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IAIN PROVAN V. PHILIPS LONG TREMPER LONGMAN III UMA HISTORIA BÍBLICA DE ISRAEL Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica llacqua CRB-8/7057 Provan,Iain Uma história bíblica de Israel / Iain Provan, V. Philips Long, Tremper Longman I I I ; tradução de Mareio Loureiro Redondo. - São Paulo: Vida Nova, 2016. 496 p. Bibliografia ISBN 978-85-275-0643-4 Título original: A biblical history o f Israel 1. Bíblia V.T. - História 2, Israel 3. Eventos bíblicos I. Título II. Long, V. Philips III. Longman,Tremper IV. Redondo, Mareio Loureiro 15-0970 CD D 221.95 índices para catálogo sistemático: 1. Bíblia A.T. - Historiografia ®2003, de Ia in Provan, V. Philips L o n g e T rem per L o ngm an I I I T ítu lo do original: A biblical history o f Israel, edição publicada pela W e s t m i n s t e r J o h n K n o x P r e s s (Louisville, Kentucky, EU A ). Todos os direitos em língua portuguesa reservados por S o c ie d a d e R e l ig io s a E d iç õ e s V id a N ova C aixa Postal 21266, São Paulo, SP, 04602-970 www.vidanova.com .br | vidanova@ vidanova.com .br l . a edição: 2016 Proibida a reprodução por quaisquer meios, salvo em citações breves, com indicação da fonte. Im presso no Brasil / P rinted in B razil Todas as citações bíblicas sem indicação da versão foram extraídas da A lm eida Século 21. C itações bíblicas com a sigla T A se referem a traduções feitas pelo autor. G e r ê n c i a e d it o r i a l Fabiano Silveira M edeiros C o o r d e n a ç ã o e d it o r i a l Valdem ar Kroker E d iç ã o d e t e x t o T iago A bdalla R e v is ã o d a t r a d u ç ã o e p r e p a r a ç ã o d e t e x t o T atiane Souza M arcos G ranconato R e v is ã o d e p r o v a s Sylm ara Beletti C o o r d e n a ç ã o d e p r o d u ç ã o Sérgio Siqueira M o u ra D ia g r a m a ç ã o Sandra Reis O liveira C a pa O M D esigner http://www.vidanova.com.br mailto:vidanova@vidanova.com.br Sumário Prefácio.........................................................................................................................11 Cronologia simplificada dos períodos arqueológicos em Canaã................................13 Reduções (siglas e abreviaturas).................................................................................15 P R IM E IR A PARTE: H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A B ÍB LIA Capítulo 1 A história bíblica morreu?.....................................................................21 Análise de um obituário......................................................................... 22 O defunto de fato está morto?............................................................... 25 Os textos bíblicos e o passado.............................................................25 A arqueologia e o passado...................................................................26 Ideologia epassado..................................................................................... 27 O obituário fo i precipitado?.............................................................28 Uma longa enfermidade: dois estudos de caso iniciais...................... 29 Soggin e a história de Israel..............................................................30 Miller e Hayes e a história de Israel.................................................36 Uma breve história da historiografia....................................................41 A história da história de Israel..............................................................48 As tradições patriarcais......................................................................49 As tradições relativas a Moisés/Josué............................................... 52 As tradições de fuízes ......................................................................... 53 Conclusão........................................................................................... 59 É possível salvar o paciente?...................................................................61 C apítulo 2 Conhecer e crer: a fé no passado..........................................................65 Um reexame da “história científica”......................................................67 A ciência e a filosofia da ciência........................................................ 67 6 UMA H IS T Ó R IA BÍBLICA D E ISRAEL A história como ciência: uma breve história da divergência............69 Testemunho, tradição e passado............................................................74 Testemunho e conhecimento...............................................................76 Reconsiderando a história da historiografia ................................... 83 C apítulo 3 C onhecendo a história de Is rae l..........................................................85 Verificação e falsificação..........................................................................88 Testemunhos antigos e recentes............................................................92 A ideologia e o passado de Israel.........................................................103 A arqueologia e o passado............................................................... 104 Textos extrabíblicos e o passado de Israel.......................................106 Ideologia e historiografia.................................................................113 Ideologia epensamento crítico.........................................................115 A analogia e o passado de Israel..........................................................116 Conclusão................................................................................................ 120 Capítulo 4 N arrativa e história: relatos sobre o passado.................................. 123 O ressurgimento da história narrativa depois de quase morrer.... 125 Análise literária e o estudo da história: casamento feliz ou divórcio tardio?.............................................................................. 129 Narratividade: realidade ou ilusão?..................................................... 133 A narratividade da vida ................................................................ 134 A narratividade da historiografia fbíblica) e a questão daficção... 137 Historiografia: arte ou ciência?............................................................139 A leitura da historiografia narrativa.................................................... 143 A poesia da narrativa bíblica............................................................... 147 Exemplo: Salomão no texto e no tem po............................................ 151 Resumo e perspectiva............................................................................155 Capítulo 5 Uma história bíblica de Israel............................................................ 157 SEG U N D A PA RTE: A H IS T Ó R IA D E ISRA EL, D E ABRAÃO A T É O P E R ÍO D O PERSA Capítulo 6 A ntes da conquista da te rra ................................................................ 169 Fontes para o estudo do período patriarcal: o relato de Gênesis.. 170 O relato dos patriarcas........................................................................... 171 SUMÁRIO 7 As narrativas patriarcais como teologia e como história................173 A história dos patriarcas e a história do texto................................... 174 Os patriarcas no ambiente do Antigo Oriente Próximo................. 176 O contexto sociológico dos patriarcas................................................184 Gênesis 14 e a história do período patriarcal.....................................186 A narrativa de José (Gn 37— 50)......................................................... 189 Análise literária............................................................................... 190 O propósito teológico da narrativa de José...................................... 191 José no Egito.....................................................................................192 O nascimento de M oisés.......................................................................195 O chamado de Moisés e as pragas do Egito......................................197 O Êxodo e a travessia do m ar.............................................................. 200 A data do Êxodo.................................................................................... 203 A peregrinação no deserto.................................................................... 205 Do Egito ao Monte Sinai............................................................... 205 Do Sinai a Cades-Barneia e depois às planícies de Moabe...........209 Conclusão.................................................................................................211 C apítulo 7 O estabelecim ento na te r r a ................................................................ 213 Fontes para o estudo do estabelecimento israelita em C anaã ......214 O surgimento de Israel em Canaã: uma análise das teorias propostas pelos estudiosos............................................................214 A teoria da conquista......................................... .............................215 A teoria da infiltração pacífica....................................................... 217 A teoria da revolta (dos camponesesj............................................. 219 Outras teorias endógenas................................................................ 222 Análise dos textos bíblicos (Josué e Juizes)...................................... 228 O livro de Josué................................................................................ 231 O livro de Juizes.............................................................................. 241 Um estudo de Josué e Juizes em conjunto........................................254 Análise dos textos extrabíblicos...........................................................258 A esteia de Merneptá.......................................................................258 As cartas de Am arna .......................................................................260 Análise dos vestígios materiais............................................................265 Descobertas arqueológicas de Jericó, Ai, Hazor e Laís .................. 266 Outros sítios arqueológicos importantes........................................ 280 Sítios da região montanhosa na Idade do Ferro 1 .........................286 8 UM A H IS T Ó R IA BÍBLICA DE ISRAEL Integrando as evidências textuais e m ateriais...................................289 Conclusão................................................................................................ 292 Capítulo 8 A M onarquia A n tig a ........................................................................... 295 Fontes para o estudo da Monarquia Antiga em Israel....................297 A cronologia da Monarquia Antiga em Israel..................................304 Introdução à história da monarquia: ISamuel 1— 7 ........................308 Israel exige e obtém seu rei: ISamuel 8— 1 4 ....................................316 A ascensão de Davi e a decadência e a morte de Saul: ISamuel 15— 3 1 ............................................................................328 D avi fo i mesmo um personagem histórico?................................... 329 Com que precisão o D avi da tradição reflete o D avi real e histórico ? ..............................................................................332 Com que precisão a narrativa bíblica descreve os atos específicos de D avit................................................................338 O relato bíblico da ascensão de D avi ao poder é historicamente aceitável? ...................................................... 344 O reino de Davi: 2Samuel 1— 1 0 .......................................................347 A questão relacionada à Jerusalém................................................. 348 A questão relacionada ao império...................................................351 A família e o sucessor de Davi: 2Samuel 11—2 4 ............................354 Conclusão................................................................................................ 361 C apítulo 9 A M onarquia Posterior: Salom ão.....................................................363 Fontes para o estudo da Monarquia Posterior em Israel................ 363 A cronologia da Monarquia Posterior em Israel..............................368 O reinado de Salomão.......................................................................... 374 Salomão: os anos iniciais.................................................................374 O governo de Salomão sobre Israel................................................ 376 Salomão e o mundo de sua época.....................................................380 Os projetos de construção de Salomão.............................................384 Salomão e a religião de Israel........................................................387 C apítulo 10 A M onarquia Posterior: os reinos d iv id idos..................................391 A divisão de Israel: de Roboão até O n ri............................................391 O período da dinastia de O n r i ........................................................... 399 De Jeú à queda de Samaria..................................................................407 Da queda de Samaria à rendição de Jerusalém................................420 C apítulo 11 O Exílio e o período p osterio r............................................................431 Fontes para o estudo do período exílico.............................................431 A queda de Jerusalém............................................................................ 432 A extensão da destruição.......................................................................434 O alcance da deportação........................................................................435 Os que permaneceram...................................................................... 438 Examinando a ocorrência do Exílio ...............................................440 A queda da Babilônia.............................................................................441 Fontes para o estudo do período pós-exílico.................................... 442 O período pós-exílico inicial................................................................443 O decreto de Ciro............................................................................. 443 A identidade e a função de Sesbazar e Zorobabel..........................445 Os governadorespós-exílicos de Yehud eprovíncias vizinhas.....448 Uma comunidade de cidadãos do Templo?.....................................450 A construção do Templo....................................................................451 Quem foram os “inimigos de Yehud” no período pós-exílico inicial?.................................................................. 453 O período pós-exílico intermediário: o livro de E ste r.....................455 O período pós-exílico final................................................................... 459 A seqüência dos trabalhos de Esdras e Neemias............................. 460 Esdras e Neemias no contexto da política persa............................. 462 Quemforam os “inimigos de Yehud” no período pós-exílicofinal?.... 464 Transições para o período intertestamentãrio.................................466 Conclusão................................................................................................................... 467 índice de passagens bíblicas........................................................................................469 índice remissivo..........................................................................................................481 SUMÁRIO 9 Prefácio Quando você pensa que tudo na história já aconteceu, descobre que não aconteceu. D u n c a n P r o v a n , ao s 11 a n o s Obalbuciar dos bebês e as declarações de seus irmãos mais velhos têm diversas uti lidades. Uma delas é fazer com que os autores não precisem dar longas explicações sobre a razão de sua obra, para proveito dos que desejariam lê-las. Assim, restringi mos aqui nossos comentários a manifestações de agradecimento a todos os que nos ajudaram a concluir este projeto, em especial a Jason McKinney e Carrie Giddings, que realizaram a maior parte do trabalho pesado e da revisão de provas. Para decepção dos que gostam de aplicar a crítica editorial a obras escritas por mais de um autor e, portanto, precisam fazer intervalos mais freqüentes para respirar um pouco de ar puro, acrescentamos apenas a seguinte informação: os capítulos 1-3, 5, 9 e 10 são em grande parte de autoria de Provan; os capítulos 4, 7 e 8 são prin cipalmente de Long; e os capítulos 6 e 11 são predominantemente de Longman. Provan atuou também como editor geral, unindo todas as partes do livro, e Long foi o responsável pela obra durante o processo de publicação. Iain Provan Phil Long Tremper Longman III Cronologia simplificada dos períodos arqueológicos em Canaã Idade do Bronze M édia (BM) B M I BM II Idade do Bronze Recente (BR) B R I BR II Idade do Ferro Ferro I Ferro II Ferro III 2100-1550 2100-1900 1900-1550 1550-1200 1550-1400 1400-1200 1200-332 1200-1000 1000-586 586-332 Reduções (siglas e abreviaturas) AB Anchor Bible A B D The Anchor Bible dictionary. David N. Freedman et al. (orgs.) AJSL American Journal o f Semitic Languages and Literatures A N E P The Ancient Near East in pictures.J. B. Pritchard (ed.) A N E T Ancient Near Eastern texts. J. B. Pritchard (ed.) AOAT Alter Orient und Altes Testament A SO R American Schools of Oriental Research ATDan Acta theologica danica AUSDDS Andrews University Seminary Doctoral Dissertation Series AU SS Andrews University Seminary Studies BA Biblical Archaeologist BARev Biblical Archaeology Review BASOR Bulletin o f the American Schools o f Oriental Research Bib Biblica BibOr Biblica et Orientalia BibS(N) Biblische Studien (Neukirchen, 1951-) BJS Brown Judaic Studies BKAT Biblischer Kommentar: Altes Testament B N Biblische Notizen BR Biblical Research BSem The Biblical Seminar BTB Biblical Theology Bulletin BZAW Beihefte zur Zeitschrift fíir die alttestamentliche Wissenschaft CAH Cambridge Ancient History CBQ Catholic Biblical Quarterly CNBB Versão do Conselho Nacional dos Bispos do Brasil 16 UMA H IS T Ó R IA BÍBLICA D E ISRAEL ConB Coniectanea biblica ConBO T Coniectanea bíblica, Old Testament EA Tábuas de Tell el-Amarna ESH M European Seminar in Historical Methodology E T L Ephemerides theologicae lovanienses FB Forschung zur Bibel FCI Foundations of Contemporary Interpretation FO T L Forms of the Old Testament Literature H SM Harvard Semitic Monographs HTh History and Theory H TIBS Historie Texts and Interpreters in Biblical Scholarship HUCA Hebrew Union Gollege Annual IE J Israel Exploration Journal JANES Journal o f the Ancient Near Eastern Society JAOS Journal o f the American Oriental Society JBL Journal o f Biblical Literature JCS Journal o f Cuneiform Studies JE TS Journal ofthe Evangelical Theological Society JJS Journal o f Jewish Studies JN ES Journal o f Near Eastern Studies JN SL Journal o f Northwest Semitic Languages JSO T Journalfor the Study o f the Old Testament JSOTSup Journal for the Study of the Old Testament, Supplement Series JSS Journal o f Semitic Studies JT S Journal o f Theological Studies J T T Journal ofText and Translation LAI Library of Ancient Israel LBI Library of Biblical Interpretation NAC New American Commentary N BD New Bible dictionary. I. H . Marshall et al. (orgs.) NCB New Century Bible NIBC New International Biblical Commentary N ID O T T E New International dictionary o f Old Testament theology and exegesis. W illem VanGemeren (org.) NIV New International Version NRSV New Revised Standard Version OBO Orbis biblicus et orientalis OBS Oxford Bible Series R EDUÇÕ ES (SIGLAS E ABREVIATURAS) 17 O TG Old Testament Guides O T L O ld Testament Library OTS Oudtestamentische Studiên PEQ Palestine Exploration Quarterly RA Revue d ’assyriologie et d ’archéologie orientale SB E T Scottish Bulletin ofEvangelicallheology SBib Subsidia Biblica SBLDS Society o f Biblical Literature Dissertation Series SBLWAW SBL W ritings from the Ancient W orld SBT Studies in Biblical Theology SBTS Sources for Biblical and Theological Study ScrB Scripture Bulletin ScrHier Scripta Hierosolymitana SEÃ Svensk exegetisk ãrsbok SHANE Studies in the History of the Ancient Near East SHCANE Studies in the History and Culture of the Ancient Near East SHJPLI Studies in the History of the Jewish People and the Land of Israel M onograph Series SJOT Scandinavian Journal o f the Old Testament SM NIA Tel Aviv University Sonia and Marco Nadler Institute of Archaeology M onograph Series ST Studia Theologica StudP Studia Phoenicia SWBA The Social W orld of Biblical Antiquity T O T C Tyndale Old Testament Commentaries TRu Iheologische Rundschau TSTS Toronto Semitic Texts and Studies TynBul Tyndale Bulletin T Z Theologische Zeitschrift U C O IP The University o f Chicago Oriental Institute Publications V T Vetus Testamentum VTS Supplements to Vetus Testamentum WTJ Westminster TheologicalJournal Z A W Zeitschriftfür die alttestamentliche Wissenschaft ZD M G Zeitschrift der deutschen morgenlàndischen Gesellschaft P r im e ir a p a r t e HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E A BÍBLIA Capítulo 1 A história bíblica morreu? Chegou a hora de a história da Palestina alcançar a maturidade e rejeitar formal mente os objetivos e as restrições da “história bíblica” [...]. E o historiador quem deve estabelecer os objetivos e não o teólogo. ... a morte da “história bíblica”... O obituário foi redigido por K. W. W hitelam .1 Ao utilizar a expressão “história bíblica” ele se refere a uma reconstrução da história da Palestina definida e domi nada pelo interesse nos textos bíblicos e pela explicação deles, em um modelo em que tais textos constituem a base da pesquisa histórica ou estabelecem os objetivos dela.2 Pode-se descrever o resultado desse trabalho como “... pouco mais do que paráfrases do texto bíblico decorrentes de motivações teológicas”.3 É esse tipo de história bíblica que, segundo W hitelam, está morto. Resta apenas realizar o funeral e prosseguir. O anúncio dessa morte é um ponto apropriado para iniciarmos nosso livro, que deliberadamente inclui a expressão “história bíblica” no título e certamente pretende estabelecer o texto bíblico como o centro de nosso empreendimento. O obituário nos leva a tratar de algumas questões importantes antes que possamos, de fato, co meçar. Como chegamos ao funeral descrito pelos comentários de W hitelam? Acaso era inevitável que tudo terminasse assim? A morte de fato ocorreu ou (lembrando Oscar W ilde) os relatos do fim da história bíblica têm sido muito exagerados? lThe invention o f ancient Israel: the silencing ofPalestinian history (London: Routledge, 1996), p. 35,69. 2Ibidem , p. 51, 68-9. 3Ibidem, p. 161. W hitelam atribui essa ideia especificamente a Garbini, mas parece que ela está em clara harmonia com a de W hitelam . 22 H IST Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA Quais são as possibilidades de salvar o paciente? Ou, caso isso não ocorra, ele pode ser ressuscitado? Na busca de respostas a essas perguntas, temos de entender um pouco como a disciplina da História de Israel se desenvolveu até sua forma atual. Nosso primeiro capítulo é dedicado a essa tarefa; começaremos pelo fim, com a discussão e a análise dos argumentos de W hitelam .4 ANÁLISE DE UM OBITUÁRIO A tese central de W hitelam é que o Antigo Israel elaborado pelos estudiosos da Bíblia com base, principalmente, nos textos bíblicos não passa de uma invenção que tem contribuído para silenciar a verdadeira história da Palestina. Ele alega que todos os textos antigos são “parciais”, no sentido tantode não apresentarem a história completa quanto de exporem somente uma perspectiva dessa história (são, assim, “ideologica mente influenciados”). Relatos específicos do passado são, de fato, invariavelmente produzidos por uma pequena elite em qualquer sociedade e, sem dúvida, concorrem com outros possíveis relatos sobre o mesmo passado, dos quais talvez não tenhamos evidência alguma no presente. Contudo, todos os historiadores modernos também são “parciais”, tendo crenças e compromissos que influenciam o modo que escrevem suas histórias e até mesmo as palavras que utilizam em suas descrições e análises (e.g., “Palestina”, “Israel”). W hitelam afirma que, com frequência, por razões teológicas ou ideológicas, os autores que estão predispostos à influência do texto bíblico ao escrever suas histórias têm transmitido, nesse processo, a própria visão parcial dos textos como se ela simplesmente representasse “as coisas como, de fato, foram”. Agindo assim, esses historiadores tanto distorcem o passado quanto contribuem para a atual situação na Palestina, pois a condição difícil enfrentada pelos palestinos hoje está intrinsecamente relacionada à desapropriação da terra e a um passado elaborado por estudiosos bíbli cos obcecados pelo “Antigo Israel”. Os historiadores têm distorcido o passado porque a apresentação feita por eles quase não tem relação alguma com o que de fato ocorreu. O “Antigo Israel” elaborado por esses historiadores com base em textos bíblicos é uma entidade imaginária, que só existe em suas mentes e não pode ser comprovada, tendo sua criação, aliás, associada com a situação política atual. Por exemplo, o “fato” da existência na Idade do Ferro de um estado grande, po deroso, soberano e autônomo fundado por Davi dominou o discurso dos estudiosos bíblicos ao longo do século passado e coincide com a visão e as aspirações de muitos líderes do Israel atual, contribuindo para intensificá-las. No entanto, a perspectiva de 4A breve resenha a seguir está baseada na análise muito mais aprofundada que I. W. Provan faz em “The end o f (Israels) history? A review article on K. W. W hitelam s The invention o f ancient Israel”, JSS 42 (1997), p. 283-300. A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 23 Whitelam é que os dados arqueológicos não indicam a existência de um estado israelita na Idade do Ferro, criado por alguns estudiosos com base nas descrições bíblicas. Ao mesmo tempo, a erudição recente tem nos ajudado a avaliar melhor as qualidades literárias dos textos bíblicos, minando a certeza de que esses textos possam ou devam ser usados na reconstrução histórica. Atualmente o povo de Israel apresentado na Bíblia é visto mais claramente como o povo de um livro escrito com grande habili dade artística e inclinação teológica. De acordo com W hitelam, praticamente não há prova alguma de que esse “Israel” tenha existido além da mera ficção literária.5 Assim, no meio acadêmico dos estudos bíblicos, chegamos a um ponto em que usar textos bíblicos para a elaboração da história israelita só é possível com grande cautela. Seu valor para o historiador não consiste no que eles têm a dizer sobre o passado em si, mas “... no que revelam acerca dos interesses ideológicos de seus autores, se (e apenas se) for possível situá-los no tempo e no espaço”.6 Portanto, não se deve permitir que os textos bíblicos definam e dominem o direcionamento da pesquisa. Deve-se permitir que a “história bíblica” descanse em paz em seu túmulo, enquanto avançamos em direção a um tipo de história totalmente diferente. A melhor maneira de contextualizar a tese de W hitelam e avaliar sua obra é observarmos rapidamente duas tendências recentes entre os estudiosos da Bíblia que predominam no livro dele e que resultaram no debate sobre a história de Israel em geral.7 Em primeiro lugar, o estudo recente da narrativa hebraica, que tende a enfatizar tanto a arte criativa dos autores bíblicos quanto as datas tardias de seus textos, tem afetado a confiança de alguns estudiosos na ideia de que o mundo narrado na Bíblia esteja intimamente relacionado ao mundo “real” do passado. Por esse motivo, quando se fazem perguntas sobre o passado de Israel, há uma crescente tendência a dar pouca importância aos textos bíblicos. Existe também uma tendência correspondente em confiar mais nos dados arqueológicos (que, segundo se afirma, mostram que os textos bíblicos não têm relação com o passado “real”) e nas teorias antropológicas ou socio lógicas. Diferentemente de textos elaborados artisticamente e “com viés ideológico”, esses outros tipos de dados têm sido apresentados com frequência como elementos que proporcionam base muito mais segura para se elaborar um quadro “objetivo” do Antigo Israel, algo bem distinto do que foi produzido até agora. Em publicações recentes, uma segunda tendência é a de sugerir ou afirmar cla ramente que a ideologia prejudicou os estudos acadêmicos sobre a história de Israel realizados anteriormente. Tem-se estabelecido um contraste entre pessoas que, no sW hitelam , Invention, p. 23. 6Ibidem , p. 33. 7Veja ainda I. W. Provan, “Ideologies, literary and criticai: Reflections on recent w riting on the history o f Israel”, JB L 114 (1995), p. 585-606. 24 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA passado, foram motivadas pela teologia e pelo sentimento, em lugar da erudição crí tica, dependendo excessivamente de textos bíblicos para elaborar a história de Israel e aquelas que, no presente, colocam de lado os textos bíblicos e tentam escrever a história de forma relativamente objetiva e descritiva. Por exemplo, T. L. Thompson vê entre os estudiosos do passado uma indiferença ideologicamente determinada por qualquer história da Palestina que não envolva diretamente a história de Israel na exegese bíblica...”; ele entende que uma história de Israel academicamente acei tável não pode ser produzida por autores que estejam fascinados pelo enredo da antiga historiografia bíblica.8 Essas duas tendências — a crescente desconsideração pelos textos bíblicos e a descrição negativa dos estudos acadêmicos anteriores como ideologicamente comprometidos — talvez sejam os principais aspectos que esta belecem a distinção entre a nova forma de escrever a história de Israel9 e a antiga, que tendia a considerar os textos narrativos fontes de dados essenciais para a histo riografia (ainda que esses textos não fossem apenas históricos) e não estava muito inclinada a introduzir no debate acadêmico questões ideológicas e de motivações. Nesse contexto, sem dúvida é possível utilizar o livro de W hitelam como exem plo perfeito da nova historiografia. Entretanto, o tipo de argumentação que acabamos de descrever é levado muito mais adiante do que fora feito anteriormente. Seguindo algumas ideias encontradas em P. R. Davies10 (ou talvez apenas sendo coerente com tais ideias), W hitelam agora defende não somente que a informação fornecida pelos textos bíblicos sobre o Antigo Israel é problemática, mas que a própria ideia do Antigo Israel incutida em nossa mente por esses textos também é. Até mesmo historiadores mais recentes ainda escrevem histórias de “Israel”, o que, para Whitelam, é um erro. Na verdade essa abordagem é mais grave do que um erro, pois, ao inventar o Antigo Israel, os estudiosos ocidentais têm contribuído para que a história da Palestina seja silenciada. Para outros historiadores recentes, os compromissos ideológicos dos es tudiosos são considerados relativamente inofensivos e sem implicações importantes perceptíveis fora da disciplina de estudos bíblicos, mas Whitelam certamente discorda desse entendimento. De modo praticamente deliberado, ele estabelece a ideologia na esfera da política contemporânea, afirmando que, como disciplina, os estudos bíblicos têm colaborado para um processo que priva os palestinos de uma terra e de um passado. 'Early history o f the Israelite people from the written and archaeological sources, SH A N E 4 (Leiden:Brill), p. 13,81. 5 Além dos textos de W hitelam e Thompson, podemos mencionar aqui livros como N. P Lemche, Ancient Israel: a new history o f Israelite society, BSem 5 (Sheffield: JSOT, 1988); G. Garbini, History and ideology in ancient Israel (New York: Crossroad, 1988); P. R. Davies, In search o f ancient “Israel”, JSO TS 148 (Sheffield: JSOT, 1992); e G. W. Ahlstrõm, The history o f ancient Palestinefrom the Paleolithicperiod to Alexanders conquest, edição de D. V. Edelman, JSO TS 146 (Sheffield: JSOT, 1993). “ Davies, Search. A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 25 O DEFUNTO DE FATO ESTÁ MORTO? A história bíblica morreu de fato ou está apenas dormindo? A primeira vista, os argumentos de W hitelam e de outros acadêmicos com pensamento semelhante parecem convincentes, mas ainda é preciso levantar algumas questões importantes. Os textos bíblicos e o passado Primeiro devemos refletir sobre a atitude de W hitelam para com os textos bíblicos. Mesmo que relatos do passado sejam invariavelmente produto de uma pequena elite com uma perspectiva particular, será que esses relatos não podem fornecer informações sobre o passado que descrevem e também sobre os interesses ideológicos de seus autores? Presume-se ser o desejo do próprio W hitelam que acreditemos nos escritos dele (como parte de uma elite intelectual) sobre o passado como capazes de nos informar tanto sobre os fatos ocorridos quanto sobre sua ideologia — embora mais adiante retornaremos a essa questão. A verdade é que todos os relatos do pas sado podem ser parciais (em todos os sentidos), mas a parcialidade em si não cria necessariamente um problema. Por outro lado, mudanças de perspectiva na leitura da narrativa bíblica têm, de fato, suscitado questões em muitas mentes sobre a ma neira pela qual as tradições bíblicas podem ou devem ser usadas ao se escrever uma história de Israel. Com certeza, há muito que criticar no que diz respeito ao método antigo e aos resultados obtidos quando os textos bíblicos foram usados durante a investigação histórica. Se agora, porém, os textos não devem mais ser vistos como os principais dados nessa investigação histórica — como testemunhas do passado que descrevem, em vez de simples testemunhas da ideologia de seus autores — , é outra questão. A declaração ou a implicação de que, em parte como resultado do que agora conhecemos sobre nossos textos, a academia tem sido obrigada, em certa medida, a aceitar essa conclusão é ponto pacífico em publicações recentes sobre Israel e histó ria. Porém, em meio a todas essas declarações e implicações, a pergunta permanece: reconhecendo-se que a narrativa hebraica é elaborada artisticamente e influenciada ideologicamente, será que, em relação a outros tipos de dados do passado, isso reduz de alguma forma seu valor como fonte material para historiógrafos modernos? Por exemplo, se as tradições bíblicas sobre o período pré-monárquico na forma pela qual chegaram até nós são de uma época posterior (se isso for demonstrado), por que isso significaria que elas são inúteis para a compreensão do surgimento ou da origem de Israel?11 Tais perguntas continuam sem explicações. nW hitelam relatando as perspectivas existentes em textos acadêmicos recentes, entre os quais inclui o seu (.Invention, p. 177 e mais explicitamente p. 204-5). 26 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA A arqueologia e o passado Segundo, o que dizer da atitude em relação à arqueologia revelada no livro de Whitelam? Como outros “novos historiadores”, W hitelam dá considerável valor à evidência arqueológica, ao contrário do que faz com a evidência extraída de textos. De fato, um dos elementos fundamentais de seu argumento é que a arqueologia demonstra a veracidade de certas coisas, o que por sua vez demonstra que o Antigo Israel dos textos e também dos estudiosos constitui-se em um passado imaginário. Por exemplo, o que basicamente os dados arqueológicos, associados às novas maneiras de analisar a narrativa hebraica, têm “mostrado” é que os vários modelos ou teo rias modernas sobre o surgimento do Antigo Israel são “... invenções de um antigo passado imaginário”.12 No entanto, o que é intrigante nesse tipo de afirmação é o fato de que o próprio W hitelam declara em outro lugar que a arqueologia, à seme lhança da literatura, fornece apenas textos parciais — uma parcialidade controlada (em parte) por pressuposições políticas e teológicas que determinam o plano ou a interpretação dos projetos arqueológicos. O historiador — por mais amplo que seja seu trabalho arqueológico — sempre depara com textos parciais, e a ideologia do próprio investigador influencia a arqueologia.13 Para W hitelam, é importante des tacar esses aspectos, pois ele prossegue questionando grande parte da interpretação existente dos dados procedentes da pesquisa arqueológica e das escavações realizadas em Israel, em particular as que são apresentadas por acadêmicos israelenses. Ele alega que essa pesquisa tem contribuído para criar o “passado imaginário” de Israel e resiste deliberadamente a interpretações de dados arqueológicos que conflitem com a tese desenvolvida em seu livro: a de que o Antigo Israel é uma entidade “imaginária”.14 Desse modo, o livro de W hitelam apresenta uma atitude bastante ambivalente em relação aos dados arqueológicos. Quando parecem estar em conflito com as ale gações do texto bíblico, afirma-se que eles “mostram” ou contribuem para mostrar algo verdadeiro. Nesse caso, os dados apresentam sólidos indícios de que a realidade histórica se parecia com “isso” e não com “aquilo”. Entretanto, quando os dados arqueológicos parecem ser consistentes com as afirmações do texto bíblico, toda a ênfase recai em quão pouco esses mesmos dados podem de fato nos informar. Então, somos lembrados da dimensão ideológica tanto dos dados quanto da interpretação. Ora, W hitelam precisa escolher entre um e outro. O u os dados arqueológicos ofere cem um tipo de descrição do passado palestino relativamente objetiva, de maneira que eles possam ser comparados com os textos bíblicos ideologicamente comprometidos 12Ibidem, p. 119; compare-se com o comentário sobre Gottwald próximo ao fim da p. 118. 13Ibidem , p. 181-3. 14Nesse sentido, um exemplo que chama particularmente a atenção é a forma pela qual trata a chamada Esteia de M erneptá (ibidem, p. 206-10). A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 27 e assim “demonstrar” que o Antigo Israel da Bíblia e de seus estudiosos é uma entidade imaginária, ou não. Se W hitelam pretende afirmar que esses dados não ofe recem esse tipo de descrição — que “o historiador se defronta com textos parciais em todos os sentidos do termo”15 — então ele tem de explicar por que, para nos informar sobre um passado “real” em oposição a um passado imaginário, a arqueologia é mais confiável do que os textos. Deve explicar por que esses “textos parciais” específicos são preferíveis a outros. Do modo que as coisas se apresentam, pode-se concluir que W hitelam trabalha com uma metodologia que tem uma fé bastante simplista na interpretação de dados que coincidem com a narrativa que ele mesmo deseja contar, ao mesmo tempo que alega um alto grau de ceticismo e suspeita em relação às interpretações dos dados que conflitam com sua narrativa. Ideologia e passado Uma terceira área que requer certa reflexão diz respeito à ideologia do historiador. W hitelam afirma repetidas vezes que o Antigo Israel dos estudos bíblicos é uma entidade “inventada” ou “imaginada” e prossegue em sua análise dando a entender que as histórias escritas hoje sobre Israel dizem mais sobre o contexto e as crenças de seus autores do que sobre o passado que alegam descrever. O quadro que ele apresenta é de estudiosos bíblicos que querem acreditar no Antigo Israel — um desejo que ignora as evidências. Respondendo a essas afirmações, devemos reco nhecer que não há dúvida de que as histórias de Israel escritas hoje falam algo sobre o contexto eas crenças de seus autores. É um fato natural da vida que, em tudo o que pensam e agem, os seres humanos estão inseparavelmente ligados ao mundo no qual pensam e agem. Não temos culpa de ser moldados, pelo menos em parte, por nosso contexto, façamos ou não um esforço consciente para ter alguma noção desse contexto e de sua influência sobre nós. Nosso pensamento é influenciado pelas categorias disponíveis. Contudo, não é possível demonstrar que os autores de li vros sobre a história de Israel tenham, em geral, sido influenciados pela ideologia, e não pelos dados — pelo desejo de acreditar, sem levar em conta as evidências. O próprio W hitelam admite que “... não é fácil estabelecer essas associações entre os estudiosos da Bíblia e o contexto político em que a pesquisa bíblica se desenvolve e pelo qual é inevitavelmente influenciada. Em sua maior parte, tais associações são implícitas em vez de explícitas”.16 A leitura de seu livro deve, de fato, convencer o leitor de que estabelecer essas associações não é fácil. Na realidade, ao chegar ao final do livro, o leitor fica imaginando como exatamente a posição de W hitelam lsIbidem, p. 183. “ Ibidem, p. 23. 28 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA sobre a ideologia dos historiadores pode ser coerente. Será que os outros estudiosos têm uma ideologia que compromete seu trabalho acadêmico, levando-os inevita velmente a abandonar a razão e a ignorar as evidências, ao passo que W hitelam, livre de qualquer ideologia, consegue compreender pessoas e acontecimentos com mais clareza? Às vezes essa conclusão parece clara, mas, em outro texto, ele sugere, com a mesma clareza, que todos são influenciados por alguma ideologia na pesquisa acadêmica. Então, a posição de W hitelam seria a de que a razão e os dados sempre e inevitavelmente estão a serviço de uma ideologia e de um conjunto de compromis sos? Será que sua objeção não é ao fato de que outros estudiosos simplesmente não partilham do conjunto particular de compromissos assumidos por ele — eles não o apoiam na história da Palestina que deseja contar? Novamente, parece que às vezes essa é a perspectiva de W hitelam. Sendo assim, tudo indica que não estamos mais falando de história, mas apenas de narrativas acadêmicas. Essa conclusão é um tanto irônica, considerando a crítica de W hitelam às narrativas bíblicas por sua natureza lendária, em vez de histórica. Na verdade, o debate sobre a ideologia dos acadêmicos obscurece a verdadeira questão, que diz respeito aos dados. H á vasta documentação mostrando que a eru dição do passado, embora reconhecesse que a historiografia é mais do que a simples listagem de indícios, aceitou o fato de que toda historiografia tem de levar as evidên cias em conta. Na realidade, a verdadeira discordância em todo esse debate é acerca do que é considerado evidência. O que ocorre é que W hitelam acredita não ser correto associar os textos bíblicos com outros dados na pesquisa sobre o antigo Israel. Até então os estudiosos (e não apenas os estudiosos bíblicos) pensavam em geral de outra maneira, pelo menos no caso de muitos textos bíblicos. Descrever esse esforço acadê mico como se ele não lidasse seriamente com as evidências por causa de um ou outro tipo de compromisso (“imaginando o passado”) é uma distorção significativa da realidade, quando de fato a questão é: “Quais evidências devem ser levadas a sério?”. O obituário foi precipitado? Com base nessa análise, podemos observar que o argumento de W hitelam a favor da morte da história bíblica não é convincente nem coerente. Nessas circunstâncias, seria um erro seus leitores se arrumarem às pressas para ir ao funeral. Primeiro pre cisamos refletir um pouco mais sobre as importantes questões que foram levantadas. No entanto, antes de começar, devemos explorar mais a fundo o contexto do atual debate sobre a história de Israel — o contexto que deu origem às histórias modernas sobre Israel escritas há mais tempo. É nesse ponto que, antes de emitirmos um ates tado de óbito, nossa percepção dessas questões cujas respostas precisam ser buscadas será apurada e aperfeiçoada. A H IS T Ó R IA BÍBLICA M ORREU? 29 UMA LONGA ENFERMIDADE: DOIS ESTUDOS DE CASO INICIAIS Embora tenhamos apresentado W hitelam até aqui como um modelo da nova his toriografia e não da antiga, pelo fato de ele praticamente não se importar com os textos bíblicos em sua busca da história da Palestina, essa distinção não pretende dar a impressão de que sempre ou em geral há um abismo separando os antigos historiadores modernos de Israel dos novos. Ao contrário, boa parte do fundamento em que os novos historiadores baseiam sua posição foi elaborada muito tempo atrás, de maneira que as pressuposições e os métodos dominantes da historiografia antiga conduzem diretamente ao ponto que nos encontramos agora. Como tem ocorrido, historiadores mais antigos podem muitas vezes ter dependido mais de textos bíblicos do que muitos de seus sucessores recentes. Entretanto, sua abordagem geral condu ziu de forma natural e freqüente às atitudes atacadas por muitos estudiosos de hoje. Se for preciso anunciar a morte da história bíblica, então uma longa enfermidade precedeu o seu fim. O próprio W hitelam chama a atenção para duas obras de história produzidas na década de 1980 que, segundo seu parecer, já ilustravam a crise de confiança na disciplina da história bíblica.17 Por causa de sua descrição dos problemas de se utilizarem os textos bíblicos, tanto J. A. Soggin, de um lado, quanto J. M . Miller e J. Hayes, de outro18 — mesmo dependendo em grande parte das narrativas bíblicas para sua produção da história de Israel no período monárquico, — aventuraram-se em reconstruções históricas dos períodos antigos com grau menor ou maior de autodesconfiança. Mesmo em relação ao período monárquico, percebe-se que parte do que escrevem é conjectural. Para W hitelam essa abordagem ilustra com clareza o problema da história israelita antiga como uma “história de lacunas”, continu amente obrigada a abandonar o firme fundamento do qual se pode dizer que o empreendimento se inicia com segurança. Abandonam-se, assim, as narrativas patriarcais, depois, o Exodo e as narrativas da conquista como fontes que podem servir de base para uma reconstrução significativa da história; logo em seguida deixam-se de lado o livro de Juizes e as narrativas de Saul. Com Soggin e M iller/ Hayes, encontramos agora os textos sobre a monarquia de Israel sendo examinados atentamente e com graus variados de suspeita. Com base nesse ponto de partida, W hitelam sugere então um abandono geral e rigoroso dos textos bíblicos como fontes primárias para a história de Israel. Como a análise de ambos os livros revela, 17Ibidem, p. 34-5. 18J. A. Soggin, History o f Israel:from the beginnings to the Bar Kochba revolt, A D 135 (London: SCM , 1984); J. M . Miller, J. Hayes, A history o f ancient Israel and Judah (Philadelphia: W estminster, 1986). 30 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA o progresso é natural. As pressuposições e métodos controladores de ambos os livros convidam a seguir essa direção. Soggin e a história de Israel Após a introdução, a obra de Soggin começa com um capítulo longo e esclarecedor sobre metodologia, bibliografia e fontes.19 Ele inicia com a afirmação de que, depois de mais de um século de estudos científicos da crítica histórica, torna-se cada vez mais difícil escrever uma história de Israel, especialmente a partir de seus primórdios. Soggin alega que tradições do passado, tanto orais quanto escritas, estão sujeitas à “contaminação” de vários tipos, quer por acidente, quer devido aos interesses das pessoas que as transmitiram. Frequentemente, com o objetivo de influenciar gera ções posteriores de leitores, mas com pouquíssimo valor para o historiador moderno, essas tradições também contêm relatos de heróis e heroínas. De acordo com Soggin, nossas tradições bíblicassobre as origens de Israel são exatamente assim: tradições sobre personagens exemplares que foram reunidas, editadas e transmitidas (nessa seqüência)20 por editores que viveram muitos séculos depois dos acontecimentos. A perspectiva dos editores finais é principalmente do período exílico e pós-exílico, e os problemas com que estão preocupados refletem as conseqüências do exílio na Babilônia e o fim tanto da independência política quanto da dinastia davídica em Israel. Dessa maneira, o quadro que temos da época mais antiga de Israel é o que nos é apresentado por autores do período monárquico pré-exílico (porque, com a formação do Estado israelita, pela primeira vez Israel deparou com o problema de sua identidade e legitimidade nacionais e começou a refletir sobre seu passado). O retrato é profundamente influenciado, se não determinado, pela releitura e redação dos textos de autores dos períodos exílico e pós-exílico. São pessoas interessadas no exílio e na volta do exílio que nos transmitiram as narrativas que tratavam da migra ção da família de Abrão de Ur até Harã, e também do Êxodo do Egito, da viagem pelo deserto, da conquista da terra e do período dos juizes. Por essa razão, é uma tarefa sempre difícil determinar a antiguidade das tra dições bíblicas específicas, embora Soggin pense que é improvável que editores posteriores tenham criado textos a partir do nada para atender suas necessidades. Todavia, mesmo quando as tradições parecem antigas, em geral foram claramente tiradas do contexto original e inseridas em um novo contexto, o que inevitavel mente tem um efeito significativo em sua interpretação e modifica seu conteúdo. 19Soggin, History, p. 18-40. 20O u seja, elas foram primeiro reunidas em fontes como J e E do Pentateuco e, mais tarde, em textos como o próprio Pentateuco. A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 31 Soggin sugere que os editores, com o objetivo de dar suporte às próprias teorias, tiveram liberdade no exercício de sua capacidade criativa e às vezes agiram de mo do caprichoso na escolha e reestruturação do material que lhes chegou às mãos. Por exemplo, Soggin afirma que, em geral, se aceita que a organização da nar rativa dos patriarcas numa seqüência genealógica reflete a obra de editores. Em nível histórico, é possível que os patriarcas tenham de fato sido contemporâneos uns dos outros ou até mesmo nem tenham existido. Além do mais, a seqüência patriarca-êxodo-conquista parece ser uma simplificação que os editores introdu ziram, a fim de lidar com os problemas levantados por aspectos mais complexos das tradições. No livro de Josué, a conquista é descrita com termos extraídos da liturgia da adoração pública, sendo que a primeira parte do livro abrange uma procissão e uma celebração rituais, em vez de tratar de guerra e política. Essa característica corresponde bem ao contexto de uma releitura pós-exílica do m a terial. No contexto de fracasso político da monarquia (como também teológico e ético), o povo de Deus é chamado de volta às origens, ao momento em que aceitou com humildade e submissão o que Deus lhe oferecia em sua misericórdia. De modo semelhante, o livro de Juizes, com sua descrição de uma liga tribal e sua ênfase na adoração comum como fator de unidade política e religiosa, também corresponde a esse contexto posterior (embora, nesse caso, Soggin admita que a descrição também poderia estar relacionada à realidade pré-monárquica). No período pós-exílico a monarquia havia sido substituída por uma ordem hierocrá- tica, centrada no templo de Jerusalém. Por fim, as narrativas sobre o reinado de Saul transformaram alguém que foi um guerreiro hábil e violento — sem mácula ou temor, e que terminou seus dias em glória — num herói de tragédia grega, dominado por insegurança e ciúme e também vítima de ataques de hipocondria e tendências homicidas. Aqui o editor se tornou um artista. A conseqüência é que qualquer história de Israel que procure tratar do período anterior à monarquia, lim itando-se a uma simples paráfrase dos textos bíblicos e à mera complementa- ção desses textos com supostos paralelos do antigo Oriente Próximo, não apenas utiliza um método inadequado, mas também oferece um quadro distorcido dos eventos que certamente ocorreram. De modo acrítico, essa descrição aceita a visão que Israel tinha de suas origens. Para Soggin, essa é, portanto, a “proto-história” de Israel. Em que momento a verdadeira história de Israel se inicia? Existe alguma época a partir da qual o mate rial da tradição começa a oferecer relatos confiáveis — informações sobre pessoas que realmente existiram e fatos que ocorreram, ou que ao menos sejam prováveis, e sobre eventos importantes nas esferas econômica e política e suas conseqüências? Como ponto de partida, Soggin escolhe o período da monarquia unida nos reinados de Davi e Salomão. Ele reconhece que as fontes de informação sobre esse período 32 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BlBLIA também contêm muitos episódios (especialmente em relação a Davi) que dizem respeito mais à esfera privada do que à pública e que essas fontes, à semelhança daquelas da proto-história, foram editadas numa data posterior. Ele admite que nenhum indício do império de Davi e Salomão aparece em outros textos do antigo Oriente Próximo e que esse período, bem como os anteriores, carece de evidência externa. Por isso, Soggin considera a possibilidade de que a tradição bíblica, nesse ponto, também seja pseudo-histórica e fictícia, com o objetivo de glorificar um pas sado que na realidade nunca existiu. Contudo, ele crê que isso seja improvável. Nas narrativas de Davi e Salomão, há muitos detalhes de natureza política, econômica, administrativa e comercial — inúmeros aspectos ligados à cultura da época. Com base na informação que essas narrativas nos fornecem sobre política, economia e administração (e.g., expedições militares com conquistas territoriais, rebeliões locais, trabalhos de construção, comércio exterior), podemos formar o quadro de uma nação que, por fim, chega ao colapso econômico e é forçada a tomar medidas de emergência para enfrentar essa situação. Por trás da fachada da vida familiar, encon tramos informações importantes que, na opinião de Soggin, um historiador pode usar a fim de elaborar um quadro plausível do reino unido israelita, que é consistente com o que nossas fontes afirmam sobre o que ocorreu posteriormente: várias formas de protesto, seguidas pela rebelião aberta e pela secessão do reino do norte com a morte de Salomão. Se elementos reconhecidamente romantizados estão presen tes na tradição, o quadro geral do passado não é de glorificação romantizada. Por isso, podemos adotar o período da monarquia unida como ponto de referência para começar um estudo histórico do Antigo Israel. Ao considerarmos o argumento de Soggin, o primeiro e (no presente contexto) mais importante ponto a observar é a fraqueza de sua distinção entre, de um lado, as fontes relativas à narrativa dos patriarcas-Saul e, de outro, as fontes relativas à nar rativa Davi-Salomão. O que basicamente distingue esses dois grupos de tradições? Certamente não é o apoio maior dos dados arqueológicos ao segundo conjunto de fontes nem o fato de que o segundo, em comparação com o primeiro, tenha menos tradições de personagens exemplares do passado, as quais foram reunidas, editadas e transmitidas por editores que viveram muitos séculos depois dos acontecimentos. Entretanto, Soggin sustenta que é possível estabelecer distinção entre os dois gru pos. E “improvável” que haja uma pseudo-história no caso das narrativas de Davi e Salomão porque, em primeiro lugar, elas contêm “elementos negativos” que as tornam, em geral, qualquer coisa, menos uma glorificação romantizada do passado; em segundo, é possível detectar suficientes informações importantes por trás da “fachada” da narrativa, de modo que o historiador possa formar um quadro plausível do reino unido israelita.Entretanto, diante dessas afirmações, as seguintes respostas são bastante adequadas. A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 33 Primeira, não parece tão claro que, quando o assunto são elementos “românticos” e “negativos” (utilizando as categorias de Soggin), a forma presente das tradições mais antigas da Bíblia tenha menos elementos misturados do que a forma presente das tradições sobre a monarquia unida. As tentativas de Soggin de descrever as tradições mais antigas apenas de acordo com a primeira categoria são, na verdade, nada convincentes. Por exemplo, ele explica Juizes como um livro cujo propósito foi legitimar a hierocracia pós-exílica, pois Juizes apresenta a liga tribal como uma alternativa antiga e autêntica para a monarquia. E difícil levar essa hipótese a sério; até o leitor de Juizes menos atento pode ver que, em sua maior parte, o livro apresenta uma sociedade israelita que está longe de ser ideal e conclui com uma descrição de caos social resultante da falta de um rei. Com certeza, a narrativa do livro de Juizes não oferece ao leitor uma glorificação romantizada do passado. Só uma leitura bastante falha do texto pode levar a essa conclusão; e o que é válido para a leitura de Juizes apresentada por Soggin também é válido para sua leitura de Gênesis-Josué.21 Fazer esse tipo de distinção entre Gênesis-Juízes e Samuel-Reis exige uma leitura de Gênesis-Juízes altamente seletiva. Segunda, e com base no ponto anterior, é claramente possível encontrar infor mações como as que Soggin procura (e.g., informações sobre expedições militares com alvos de conquista territorial) por trás da “fachada” do relato de Gênesis-Juízes, assim como de Samuel-Reis. Portanto, de que modo a presença dessas informações em Samuel-Reis nos levaria a pensar nesses textos de forma diferente à dos textos precedentes? Parece que Soggin coloca o peso de seu argumento em parte na quan tidade dos detalhes políticos, econômicos, administrativos e comerciais; no entanto, ele deixa de demonstrar que o fato de passarmos da “proto-história” para a “história” multiplicou esses detalhes, em vez de apenas mudar a dinâmica da narrativa. Afinal de contas, agora estamos lendo a história de um Estado com contatos internacio nais e não mais uma narrativa sobre uma confederação tribal. Por que a presença desse tipo de detalhe na história de Davi e Salomão não é, então, simplesmente uma indicação da forma de arte narrativa que Soggin encontra na narrativa de Saul? Em parte Soggin também dá bastante importância à afirmação de que o historiador usou esse tipo de detalhe em Samuel-Reis com o intuito de elaborar um quadro acerca do reino unido israelita que seja plausível e consistente com o que as fontes bíblicas dizem ter ocorrido mais tarde. No entanto, não fica claro por que devemos considerar que, ao incluir esse tipo de detalhe, o objetivo dos autores de histórias mais antigas seja outro que não nos contar sobre o passado, mesmo que não seja um passado que 21Podemos indicar especificamente sua sugestão de que a primeira parte do livro de Josué descreve o passado como um período em que Israel “aceitou com humildade e submissão o que Deus lhe ofereceu em sua misericórdia” (History, p. 30). 34 H ISTÓ R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA Soggin imagine “plausível”; por outro lado, também não está claro o que exatamente fica provado com o fato de a reconstrução feita por Soggin ser consistente com o relato das fontes bíblicas sobre o que ocorreu posteriormente. A certa altura de sua análise, o próprio Soggin elogia os compiladores e editores das tradições bíblicas por possuírem “notáveis habilidades artísticas, utilizando pequenas unidades para criar obras importantes que à primeira vista formam uma unidade coerente [...] uma obra de arte”.22 Pode-se presumir que um aspecto dessa habilidade artística é que os escritores apresentam relatos consistentes com outros relatos posteriores. Deve-se considerar, então, por que Soggin acredita ser especialmente significativo o fato de que a narrativa sobre o reino unido apresentada por ele com base em alguns textos bíblicos seja consistente com a narrativa que os autores bíblicos apresentam sobre os reinos posteriores de Israel e Judá. Se, em Samuel-Reis, a consistência de uma narrativa com a seguinte é prova de que estamos lidando com história e não com proto-história, então tal consistência também é prova de que, de igual forma, estamos lidando com história em pontos mais antigos da tradição. Se, de um lado, coerência em partes mais antigas da Bíblia indica apenas arte narrativa e não história, Soggin é inconsistente ao defender que, em Samuel-Reis, a coerência indica história e não arte narrativa. De um modo ou de outro, a distinção que ele tenta fazer entre as tradições bíblicas sobre a monarquia unida e as tradições bíblicas sobre períodos mais antigos da história israelita não tem base suficiente. Esta análise mostra como Soggin prepara bem o caminho para escritores mais recentes como W hitelam. Segundo, W hitelam retrata a história da história de Israel, ela é do tipo que sempre força os historiadores a abandonar a base firme em que a tarefa pode ser realizada com segurança. A “base firme” de Soggin está fun damentada na monarquia unida. O problema é que as pressuposições e os métodos controladores com que Soggin trabalha tornam, em última instância, sua própria posição insustentável. É possível, com extrema facilidade, aplicar as próprias pers pectivas de Soggin — que o levaram a abandonar o fundamento de Gênesis-Juízes e início de Samuel antes mesmo de haver iniciado o trabalho — ao fundamento que ele mesmo escolheu, o restante das narrativas de Samuel-Reis, e destruí-lo. Se, por conter narrativas de heróis e heroínas transmitidas por editores que viveram muitos séculos depois dos acontecimentos, as tradições mais antigas da Bíblia não são um “fundamento firme”, então por que tradições mais recentes são grande mente valorizadas? Se as tradições mais antigas são problemáticas porque editores utilizaram com liberdade ou por capricho suas capacidades criativas na escolha e reestruturação do material que chegou até eles, então qual exatamente é a razão de as tradições mais recentes não serem igualmente problemáticas? O u será que, 22History, p. 28. A H IS T Ó R IA BlB LICA MORREU? 35 por algum motivo vago, simplesmente “sabemos” que elas não são? Se, no que diz respeito a tradições mais antigas, a arte narrativa dos editores é um problema sério para os historiadores, então por que essa arte também não é um problema no caso das tradições mais recentes? Por fim, como conseqüência de tudo o que é realmente verdadeiro nas tradições bíblicas, se alguma história de Israel que retrata o período anterior à monarquia baseada em simples paráfrases dos textos bíblicos está empre gando um método inadequado, oferecendo, assim, um quadro distorcido do passado ao leitor, então por que o mesmo não se aplica a uma história de Israel que adota tal abordagem para o período que começa com a monarquia? A verdade é que o ponto de partida escolhido por Soggin para escrever a história de Israel é bem arbitrário. Não é uma questão de lógica, mas sim de uma escolha sustentada em declarações sobre a “ingenuidade” das pessoas que pensam de outra maneira. A seguir, temos mais a dizer sobre o uso desse tipo de declaração como substituto para o argumento. Em circunstâncias como essa, W hitelam — que nos lembra da própria inexistência de dados externos sobre o império davídico-salo- mônico, algo de que o próprio Soggin está consciente — também pode, de modo bem simplista, destruir o “fundamento firme” de Soggin sugerindo que, para narrar a verdadeira história de Israel, não se pode confiar nos textos bíblicos de Samuel-Reis mais do que nos de Gênesis-Juízes. Esse argumento é especialmente válido quando os estudos sobre a narrativa bíblica no período entre a publicação do livro de Soggin e o de W hitelamsó ampliaram nosso conhecimento quanto à qualidade artística da literatura bíblica. Nesse contexto, o argumento de W hitelam parece totalmente aceitável ao sugerir que o comprometimento dos estudiosos modernos com as narra tivas davídico-salomônicas como fontes históricas valiosas tem relação, mais do que com qualquer outra coisa, com o contexto do período colonial europeu e também com a necessidade deles de crer em um Estado de Israel poderoso, soberano e au tônomo na Idade do Ferro. Volta-se contra o próprio Soggin (que parece acreditar que a única história “verdadeira” é a história de Estados que atuam na esfera pública — econômica e política — em vez, por exemplo, de pessoas que atuam na esfera privada e familiar) o juízo que faz de outros estudiosos que dependem demais das tradições bíblicas sobre o período mais antigo da história de Israel. Para W hitelam , uma dependência extrema das tradições bíblicas é justamente o que levou estudiosos como Soggin a introduzir, no que diz respeito ao “período monárquico” de Israel, um método inadequado para examinar o passado, distorcendo-o na busca da nação- -estado que existia na forma de Israel. Na verdade, não há uma grande distância entre a perspectiva de Soggin (de que o quadro existente na Bíblia das origens de Israel é ficção literária) e a concepção ainda mais radical de W hitelam (de que o quadro apresentado por grande parte da Bíblia hebraica do passado de Israel é ficção literária). E precisamente isso o que ocorre quando os estudiosos se afastam progressivamente 36 H IS TÓ R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA do “fundamento firme” do texto bíblico, à medida que cada historiador de Israel demonstra como o que estudiosos anteriores escreveram se aplica também de forma clara e devastadora aos textos que eles mesmos aceitaram como ponto de partida. Portanto, cada estudioso, por sua vez, pode ser acusado de arbitrariedade, pois não há um ponto lógico em que se apegar a fim de não escorregar no barranco textual; e, aos poucos, isso conduz à morte de toda história bíblica. Miller e Hayes e a história de Israel Os principais elementos que Miller e Hayes adotam na abordagem dos textos bíblicos e da história estão expostos em seus comentários sobre a narrativa de Gênesis-Josué.23 No que diz respeito à história, eles observam a crítica de “... certas perspectivas históricas que foram populares em tempos antigos, mas que não estão mais em voga e suscitam perguntas sobre a credibilidade do material”.24 Miller e Hayes se referem ao conceito de uma era dourada revelada nos seguintes itens: • os primeiros capítulos de Gênesis; • a cronologia sistemática de toda a narrativa; • a ideia de que a atividade e o propósito divinos são em toda parte con siderados as forças primárias que determinam a forma e o curso do processo histórico; • a pressuposição de que se deve entender a origem dos vários povos do mundo como simples descendência direta de um único ancestral ou de uma única linhagem; • a presença de temas narrativos tradicionais bastante disseminados no mundo antigo nos textos bíblicos. Outros aspectos da narrativa de Gênesis-Josué também causam dificuldade: a improbabilidade de muitos números, a natureza contraditória de boa parte das informações, o fato de que muito material é de origem folclórica e o fato de que a forma atual de toda a narrativa é resultado do trabalho de compiladores cujo inte resse básico era destacar o significado teológico, não produzir um relato objetivo. Miller e Hayes afirmam que, desse modo, a narrativa faz com que o historiador moderno depare com dificuldades reais. No entanto, admitem concomitantemente que, para se chegar a qualquer conclusão específica sobre as origens e a história mais remota de Israel e Judá, tal conclusão deve se basear nessa narrativa por causa da 23History, p. 54-79. 24Ibidem , p. 58. A H IS T Ó R IA BÍBLICA M ORREU? 37 escassez e da natureza das fontes de informação extrabíblicas. Documentos extra bíblicos e dados de artefatos descobertos em escavações arqueológicas na Palestina são úteis para compreender o contexto geral em que Israel e Judá surgiram, mas não para identificar especificamente sua origem. O que um “historiador razoavelmente cauteloso”25 deve fazer nessas circunstân cias? M iller e Hayes avaliam e rejeitam tanto a opção de pressupor a historicidade do relato de Gênesis-Josué na forma em que se apresenta — ignorando os pro blemas de credibilidade e a ausência de dados extrabíblicos específicos para a verificação — quanto a de descartar o relato de vez, considerando-o de todo inútil para o propósito da reconstrução histórica. Eles são a favor de uma abordagem de conciliação: o desenvolvimento de uma hipótese sobre as origens de Israel e Judá baseada até certo ponto no material bíblico, mas que ao mesmo tempo não siga o relato bíblico em cada detalhe, talvez nem mesmo de modo próximo. Apesar disso, eles se veem, na realidade, relutantes em elaborar tal hipótese para a história mais antiga dos israelitas. M iller e Hayes consideram a visão das origens de Israel apresentada em Gênesis-Josué idealista e em conflito com as implicações histó ricas das tradições mais antigas que os compiladores incorporaram em seu relato. O enredo principal é, de fato, “uma elaboração literária artificial e influenciada pela teologia”.26 Assim, não é possível dizer quase nada sobre Israel antes de seu surgimento na Palestina. Por esse motivo, M iller e Hayes se satisfazem com algu mas declarações genéricas sobre vários lugares de onde é possível que os israelitas tenham vindo e prosseguem rapidamente de Gênesis-Josué para Juizes, iniciando a história propriamente dita com uma descrição das circunstâncias que parecem haver prevalecido entre as tribos na Palestina pouco antes do estabelecimento da monarquia.27 Os autores confiam mais no uso de Juizes para uma reconstrução histórica, não porque o livro, comparado a Gênesis-Josué, tenha menos acrés cimos editoriais no processo de compilação, mas porque é possível separar com menos dificuldade as tradições mais antigas por trás desses acréscimos, pois os acontecimentos milagrosos e os eventos extraordinários não são tão predomi nantes nessas tradições, as condições socioculturais geralmente pressupostas estão em conformidade com o que se conhece das condições existentes na Palestina no início da Idade do Ferro e, por fim, porque a situação refletida nessas narrativas oferece um contexto confiável e compreensível para o nascimento da monarquia israelita descrito em 1 e 2Samuel. Assim, as narrativas que compõem Juizes podem servir de ponto de partida experimental para lidar com a história israelita 2SIbidem , p. 74. 26Ibidem , p. 78. 27Ibidem , p. 80-119. 38 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA e judaica — não por oferecerem base para reconstruir uma seqüência histórica detalhada de pessoas e acontecimentos, mas porque apresentam informações pre cisas sobre as circunstâncias gerais sociológicas, políticas e religiosas que existiram entre as antigas tribos israelitas. A esta altura podemos parar para analisar a lógica do raciocínio exposto até aqui. Qual é a confiabilidade do fundamento em que Miller e Hayes se apoiam para iniciar sua história de Israel? Eles reconhecem que tanto Gênesis-Josué quanto Juizes têm em comum a mesma forma de plano editorial geral, que descrevem como artificial, não convincente e de pouquíssima utilidade para o historiador. Concordam ainda que em cada caso as narrativas individuais são problemáticas para o historia dor. Portanto, qual é a base para se ter mais confiança no material de Juizes do que no de Gênesis-Josué? Miller e Hayes afirmam que é menos difícil isolar as tradições mais antigas por trás da “camada editorial” existente no material de Juizes do que no de Gênesis-Josué, mas, ao que parece, já separaram as tais tradições mais antigas que os compiladores uniram no relato de Gênesis-Josué. E mais:eles fizeram isso com bastante habilidade, usando as tradições como prova de que a ideia da origem de Israel apresentada em Gênesis-Josué é idealista (de que outra forma eles saberiam, que ela é idealista?). Também sustentam que acontecimentos milagrosos e eventos extraordinários não são predominantes nas narrativas que compõem Juizes tanto quanto nas narrativas de Gênesis-Josué, mas ao mesmo tempo argumentam que essas narrativas de Juizes são lendas folclóricas “... não diferentes das narrativas patriarcais de Gênesis...”— os detalhes nas narrativas individuais abusam da inge nuidade.28 Miller e Hayes são da opinião de que as condições gerais socioculturais pressupostas nas narrativas de Juizes estão em harmonia com o que se conhece das condições existentes na Palestina no início da Idade do Ferro; contudo, em nenhum momento demonstram que isso não se aplica às condições gerais socioculturais pressupostas nas narrativas de Gênesis-Josué. Na verdade, citam alguns dados con sistentes com a perspectiva contrária.29 Por fim, defendem que a situação refletida nas narrativas de Juizes fornece um contexto confiável e compreensível para o sur gimento da monarquia israelita como descrito em 1 e 2Samuel. Mas Miller e Hayes não explicam como o fato de a literatura de Juizes nos preparar para a literatura de 1 e 2Samuel pode nos dizer algo sobre a história (uma perspectiva importante de seu ceticismo sobre “elaborações literárias”). Também não explicam de que ma neira Juizes estabelece um contexto confiável e compreensível para o surgimento da monarquia israelita, diferentemente de Gênesis-Josué em relação ao contexto do surgimento de Israel na Palestina. Portanto, se M iller e Hayes acreditam de fato 28Ibidem , p. 87, 90; citação na p. 90. 29Observe-se, e.g., ibidem, p. 65-7. A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 39 que a natureza da literatura de Gênesis-Josué impede o “historiador razoavelmente cauteloso” de dizer qualquer coisa sobre Israel antes de seu surgimento na Palestina, também é difícil entender por que eles podem dizer algo sobre o fim do período pré-monárquico. Eles são totalmente vulneráveis à acusação de que o ponto de par tida adotado no uso de tradições bíblicas para escrever história é arbitrário, o que, na verdade, é a acusação que os “novos historiadores” fazem contra eles. A situação não melhora muito quando se consideram períodos ainda mais recentes da história israelita. Afirma-se que 1 e 2Samuel refletem muitas das mesmas características literárias de Gênesis-Juízes. Assim, nenhum material de ISam uel pode ser interpretado literalmente para a formulação de uma recons trução histórica. No entanto, vemos M iller e Hayes “inclinados a presumir que muitos desses relatos, talvez a maioria, contenham pelo menos um núcleo de ver dade histórica”.30 Porém, não se apresenta justificativa alguma para essa posição, a qual é prontam ente resguardada com ressalvas a respeito da impossibilidade de verificação desse “núcleo” e a dificuldade envolvida em sua identificação. M esmo assim, diante dessas circunstâncias, pode-se afirmar que “é altamente especula tiva qualquer tentativa de explicar as condições históricas tanto da ascensão de Saul ao poder quanto de seu reino” , o que não impede os autores de continuar especulando.31 Aliás, isso também não os impede de elaborar uma narrativa sobre Saul que corresponde em vários aspectos aos relatos do texto bíblico. Nunca fica claro por que essa abordagem é utilizada na análise de ISam uel e não pode ser empregada em Gênesis-Josué. Quando chegamos à narrativa de Davi, essa dependência do relato de Gênesis- -Reis é ainda mais perceptível. M uito embora considerem que aqui a maioria das tradições são lendas folclóricas de círculos judaicos pró-davídicos, M iller e Hayes pressupõem que “em última instância muitas dessas tradições, se não a maioria, se baseiam em pessoas e acontecimentos históricos reais”.32 M ais uma vez não fica claro por que essas “lendas folclóricas” podem revelar conteúdo histórico e, inclusive, por que elas dão origem a um enredo de Miller/Hayes notavelmente seme lhante ao enredo bíblico, ao mesmo tempo que as “lendas folclóricas” anteriores não são capazes de fazer o mesmo. Como M iller e Hayes, ignorando claramente qualquer problema perceptível de credibilidade, bem como a inexistência de dados específicos extrabíblicos de verificação,33 conseguem compor sua história da época 30Ibidem, p. 129. 31Observe-se a análise minuciosa em ibidem, p. 132-48. 32Ibidem, p. 159. 33Observe-se a descrição da natureza do material davídico em ibidem, p. 152-6, e também os comentários que fazem sobre documentos extrabíblicos e informações arqueológicas em ibidem, p. 159-60. 40 H IS T Ó R IA , H IS T O R IO G R A F IA E A BÍBLIA de Davi baseados em grande parte no relato bíblico de 1 e 2Samuel, enquanto desconsideram tal abordagem de Gênesis a Josué devido tanto a problemas de credibilidade observados quanto à inexistência de dados específicos extrabíblicos de verificação desses textos? É contraditório agir assim; e é natural, portanto, que historiadores mais recentes tenham ressaltado a questão, exigindo saber por que as narrativas de Davi devem ser tratadas de forma diferente das que falam sobre Abraão. Responder que, no caso de Davi, um historiador tem a “pressuposi ção” de que as tradições se baseiam em pessoas e acontecimentos históricos reais não é suficiente — a menos que se queira ser acusado de arbitrariedade e de uso de um método inconsistente. Enfim, o que descobrimos é que Miller e Hayes, ao elaborarem sua história de Israel, usam os textos bíblicos de várias maneiras e mais do que alguns histo riadores recentes. Entre Miller e Hayes, de um lado, e W hitelam, de outro, não há um grande abismo no que se refere a pressuposições e método de controle. Tudo o que W hitelam faz é instigar Miller e Hayes a serem mais coerentes, indo até o fim com suas pressuposições e métodos de controle. Se Miller e Hayes alegam que, no caso de Gênesis-Juízes, a literatura bíblica é de tal natureza que impede totalmente, ou quase completamente, o historiador de se basear nela para escrever história, eles não podem alegar que a situação é diferente no caso de Samuel ou mesmo de Reis. Além disso, quando se trata de Salomão, M iller e Hayes afirmam que “a apresentação de Salomão em Gênesis-2Reis se caracteriza totalmente pelo exagero editorial. Um historiador cauteloso talvez se inclinaria a ignorar comple tamente essa apresentação, caso houvesse disponíveis outras fontes de informação mais convincentes”.34 O historiador cauteloso ressurgiu. Quando confrontado com a literatura de Gênesis-Josué, desistiu de dar continuidade devido à cautela, mas, no caso da narrativa de Salomão, em Reis, lançou todo o cuidado fora. Então, apresen tou um relato da história de Salomão utilizando em grande parte a narrativa bíblica. Nós (e W hitelam) temos o direito de indagar por quê. O fato de que a Bíblia é a única fonte de informação que temos é base suficiente para usá-la? Se a resposta é afirmativa no caso de Salomão, por que também não o é no caso de Abraão? De modo inverso, se não podemos dizer nada sobre Abraão, será que devemos dizer algo sobre Salomão? W hitelam pensa que não; aliás, é bem curta a distância entre a ideia de Miller e Hayes de que “um historiador cauteloso talvez tenda a ignorar...” o texto sagrado e a sugestão de que o historiador responsável deve ignorar o texto bíblico, porque apresenta um passado imaginário em vez de real.35 34Ibidem , p. 193. 35Essa é a conclusão de W hitelam em Invention, cap. 4. A H IS T Ó R IA BÍBLICA MORREU? 41 UMA BREVE HISTÓRIA DA HISTORIOGRAFIA Portanto, é natural que o pensamento de Miller/Hayes e de Soggin resulte na con cepção de W hitelam. Entretanto, a enfermidade que precedeu a “m orte” da história bíblica não foi contraída na década de 80 do século passado. E possível ver sintomas da doença em obras de história