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O corpo-texto: sobre a convergência entre leitura e biomedicina The “body-text”: about the convergence between reading and biomedicine El “cuerpo de texto”: la convergencia entre la lectura y la biomedicina César Pessoa Pimentel1 Resumo O arigo pretende analisar a aproximação entre corpo e texto em algumas ramiicações da cultura contemporânea, nota- damente aquelas que integram o campo biomédico. Trata-se de uma relexão de caráter teórico apoiada nas possibili- dades e interseções entre as obras de Ulrich Gumbrecht, Michel Foucault e Georges Canguilhem. A perspeciva aberta pelos autores permite que o “corpo-texto”, no qual a medicina contemporânea busca doenças virtuais, seja considerado uma construção histórica, e a leitura do código genéico, uma práica de poder com consequências importantes para o modo como os indivíduos se relacionam com a doença, o prazer e a morte. Palavras-chave: corpo, leitura, biomedicina. Abstract The aricle intends to analyze the links between body and text in some branches of the contemporary culture, espe- cially the ones which integrate the biomedical ield. It is a relecion of the theoreical possibiliies and the intersecions between the works of Ulrich Gumbrecht, Michel Foucault, and Georges Canguilhem. The perspecive opened by the authors allows the “body-text”, in which contemporary medicine searches for virtual diseases, considers it as a historical building and the geneic code reading, as a pracice of power with considerable consequences on how people relate themselves with the disease, pleasure and death Keywords: body, reading, biomedicine. Resumen El arículo analiza los vínculos entre el cuerpo y el texto en algunas ramas de la cultura contemporánea, en paricular los que integran el campo biomédico. Esto es un desarollo de las posibilidades teóricas y de las intersecciones entre las obras de Ulrich Gumbrecht, Michel Foucault y Georges Canguilhem. La perspeciva abierta por los autores permite que el “cuerpo-texto” en que la medicina contemporánea invesiga enfermedades virtuales, se considera un ediicio históri- co y la lectura del código genéico, una prácica del poder con consecuencias importantes sobre cómo los individuos se relacionan con enfermedad, el placer y la muerte. Palabras clave: cuerpo, lectura, biomedicina. 1. Psicólogo, pós-doutor em Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ, professor visitante do Insituto de Psicologia da UFRJ e professor do curso de psicologia da SEFLU. Contato: cesar.pim@hotmail.com. 181 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. Não é diícil perceber como as noções de código, transcrição, mensagem e informação, tão fun- damentais para o estudo e compreensão da linguagem humana, vêm migrando para o campo das ciências naturais. A força notável do encontro entre biologia molecular, genéica e uma orientação médica preveniva vem fazendo com que a vida e o corpo equiparem-se à informação codiicada geneicamente. Em vez de um conjunto de órgãos e tecidos que degeneram, teríamos uma espécie de texto que quando mal escrito ou mal interpretado desencadearia enfermidades. Se a comparação parece forçada, a sentença de François Jacob, renomado biólogo francês, indica sua homologação cieníica e cultural: “assim como uma frase consitui um segmento de texto, um gene corresponde a um segmento de ácido nucleico” (1983:277). Com suileza, tais categorias foram penetrando na linguagem coidiana de modo que se fale correntemente em “código da vida” e de sua “decifração” sem qualquer surpresa para o indivíduo leigo. As consequências da aproximação entre corpo e texto vêm sendo observadas e criicadas por uma gama de historiadores, antropólogos e ilósofos. Sem a intenção de explicitar as minúcias de seus argumentos, mais vale notar o vigor da discussão. O ilósofo Georges Canguilhem (1995) pergunta se a noção de doença hereditária, marcadamente produto do acaso, ou melhor, de uma interpretação “errada” do código genéico, poderia estar nos levando a uma aitude de pura resignação perante a doença e a morte, instâncias contras as quais a medicina desde sua origem se moveria. Já o antro- pólogo David Le Breton (2007) denuncia ressonâncias entre o código genéico e as ideias platônicas, onde o corpo com suas issuras, reentrâncias e luidos orgânicos, que apontam para a initude huma- na, deixa de ter valor. Sociólogos interessados em atualizar a obra foucauliana no campo biomédi- co, como Nikolas Rose (2007), consideram médicos geneicistas e aconselhadores genéicos novas autoridades do “poder pastoral”, mecanismo de dominação ao mesmo tempo piedoso e cruel, pois ajuda os indivíduos com o custo de lhes manter sob tutela indeinidamente adiada. Dissipando a inocência com que muitas vezes as descobertas cieníicas são recebidas, tais questões recobrem de importância e urgência uma relexão sobre as equiparações entre corpo e texto. O presente arigo pretende contribuir para tais relexões, tornando visível o trabalho de construção histórica desse “corpo-texto”, bem como de sua versão contemporânea, o “corpo-informação”, que transborda os limites dos laboratórios ganhando o coidiano mediante aplicações médicas e meios de comunicação. O primeiro passo é desfazer a impressão muito presente na atualidade de uma grande revolução, que desvela os segredos da vida segundo as noções de código, transcrição etc. O “corpo-texto” é anterior à biologia molecular, já aparecendo nas práicas sociais do século XIX. Em seguida, trata-se de notar os deslocamentos entre essa versão do “corpo-texto” e a contemporânea, movida a parir de outro campo semânico e tecnocieníico. E por úlimo, vamos delinear rever- berações do “corpo-informação” sobre o modo como os indivíduos passam a se relacionar com a doença, o prazer e a expectaiva de sua morte. Em todas essas etapas, a leitura, o “ler” o corpo, se evidencia não como práica neutra onde a ver- dade é trazida à luz, mas em seus aspectos normaivos. No ato de diagnosicar sinais e sintomas de uma doença, ou de mapear seus riscos genéicos, circunscreve-se claramente o normal e o anormal, se delineando, portanto, a distância entre aquilo que o indivíduo é e aquilo que deveria ser. Daí sua normaividade: a leitura dos signos e, mais atualmente, dos códigos hereditários não se resume à constatação daquilo que existe, dizendo simultaneamente como os indivíduos deveriam cuidar de seu corpo, adiando o prazer através de dietas ou exercícios mediante um conínuo automonitora- mento (ORTEGA, 2008a; ROSE, 2007). 182 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. Corpo e linguagem A leitura do código genéico costuma ser tratada como revolução tecnológica, cujas promessas prin- cipais residem no aumento da expectaiva de vida, detecção de doenças ainda no plano genéico, aprimoramento de drogas terapêuicas e mesmo elucidação das bases orgânicas de alguns trans- tornos psiquiátricos (ROSE, 2007; LEITE, 2006). Curiosamente não é apenas a ciência e os meios de comunicação que insistem na associação entre vida e texto; a relexão acadêmica contemporânea também o faz. Tornou-se popular certa leitura da obra de Michel Foucault, onde se airma que o corpo e os discursos se equivalem2. Interpretações desse teor são frequentemente usadas por estudiosos de gênero, como Judith Butler, para quem o corpo nada mais seria do que o conjunto de proposições efeivadas acerca de sua consituição e funcionamento (ORTEGA, 2008b). Antes que matéria, dotado de sensações, como dor e prazer, o corpo tende a ser desmaterializado e equipara- do à linguagem. Com maior rigor, podemos assinalar algumas diferenças entre a concepção construivista do corpo e abordagens cieníicas, pois a primeira investe criicamente contra a neutralidade do olhar experi- mental. Onde as pesquisas cieníicas acreditam descobrir e visualizar, as abordagens construivistas apontam os códigos e convenções que, ao mesmo tempo, limitam e fazem ver. Não obstante as distânciasque os separam, há uma coincidência entre os dois campos: linguagem e corpo aparecem tão inimamente atrelados a ponto de se confundir em uma espécie de “corpo-texto”. A delicadeza dessa coincidência e, sobretudo, de seus impasses, vem recebendo paricular atenção na obra de Hans Ulrich Gumbrecht (2010). O autor alemão, originário dos estudos literários sobre a cultura medieval, vem desenvolvendo novas perspecivas para a compreensão da relação entre corpo e texto, entre matéria e signiicado. Seu diagnósico de base é que a oposição entre uma dimensão material e corporal e outra que remonta ao signiicado e ao mental aparece em deter- minado momento histórico profundamente entrelaçado com a relação dos homens com o texto e a leitura. Gumbrecht (2010) acredita que na cultura medieval, o conceito de símbolo e, sobretudo, de representação, não integrava as bases da vida coidiana3. Estes conceitos somente ganham força com uma determinada invenção técnica: a prensa de Gutenberg. Permiindo a disseminação dos textos escritos, a prensa modiicou em profundidade uma cultura orientada pela apresentação oral das criações literárias. Compreende-se melhor o processo pela análise do trovador, igura ípica da Idade Média. Ao invés de ler um texto, o trovador se empenhava em captar a atenção do público com seu corpo e voz que compareciam enquanto elementos tão importantes quanto as palavras. O signiicado não era decifrado, nem apreendido, mas apresentado, contando com a materialidade do corpo e da entonação daquele que falava. 2. Essas leituras desconsideram a bifurcação estabelecida pelo autor ao inal de História da sexualidade, v. I, entre uma abordagem preocupada com as representações que a cultura faz do corpo e outra que frisa o papel do poder de ampliar, anular ou criar sen- sações: “não uma ‘história das mentalidades’, portanto, que só leve em conta os corpos pela maneira como foram percebidos ou receberam senido e valor; mas ‘história dos corpos’ e da maneira como se invesiu sobre o que neles há de mais material, de mais vivo” (FOUCAULT, 2005:142). 3. Em Produção de presença, o autor apresenta vários indícios dessa ausência, dentre os quais cabe destacar as cerimônias religiosas. No Crisianismo medieval, cada missa mais do que representar ou simbolizar a Úlima ceia, apresentava os acontecimentos passados, de modo a preseniicá-los. O passado não era representado, mas experimentado. Outro exemplo contundente é o da cenograia do teatro medieval. Não havia ainda uma separação níida entre os corpos dos atores e os corpos da plateia; por isso os atores costuma- vam pedir licença para entrar e se reirar daquele espaço, que ainda era bem material e não tanto simbólico como se tornará a parir da introdução das corinas no palco teatral (GUMBRECHT, 2010). 183 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. A parir do século XV, a difusão dos textos impressos se acelera e, com isso, a relação entre matéria e senido se altera. A importância do corpo declina com a possibilidade de leitura privada, assim como se acentua a distância entre autor e público. Nesse novo cenário, Gumbrecht (2010) acredita coni- gurar-se uma noção difusa de hermenêuica que aparece na vida coidiana mesmo antes de o termo “hermenêuica” se insitucionalizar como método e disciplina dedicada à interpretação de textos. A noção difusa de hermenêuica traz à realidade o que o autor chama de campo hermenêuico. Nele estão alojados dois eixos: um primeiro, verical, opõe profundidade e superície, sendo o organismo e os objetos que afetam os senidos meros índices ou superícies que apresentam imperfeitamen- te uma essência que habita um espaço aquém ou além do supericial, onde reside o signiicado. A expressão depreciaiva “isso é supericial” como sinal de mau gosto ou ausência de reinamento expressa a orientação normaiva em jogo. Como se tornará explícito na obra de Descartes, o sig- niicado é algo da ordem imaterial, produzido pela mente, enquanto o corpo é composto por uma outra espécie de substância, dita extensa, a mesma que compõe os objetos no mundo. Esse primeiro eixo converge com o eixo horizontal, que separa sujeito e objeto. Há igualmente normaividade nes- se eixo, sendo desejável o distanciamento entre conhecedor e mundo conhecido para a produção do saber cieníico. Convêm notar o ajuste harmonioso entre os dois eixos, de modo que aingir a essência oculta dos objetos do mundo (seu signiicado) passa pelo necessário distanciamento tanto dos corpos ísicos exteriores, como da colocação em dúvida das sensações fornecidas pelo corpo isiológico do observador. Corpo e linguagem no século XIX Ao invés de desmaterializar o corpo sob a forma de discurso, como algumas abordagens construi- vistas pretendem, a orientação de Gumbrecht (2010) é resgatar a materialidade do senido a parir do corpo e dos suportes tecnológicos implicados na difusão do conhecimento. A importância de sua análise é dar historicidade ao “corpo-texto”. Não parte da comunhão desses domínios, mas a exami- na de uma perspeciva histórica. Segundo sua análise, o corpo como superície a ser lida só passou a exisir com a consituição do campo hermenêuico. Na cultura medieval, ao contrário, o corpo não signiicava nem simbolizava; tratava-se de uma presença tão plena de senido quanto um livro ou um pensamento. Enquanto Gumbrecht (2010) estudou a consituição do campo hermenêuico em uma série de prá- icas que envolvem relações entre corpo, leitura e a invenção da prensa, Michel Foucault (2004) fez semelhante exploração em relação às práicas médicas. Segundo o autor, a medicina a parir do século XIX tornou-se profundamente enraizada nos achados da anatomia, não apenas de modo teórico, mas nas práicas diagnósicas e terapêuicas. O procedimento de abertura dos cadáveres, a autópsia, tornou-se o eixo central destas práicas, permiindo aos médicos determinar a presença e desenvolvimento de processos patológicos. Dentro desse modo de pensar e agir, denominado por Foucault (2004) método anatomo-clínico, as causas de enfermidades, que se expressam na superí- cie corporal, estão sempre alojadas no interior do corpo. Essa distribuição atende plenamente aos princípios do campo hermenêuico, com suas noções de interpretação e expressão. A superície do corpo não deine o que é a doença, na medida em que sua causa habita menos o espaço aparente e visível do que a profundidade que exigirá a autópsia. Como um intérprete, o médico deine um quadro patológico não somente pela observação dos sinais e sintomas, mas indo além do visível e 184 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. estendendo o conhecimento pelo exame dos processos inicialmente invisíveis. Por outro lado, as inlamações dos órgãos internos se expressam na superície do corpo, fazendo o percurso contrário da interpretação. Enquanto essa é orientada do exterior para o interior, a expressão, quer se reira a um afeto, pensamento ou processo patológico, segue luxo inverso. Não importa sua natureza, aquilo que se expressa sempre se desloca de um espaço interior recôndito para se releir em uma superície visível. O alcance desse modelo de conhecimento certamente extrapola a medicina. Em um texto de grande erudição, Carlos Ginzburg (2007) mostrou que no século XIX três autores provenientes de campos do saber muito disintos (embora todos tenham ido formação médica) formularam propostas bastante similares para o estudo do comportamento humano e de suas obras. Um primeiro, Giovanni Morelli, propôs um método para descoberta de falsiicações em obras arísicas, especialmente aplicável à pintura. Ao invés de se ater aos atributos mais vistosos, o método deinha-se nas caracterísicas menores, nos pequenos detalhes, como os lóbulos das orelhas ou unhas. O segundo autor, também ligado às artes, mas com formação médica é Conan Doyle, conhecido por sua criação literária, o deteive Sherlock Holmes. Nos livros de Doyle, as invesigações seguem os preceitosde Morelli: a importância está nos pequenos detalhes, indícios impercepíveis ao observador comum que tem maior valor do que os grandes atributos. Curiosamente, a orelha é dotada de grande importância em ambos os métodos, como se pode perceber nesse trecho onde a medicina é evocada: “na sua qualidade de médico o senhor não ignorará, Watson, que não existe parte do corpo humano que ofereça maiores variações do que uma orelha” (DOYLE apud GINZBURG, 2007:146). O terceiro autor é Freud, que não somente tomou contato com a obra de Morelli, como a menciona explicitamente em “O Moises de Michelangelo”. Freud traça analogias entre seu trabalho clínico de interpretação e a atenção que Morelli dedica aos traços quase impercepíveis nas pinturas: “Creio que o seu método está estreitamente aparentado à técnica da psicanálise médica. Esta também tem por hábito pene- trar em coisas concretas e ocultas através de elementos pouco notados ou desaparecidos” (FREUD apud GINZBURG, 2007:147). Essas observações conirmam a ideia de aproximação entre corpo e linguagem. Todos os três autores tentaram mediante pequenos detalhes visíveis chegar ao invisível, ou seja, à intenção, ao desejo, aos pensamentos daquele que age. É certamente Freud o mais representaivo do modelo interpretaivo, onde o os sintomas histéricos inscritos no corpo, como uma cegueira, uma afasia ou uma paralisia, são remontados a outro domínio que extrapola o corpo. Portanto, já no século XIX encontramos o “corpo-texto”, que se apresenta enquanto portador de sinais para os quais a cultura designa autori- dades capazes de interpretar e decifrar o senido. E pode-se perceber o vigor de tal modelo obser- vando a variedade de proissionais e ciências direcionadas para interpretação dos sinais inscritos no corpo e comportamento do indivíduo: craniometria, frenologia, testes projeivos e expressivos, decifração da personalidade através da escrita, interpretação dos sonhos e sintomas; métodos com os quais estão envolvidos não somente médicos e deteives, mas também psicanalistas e psicólogos (SENNETT, 1989). Corpo e linguagem na atualidade No século XX, as relações entre linguagem e doença coninuam a se intensiicar. A concepção do cor- po como arquivo legível se radicaliza através da aplicação da teoria da informação à isiologia. Essa 185 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. teoria tem em Claude Shannon um de seus expoentes, sendo desenvolvida na primeira metade do século XX. Trata-se de uma concepção instrumental da linguagem, onde se visa somente comunicar, tornar transparente uma mensagem transmiida por uma fonte e desinada à outra pessoa ou dis- posiivo técnico4. Muito longe se está da experiência de abertura do mundo relacionada pelos iló- logos do século XIX, que atribuindo à linguagem o papel de formar uma visão de mundo, tornavam a tradução uma tarefa éica, colocando em contato duas formas de agir e compreender o mundo radicalmente diferentes (HABERMAS, 2000). A parir da concepção da linguagem como aividade puramente instrumental será moldado um novo entendimento das patologias. Com ela, surge a noção de doença como erro de informação, causada por uma “má interpretação” do código genéico. Cabe notar que a formação do “corpo-informação”, a versão cibernéica do “corpo-texto” do século XIX, vai sendo paulainamente moldada segundo três etapas. Como esclarece Georges Canguilhem (1995), a teoria da informação possui um papel importante, mas não exclusivo em sua manufatura. Não bastou que a natureza fosse concebida como sistema que porta códigos e mensagens para que a medicina aproximasse corpo e linguagem de modo inovador. O processo de construção do “corpo-informação” no século XX se deu modo paulaino e necessitou de várias ciências para ser efeivado. O processo que conduz à construção do “corpo-informação” é paralelo ao entendimento das doen- ças como erro de interpretação. Até então as doenças seguiam dois grandes modelos: o do desequi- líbrio interno, amparado na tradição hipocráica dos humores, e o de agente patogênico, presente desde as práicas rituais que reiravam do corpo do paciente um objeto ao qual se atribuía a causa do adoecimento. A parir da primeira metade do século XX, uma nova concepção do patológico começa a se impor (CANGUILHEM, 1995). O primeiro passo de sua consituição tem raízes na isiologia de Cannon, divulgada por volta de 1930 na obra “A sabedoria do corpo”. Cannon expõe o conceito de homeostasia, ou seja, a necessidade de um constante restabelecimento das funções da vida orgânica através de sistemas de autorregu- ladores. Nesse estágio de elaboração, a concepção de erro não aparece explicitamente, mas a base de seu aparecimento está preparada, ou seja, o entendimento do corpo como um sistema dotado de inteligência capaz de corrigir abalos provocados por perturbações provindas do meio exterior. É também uma fase nas quais analogias entre organismos e sociedades estão muito presentes. Na etapa seguinte, desenvolvida por volta de 1950, tal inteligência é acolhida de forma mais críica: o corpo pode ser sábio, autorregulado, mas comete enganos com muita frequência. Canguilhem (1995) considera Hans Seyle e Reilly os responsáveis por essa elaboração. Ambos os pesquisadores conferem pouca importância à localização espacial do agente patogênico, dando maior ênfase à noção de perturbação de funções. O trabalho de Seyle versa sobre síndromes patológicas não espe- cíicas, nas quais os sintomas são gerados pela reação adaptaiva a qualquer ipo de esimulação brusca, seja interna, como uma descarga hormonal, externa, como um traumaismo, ou psíquica, como uma emoção reiterada. O organismo adoece pelo prolongamento de seu estado de pronidão. De início, tais reações visam um estado de defesa, uma restauração do equilíbrio, no entanto, a bus- ca constante desse estado gera um esgotamento. 4. Nessa concepção, há cinco termos importantes: a fonte, que produz uma mensagem, o codiicador ou emissor, que transforma a mensagem em sinais, o canal, o meio uilizado na transmissão da mensagem; o decodiicador ou receptor, que reconstrói a mensagem a parir dos sinais e inalmente, a desinação, pessoa ou aparelho ao qual a mensagem é desinada (MATELLART; MATTELART, 2008). 186 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. Com essas constatações, a noção de sabedoria do corpo é discuida, pois é o próprio sistema de autor- regulação que conduz às síndromes estudadas por Seyle. Intuiivamente, os patologistas começaram a se referir a esses fenômenos como erros isiológicos, atribuindo ao organismo uma espécie de inali- dade ou de cálculo que não foi bem realizado. Nessa segunda etapa, o termo erro já aparece explicita- mente, ainda que sob forma intuiiva. Somente quando o vocabulário da biologia moldar-se segundo os princípios da teoria da comunicação e da cibernéica, a noção de erro assumirá sua maturidade. Deve-se ponderar a originalidade dessa concepção do patológico: desde 1909, o termo erro heredi- tário já era usado para designar alterações inatas do metabolismo. Entretanto, ainda repousava na engenhosidade de uma metáfora, sendo promovido a uma consistente analogia, depois dos estudos célebres de Francis Crick e James Watson sobre a dupla hélice do DNA. Tais pesquisas sobre a dupla hélice enviaram a biologia para o plano molecular, saindo da escala dos órgãos e tecidos para a da célula e molécula. Nesta escala, encontram-se sequências de bases nitrogenadas que consituem o código genéico de cada indivíduo. O enquadramento da vida é niidamente inspirado pela teoria da informação: noções, como código, mensagem e tradução orientaram, e há sinais que ainda orien- tam, o entendimento dos mecanismos de transmissão da hereditariedade. Não tardou para que a patologia fosse enviada ao plano molecular através do arsenal teórico da teo- ria da informação. Assim, uma doença como anemia falciforme segue uma lógica, que não é mais a da degradação,mas a da má interpretação do código, já que se desenvolve pela subsituição de um único aminoácido na cadeia da proteína que forma a hemoglobina, tornando-a disforme. O problema reside, portanto, na transmissão de informação, na decodiicação das mensagens ins- critas no material hereditário. Submeida aos princípios da comunicação, a saúde é concebida sob nova normaividade, como correção genéica, enquanto a patologia resultaria de uma má interpre- tação, alertam Georges Canguilhem (1995) e Lucien Sféz (1996). Corpo e indivíduo A comparação entre corpo e linguagem vem sendo ampliada dentro de alguns desenvolvimentos contemporâneos das ciências biológicas, conduzidos pelo encontro entre biologia molecular, gené- ica e uma orientação preveniva em medicina. Para a compreensão da singularidade do presente, é interessante comparar dois textos que tratam da possibilidade de se tratar a enfermidade genéica. O primeiro publicado originalmente em 1963, do ilósofo Georges Ganguilhem é bastante céico em relação à possibilidade de a medicina agir sobre os mecanismos genéicos. O “corpo-informação” seria a ruína do ímpeto que moveu a medicina desde sua origem e que lhe confere um estatuto éi- co: combater a doença e adiar a morte. É desse modo que o autor expressa sua resignação: Uma hemoglobina pode transmiir informações erradas, assim como um manuscrito pode também trans- miir informações erradas [...], a doença deixa de ter qualquer relação com a responsabilidade individual. Não há mais imprudência, não há mais excesso a recriminar, nem mesmo responsabilidade coleiva, como em caso de epidemia. (CANGUILHEM, 1995:253) Concebendo a doença como erro, a carga afeiva é dissipada: no erro, não há nada contra o que lutar, o mal é tão radical que não está relacionado a qualquer coningência que possa ser evitada. Como se no fundo, não houvesse qualquer má intenção, mas somente um grande mal entendido. É 187 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. muito interessante notar o contraste entre a conclusão de Canguilhem e outro texto, publicado exata- mente trinta anos depois. Neste úlimo, voltado para a medicina prediiva, o tom é bem mais oimista: A medicina prediiva não se dirige a doenças, mas a sujeitos sãos. Seu alvo: conduzir cada indivíduo, levan- do em conta a natureza de seu patrimônio hereditário e de seu ambiente, a conservar uma boa saúde até a idade mais avançada de suas vidas. (RUFFIÉ, 1993:61) A ideia de medicina prediiva é bastante intrigante. Predizer e prevenir não teriam, segundo o médi- co Jacques Ruié, o mesmo senido. A prevenção implica intervir ou diagnosicar precocemente doenças já formadas, como por exemplo, detectar através do exame do líquido amnióico uma tris- somia do cromossomo 23, que irá gerar sintomas da Síndrome de Down. O exercício de predizer consituiria um avanço frente à prevenção: trata-se de detectar enfermidades que ainda não se for- maram e que talvez jamais venham a se formar. Enquanto o exame do líquido amnióico produziria o saber antecipado de um evento que irromperá no futuro, o instrumental da medicina prediiva, com seus testes genéicos, não aborda doenças já consituídas, mas esipula probabilidades. Em suma, ela é uma medicina de doenças possíveis ou virtuais. Trata-se aqui de uma medicina do risco, mais especiicamente do risco genéico. A leitura dos códigos genéicos não pretende decifrar uma profundidade orgânica anormal, mas esipular probabilidades de adoecimento. O saber que é extraído da leitura do “corpo-informação” não aborda um evento presente ou um cenário futuro evidente. Os cenários futuros da medicina prediiva são permeados pela incerteza. Informada sobre a probabilidade de desenvolver câncer de mama, uma mulher deve- ria optar por exirpar seus seios mesmo sabendo que o quadro patológico é meramente provável? Aqueles que sabem que seus pais foram dependentes de álcool deverão evitar qualquer contato com bebidas? Os casais nos quais algum membro tenha histórico de doenças genéicas deverão evitar ter ilhos? Se todo indivíduo porta genes “defeituosos”, a leitura do “corpo-informação” nos coloca sob cons- tante ameaça, implicando monitoramentos cada vez mais precoces5. É com a dimensão de incerteza que somos confrontados e impelidos a cuidar com grande antecipação de nossos hábitos. Se a ini- tude é inexorável, a medicina prediiva nos incita a pensá-la como adiável, colocando a responsabi- lidade pelo adoecimento sob os ombros dos indivíduos. Mesmo inapelável, a degradação biológica se abre tremendamente, ainda que em pequenos pontos, à ação humana. A possibilidade de controle das doenças é contrabalançada com o dever de intervir; a responsabili- dade aumenta juntamente com o poder técnico de ler o “corpo-informação”. Quanto mais detalhes for possível obter dessa leitura, maior a obrigação individual de construir seu futuro e adiar a ini- tude. É intrigante como essa leitura envolve relações complexas com a responsabilidade e o prazer. Quando o corpo se aproxima de ser uma realização da vontade, nos tornamos simultaneamente onipotentes e frágeis. Onipotentes, porque o domínio biológico é visto como um projeto individual; frágeis porque tudo é referido ao nosso controle e responsabilidade e o fracasso não é mais descul- 5. O mercado dos testes genéicos está proliferando, com valores menores, permiindo o uso para um maior número de indivíduos. Empresas como a “23andme” fornecem o mapeamento dos riscos genéicos por aproximadamente quinhentos dólares. Um dos fun- dadores de uns dos programas mais populares de busca na internet, Sergey Brin, após realizar o procedimento pela “23andme”, foi informado que portava uma mutação no gene LRRK2 que amplia a probabilidade de ser acomeido pela doença de Parkinson. Mesmo a probabilidade estar situada em uma gradiente entre 20% e 80%, Sergey optou por modiicar sua dieta e aderir a exercícios que, segundo estudos, previnem a doença (CINQUEPALMI, 2010). 188 LEITURA EM REVISTA Cátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. pável. Mas deve-se ponderar que, ao mesmo tempo, as explicações genéicas podem oferecer uma libertação da responsabilidade, como frisa Costa (2004). Quando hipóteses cieníicas enviam o com- portamento ao plano genéico, o indivíduo pode muito bem se senir ileso de acusações morais. Caso uma explicação genéica para o homossexualismo adquira consistência no campo cieníico e cultural, é provável que os indivíduos culpados pela orientação de seu desejo experimentem maior alívio. O imperaivo de cuidado está imerso em semelhantes complicações. Se o adoecimento informado pela leitura do código genéico é apenas provável, a abdicação do prazer torna-se um dilema, sobre- tudo na cultura contemporânea orientada por uma saisfação quase imediata dos desejos. Vaz indi- ca uma dupla incerteza que acomete o indivíduo frente ao risco: “de um lado, o sofrimento futuro é meramente possível; de outro, nada garante ao agente no presente que ele terá o mesmo sistema de valor do observador que ele será no futuro” (2006:54). Dado que o controle do corpo envolve sempre uma renúncia, poderá haver arrependimento pela constrição efetuada no presente, pois esta projeta não somente uma situação futura, mas também o sistema de valores daquele que faz abdicações. Em outros termos, o asceta em um determinado momento de sua vida poderá se con- verter em hedonista e, dessa forma, o indivíduo que abdica de seu prazer em troca da longevidade sempre estará assombrado pela decisão tomada no passado. Neste senido, podemos dizer que a leitura do “corpo-informação” desencadeia certas mudanças da relação do indivíduo frente à morte, doença e prazer. Em torno da nova ariculação entre corpo e lin- guagem, gravitam decisões orientadas não somente pela expectaiva da degradação biológica, mas igualmente pelo temor de um gozo insuiciente, de um desperdício das oportunidades de se ter prazer. Envio: 2 fev. 2011 Aceite: 3 mar. 2011 189 LEITURA EM REVISTACátedra UNESCO de Leitura PUC-Rio n.2, abr., 2011. 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