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Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar? amar e esquecer, amar e malamar, amar, desamar, amar? sempre, e até de olhos vidrados, amar? Os poemas amorosos de Claro enigma ("Campo de flores", "Amar", "Entre o ser e as coisas", "Tarde de maio", "Fraga e sombra", "Canção para álbum de moça", "Rapto" e "Memória") talvez contenham os momentos de maior lucidez do poeta para falar dos assuntos humanos. Nesses poemas, o eu lírico apresenta várias maneiras de amar, em oito momentos entre os quais oscila seu sentimento. Há o amor maduro, o amor total, o amor que busca sua pureza nos elementos, na natureza, o amor que "se desconhece e maltrata", o amor ao cair da tarde, o amor totalmente frustrado, o amor misterioso. Com exceção de "Memória", os outros sete poemas citados compõem, juntos, a segunda parte de Claro enigma, chamada "Notícias amorosas". O poeta certamente gostava muito desses poemas, pois nenhum ficou de fora da Antologia selecionada por ele. Além desses sete, ele acrescentou "Memória", que não ocupa a seção destinada aos poemas de amor em Claro enigma, e sim a parte dedicada ao "escurecer" da vida do poeta. Na Antologia, este poema remete ao amor do passado, à memória afetiva das coisas findas. O poema "Amar-amaro" (de Lição de coisas, 1962), derradeiro da sexta parte da Antologia, e título da parte anterior, representa, na poesia de Drummond, um salto tanto cronológico quanto estilístico em relação aos poemas anteriores. Agora, mais do que em qualquer momento anterior, a palavra é que importa, não as ideias. O trabalho com a palavra já se evidencia desde logo no título, sugerindo algo como a doçura amarga do amor. Ao lermos o poema, ficamos nos perguntando a todo momento o que é que o poeta quer nos dizer. Talvez fosse melhor pensar em termos de contemplar o mundo que as palavras nos oferecem, ao invés de perseguir as ideias. É evidente que toda palavra traz em si alguma ideia, ou seja, o signo, ou o que ela significa, é praticamente indissociável de sua forma. Mas é óbvio também que o poema não pretende contar uma história. Encaremos, portanto, os significados das palavras como um caminho que nos conduzirá ao mundo de sugestões, de sutis relações entre as palavras, considerando inclusive que o poeta não se contentou apenas em utilizar as palavras em estado de dicionário, mas buscou outras bem longe e inventou algumas. Isso provoca um certo hermetismo em nossas relações com as palavras (devemo-nos lembrar que o leitor é quem recria o poema, fazendo um poema só seu). Mas essas aparentes dificuldades não impedem que se chegue à poesia contida no poema, que é a que cada um, em maior ou menor grau, descobre. Sem pretender cometer o sacrilégio de contar o que acontece no poema, ou explicá-lo, ou pelo menos tentando perpetrar o crime apenas pela metade, vamos tentar passear nossos sentidos pelo texto, lembrando a advertência (bem larga, aliás, como denuncia o aspecto gráfico da frase) do poeta: Desespero (de pernas para o ar), ternura, de que valem sentimentos, por que amar? Amor é peça de museu? O museu não é do Prado, secular instituição espanhola, situada em Madri, mas do pardo, o obscuro, quase escuro, branco sujo, duvidoso. Amor, sofrimento, morte, doença contagiosa que enche o corpo de feridas, sofre porque quer, errante, está em todo lugar, pre-enche os vazios e é o próprio vazio. Concentremo-nos na sugestão: amar sofrer talvez como se morre de varíola voluntária vágula evidente? Amor que queima, lembrança de Camões, que penetra todos os recantos do corpo e do espírito, especulo da alma, "por dentro por fora nos cantos nos ecos" sem vírgulas para atrapalhar o elo. Qual o sentido, qual a busca? A concretização do conhecimento na metáfora da carne, esquartejada, exposta. 114