então, algumas observações de campo no Grêmio Recreativo Escola de 
Samba Portela, inicialmente, devido à minha facilidade de inserção, já que eu faço parte 
da agremiação, mas a intenção era realizar essa observação também em outras escolas. 
Porém, durante uma das minhas idas ao campo, durante a festa de encerramento do 
Departamento de Cidadania, a Portela se mostrou como uma escola de samba completa 
para que eu pudesse observar múltiplas formas de ser/saber no cotidiano do samba. Foi a 
partir, então, da própria observação do campo que decidi delimitá-lo. Além disso, é 
importante lembrar que devido ao isolamento social praticado em decorrência da 
pandemia de Covid-19, não consegui estar no campo tanto quanto gostaria. Os sujeitos 
que entrevistei também foram escolhidos a partir das minhas impressões do campo. 
Realizei, portanto, algumas entrevistas semiestruturadas que provocassem narrativas, 
utilizando os referenciais da Sociolinguística Interacional e da Memória Social. 
 
14 
Diante das vivências e trocas acadêmicas possibilitadas pela participação no 
doutorado, ocorreu uma mudança significativa na pesquisa no que diz respeito ao recorte 
da temática enfocada. Tudo começou no meu primeiro semestre do doutorado, quando eu 
apresentava minha pesquisa pela primeira vez, no IV Seminário Discente do Programa de 
Pós-graduação da UFF. Quando recebi o aceite do trabalho, tive uma surpresa. Eu o havia 
inscrito no eixo temático “Memória, história e instituições educacionais”, que tinha a 
seguinte descrição: 
Pretende abrigar pesquisas que dialoguem sobre memória, seus 
processos de construção, esquecimentos e ênfases, lacunas e 
contradições. Também é o espaço dedicado a pesquisas que envolvam 
História, historiografia, suas perspectivas e desafios. Pesquisas 
relacionadas às Instituições Educacionais de qualquer modalidade, 
formais ou não, encontram nesse eixo acolhimento. 
Mas a minha pesquisa foi realocada no eixo “Inclusão, diversidade e 
acessibilidade”, que propunha o seguinte: 
Este eixo dedica-se a pesquisas relacionadas à inclusão na escola e na 
sociedade; as manifestações de diversidade de gênero, sexual, religiosa, 
da fala, quanto à educação inclusiva, as relações étnico-raciais, a 
educação quilombola, entre outras. Como também questões 
relacionadas as formas de acessibilidade existentes. O que se pretende 
é o diálogo com as diferenças. A maneira que a diferença é vista 
enquanto integrante da diversidade humana e como a falta de 
reconhecimento de tal condição pode gerar mecanismos de exclusão e 
preconceito. O momento é de luta por espaço na escola pública e pela 
afirmação da educação como direito. 
Como, inicialmente, meu trabalho buscava compreender os terreiros e escolas de 
samba como espaço de educação – portanto, instituições educacionais – a partir da 
perspectiva da Memória Social, causou-me um estranhamento que minha pesquisa não 
pudesse compor o eixo “Memória, história e instituições educacionais”. Estranhamento 
que se agravou no dia da apresentação, pois a roda de conversa em que eu fui inserida era 
composta por trabalhos sobre questões étnico-raciais na escola. 
No primeiro momento, minha interpretação foi que havia sido negada aos terreiros 
e Escolas de samba a possibilidade de serem entendidos como instituições educacionais. 
E que, já que se tratava se uma prática cultural afrodescendente, foram colocados em uma 
roda de conversa que falava sobre questões raciais sejam ela quais fossem, ou melhor, 
como se todas fossem uma coisa só. Incomodou-me, de alguma maneira, que o samba – 
por ser “assunto de pretos” – só pudesse ser discutido dentro de um eixo que tratasse de 
 
15 
questões raciais (mesmo que esse não fosse o enfoque do trabalho) e não em um eixo que 
discutia “Instituições Educacionais de qualquer modalidade, formais ou não”. Procurei a 
organização do evento, mandei inúmeros e-mails, mas não obtive resposta ou explicação 
sobre o que motivou a mudança de eixo. 
Até então, minha pesquisa não se aprofundara na questão racial, que era tratada 
“apenas” a título de contextualização da formação dos terreiros e da institucionalização 
das Escolas de Samba. Entretanto, esse acontecimento causou-me alguma inquietação e 
incentivou a minha reflexão acerca do assunto. Decidida de que essa discussão não 
poderia – mais – faltar na tese, matriculei-me na disciplina “Populações negras – raça e 
gênero”, ministrada pela professora Iolanda Oliveira, no PPG-Educação/UFF. Logo com 
os primeiros textos, cheguei ao entendimento tardio – provavelmente, devido à minha 
situação de privilégio enquanto pessoa branca – que pode ser resumido em uma frase dita 
pela professora: “não tem como estudar a educação no Brasil sem o recorte racial”. Não 
basta apenas afirmar o óbvio: que o samba foi perseguido por ser uma prática cultural 
afro-brasileira, inventada no processo da diáspora negra; é preciso lançar luz aos 
sofisticados processos de invenção, resistência e reexistência operados na fresta, na 
síncope. A Escola de Samba – assim como o jongo, o candomblé, a capoeira, entre tantos 
– é expressão de um povo que se recusou a deixar-se desencantar. E essa recusa se dá por 
meio de várias possibilidades: luta, resistência, mas também reinvenção, negociação. 
Pensar as Escolas de Samba como espaços de educação, é pensar numa pedagogia do 
encantamento, do reencantamento, do movimento, das possibilidades, da pluralidade de 
maneiras de vir a ser, da descolonização do pensamento. 
Isto posto, fui em busca, então, de um referencial teórico que desse conta da 
complexidade dos processos pedagógicos das culturas em diáspora no Brasil para analisar 
a educação nas Escolas de Samba. Sem deixar de levar em conta que nosso país passou 
por questões muito singulares dentre os países que passaram por regimes escravocratas – 
como o ideal de branqueamento – assumi a necessidade de buscar uma teoria brasileira, 
que falasse das nossas questões, e não somente de aproximações. É nesse momento queme encontro com a Pedagogia das Encruzilhadas, organizada por Luiz Rufino em sua tese 
de doutorado defendida em 2017 e publicada em livro em 2019, que versa sobre a 
dinâmica de mobilização de possibilidades de ser/saber no cruzo transatlântico inventadas 
em nossos terreiros. 
Até então, minha questão de pesquisa permanecia a mesma – entender os 
processos de mobilização de saberes nos terreiros cariocas e seus ecos na escola de samba 
 
16 
atual –, mas com um aprofundamento nas questões raciais que a permeavam. Outro 
objetivo começou a se desenhar para a tese, então, o de contribuir para a descolonização 
do pensamento ao lançar luz a formas de ser/saber que sofrem constantes tentativas de 
apagamento ou descredibilização. Mas não só isso. Também advertir sobre o que essas 
formas de ser/saber foram e são capazes: invenção de práticas culturais férteis, resistência 
e reexistência de grupos despedaçados na diáspora, a transgressão pela fresta, e muito 
mais. Dessa forma, no caso do objeto dessa pesquisa, revelar as possibilidades de 
ser/saber provocadas pelo espaço/tempo do samba – isto é, a sua pedagogia que 
transforma qualquer lugar no terreiro inventivo com o cruzo de diversas formas de saber 
que mobilizam outras formas de ser – para propor a terreirização do mundo como prática 
pedagógica antirracista e anticolonial. 
Como já foi dito nesta introdução, é de se esperar que a pesquisa mude ao longo 
do tempo, das reflexões, das disciplinas e das leituras realizadas durante o doutorado. 
Entretanto, a pandemia de Covid-19 trouxe a necessidade de outras mudanças – essas sim 
inesperadas. Precisei interromper a pesquisa de campo por conta do necessário isolamento 
social, bem como deixar de lado as entrevistas que ainda ocorreriam. Confesso que essa 
situação abrupta impactou muito na pesquisa, não só por essas questões práticas citadas, 
mas também por uma série de outras condições que a pandemia trouxe: problemas de 
saúde mental, o desmedido aumento da quantidade de trabalho e perda de familiares e 
pessoas próximas. Diante desse cenário, foi difícil dar conta da pesquisa, do emprego e 
das minhas atribuições de bolsista, tendo que priorizar estas em detrimento daquela. 
A situação que já parecia difícil se agravou pelo adoecimento e posterior 
falecimento do meu orientador. Embora o programa tenha se mobilizado rapidamente 
para me dar apoio nessa situação, indicando-me outra orientadora e concedendo-me a 
prorrogação da defesa, eu me senti muito perdida durante muito tempo. Essa introdução 
em tom de desabafo é para tentar contextualizar as constantes mudanças que o texto foi 
sofrendo ao longo do doutorado e para, de alguma forma, tentar justificar possíveis 
lacunas que tenham ficado. 
Depois de quase desistir (algumas vezes), redefini mais uma vez meu objetivo de 
pesquisa, que passou a ser buscar possibilidades no samba para uma educação antirracista 
e decolonial, aproveitando minha experiência em um projeto social que une samba e 
educação. Na Samba Educa, desde 2021, eu atuo como coordenadora pedagógica de um 
pré-vestibular e coordenadora de uma equipe de produção de materiais didáticos para esse 
segmento, que tem o samba como principal elemento transversal. Assim, minha pesquisa 
 
17 
acabou recaindo sobre a questão do currículo, que muitas vezes reforça o projeto colonial 
no campo educacional. A organização do texto se dá em quatro capítulos, que descrevo a 
seguir. 
No primeiro capítulo, faço algumas considerações sobre os conceitos de 
colonialidade, decolonial e decolonialidade a partir das análises de Fanon (1968), Hall 
(2011), Ballestrin (2013), Quijano (2010), Bernardino-Costa (2018) e Ferreira (2014). 
Em seguida, após a compreensão de que a colonialidade deixa um lastro nas sociedades 
mesmo após deixarem de ser oficialmente colônias, é feito um debate sobre como isso se 
expressa no currículo escolar ao longo dos anos por meio das reflexões dos autores Ávila 
e Hypolito (2020), Silva, Souza e Ferraz (2022), Oliveira (2020) e Saviani (2016). Ainda 
no capítulo 1, é proposta uma reflexão sobre a trajetória do samba e sobre como a 
educação pode ser uma prática emancipadora no tocante ao racismo. Por fim, evidencio 
a diversidade de possibilidades de significados reivindicados para educação e as 
pedagogias em disputa na sociedade, para destacar a dimensão política dessa discussão. 
Dessa maneira, justifico minha proposição de que os espaços de samba – assim como 
todos os espaços/tempo que comportam essas coletividades – são espaços de educação e 
que inventam uma pedagogia própria das culturas em diáspora no Brasil. Essa pedagogia 
foi organizada e nomeada por Luiz Rufino como Pedagogia das Encruzilhadas (RUFINO 
JUNIOR, 2017; RUFINO, 2019). Em seguida, é feito um levantamento de trabalhos 
acadêmicos que tratam das potencialidades do samba na educação. No capítulo seguinte, 
são feitos os apontamentos referentes à metodologia do trabalho. 
No terceiro capítulo, aponto a ampliação da noção de terreiro para pensar todo 
espaço/tempo em que está girando a Pedagogia das Encruzilhadas. Rufino (2017) propõe 
que pensemos o terreiro, a partir das culturas afro-diaspóricas como reinvenção do 
tempo/espaço no rito. Dessa maneira, somos convocados a terreirizar o mundo, isto é, 
encruzá-lo, para desconstruir a universalidade assumida pelo pensamento ocidental. 
Dessa forma, cada tempo/espaço que possibilita o cruzo, que inventa possibilidades, que 
nos convoca para outras maneiras de ser, será entendido como um terreiro. Portanto, que 
façamos da escola, da rua e de todas as instituições nossos terreiros. Como as Escolas de 
Samba são grandes exemplos de terreiros e o objeto desta pesquisa, realizo um breve 
contexto histórico e político da construção do samba carioca como prática cultural. 
No capítulo 4, ressalto a característica associativista das escolas de samba, e a 
importância que essas instituições dão para a educação, uma vez que a educação já era 
vista como uma via para a ascensão socioeconômica e para a conquista da cidadania, bem 
 
18 
como para a luta contra o racismo. Para essa análise, utilizei minhas observações 
realizadas durante minha pesquisa de campo na Portela sobre quatro ações praticadas pela 
escola. 
Por fim, no quinto capítulo são abordadas as propostas de ensino cruzado com o 
samba apontadas pela organização não governamental (ONG) Samba Educa, que busca 
provocar o aumento da empregabilidade e da renda de pessoas em vulnerabilidade social, 
incentivando a educação por meio da valorização da cultura afro-brasileira e da inclusão 
digital em comunidades ligadas ao samba. Para isso, analiso a primeira ação da Samba 
Educa, o Pré-vestibular Social (PVS) Dona Zica, e os caminhos percorridos para a 
abordagem do samba no curso pré-vestibular por meio de uma disciplina sobre a temática. 
Em seguida, discorro sobre um de seus desdobramentos – algo ainda embrionário –, que 
está em curso: a criação de uma plataforma de materiais digitais voltados para o conteúdo 
dos vestibulares e que tenham o samba como elemento transversal. Após uma breve 
contextualização de como se chegou a essa proposta, abordo os principais desafios e, 
finalmente, algumas possibilidades de ensino cruzado com o samba. 
 
 
 
 
19 
1 EPISTEMOLOGIAS, PEDAGOGIAS E ENSINO 
 
É relevante iniciar este capítulo trazendo algumas considerações sobre a palavra 
colonial. É a partir dela que será abordada, em seguida, a relevância e a importância do 
movimento decolonial. De modo mais genérico, colônia designa a ocupação e 
administração de um espaço por parte de um grupo ou governo que, por meio de força 
militar, se estabelece no local, gerindo, então, as fontes de riqueza e a vida social da 
região. A ocupação desse território se dá de modo truculento, com objetivo extrativista e 
impositivo. Dessa forma, grifa-se a opção teórica da presente pesquisa em se pautar naproposta de entendimento sobre colonialidade a partir dos escritos de Frantz Fanon 
(1968). De acordo com o autor, a violência é o que sustenta o sistema colonial. A violência 
do corpo, por meio de repressão estatal, e a violência mental, pautada na demonização 
das manifestações religiosas e culturais em forma de missões cristãs. 
Sobre o processo colonial, é importante salientar ainda que, enquanto fenômeno 
histórico, o colonialismo tem em seu cerne a expansão do capitalismo, uma vez que o 
antecede enquanto sistema de alcance mundial e o acompanha como política em suas mais 
distintas formas. Conforme Ferreira (2014, p. 255), “o capitalismo estendeu as relações 
coloniais sobre o espaço e as formas sociais, atualizando-o como componente estrutural 
de seu próprio sistema e amplificando de forma nunca antes vista sua dimensão e 
significado, tornando-o onipresente na história das diferentes sociedades”. Assim, para 
Ferreira (2014), o fator colonialismo na história moderna e contemporânea não implicou 
necessariamente sua problematização. Ao contrário, em diversos momentos e em diversas 
concepções, ele foi naturalizado no campo literário, ideológico e científico. 
A reflexão crítica sobre o colonialismo tem início de forma sistemática nas 
ciências sociais contemporâneas com as lutas revolucionárias, anticoloniais e com o 
processo de descolonização. Em relação ao fim da era colonial e seus limites temporais, 
Stuart Hall (2011, p. 95) provoca: 
Quando foi o Pós-colonial? O que deveria ser incluído e excluído de 
seus limites? Onde se encontra a fronteira invisível que o separa de seus 
“outros” (o colonialismo, o neocolonialismo, o Terceiro Mundo, o 
imperialismo) e em cujos limites ele se define incessantemente, sem 
superá-los em definitivo? [...] os pontos de interrogação que começam 
rapidamente a se aglutinar em torno da questão “pós-colonial” e da ideia 
de uma era pós-colonial. 
 
 
20 
Para Hall, a utilização do termo pós-colonialismo deveria ser aplicada com 
diferenciações, de acordo com cada caso. Para o autor, “nem todas as sociedades são pós-
coloniais num mesmo sentido” (HALL, 2003, p.107). Dentro dessa lógica, o termo pós-
colonial surge para entender o novo contexto em que não existe mais a relação de 
metrópole/colônia ou colonizador/colonizado. Novas relações foram criadas e pautadas 
no capitalismo, e dentro desse cenário, marcas do colonialismo ainda se faziam presentes. 
Frantz Fanon argumenta que o domínio estabelecido pela colônia aniquila e fragiliza 
culturalmente os nativos do território explorado. De acordo com o autor, 
O domínio colonial, porque total e simplificador, logo fez com que se 
desarticulasse de modo espetacular a existência cultural do povo 
subjugado. A negação da realidade nacional, as novas relações jurídicas 
introduzidas pela potência ocupante, o lançamento à periferia, pela 
sociedade colonial, dos indígenas e seus costumes, a usurpação, a 
escravização sistematizada dos homens e das mulheres tornam possível 
essa obliteração cultural. (FANON, 1968, p. 197) 
É a partir dessa perspectiva de invasão ao território e de violento estado de 
dominação que se faz necessário observar que, para além das estruturas econômicas, os 
invasores estabelecem também uma dinâmica de dominação psicológica. O colonialismo 
deixou uma espécie de lastro naquela sociedade. Assim, entende-se que a colonialidade 
decorre de um tipo de continuidade e perpetuação do pensamento colonial, algo como um 
servilismo contínuo, propagado nas relações de poder, saber e ser, conforme defende 
Ballestrin (2013). 
Em artigo sobre os estudos decoloniais no Atlântico Negro, Joaze Bernardino-
Costa atenta para “o risco de um duplo apagamento ou dupla invisibilidade seja nas 
contribuições teóricas da decolonialidade, seja nos estudos sobre o Atlântico Negro” 
(2018, p.119). Como caminho para não cair nestas condições, o autor propõe radicalizar 
a tese da corpo-geopolítica do conhecimento, que para ele está “no coração do projeto 
decolonial”, além de buscar “enfatizar a importância das raízes (roots) nos estudos do 
Atlântico Negro” (2018, p.119). Bernardino-Costa argumenta que o giro decolonial é um 
projeto recente, mas que pode ser encontrada na “longa tradição de resistência e tentativa 
de ressignificação da humanidade articulada pela população negra e indígena”. (2018, 
p.121). Para o autor: 
Foi esse domínio colonial que permitiu a alguns definir a si mesmos 
como possuidores do conhecimento válido e verdadeiro, e a outros 
como destituídos de conhecimento. Deste modo, as múltiplas tradições 
indígenas, africanas, asiáticas, muçulmanas, hindus, entre outras, 
 
21 
sofreram um longo processo de deslegitimação no âmbito da 
modernidade/colonial. (2018, p.122) 
A colonialidade é, portanto, uma consequência dos anos de exploração colonial. 
Mesmo que o invasor não esteja mais no espaço dominado, ele deixa marcas permanentes 
naquela população e isso se perpetua ao longo do tempo. Podemos listar diversos 
exemplos sobre as marcas dessas ações. Fanon (1968) descreve, em Os condenados da 
terra, os métodos franceses de tortura quando os europeus invadem os territórios 
marroquinos e tunisinos, o autor trata também da questão dos desmembramentos 
familiares e da violência contra os costumes desses povos. Outro caso que demonstra de 
forma terrível o poder colonial no mundo é o caso da guerra civil ocorrida em Ruanda 
entre 1990 e 1994. Resultando em mais de 800 mil mortes da etnia denominada Tutsis, a 
tensão entre os povos que compõem a Ruanda – Utus, Twa e Tutsis – existe naquele 
território desde antes da ocupação europeia. No entanto, é preciso destacar que os 
europeus – primeiro os alemães, já no século XIX, num momento em que o mundo 
presenciava novo movimento de colonização – fomentaram essa rivalidade. Eles 
estabeleceram que os Tutsis deveriam ocupar os espaços de prestígio e poder naquele 
país. Com a ocupação belga, a ordem social pautada na manutenção de privilégio dos 
Tutsis permaneceu, porém se acirrou a questão supremacista. Os belgas alegavam que os 
Tutsis eram fenotipicamente superiores, estavam mais semelhantes aos europeus por isso. 
Mesmo após a independência, em 1962, a situação não foi amenizada, ao contrário, o 
processo revolucionário em curso inflamou ainda mais essa questão. Quando a situação 
estava totalmente fora de controle, a ONU e os países europeus envolvidos não agiram 
devidamente e muitas mortes foram geradas (CHRÉTIEN, 2014). 
Não foram só os países africanos que sofreram com essas intervenções que 
modificaram completamente o rumo histórico de seus povos. Os povos latino-americanos 
e asiáticos também sofreram com a tomada de seus territórios, esvaziamentos de suas 
culturas, guerras e depredação de espaços perpetrados por europeus (QUIJANO, 2010). 
São os brancos, oriundos dos países do hemisfério norte, autores da execução e expansão 
do capitalismo, e também quem imprimem há anos um padrão estético, cultural e 
religioso. 
A conversão religiosa também foi um modo de se impor e apagar vestígios da 
religião local. Em cartas trocadas entre jesuítas essa necessidade fica evidente. Na obra 
Auto de São Lourenço, o ímpeto de fé dos seguidores da Igreja Católica é teatralizado 
com viés salvador e, assim, os costumes locais são ridicularizados: 
 
22 
Dos vícios já desligados 
nos pajés não crendo mais, 
em suas danças rituais, 
nem seus mágicos cuidados. (ANCHIETA, 1973) 
É possível observar que a autoridade do pajé é negada, uma vez que simboliza o 
demônio. No segundo ato da peça é possível ler que: 
Eram três diabos que querem destruir a aldeia com pecados, aos quais 
resistem São Lourenço, São Sebastião e o Anjo da Guarda, livrando a 
aldeia e prendendo os tentadores cujos nomes são: Guaixará, que é o 
rei; Aimbirê e Saravaia, seus criados. (ANCHIETA, 1973) 
Nesse segundo ato, os nomes indígenas são associados à figurado demônio, são 
eles que tentam e colocam a comunidade local em perigo, na visão dos catequizadores. É 
sabido que o nome é algo profundamente íntimo e que está ligado à identidade pessoal 
dos indivíduos, portanto, quando um grupo estrangeiro cria a ideia de que determinados 
nomes não são positivos e que, pelo contrário, trazem perigo, são ruins, esse grupo está 
inferiorizando essas pessoas. Essa tática foi empregada pelos portugueses durante todo o 
processo colonial. Eles demonizaram o que não era europeu para estabelecer seu domínio. 
Como proposta de enfrentamento a esse tipo de colonialidade que ainda vigora em 
tempos atuais, uma vez que, séculos depois, ainda é comum que se atribua a lógica de que 
práticas culturais indígenas e africanas são demoníacas, o conceito de decolonialidade é 
uma possibilidade de desconstruir padrões eurocêntricos e valorizar as culturas ancestrais. 
O presente capítulo versa sobre as epistemologias que estão relacionadas ao 
campo da educação. No Brasil, a educação se forja no bojo das elites, composta por 
pessoas majoritariamente brancas, europeias, que sustentam o alicerce da educação 
nacional até os dias de hoje. Cristiane Ávila e Álvaro Hypolito (2020), em trabalho no 
qual analisam fatores que influenciam o currículo escolar dentro de ótica crítica, 
procuraram entender como esse currículo serviu para mediar questões étnico-raciais nas 
escolas. Para os autores, ao longo da história do Brasil, indígenas e africanos tiveram a 
educação formal negada, seus saberem continuaram a circular através da oralidade e 
dentro dos seus próprios grupos em atividades que faziam parte do cotidiano. A oralidade 
foi responsável por manter a tradição, em meio a uma disputa onde a cultura europeia, em 
especial a portuguesa, procurava se sobrepor. 
Mesmo com a abolição em 1888, africanos, seus descendentes e indígenas não 
faziam parte do projeto de nação que parte da elite social desenhava para o país, 
principalmente a população preta, que era vista como uma classe perigosa ou ociosa 
 
23 
(ALBUQUERQUE, 2009; CARVALHO, 1987; CHALHOUB, 1996; 2008; DANTAS, 
2011; SEVCENKO, 1989; 2003). 
Apoiados na ideia de Mariléia Cruz, Ávila e Hypolito nos mostram que mesmo 
distantes das políticas públicas governamentais, o negro “esforçava-se para apropriar-se 
dos saberes formais exigidos socialmente” (2020, p.11). Sendo assim, os grupos formados 
por pessoas pertencentes às classes mais baixas da sociedade se organizaram em 
associações, clubes dançantes, sindicatos, agremiações carnavalescas, com a finalidade 
também educacional. 
 A busca por educação formal era uma das estratégias que eram tecidas pelos 
africanos e seus descendentes para se colocarem em uma sociedade que procurava deixá-
los às margens. A educação era vista como um caminho que permitiria uma ascensão 
socioeconômica (ÁVILA; HYPOLITO, 2020, p.11), ou como definiu Iris Verena Oliveira 
(2020, p.5), uma estratégia de emancipação: 
Fora do espaço da educação formal, sabe-se que as narrativas 
protagonizadas por pessoas negras remontam aos primórdios da história 
do Brasil. Recentemente, a historiografia tem evidenciado a atuação 
política mobilizada em torno de questões raciais, especialmente para o 
final do século XIX e início do XX. No período denominado pós-
abolição, os pesquisadores apontam a construção de redes para atuação 
política, tal como a trajetória da Federação dos Negros do Brasil, em 
1931, (DOMINGUES, 2011), da Frente Negra Brasileira, no mesmo 
ano, (GRAHAM, 2014), a União dos Negros de Cor, em 1930 e o 
Movimento Negro Unificado (MNU) em 1970 (SILVA, 2011). 
Quando as experiências de escolarização e iniciativas voltadas para a 
formação de pessoas negras são consideradas, inúmeras pesquisas 
apontam para as disputas protagonizadas por indivíduos que viam a 
educação como uma importante estratégia de emancipação. 
Com o passar das décadas e depois de muita luta de movimentos sociais pelo 
direito e acesso à educação formal, no início dos anos 2000, ocorreu, como nos mostra 
Oliveira (2020), uma “ocupação de espaços de poder” em importantes setores dos 
governos do Partido dos Trabalhadores por pessoas ligadas ao Movimento Negro, 
possibilitando assim, “uma disputa curricular sem precedentes na história do Brasil” 
(2020, p.5). Também foram aprovadas leis como a 10.639/03 e 11.645/08. 
O currículo já foi considerado uma técnica utilizada para planejar conteúdos que 
seriam passados aos alunos de acordo com a ocupação futura que desejassem. Essa ideia 
de currículo foi utilizada a partir do final do século XIX e início do XX, num contexto de 
industrialização, pós-guerra, imigração e massificação escolar. Diante desse cenário, o 
papel da escola passou a ser questionado e surgiu a necessidade de um currículo que “que 
 
24 
atendesse as necessidades da nova concepção de sociedade” (SILVA; SOUZA; FERRAZ, 
2022, p.3). As teorias tradicionais ganharam destaque, seguindo duas tendências como a 
de Bobbitt e de Taylor, tendo por finalidade formar indivíduos que atendessem as 
necessidades da sociedade: 
Nesse contexto, as teorias tradicionais de currículo ganham destaque, 
evidenciando-se duas tendências: a de Bobbitt, pautada nos princípios 
da administração científica baseada em Taylor, onde é fundamental 
estabelecer padrões e em que a ideia central estava na organização e 
desenvolvimento do currículo (SILVA, 2017). Nesse modelo, a escola 
aqui é vista como uma empresa que deve ser eficiente, desenvolver as 
habilidades primordiais para as demandas profissionais, com o objetivo 
de formar o trabalhador especializado. Assim, vemos que nessa 
“perspectiva que considera que as finalidades da educação estão dadas 
pelas exigências profissionais da vida adulta, o currículo se resume a 
uma questão de desenvolvimento, a uma questão técnica” (SILVA, 
2017, p. 24). (SILVA; SOUZA; FERRAZ, 2022, p.3-4) 
Ávila e Hypolito mostram que existiam outros modelos de currículo que também 
eram empregados com a finalidade de formar cidadãos “modelos” para a sociedade: 
Nos modelos curriculares tradicionais, a escolarização de massa tinha 
por objetivo “moldar corpos” para que os alunos aprendessem como se 
comportar em sociedade, afinal, os futuros trabalhadores precisam ter 
horários e posturas condizentes com o ambiente da fábrica. Para o 
funcionalismo, por exemplo, cada um tem seu lugar na sociedade e, para 
que o corpo funcione, todos os órgãos devem trabalhar em harmonia. 
(2020, p.12-13) 
Dentro dessa lógica, os autores criticam tais modelos, afirmando que essas 
práticas curriculares acabam muitas vezes fortalecendo a disposição social em que um 
manda e o outro obedece, aumentando assim a desigualdade social. Esses modelos, 
apresentados acima, fazem com que a escola acabe encaixando cada aluno em “seu lugar”. 
Como afirmam os autores, “Nesse sentido, explicam-se as diferentes estruturas escolares 
e os diferenciados tipos de currículos de acordo com os diferentes alunos que frequentam 
as instituições de ensino” (ÁVILA; HYPOLITO, 2020, p.13). Pensando na educação 
formal brasileira, o currículo apresentado a partir da massificação escolar buscou uma 
“visão geral das áreas do conhecimento, tendo por ênfase um currículo eurocêntrico” 
(ÁVILA; HYPOLITO, 2020, p.13) 
Este trabalho se propõe a traçar possibilidades de uso pedagógico de um elemento 
muito representativo da cultura brasileira: o samba. A proposta é que essa prática cultural 
seja mais uma aliada na educação decolonial. Mas cabe ressaltar que, como Luiz Antônio 
 
25 
Simas (2020) afirma, o decolonial é reler as sabedorias, encontrar, encruzilhar. Não é 
anular o pensamento ocidental em prol de outro. Sendo assim, configuradas as noções de 
colonial, colonialidade e decolonial, a seção seguinte se inicia com o objetivo de refletir 
sobre a trajetória do samba, a concepção de terreiro e como esses elementos criam uma 
simbologiaque sustenta toda uma tradição. 
 
 
1.1 POR UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL: SAMBA, TERREIROS E 
ANCESTRALIDADE 
 
Tendo em vista que a decolonialidade é um movimento intelectual que busca 
realizar rupturas epistêmicas, releituras e reconfigurações do ser, do poder e do saber, 
inicio esta seção com o objetivo de discorrer sobre o samba, sobre a palavra terreiro e, 
por fim, sobre ancestralidade. Trago também uma reflexão sobre como a educação pode 
ser uma prática emancipadora no tocante ao racismo. Recorrendo à herança ancestral dos 
diversos povos africanos que foram trazidos ao Brasil forçadamente em um sistema de 
escravidão, as instituições políticas poderiam ofertar à população mecanismos suficientes 
de apropriação histórica de seus povos e suas culturas para que ocorresse alguma 
reparação do período de escravidão. 
A partir da segunda metade do século XIX e início do XX, ocorreu um intenso 
movimento migratório para o Rio de Janeiro, ocasionado por diversos fatores como: a 
proibição do tráfico intercontinental em 1831 e 1850, declínio da cafeicultura do Vale do 
Paraíba em 1870 e a abolição da escravatura em 1888. Essa onda migratória influenciou 
não apenas na densidade demográfica da cidade, como também no campo cultural e 
religioso.2 Para Moraes (2017, p.35), esse fluxo migratório no período do pós-abolição 
seria impulsionado também pela busca de oportunidades: 
Com a abolição, a mão de obra, que era escrava, tornou-se livre e dentro 
do mercado de trabalho ocupava posições inferiores ou compunha a 
massa desempregada. Nesse período, também ocorreu a migração de 
uma grande quantidade de pessoas vindas das regiões cafeeiras para a 
 
2 Para mais ver: CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Varíola, vacina e vacinofobia. In Cortiços e 
epidemias nas Corte Imperial. Editora Companhia das Letras.1996; FARIAS, J. B.; Mariza C. Soares. De 
gbe a iorubá: os pretos minas no Rio de Janeiro, séculos XVIII e XIX. África(s), v. 4, 2017; KARASCH, 
Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000; 
MAMIGONIAN, Beatriz Galloti. Do que o “preto mina” é capaz: etnia e resistência entre africanos livres. 
Revista Afro-Ásia, 24 (2000); MORAES. Caio Sergio de. A Cidade do Feitiço – Feiticeiros no cotidiano 
carioca durante as primeiras décadas iniciais da Primeira República – 1890-1910. Universidade Federal 
Fluminense, Dissertação de Mestrado do departamento de História. 2017. 
 
26 
região central do Rio de Janeiro. Essa mudança ocorria pelo fato desses 
indivíduos acreditarem que encontrariam melhores condições de 
trabalho na Capital Federal. 
É preciso ter um cuidado especial ao tratar desses espaços de sociabilidade, pois 
se criou uma mística em torno deles – principalmente no que é conhecido como quintal 
da Tia Ciata – que merece ser observada minuciosamente. É comum, na literatura 
relacionada ao samba, os terreiros serem situados espacialmente apenas na região da 
Gamboa, chamada de Pequena África. Visão esta que foi amplamente difundida após a 
publicação do livro Tia Ciata e a pequena África do Rio de Janeiro, de Roberto Moura 
(1995). Neste livro, o autor propõe que a comunidade situada na região central da capital 
brasileira é a principal responsável pela construção da cultura popular carioca. Moura usa 
a casa da baiana Tia Ciata como símbolo desses espaços, o que ajudou a consagrá-lo no 
imaginário brasileiro como principal terreiro carioca. Embora não tenha excluído a 
participação de outros grupos nessa construção, eles vão ser esquecidos por toda uma 
historiografia subsequente. 
Porém, outros historiadores desconstroem essa visão da região central da cidade 
do Rio de Janeiro, apontando outros espaços próximos que contribuíram para a 
manutenção da herança africana Em Para além da casa da Tia Ciata: outras experiências 
no universo cultural carioca, Tiago Gomes (2003, p. 179) defende que “os baianos, por 
mais importantes que possam ter sido na constituição de uma cultura popular urbana na 
cidade do Rio de Janeiro, necessariamente dialogaram com tradições já existentes e com 
outros grupos recém-chegados”, fazendo referência aos então moradores da cidade e aos 
migrantes do Vale do Paraíba. A presença dos africanos de origem banto (centro-
africanos) no Sudeste, em especial no Rio de Janeiro, contribuiu para a formação da 
identidade e da dinâmica da cidade. Destaca-se, como parte do cenário que os afro-
baianos encontraram no Rio de Janeiro, além da língua, a parte religiosa como o calundu 
e outros ritos, onde mkisis eram cultuados e manipansos eram encontrados nas casas 
afrorreligiosas (KARASCH, 2000; POSSIDÔNIO, 2020). Como ressaltou Spirito Santo 
(2011), a cidade do Rio de Janeiro já estava ocupada por milhares de negros à época das 
migrações, pelo menos desde o século XVII. Por isso, questiona: 
Por que misteriosa razão esses escravos, a maioria deles realmente, 
como vimos, de origem bantu ou angolana, haveriam de esperar por 
mais de duzentos anos pela tal “liderança baiana”, para só então se 
“organizarem” culturalmente? (p.21) 
 
27 
O mesmo autor sugere que a explicação para a se atribuir o protagonismo dessa 
construção aos baianos é uma perspectiva racista, já que os negros dessa região seriam 
em grande parte de origem sudanesa, vistos durante muito tempo – devido a uma teoria 
do médico Nina Rodrigues – como superiores em relação aos bantu. Para Nina Rodrigues, 
os centro-africanos não eram desenvolvidos culturalmente como os sudaneses (os nagôs), 
e por isso não deu devida importância a eles em suas pesquisas (RODRIGUES, 2010). Já 
Gomes (2003, p. 177) atribui o sucesso dessa concepção de centralidade baiana ao 
ambiente no qual Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro foi lançado: 
Os anos 1980 assistiram a um vigoroso esforço de recuperação de 
visões alternativas aos projetos modernizadores levados à frente por 
grupos de elite da Primeira República. Dessa forma, a imagem de um 
grupo desterritorializado buscando reinventar sua identidade, e a partir 
daí criando as bases da sua luta por cidadania, caía como uma luva 
naquele contexto historiográfico. 
A ideia de uma “Pequena África”, portanto, aparece como uma estratégia de 
resistência política a projetos modernizadores da cidade, já que havia servido de 
contraponto às transformações impostas por Pereira Passos anos antes. Ambas as teorias 
são reflexos do momento político por que passava o Brasil na virada para o século XX. 
Com a abolição da escravidão e a Proclamação da República no ano seguinte, há um 
grande investimento dos primeiros governos republicanos na contenção desses negros 
recém-libertos. Diversas manifestações da cultura popular carioca, principalmente as de 
marcada influência africana, são incriminadas. No Código Penal de 1890, por exemplo, 
jogar capoeira passa a ser crime. Além disso, tendo o embranquecimento da população 
como projeto político, há grande incentivo das imigrações de europeus pelo poder público 
aliado a total falta de preocupação da inserção do ex-escravizado na sociedade. Segundo 
Moraes (2017, p. 41-42), 
Preocupados com as consequências da abolição, vários políticos 
pensaram em um projeto de lei para repressão à ociosidade. O 
surgimento de noções como “classes perigosas” e “classes pobres”, para 
apontar a mesma realidade das classes inferiores, estava ligado 
diretamente aos “homens de cor”, que nas ações policiais eram sempre 
os suspeitos preferenciais, tanto por causa do racismo científico quanto 
da experiência da escravidão. 
Para o autor, os espaços afrorreligiosos se tornam grandes locais de sociabilidade 
que permitem pessoas de diferentes status sociais a tecerem redes. Para nossa 
investigação, nesta seção, é menos importante chegar a uma resposta definitiva se houve 
 
28 
ou não prevalência de determinado grupo social que salientar a existência de uma disputa 
de narrativas sobre a formaçãodesses espaços. 
No início do século XX, o Rio de Janeiro passou por uma grande reforma urbana, 
fazendo com que a população pobre, composta na sua maioria por negros, passasse a 
ocupar não só alguns morros próximos à região central da cidade, como também o 
subúrbio. Essa reorganização urbana corrobora para o que chamaremos, agora no plural, 
de Pequenas Áfricas. Ou seja, em todo o Rio de Janeiro surgem esses espaços que 
congregam as pessoas em redes de sociabilidade para, através da festa e da fresta3 – essas 
frestas seriam os encontros, arranjos, os acontecimentos que dinamizavam esses grupos 
sociais –, ressignificarem sua experiência no mundo. A diáspora, desse modo, ao mesmo 
tempo em que rompe fronteiras e desfragmenta identidades, proporciona um novo 
entendimento das relações identitárias, uma alternativa à “metafísica da ‘raça’, da nação 
e de uma cultura territorialmente fechada” (GILROY, 2001). 
Hoje, considerados por alguns, espaços distantes um do outro, já houve um 
momento em que não se poderia dissociar o terreiro de candomblé do terreiro de samba. 
O chão onde os deuses africanos faziam sua dança sagrada e reconstruíam por um breve 
momento uma parte da África era o mesmo que acolhia os sambistas que se esquivavam 
da repressão, já que até a década de 1930, no Brasil, a lógica do Estado era a de 
criminalização das práticas culturais atribuídas aos negros, como a capoeira, o samba e o 
Candomblé. Eram, muitas vezes, os terreiros que acolhiam a comunidade negra, 
formando redes de proteção social fundamentais no processo de restabelecimento desse 
grupo social após a experiência da escravidão. 
Esses espaços chamados de terreiros são mais que um chão de terra batida onde 
se realizavam rituais de tradição africana ou onde se tocava samba, mas locais com grande 
importância política na construção da nossa sociedade. Lugar de reinvenção de uma 
memória propositalmente devastada, o terreiro é, além de um espaço de resistência, um 
dinamizador de práticas culturais basilares na formação da cultura popular, 
principalmente no Rio de Janeiro. Ressaltando que as culturas africanas não dissociavam, 
então, sagrado e profano, observamos como as práticas religiosas coexistiam com as 
práticas festivas musicais. Um dos terreiros mais reconhecidos na construção e 
consolidação do samba carioca é a já citada casa da Tia Ciata, baiana festeira que reunia 
 
3 CUNHA, Maria Clementina Pereira(org.). Carnavais e outras f(r)estas: ensaios de história social da 
cultura. São Paulo: Editora UNICAMP, CECULT, 2002 .447 pp. 
 
29 
músicos ao redor dos seus quitutes e que ajudaram a construir o modo carioca de fazer 
samba, entre eles estão Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres e Pixinguinha. O 
samba, portanto, não é apenas ritmo musical, é prática cultural, é forma de viver no 
mundo. De acordo com Simas (2015, p. 1), 
a história do samba é muito mais que a trajetória de um ritmo, de uma 
coreografia, ou de sua incorporação ao panorama mais amplo da música 
brasileira como um gênero seminal, com impressionante capacidade de 
dialogar e se redefinir a partir das circunstâncias. O samba é muito mais 
do que isso. Em torno dele circulam saberes, formas de apropriação do 
mundo, construção de identidades comunitárias, hábitos cotidianos, 
jeitos de comer, beber, vestir, enterrar os mortos, celebrar os deuses e 
louvar os ancestrais. Tudo isso que se aprendia e se ensinava na Rua 
Visconde de Itaúna, 117. 
O terreiro da Tia Ciata, o de dona Esther, assim como tantos outros, eram então 
uma estratégia de resistência e reexistência dos povos negros. Dentre as inúmeras 
estratégias utilizadas por esse grupo na luta pela conquista de seus direitos, estão as 
diversas formas de ser organizarem enquanto coletividade, 
organizando festas e construindo sociabilidades em torno das 
macumbas de origem afro-brasileiras, da nascente umbanda, dos 
batuques dos sambas e das rodas de dança do jongo e do caxambu, 
danças oriundas dos negros bantos do Vale do Paraíba, os moradores 
construíam laços de pertencimento e identidade. (SIMAS, 2016, p. 4) 
Essas expressões artísticas, como vimos, funcionam como meios de essa 
população se manter não só organizada coletivamente, mas também agindo ativamente 
no mundo recriando sua realidade e sobrevivendo ao presente de repressões e privação de 
direitos. E alguns dos espaços que possibilitaram isso foram os terreiros. O samba, 
gestado nesses lugares, conquistou uma força cultural e política tão grande que foi 
transformado pelo poder público em um dos maiores símbolos da identidade nacional, 
que o utiliza para de certa forma manter o mito da democracia racial, não sem tentar 
modificá-lo “desafricanizando-o”. Quando adotado pela indústria fonográfica, o samba já 
havia sido modificado: em detrimento da percussão, foram inseridos mais instrumentos 
de corda, por exemplo. Esse é um dos exemplos de como esse processo de construção do 
samba não se deu de uma forma livre de conflitos, disputas, negociações e silenciamentos. 
Se atualmente o samba é um estilo que goza de algum prestígio, é relevante 
mencionar que foi um percurso tortuoso até seu processo de aceitação social. Conforme 
mencionado por Simas (2015), o samba é formado por diversos saberes, por práticas que 
 
30 
contam a história de um povo – de um povo perseguido, rejeitado socialmente por anos. 
E comprometer-se com o projeto educacional significa olhar além dos mecanismos 
teóricos e dispositivos clássicos fomentados por políticas que nem sempre priorizam as 
demandas da população. De acordo com Simas (2020, p. 55): 
Os comprometidos com a tarefa da invenção do país nas encruzilhadas 
da educação não poderão se esconder mais apenas em seus aparatos 
teóricos, leituras clássicas e ideologias redentoras. A educação está 
também fora dos muros escolares. Se a escola não reconhecer isso, pior 
para ela e para quem ela educa. 
Cabe ao educador comprometido se valer da realidade na qual está inserido, e 
neste trabalho, busco analisar como que o samba inspira novas possibilidades 
pedagógicas em seus terreiros e no terreiro escola - a escola formal propriamente dita -, 
por meio do uso de enredos, avaliando o trabalho dos desfiles e seu conteúdo cênico, por 
exemplo, e também na dimensão social, comunitária, no campo da ação. Já que “a escola 
colonial, tão presente, busca educar corpos para o desencanto e para os currais do mercado 
de trabalho, normatizados pelo medo de driblar/gingar/pecar” (SIMAS, 2020, p.56), o 
samba e todo seu repertório histórico são primordiais na desconstrução do projeto colonial 
que ainda vigora no campo educacional. 
 
1.2 DESCONSTRUINDO PARA CONSTRUIR: O CURRÍCULO COMO AÇÃO 
DINÂMICA NO ESPAÇO ESCOLAR 
 
 Ao analisar a história da educação formal no Brasil, desde a chegada dos 
portugueses, passando pelo período do Império, pós-abolição, República, Ditadura, e 
período de redemocratização do país, será possível perceber que o projeto educacional 
vigente nos respectivos momentos, com algumas poucas exceções, estava voltado para 
priorizar famílias abastadas. 
Como já dito, para Ávila e Hypolito (2020), o currículo apresentado no Brasil, a 
partir da massificação escolar, buscou dar uma “visão geral das áreas do conhecimento, 
tendo por ênfase um currículo eurocêntrico” (p.13). Os autores afirmam que os livros 
didáticos apresentam indígenas e africanos em situações de inferioridade, ideia reforçada 
muitas vezes por obras clássicas de artistas como Rugendas e Debret, e não mostrando 
atos de resistência. Neste contexto, são a essas representações que os alunos são 
submetidos “em relação a etnia africana e afro-brasileira” (2020, p.13). Outro exemplo é 
o período do pós-abolição, em que a família branca e patriarcal é modelo ideário para a 
 
31 
sociedade enquanto os negros são mostrados em condições subalternas. Os autores 
argumentam que “a cultura escolar pareceestar associada ao capital cultural das classes 
dominantes” (2020, p.13-14). Para Kátia Basílio, o currículo é “uma construção 
sistemática de conhecimentos socializado pelas instituições escolares e o contexto social, 
econômico, político e cultural que ele representa” (2018, p. 34). 
Foram anos de lutas dos movimentos negros para que, aos poucos, o acesso de 
pessoas pretas fosse melhorado. Nesse sentido, uma conquista importante aconteceu em 
2003, quando foi sancionada a Lei 10.639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da 
Educação, incluindo no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da presença 
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Foi preciso uma lei para que 
as instituições educacionais tratassem desta temática. A comunidade indígena também 
reivindica que suas particularidades sejam respeitadas e, então, em 2008, é promulgada a 
Lei 11.645, que institui a obrigatoriedade das temáticas indígenas na educação básica. 
Nilma Lino Gomes (2012, p. 105) apontou a potência que a Lei n° 10.639/03 tem 
para provocar o rompimento do silêncio em relação à discriminação social, porque 
legitima a abordagem das questões da história e culturas africana e afro-brasileiras: 
Nesse sentido, a mudança estrutural proposta por essa legislação abre 
caminhos para a construção de uma educação anti-racista que acarreta 
uma ruptura epistemológica e curricular, na medida em que torna 
público e legítimo o “falar” sobre a questão afro- brasileira e africana. 
Mas não é qualquer tipo de fala. É a fala pautada no diálogo 
intercultural. E não é qualquer diálogo intercultural. É aquele que se 
propõe ser emancipatório no interior da escola, ou seja, que pressupõe 
e considera a existência de um “outro”, conquanto sujeito ativo e 
concreto, com quem se fala e de quem se fala. E nesse sentido, incorpora 
conflitos, tensões e divergências. 
O conflito, dessa forma, faz parte de toda experiência pedagógica que se propõe a 
ser emancipatória, já que desestabiliza os modelos dominantes. 
O currículo é um elemento de grande relevância em toda a composição escolar, 
é ele que reúne as competências necessárias de um saber aprovado socialmente. Ele 
também é o responsável por dilatar as desigualdades encontradas nas instituições, uma 
vez que, independentemente das condições sociais e econômicas, os alunos são 
submetidos ao mesmo tipo de conteúdo. Demerval Saviani (2016, p. 55), quando define 
currículo, trata desse seu caráter decisivo em ação nos espaços escolares: 
O currículo em ato de uma escola não é outra coisa senão essa própria 
escola em pleno funcionamento, isto é, mobilizando todos os seus 
 
32 
recursos, materiais e humanos, na direção do objetivo que é a razão de 
ser de sua existência: a educação das crianças e jovens. Poderíamos 
dizer que, assim como o método procura responder à pergunta: como se 
deve fazer para atingir determinado objetivo, o currículo procura 
responder à pergunta: o que se deve fazer para atingir determinado 
objetivo. Diz respeito, pois, ao conteúdo da educação e sua distribuição 
no tempo e espaço que lhe são destinados. 
Se o currículo é a escola em movimento, em ação, é urgente romper com o projeto 
domesticador do domínio colonial que ainda se encontra nele. A partir do documento de 
orientação curricular do estado do Rio de Janeiro, aprovado em 2019 e colocado em uso 
a partir de 2020, foi possível observar que a proposta inicial curricular está alinhada ao 
ideal de diversidade, uma vez que: 
Considerando as Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações 
Étnico Raciais, o Art. 26 da LDB (Lei 10.639/03 e 11.645/08), que 
versa sobre o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena 
na educação básica, a valorização da diversidade é fundamental para 
construção de uma nação democrática, na medida em que combate os 
preconceitos e promove a equidade. Neste sentido, destacamos a 
importância de uma orientação curricular que privilegie a diversidade 
de seus territórios em toda a sua abrangência, oportunizando aos seus 
atores identificar-se como parte do processo do seu lugar e de sua 
identidade. Assim, apontamos que trazer para o debate questões sobre 
racismo nos permite combatê-lo e trazer à tona, reflexões sobre tensões, 
igualdade, desigualdades, discriminação, diferenças e privilégios. Com 
isso, assinalamos que, cada território, escola pública ou privada, ao 
complementar e enriquecer sua proposta curricular possa abordar dentre 
outros, os temas apresentados a seguir, em uma perspectiva crítica, 
decolonial e antirracista: África como berço da humanidade; A diáspora 
africana no Brasil; África e suas tecnologias; Povos tradicionais, seus 
saberes e valores civilizatórios; A estética como um importante 
território de negação ou afirmação negra; Diversidade, na perspectiva 
daqueles que estão em situação de vulnerabilidade e ou exclusão; 
Trabalhar com as relações de gênero nas relações étnico-raciais, como 
o feminismo negro; A valorização de valores civilizatórios afro-
indígenas como a oralidade e a circularidade, bem como as demais 
culturas locais e a Formação Continuada de professores(as) em 
Educação para as Relações Étnico-Raciais. (Base Nacional Comum – 
Documento de orientação curricular do estado do Rio de Janeiro – p. 
27-28) 
O documento versa especificamente sobre a valorização da diversidade, sobre o 
combate ao preconceito, sobre abordagens decoloniais que emancipem e promovam a 
devida equidade entre aqueles que ocupam as escolas. Destaco “os que ocupam as 
escolas”, porque o currículo vai educar também todos os integrantes da equipe escolar e 
sua comunidade de inserção. Isso acontece, uma vez que uma atividade promovida no 
cerne de uma aula que tenha como objetivo, por exemplo, tratar dos sambas de Martinho 
 
33 
da Vila e sua biografia, e que seja exposta nas dependências do prédio escolar, poderá 
atingir de alguma forma funcionários da limpeza, trabalhadores da secretaria, os 
responsáveis pela merenda escolar, os responsáveis dos alunos, os demais professores e 
todos aqueles que circularem naquele espaço. 
Não existe isenção quando a questão é o currículo, pois “para o acesso ao saber 
sistematizado é que se torna necessária a escola” (SAVIANI, 2016, p. 55). Se a escola é 
composta pelo currículo e o currículo é a própria escola em funcionamento, tal conteúdo 
não tem como ser imparcial, uma vez que nele estão inseridas as concepções de mundo 
vigentes. Ali se concretizam as relações sócio-históricas de poder. Uma importante 
consideração a se fazer em relação à implementação da Educação das Relações Étnico-
Raciais é que, inicialmente, conservadores do status quo viram na lei um tipo de 
empobrecimento intelectual e curricular; entretanto, diante das articulações dos 
movimentos sociais e dos professores comprometidos com a causa, a lei se estabeleceu e, 
quase 20 anos depois de sua implementação, a sociedade colhe seus frutos. Certamente, 
o cumprimento da lei não ocorre ainda da forma ideal, mas diante de suas consequências 
– mudança de perspectiva na produção de material didático, conteúdo cobrado em exames 
governamentais, como os vestibulares –, é possível perceber avanços. 
Conforme Nilma Lino Gomes (2012) aponta, muito já foi denunciado em relação 
ao desafio de descolonizar os currículos, mas é importante considerar as mudanças 
mobilizadas pelas lutas coletivas e individuais dos ditos excluídos: 
 
As mudanças sociais, os processos hegemônicos e contra-hegemônicos 
de globalização e as tensões políticas em torno do conhecimento e dos 
seus efeitos sobre a sociedade e o meio ambiente introduzem, cada vez 
mais, outra dinâmica cultural e societária que está a exigir uma nova 
relação entre desigualdade, diversidade cultural e conhecimento. (p. 
102) 
 
As escolas e as universidades, instituições inseridas nesse complexo contexto, são 
convocadas a um “processo de renovação”.No entanto, segundo a autora, não mais uma 
renovação que está relacionada apenas à teoria, mas sim uma realmente comprometida 
com a relação entre a teoria e a prática, “uma renovação do imaginário pedagógico e da 
relação entre os sujeitos da educação” (p. 103). Dessa forma, o currículo passa a ser um 
território em disputa. 
A autora chama a atenção para a necessidade de compreendermos a Lei n° 
10.639/03 como uma possibilidade de “mudança estrutural, conceitual, epistemológica e 
 
34 
política” (GOMES, 2012, p. 106) e não apenas como novos conteúdos escolares a serem 
introduzidos no currículo. Para isso, a autora cita um duplo desafio: explicar a relação 
colonial na construção da história do mundo ao mesmo tempo em que se propõe 
alternativas a essa leitura da história (p. 107). 
Dessa forma, embora haja avanços na mudança da perspectiva educacional 
brasileira, a lei sozinha não produz os efeitos que poderia no campo do social. Em 
Ensinando a transgredir, bell hooks escreve que teve uma experiência de aprendizado 
como revolução em sua escola. A autora, que teve parte de sua educação em uma escola 
frequentada somente por negros, afirma ainda que: 
Aprendemos desde cedo que nossa devoção ao estudo, à vida do 
intelecto, era um ato contra-hegemônico, um modo fundamentalmente 
de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racista. [...] 
minhas professoras praticavam uma pedagogia revolucionária de 
resistência, uma pedagogia profundamente anticolonial. (HOOKS, 
2019, p. 10) 
Ela traz em seu depoimento a relevância de um corpo docente comprometido com 
a questão da formação e do nível de conscientização que elas tinham. O aluno negro, 
pobre, tem dificuldade em se reconhecer como sujeito pertencente ao espaço escolar, pois 
há uma cisão entre a realidade experienciada na escola e a realidade vivida em casa e/ou 
na sua comunidade. A estrutura proposta pelas unidades escolares é fixa, estruturada de 
modo hierárquico em que o professor é a figura protagonista, numa espécie de palco 
projetado em algumas arquiteturas. As dinâmicas escolares não valorizam a partilha, o 
conhecimento parte do professor e ele transmite esse conhecimento aos seus alunos. 
bell hooks (2019, p.25) propõe, assim, uma pedagogia engajada, que consiste num 
entrosamento entre professor e aluno: “(...) não é o de simplesmente partilhar 
informações, mas sim o de participar do crescimento intelectual e espiritual dos nossos 
alunos”. O aprendizado não deve funcionar como uma rotina de linha de produção. 
No que diz respeito aos currículos oficiais, por mais que esses documentos 
tenham, ao longo dos anos, passado por inúmeras transformações, e que as metodologias 
educacionais tenham atualmente mais afinidade com o seu alunado, é preciso 
problematizar a questão de o currículo ser fixo e ainda assim ter como proposta dar conta 
de uma realidade complexa e diversa. O próprio currículo, quando aborda o tema voltado 
para a formação do povo negro na constituição do que atualmente é o Brasil, não oferece 
aporte ao professor sobre as etnias que compunham a sociedade, seus nomes, suas 
tradições. Em relação aos indígenas ocorre o mesmo, usam “negros” e “indígenas” de 
 
35 
forma única, como se não fossem povos, línguas e costumes distintos. O professor, ao 
optar por tal aprofundamento, deve preterir outro item de conhecimento. Assim, o 
currículo é limitante, porque, à medida em que os conhecimentos são selecionados, o 
docente não tem o tempo necessário para acompanhar o crescimento intelectual de seu 
alunado, já que os conhecimentos são hierarquizados. Por exemplo, Português e 
Matemática possuem mais tempo de ensino na carga horária, consequentemente, essas 
disciplinas são socialmente entendidas como mais importantes do que Artes e Geografia, 
que possuem menos tempo. 
A hierarquização das culturas aparece na formação desses currículos, em que a 
cultura do dominante se sobressai à do dominado. Ela deixa de ser democrática e isso 
interfere na formação curricular. Os Estudos Culturais surgem buscando romper com os 
modelos que enxergam “a cultura apenas a partir de um único ponto de vista, mas 
compreendendo que existem várias e buscando também romper com os binarismos” 
(SILVA; SOUZA; FERRAZ, 2022, p.5). Sendo assim, quando a cultura passa para o 
centro do debate, cria-se uma relação entre pedagogia e os Estudos Culturais em 
educação. Isso contribui para o processo de ensino-aprendizado e para o processo cultural, 
que tem “ações de aprendizagens na formação do sujeito, das suas identidades” (SILVA; 
SOUZA; FERRAZ, 2022, p.5-6). 
Em comunidades no Rio de Janeiro que têm forte ligação com a história do samba, 
como em Mangueira, por exemplo, a história local não poderia estar dissociada do saber 
escolarizado. A vivência daquelas pessoas, o samba, os compositores, não podem estar 
na escola apenas nas datas festivas, já que se trata de uma questão identitária relevante. E 
assim seria em todas as comunidades escolares brasileiras; cada local levando em conta a 
sua história, suas raízes. Entretanto, por trás da estrutura curricular está a manutenção de 
privilégios que beneficiam o grupo hegemônico que compõe a elite. Mesmo o Brasil 
tendo dimensões continentais, a política de uma base curricular comum vigora e ela 
sustenta os exames de acesso às universidades, acesso concorrido, mas com vagas 
preenchidas majoritariamente pela elite. Assim, o currículo sustenta e reproduz as 
desigualdades sociais. 
Ao professor capacitado, cabe fazer malabarismos para dar conta dos conteúdos 
de forma humanizada, possibilitando aos alunos uma visão crítica, mas também o direito 
de acesso ao mundo do trabalho no futuro. É preciso desconstruir a visão do currículo 
como único eixo possibilitador do conhecimento, ele deve funcionar como possibilidade 
de em que se parte dele didaticamente, mas que a escola não se limite ao campo do 
 
36 
conhecimento colonial. Nesse sentido, no Rio de Janeiro, fazer uso do samba como 
instrumento didático é ação, de revolução, uma forma de fortalecer os vínculos históricos 
positivos da comunidade negra, é também um recurso válido para o cumprimento do 
conteúdo das relações Étnico-Raciais. 
O samba ainda não é entendido em todas as suas potencialidades, os desfiles 
protagonizados no carnaval menos ainda. Esses eventos são valorosos instrumentos 
pedagógicos e as comunidades envolvidas levam um ano inteiro se preparando e 
ensaiando para o dia do desfile. Vários são os saberes envolvidos em toda essa produção, 
saberes matemáticos, históricos, habilidade de escrita, saber artístico, movimento 
corporal, conhecimentos geográficos, científicos, toda uma gama de conhecimento está 
inserida no momento auge da escola de samba. Se não por uma questão de colonialismo, 
por que nossas escolas priorizam os movimentos artísticos europeus e não valorizam o 
espetáculo do carnaval? O mesmo é possível pensar sobre como os deuses gregos são 
estudados de forma natural nas escolas, mas os Orixás são malvistos; ou então no campo 
dos esportes, em que o futebol e o vôlei são muito praticados nas aulas de Educação 
Física, já a capoeira não recebe o mesmo protagonismo. 
 
1.3 A PEDAGOGIA DAS ENCRUZILHADAS COMO POSSIBILIDADE 
 
Tendo em vista a estrutura teórica apresentada até aqui, desenha-se a ideia 
principal de que o samba e seu arcabouço cultural são elementos pedagógicos decoloniais 
de suma importância. Apresento, portanto, nesta seção um conceito de grande valia para 
toda a pesquisa. Como já me deparei com muitos questionamentos sobre a legitimidade 
de entender os espaços/tempos de samba como espaços/tempos de educação, inicio 
apresentando a diversidade de possibilidades de significados reivindicados para educação 
e as pedagogias em disputa na sociedade para destacar a dimensão política dessa 
discussão. Dessa forma, justifico minha proposição de que os espaços de samba são,

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