Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Ludicidade e Psicomotricidade Ludicidade e Psicomotricidade Organizado por Universidade Luterana do Brasil Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas, RS 2018 Mara Lúcia Salazar Machado Beatriz Junqueira Pereira Paim Kátia Cilene da Silva Ivan Antônio Basegio Aniê Coutinho de Oliveira Obra organizada pela Universidade Luterana do Brasil. Informamos que é de inteira responsabilidade dos autores a emissão de conceitos. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem prévia autorização da ULBRA. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei nº 9.610/98 e punido pelo Artigo 184 do Código Penal. Dados técnicos do livro Diagramação: Jonatan Souza Revisão: Igor Campos Dutra No campo da educação, durante longo tempo, vigorou uma visão de sujeito que separava o corpo da mente. Estas eram dimensões distin- tas e entre as quais não havia nenhuma relação. Neste contexto, a aprendi- zagem era vista apenas como uma atividade intelectual, onde o corpo não era valorizado e até mesmo reprimido. Felizmente, em anos recentes, uma nova perspectiva vem se afirmando, a qual chama a atenção para os aspectos corporais, lúdicos e relacionais que envolvem os processos de aprendizagem. Essa abordagem ficou co- nhecida como Psicomotricidade. A Psicomotricidade estuda o homem através de seu corpo em movi- mento e em relação com seu mundo interno e externo. Nesse sentido, ela está relacionada aos processos de maturação, onde o corpo é a origem das aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. Uma das suas ferramen- tas mais importantes, e talvez a sua maior contribuição para o campo da educação, está justamente em chamar a atenção para a importância do brincar como uma estratégia eficaz de ensino e aprendizagem. Ao brincar, o ser humano expressa emoções, sentimentos, interage com outros mem- bros de sua comunidade e assim adquire competências motoras, sociais e cognitivas que lhes possibilitam construir o seu mundo em interação com o meio e consigo mesmo, abrindo um leque de possibilidades para a sua criatividade e interação no meio social. Neste livro, apresentamos um breve histórico da Psicomotricidade, des- tacando suas principais vertentes e definindo seus conceitos fundamentais. Nosso objetivo é fornecer aos estudantes uma visão ampla da disciplina de Ludicidade e Psicomotricidade, proporcionando, como isso, subsídios para o seu desenvolvimento acadêmico e profissional. Apresentação Apresentação v Assim, no primeiro capítulo, enfocamos a origem da Psicomotricidade, partindo da etimologia da palavra, e discutimos as transformações ocorri- das ao longo do tempo. No segundo capítulo, são apresentadas as princi- pais perspectivas teóricas da Psicomotricidade e as relações que estas esta- belecem com outras disciplinas que estudam o desenvolvimento humano, como a Psicologia, a Neurologia, a Educação Física e a Pedagogia, entre outras. No terceiro capítulo, são destacados alguns aspectos relativos à cons- tituição do sujeito psíquico, a qual se inicia antes mesmo da criança vir ao mundo e envolve as expectativas e desejos dos pais, ou seja, trata-se da “tensão” que se estabelece entre o “filho desejado” e o “filho real”. É justamente a partir dessa tensão que no quarto capítulo se discute sobre a importância da intervenção precoce em crianças que apresentam algum tipo de dificuldade no seu desenvolvimento, destacando a capacidade ce- rebral de se modificar, mas, também, o papel fundamental que a família desempenha no processo de desenvolvimento das crianças. O quinto capítulo resgata a importância do brincar para o desenvol- vimento da criança. A partir disso, a autora apresenta e debate sobre os espaços destinados ao brincar nas instituições de educação infantil. Na mesma linha, no sexto capítulo, discutem-se as propostas pedagógicas de intervenção psicomotora destinadas às crianças dos anos iniciais do ensino fundamental. O sétimo capítulo amplia ainda mais o campo de atuação da Psico- motricidade, compreendendo que os processos de aprendizagem não se restringem aos espaços escolares e, portanto, a intervenção psicomotora também deve extrapolar os muros da escola. No oitavo capítulo, o autor reforça os principais conceitos do campo da Psicomotricidade e analisa o desenvolvimento da disciplina no Brasil, distinguindo suas duas linhas principais (diretiva e não diretiva) e o papel do educador em cada uma destas. vi Apresentação O nono capítulo expande o campo da Psicomotricidade, discutindo inicialmente as questões relativas ao “envelhecimento na contemporanei- dade” e a contribuição que nossa disciplina pode oferecer à melhoria da qualidade de vida do sujeito idoso. Finalmente, o décimo capítulo, traz as bases necessárias para a forma- ção do educador, partindo da compreensão que este faz de si e do outro. Assim, é o próprio educador que é colocado em perspectiva, pois ele deve necessariamente refletir sobre suas limitações a fim de poder auxiliar outros indivíduos na superação de suas dificuldades, sejam elas psíquicas, cogni- tivas, motoras, orgânicas ou de interação social. 1 A Psicomotricidade e Suas Origens .......................................1 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade ...........................18 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva Psicomotora ....44 4 O Primordial na Intervenção com Bebês ..............................69 5 Amar e Brincar: uma Proposta na Educação Infantil .............99 6 Propostas Pedagógicas na Intervenção Psicomotora: a Criança do Primeiro ao Quinto Ano Escolar ....................124 7 Psicomotricidade em Espaços Não Escolares ......................148 8 A Psicomotricidade: uma Educação para Ser sob Diferentes Olhares ............................................................170 9 Gerontopsicomotricidade ..................................................193 10 A Formação Pessoal do Professor/Mediador ......................215 Sumário A Psicomotricidade e Suas Origens1 1 Professora do Curso de Pedagogia, ULBRA, Especialista em Psicomotricidade, Mestre em Ciências do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mara Lúcia Salazar Machado1 Capítulo 1 2 Ludicidade e Psicomotricidade Introdução O estudo da Psicomotricidade enquanto ciência que compre- ende o sujeito a partir de seu corpo em movimento, em rela- ção consigo mesmo, com o outro e com o espaço circundante, é amplo e complexo. Neste capítulo, você encontrará o conceito inicial da Psico- motricidade a partir de etimologia da palavra e das mudanças que recebeu ao longo dos tempos. Para entendermos o conceito dessa ciência, faz-se neces- sário vasculhar sua trajetória histórica, origem e os caminhos percorridos até os dias atuais. O sujeito que aprende e o sujeito que ensina não estabele- cem relações com o conhecimento fazendo uso somente de um cérebro e das percepções visual, auditiva, tátil, olfativa, gusta- tiva e cenestésica. A compreensão de que o sujeito aprendente não deve ser visto de maneira fragmentada é estudada neste capítulo que tem por objetivo oportunizar conhecimentos que favorecem a construção do conceito de Psicomotricidade, suas origens e trajetória histórica. Neste sentido, é importante informar que você irá se apro- priar de fatos importantes que irão ajudar a entender os pro- pósitos atuais da Psicomotricidade, conhecimentos teóricos e práticos desenvolvidos ao longo dos tempos. Esse trajeto não pode ser minimizado, pois atravessou oceanos e continentes até chegar a diferentes regiões do Brasil. Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 3 Assuma seu lugar nessa viagem e tenhamos bons momen- tos de trocas, reflexões e construções sobre a ciência Psicomo- tricidade. 1 Conceito e origem Sejam bem-vindos(as) ao nosso estudo sobre Ludicidade e Psicomotricidade. É muito comum iniciarmos os pressupos- tos teóricos (conhecimentos) de um tema, partindo de seu(s) conceito(s) ede suas origens. Ao resgatarmos os caminhos percorridos pela Psicomotricidade, convidamos vocês a “mer- gulharem” nas palavras e nas ideias que contam a história, os conceitos e que ajudam a compreender esse importante com- ponente curricular (disciplina). Conte-me, e eu esqueço. Mostre-me, e eu apenas me lembro. Envolva-me, e eu compreendo. (CONFÚCIO)2 Dando continuidade ao diálogo que envolve o conceito de Psicomotricidade, gostaria de ressaltar que esse conceito foi mudando conforme o tempo e de acordo com a evolução das pesquisas e dos estudos nessa área. Ou seja, no começo do século XX, a Psicomotricidade era entendida e aplicada de uma maneira e, em tempos atuais, seu conceito e aplicação são realizados de modos diferentes. Vejamos: 2 Disponível em: <https://www.pensador.com/poema_sobre_conhecimento/3/>. 4 Ludicidade e Psicomotricidade Observe, com atenção, o termo Psicomotricidade. O que você percebe na composição da palavra? Poderíamos des- membrá-la em duas partes, tipo “psico” e “motricidade”? Sim, podemos iniciar o entendimento da Psicomotricidade partindo da etimologia3 da palavra. A palavra psicomotrici- dade tem sua origem no termo grego “psyché”, que significa alma, e no verbo latino “moto”, que significa mover, agitar fortemente. Conforme já foi mencionado, o termo e o conceito foram alterados, tendo a França por seu país de origem. Ao consultarmos o site da Associação Brasileira de Psi- comotricidade (ABP),4 verificamos que o termo psicomotor foi usado pela primeira vez no século XIX, por Wernick, um renomado psiquiatra austríaco. Esse médico teria utilizado o termo Psicomotor para referir a determinados sintomas que um dos seus pacientes apresentava. Concordando com o registro pesquisado na ABP, o psi- comotricista Negrine (2002) descreve que a psicomotricidade surgiu em 1907 com Ernest Dupré, um considerado neurolo- 3Etimologia é o estudo gramatical da origem e história das palavras, de onde surgiram e como evoluíram ao longo dos anos. Disponível em: <https://www. significados.com.br/etimologia/>. 4 Disponível em: <http://www.psicomotricidade.com.br/curriculo_basico.htm>. Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 5 gista francês. Dupré teria observado que seus pacientes psiqui- átricos apresentavam manifestações motoras associadas. O neuropsiquiatra francês observou que havia alterações mentais e alterações motoras que se manifestavam ao mesmo tempo. Essas manifestações foram denominadas síndrome da debilidade motriz. A Síndrome da Debilidade Motora é uma doença congênita e hereditária.  O termo congênita significa que nasce com o indivíduo, se manifesta de modo natural. Já o termo hereditário se refere ao fato de ser transmitido de pais para filhos. 6 Ludicidade e Psicomotricidade Assim, podemos verificar que a psicomotricidade teve seu primeiro impulso influenciado pelo modelo biomédico, pre- ocupado na relação mente, movimento e transtorno (doença). Retornamos ao autor Negrine (1995) para explicar que a psicomotricidade foi influenciada pelo dualismo cartesiano, que entendia o homem como um ser fragmentado, havendo uma divisão entre corpo e mente. Explicando melhor a ideia de dualismo cartesiano, observe a explicação que segue. O modelo que auxiliou a compreender a relação entre o corpo e a mente refletiu diretamente na educação, pois ainda na atualidade o aluno é visto como se fosse separado em cor- po e mente. A partir dessa fragmentação, a inteireza do ser humano, juntamente com as complexas conexões que envolvem a cons- Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 7 trução da cognição, do motor e das emoções foram pouco exploradas no século XIX e XX. Durante muito tempo, a psicomotricidade e a escola enten- deram que a motricidade estava vinculada a um mesmo padrão de evolução para todas as pessoas. A partir daí, houve a criação de diversos testes padronizados que pretendiam “medir” a ma- turação das capacidades e das habilidades dos sujeitos. Dando continuidade ao resgate histórico, verificamos que além dos modelos biomédicos, representados por neurologis- tas e psiquiatras, a Psicologia também passa a contribuir para a formação da Psicomotricidade enquanto ciência. Assim, Henri Wallon (médico e psicólogo) e Jean Piaget (biólogo) são descritos como importantes cientistas que favoreceram essa construção. Nesse sentido, Levin (1995) afirma que, para Wallon, o movimento estaria relacionado ao afeto, à emoção, ao meio ambiente e aos hábitos das crianças. Já para Piaget, haveria uma nítida relação entre o pensamento e o movimento, orga- nizando o desenvolvimento em diferentes estágios. A aproxi- mação entre a Psicomotricidade com os estudos de Wallon e de Piaget ganham força com o advento da Psicopedagogia. Conforme afirma Cabral (2001), Le Camus, em meados de 1970, aproxima ao conceito de psicomotricidade uma nova percepção: “motricidade em relação”. Esse fato fez com que o corpo fosse entendido como um todo. Mente e corpo, final- mente, são vistos de maneira não fragmentada. Houve a com- preensão de que os aspectos físico e psíquico deveriam ser trabalhados em conjunto e que seria impossível sua divisão. 8 Ludicidade e Psicomotricidade Ainda para Cabral (2001), sob influência da psicomotrici- dade francesa, na década de 1970, mudam as características da psicomotricidade, passando de uma caracterização clínica à educativa. Duas tendências são descritas nessa época: a Re- educação Psicomotora e a Terapia Psicomotora. Vamos entender algumas diferenças entre essas tendências utilizadas na Psicomotricidade. Primeiramente, convido vocês a identificarem algumas características da Reeducação Psico- motora. Reeducação Psicomotora - Preocupa-se com a cognição do sujeito psicomotor. - Trabalha com exercícios estruturados. - Promove a reeducação de funções psicomotoras como: de- senvolvimento tônico-motor e espaço-temporal. - Investe na reconstrução do esquema corporal. - Treina a definição da lateralidade. Fonte: Cabral (2001) Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 9 No início de minha atuação enquanto psicomotricista, no começo da década de 1990, desenvolvia um trabalho clínico aproximando duas áreas de conhecimento: a psicopedagogia e a psicomotricidade. Ao receber alunos com dificuldades de aprendizagem que evidenciavam disgrafia (dificulades na es- crita, precisando trabalhar com a motricidade fina), realizava diferentes exercícios nas áreas: espaço-temperal, lateralidade, estruturação rítmica entre treinamento de outras áreas. A Reeducação Psicomotora era realizada através de exer- cícios apresentados à criança onde a mesma tinha que: reco- nhecer direita e esquerda partindo de seu corpo; identificar conceitos espaciais com o corpo e em representações e dese- nhos, trabalhos com palmas, entre outros exercícios. Nesse sentido, gostaria de chamar a atenção para o enfo- que de treinamento, de focar o atendimento ao aluno a partir de suas dificuldades e não das possibilidades psicomotoras que apresentava. Na sequência de nosso estudo, vejamos como se desenvol- ve a Terapia Psicomotora. 10 Ludicidade e Psicomotricidade Terapia Psicomotora - Preocupa-se mais com a relação afetiva. - Enfatiza mais expressão corporal como meio de atingir as fantasias e conflitos da criança. - Promove a afirmação do desejo da criança perante a rea- lidade na qual está inserida. - Investe na reconstrução do esquema corporal. - Treina a definição da lateralidade. Fonte: Cabral (2001) A Terapia Psicomotora surgiu na França onde o terapeuta atendida individualmente crianças e adolescentes com trans- tornos neuropsicomotores. Entretanto, conforme descreve Cabral (2001), ao chegar no Brasil essa proposta teve uma mudança inicial seguindo do atendimento individual para o trabalho terapêutico sendo realizado em pequenos grupos. Cabral descreve seu trabalho terapêutico inicial sustenta- do nas “leituras” que precisava fazer sobre o simbolismo dasações realizadas pelas crianças. Aos poucos, os autores da área biomédica (neurologistas, psiquiatras, psicanalistas entre outros) sustentavam o trabalho da psicomotricista. Atualmente, Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 11 observa-se que os psicomotricistas estão disponibilizando refe- renciais teóricos para fundamentar outros profissionais de área da Psicomotricidade e da Educação. A terceira e última proposta da Psicomotricidade refere-se a um propósito preventivo definido como Educação Psicomo- tora. Educação Psicomotora - Iniciada em Escolas de Educação Infantil. - Tinha o desafio de oferecer atividades práticas que favore- cessem o desenvolvimento psicomotor da criança. - A proposta inicial estava sustentada em famílias de exercí- cios trazidos na Educação Física. - Investe na reconstrução do esquema corporal. - Treina a definição da lateralidade. Com o avanço das pesquisas na área da Educação Psico- motora, que conforme já foi referenciado, apresenta um cará- ter educativo e preventivo, as práticas psicomotoras educativas 12 Ludicidade e Psicomotricidade tiveram um grande avanço. A sobreposição das áreas de co- nhecimento com a Psicopedagogia, Psicologia, Pedagogia e Educação Física auxiliou muito atividades práticas que favore- ceram, ainda mais, a concepção de corpo integrado a outras áreas do desenvolvimento. Ou seja, enquanto a criança se movimenta, ela vai desenvolver a sua cognição, pensamento, afetividade, relações interpessoais além de se apropriar da sua cultura. 2 A Psicomotricidade no Brasil No Brasil, a Psicomotricidade foi inserida a partir de dois con- textos: nos cursos de Educação Física e nas clínicas de Reedu- cação Psicomotora. Conforme descreve Negrine (1994), a ên- fase dada à disciplina de Psicomotricidade estava relacionada ao desenvolvimento da criança na Educação Infantil. O perfil dessas disciplinas foi centrado na Psicomotricidade Diretiva, com treinamento de funções psicomotoras. A outra frente da Psicomotricidade realizada no Brasil foi disponibilizada a partir das clínicas de reeducação privadas. O foco do atendimento dessas clínicas centrava-se no atendi- mento de crianças com dificuldades de aprendizagem. Na década de 1980, nosso país começa a contar com a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade, que tinha o desafio de promover cursos, incentivar pesquisas e oferecer seminários em diferentes estados brasileiros. Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 13 Atualmente, o conceito de Psicomotricidade utilizado está sustentado na Associação Brasileira de Psicomotricidade que diz: psicomotricidade, portanto, é um termo empregado para uma concepção de movimento organizado e integrado, em função das experiências vividas pelo sujeito cuja ação é resultante de sua individualidade, sua linguagem e sua socialização. (Associação Brasileira de Psicomotricidade) Chamo a atenção de vocês para esse conceito que percebe o sujeito psicomotor não mais como uma pessoa fragmentada em corpo e mente. Ao contrário, nos ajuda a entender que a criança, o adolescente e o adulto são pessoas integrais e que se desenvolvem a partir da singularidade, corpo organizado, o outro e o meio circundante. Recapitulando Ao revisitar nosso capítulo de estudos, gostaria de retomar al- guns pontos e enfatizá-los com o propósito de que você possa compreender mais aspectos que norteiam o conceito e a histó- ria da Psicomotricidade. Para começar, gostaria de chamar sua atenção para o ter- mo Psicomotricidade, em seu aspecto etimológico que observa a construção do termo a partir da: “psyche” mais “Moto”. Ou seja, reforçando a soma de duas áreas: corpo e mente. Na sequência, retomo a um importante conhecimento que o con- ceito de Psicomotricidade evoluiu ao longo dos tempos. 14 Ludicidade e Psicomotricidade É importante reforçar que a Psicomotricidade é uma ciência que nasceu na França, ganhou espaço em outros países euro- peus e teve boa aceitação na Argentina e no Brasil. O começo da Psicomotricidade foi ancorada (baseada) em modelos biomédicos, sendo utilizada por médicos neuropsi- quiatras que observaram uma estreita relação entre transtor- nos psiquiátricos e dificuldades motoras como: tiques, descon- troles de movimento e hipertonia (rigidez muscular). Aos poucos, a Educação Física e a Pedagogia passam a contribuir com o conhecimento teórico da Psicomotricidade ampliando sua prática. Primeiro surgiu a Reeducação Psico- motora, seguido pela Terapia e, por último a Educação Psico- motora. Referências CABRAL, S. V. Psicomotricidade relacional: prática clínica e escolar. Rio de Janeiro: Revinter, 2001. LEVIN, Esteban. A clínica psicomotora: o corpo na lingua- gem. Petrópolis: Vozes, 1995. NEGRINE, Airton. Aprendizagem e desenvolvimento in- fantil: perspectivas psicopedagógicas. Porto Alegre: Prodil, 1994. ______. Aprendizagem e desenvolvimento infantil: psico- motricidade, alternativas pedagógicas. Porto Alegre: Prodil, 1995. v. 3. Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 15 ______. O corpo na educação infantil. Caxias do Sul: Educs, 2002. Imagem 1: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/olhos- -com-medo-medo-ansioso-fechar-2730315/>. Imagem 2: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/ampu- lheta-cron%C3%B4metro-29124/ >. Imagem 3: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/cadeias- -de-capturados-psique-mulher-433543/>. Imagem 4: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/mulher- -wireframe-low-poly-anatomia-2773507/>. Imagem 5: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/ Evil_demon>. Imagem 6: Disponível em: <https://vimeo.com/163033113>. Imagem 7: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/ansieda- de-medo-mystic-mist%C3%A9rio-2878777/>. Imagem 8: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/ crian%C3%A7a-menina-pouco-jovem-463558/>. Atividades 1) Marque com a letra V as alternativas verdadeiras e com a letra F as alternativas falsas. ( ) Psicomotricidade é uma ciência. 16 Ludicidade e Psicomotricidade ( ) O termo psicomotricidade, ao longo dos tempos, foi compreendido da mesma maneira. ( ) A Psicomotricidade teve origem no Brasil. ( ) A Psicomotricidade é oriunda da França e teve aceita- ção no Brasil e na Argentina. ( ) A concepção inicial da Psicomotricidade foi sustentada no modelo biomédico, sendo desenvolvida por neu- ropsiquiatras. 2) A partir do momento em que a Psicomotricidade se “ali- menta” em teorias da Educação Física, Pedagogia e Psico- logia, podemos observar as seguintes linhas: I. Reeducação Psicomotora. II. Terapia Psicomotora. III. Educação Psicomotora. IV. Terapia psicanalítica. Marque a resposta certa. a) I e II. b) II e III. c) Apenas IV. d) I, II, III. e) II, III e IV. Capítulo 1 A Psicomotricidade e Suas Origens 17 3) A reeducação em psicomotricidade avançou no Brasil a partir da aproximação entre duas áreas: a) Psicologia e Pedagogia. b) Pedagogia e Neurologia. c) Neurologia e Educação Física. d) Psicopedagogia e Psicomotricidade. e) Psicomotricidade e Psiquiatria. 4) A Educação Psicomotora tem o desafio de trabalhar com: a) Prevenção. b) Terapia Psicológica. c) Terapia cognitiva. d) Reeducação Psicomotora. e) Terapia com idosos. 5) Sobre a Psicomotricidade é correto afirmar: a) É uma ciência imutável. b) Tem sua origem no século XX, passando por várias mu- danças. c) Só se preocupa com a maneira como a criança pensa. d) Não quer saber sobre a construção do sujeito psico- motor. e) Preocupa-se exclusivamente com o cérebro e sua ana- tomia. Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade1 1 Professora do Curso de Pedagogia, ULBRA, Especialista em Psicomotricidade, Mestre em Ciências do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mara Lúcia Salazar Machado1 Capítulo 2 Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 19 [...] O ato de estudar é tão vital como comer e dormir, e eu não posso comer ou dormir por alguém. [...] assim, a busca do conhecimento não é preparaçãopara nada, é sim VIDA, aqui e agora.2 Introdução As Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade tem por objeti- vo oportunizar um espaço reflexivo referente à construção do sujeito psicomotor considerando seu corpo intelectual, motor, afetivo e relacional. Essa construção precisa ser entendida através da aproxi- mação entre o lúdico e a psicomotricidade relacionando os diferentes conceitos e as distintas abordagens construídas ao longo dos tempos. Ao problematizarmos questões que envolvem as práticas em Psicomotricidade, o texto busca organizar e chamar sua atenção para as teorias e pesquisas sobre o desenvolvimento humano. Você irá se apropriar de fatos e informações que revelam o surgimento da psicomotricidade partindo de outras ciências: na Psicologia, Neurologia, Educação Física, Pedagogia entre outras. Esses aportes foram fundamentais para que os(as) psi- comotricistas desenvolvessem diferentes metodologias para atuar na reeducação, na terapia e na educação psicomotora. 2 Disponível em: <https://www.pensador.com/autor/madalena_freire/>. 20 Ludicidade e Psicomotricidade Após essa trajetória, você estará motivado a conhecer as linhas metodológicas que podem ser desenvolvidas com crian- ças que estão em pleno desenvolvimento psicomotor. 1 Linhas de trabalho em Psicomotricidade Os educadores, antes de serem especialistas em ferra- mentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intérpretes de sonhos. (RUBEM ALVES3) Antes de continuar nossa caminhada rumo a construção de conhecimentos sobre o estudo das linhas de trabalho em Psicomotricidade, convido você a retomar as tendências psi- comotoras: Esse estudo precisa ser compreendido e contextualizado com um conjunto de saberes que auxiliam a identificar seu objeto de investigação (sujeito psicomotor) e as metodologias (práticas) que foram organizadas. Com essa afirmativa, chamo sua atenção para a terceira tendência: Educação Psicomotora. O conhecimento teórico e prático que foi se organizando ao longo dos tempos nos ajuda a compreender como acontece o desenvolvimento do sujeito psicomotor e de que maneira as práticas psicomo- toras oportunizam a criança a se movimentar, pensar, sen- tir, interagir com seus colegas, com o adulto e com diferentes materiais. 3 Disponível em: <https://www.pensador.com/frases_de_rubem_alves/4/>. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 21 Para entendermos como foram organizadas as linhas me- todológicas em Psicomotricidade, faz-se necessário entender o conceito de ludicidade e do papel que tem o lúdico e o brincar para o desenvolvimento psicomotor. 1.1 Ludicidade: brincadeira é coisa séria! É muito comum e frequente escutar em rodas de conversas de professores e gestores de escola a seguinte fala: “as crianças estão apenas brincando” como se o lúdico, em suas diferentes expressões, não fosse conteúdo sério e que precisa ser obser- vado e interpretado pelos profissionais. Essa afirmativa pode ser sustentada por Oliveira (2008) quando afirma que brincar, afeto, movimento, linguagem, percepção, representação, me- mória e outras funções cognitivas estão profundamente interli- gados. A brincadeira favorece o equilíbrio afetivo da criança e contribui para a apropriação dos signos sociais. Ao contrário do que possam pensar, muitos pesquisadores têm estudado sobre as manifestações do lúdico, do brincar e do jogo nas diferentes culturas e em diferentes épocas. Em cada etapa do desenvolvimento do homem, podemos verificar as relações que acontecem entre o desenvolvimento psicomo- tor e a ludicidade. Confirmando nossa afirmativa, busca-se sustentação em Ronca (1989, p. 27), quando diz que: o lúdico permite que a criança explore a relação do cor- po com o espaço, provoca possibilidades de desloca- mento e velocidades, ou cria condições mentais para sair de enrascadas, e ela vai, então, assimilando e gostando tanto que tal movimento a faz buscar e viver diferentes 22 Ludicidade e Psicomotricidade atividades fundamentais, não só no processo de desen- volvimento de sua personalidade e de seu caráter como também ao longo da construção de seu organismo cog- nitivo. O sujeito psicomotor, desde o nascimento, estabelece rela- ções que envolvem: ludicidade, movimento, cognição e afeti- vidade. Estas são construídas através de diferentes oportunida- des que a educação e a cultura oferecem. Se buscarmos o conceito de lúdico no dicionário aurélio, veremos que tem sua origem na palavra latina “ludus” que quer dizer “jogo” e serve para divertir e dar prazer. Entretanto, seria uma maneira muito reducionista (reduzida) de abordar o tema. Utilizaremos o conceito de ludicidade abarcando dis- tintas atividades, ultrapassando os atos de jogar e do brin- car. Essa percepção de lúdico pode ser explicada por Luckesi (2000) e Santin (1994) ao afirmarem que a ludicidade propi- cia experiências de plenitude, onde o sujeito se envolve por in- teiro. Nesse sentido, cabe ao professor oportunizar atividades Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 23 pedagógicas lúdicas, acompanhar e observar essas vivências corporais sendo que essas observações precisam estar alicer- çadas em conhecimentos e devidamente registradas em um diário. 1.2 Ludicidade, Psicomotricidade e teóricos do desenvolvimento A concepção ou ideia que temos de psicomotricidade refere-se a uma construção de sujeito psicomotor que aprende a pensar, sentir, movimentar-se e se relacionar de maneira integral e in- serido em um meio social. Reforçando essas ideias sobre o desenvolvimento psicomo- tor, a legislação se manifesta e, através do Referencial Curricu- lar Nacional para a Educação Infantil, afirma que: a intervenção intencional baseada na observação das brincadeiras das crianças oferecendo-lhe material ade- quado, assim como espaço estruturado para brincar per- mite o enriquecimento das competências imaginativas, criativas e organizacional. (1998 V1, p. 29) Vale reforçar que defendemos a importância da Ludicidade e Psicomotricidade em todas as etapas da vida, da infância à terceira idade, adequando o estudo e as propostas pedagógi- cas a cada fase do desenvolvimento. Para podermos fazer escolhas certas do que deve ser tra- balhado com o sujeito psicomotor, precisamos nos apropriar de teóricos como Piaget, Vygostky entre outros pesquisadores conceituados em nossa área de conhecimento. 24 Ludicidade e Psicomotricidade Jean Piaget4 (1896-1980) foi um renomado psicólogo e filósofo suíço, conhecido por seu trabalho pioneiro no cam- po da inteligência infantil. Piaget passou grande parte de sua carreira profissional interagindo com crianças e estudando seu processo de raciocínio. Seus estudos tiveram um grande im- pacto sobre os campos da Psicologia e Pedagogia. Jean Piaget (1896-1980). Fonte: Wikimedia Creative Commons, disponível em: https://goo.gl/ut9fA2. A Psicomotricidade se apropriou dos estudos de Jean Piaget de diferentes maneiras. Em relação ao jogo, verifica-se que, 4 Disponível em: <https://www.portaleducacao.com.br/conteudo/artigos/psicolo- gia/jean-piaget-biografia/53974#>. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 25 para Piaget (1978, p. 47), “O indivíduo, seja criança ou adul- to, revive no jogo a maioria das atividades pelas quais passou a espécie, em sua metódica evolução, durante milênios”. Piaget (1978) diz que o jogo infantil pode ser dividido em três tipos: o exercício, o símbolo e a regra, caracterizando dife- rentes períodos do desenvolvimento infantil. Devemos lembrar que o autor se refere à ocorrência de “jogos de construção”, nos períodos de transição entre as três etapas anteriormente citadas. Descrevendo o jogo de exercício, podemos afirmar que o mesmo tem início durante os primeiros anos de vida (período sensório-motor, entre 0-2 anos de idade) e não supõe qual- quer técnica particular. Acontece pelo “prazer funcional”; o movimento é realizado pelo simples prazer. Já o jogo simbólico teminício no período pré-operatório (entre 2 anos a 6/7 anos de idade) e é marcado pela possibi- lidade da criança simbolizar, ou seja, é capaz de reproduzir o esquema sensório-motor fora do seu contexto e na ausência do objeto habitual. A partir de 4 anos, a criança chega ao apogeu dos jogos simbólicos, e seus jogos começam a revelar 26 Ludicidade e Psicomotricidade uma aproximação com situações reais. Assim, o símbolo vai perdendo seu caráter lúdico, e o brincar passa a aproximar-se de uma simples representação imitativa da realidade. Chegando ao jogo com regras, verificamos que o mesmo inicia-se no período de operações concretas (entre os 6 ou 7 anos e vai até 11 ou 12 anos). É caracterizado pelo declínio do simbolismo, onde fica evidente o abandono do jogo ego- cêntrico para a realização de brincadeiras coletivas, nas quais se observa a aplicação efetiva de regras e a existência de espí- rito de cooperação entre os componentes do grupo. Sobre o estudo do jogo e o desenvolvimento afetivo do su- jeito psicomotor podemos sustentar esse conhecimento através do psicanalista Winnicott. Donald Woods Winnicott nasceu em 1896 em uma família rica de comerciantes em Plymouth, na Inglaterra. Ao entrar na faculdade de Medicina, foi convocado para servir como en- fermeiro na Primeira Guerra Mundial, na qual fez as primeiras observações sobre o comportamento humano em situações traumáticas. Trabalhou 40 anos no Hospital Infantil Padding- ton. Foi presidente da Sociedade Britânica de Psicanálise e morreu em Londres, em 1971. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 27 Donald Woods Winnicott (1896-1971). Fonte: Portal UOL Viver Mente, disponível em: https://goo.gl/EzqgVj. Para Winnicott (1979) as crianças têm prazer em todas as experiências de brincadeiras, sejam elas físicas ou emocionais. Algumas vezes, brincam para dominar angústias e controlar sentimentos que conduzem à angústia. No espaço do brincar, a criança comunica sentimentos, ideias, fantasias, estabele- cendo uma verdadeira relação entre a vida real e o imaginário. Perante seus estudos, podemos confirmar a importância que o brincar tem perante o desenvolvimento afetivo da criança e o papel do professor ao oportunizar atividades psicomotoras norteadas pela ludicidade. O autor ainda afirma: “A criança brinca para buscar prazer, para controlar ansiedade, para es- tabelecer contatos sociais, para realizar a integração da perso- nalidade, por fim para comunicar-se com as pessoas”. 28 Ludicidade e Psicomotricidade Seguindo para a análise do jogo no contexto das intera- ções sociais e culturais, buscamos sustentação em Vygostky. O psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934) morreu há mais de 70 anos. Sua obra ainda está em pleno processo de descoberta e debate em vários pontos do mundo, incluindo o Brasil. “Ele foi um pensador complexo e tocou em muitos pontos nevrálgicos da pedagogia contemporânea” diz Teresa Rego, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Lev Vygotsky (1896-1934). Fonte: Wikimedia Creative Commons, disponível em: https://goo.gl/aYBzGK. Vygostky (1998) fez um estudo sobre a relação que existe entre o brincar e o desenvolvimento infantil, principalmente na etapa da Educação Infantil. Para o autor, no brincar, a criança: Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 29  desenvolve sua capacidade cognitiva;  apropria-se do mundo real;  relaciona-se e integra sua cultura;  cria situações imaginárias importantes para seu desen- volvimento;  assume diferentes papéis sociais. Quando falamos em brincadeira que envolve o imaginá- rio, o faz-de-conta assume, para Vygotsky (1998), uma natu- reza de ordem social. Podemos dar como exemplo uma crian- ça que busca um chapéu de bombeiro e uma mangueira de brinquedo e sai pela sala “apagando fogo”. Essa brincadeira reproduz simbolicamente uma profissão que existe na cultura dessa criança. Se não houvesse essa profissão, ela não seria representada no ato de brincar infantil. Após realizarmos uma breve referência do lúdico a partir de diferentes teorias, seguimos nosso estudo no conhecimento das linhas metodológicas utilizadas nas aulas de Psicomotrici- dade. 1.3 Psicomotricidade Funcional ou Diretiva e Psicomotricidade Relacional ou Não Diretiva Os termos Psicomotricidade Funcional e Psicomotricidade Re- lacional dizem respeito a diferentes metodologias que foram desenvolvidas para trabalhar com o sujeito psicomotor. Vejamos o esquema que segue: 30 Ludicidade e Psicomotricidade Essas metodologias tiveram suas propostas iniciais na Fran- ça e foram adotadas no Brasil por profissionais que fizeram formação em cursos de especialização em Psicomotricidade. Cada linha tem seus próprios procedimentos de trabalho, sustentadas ou ancoradas em referenciais teóricos. As duas propostas tiveram aperfeiçoamento em suas intervenções me- todológicas em razão dos estudos e das pesquisas que foram realizadas ao longo dos tempos. Conforme afirma Negrine (1994), a psicomotricidade fun- cional tem suas bases no começo do século XX, na França, com Henri Wallon que investigava sobre a intervenção do mo- vimento humano no desenvolvimento psicológico da criança. Entendia o homem como um ser fragmentado, tendo suas ba- ses relacionadas a testes que pretendiam medir a capacidade motora e a inteligência do sujeito. Com os resultados desses testes, prescreviam-se famílias de exercícios com o intuito de suprir as possíveis deficiências. Durante a avaliação, descar- tavam-se aspectos sociais e emocionais. Essa versão da Psico- motricidade Funcional passou por muitas mudanças. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 31 Atualmente, acreditamos que a Pedagogia precisa se apro- priar dessas metodologias e aplicá-las em seus planejamentos. O aluno necessita de estimulação e, essas aulas favorecem o desenvolvimento das crianças, seja na Educação Infantil, seja nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. A Educação Psicomotora deve ser oportunizada aos alunos que estão nas primeiras fases do desenvolvimento, na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. O professor precisa potencializar diferentes propostas envolvendo o corpo que sente, pensa, se movimenta e que estabelece relações. Como estruturar uma aula de Psicomotricidade Funcional  Busque conhecimento sobre a construção das funções psicomotoras..  Relacione com os estudos de Piaget, Vygostky, Winni- cott entre outros teóricos.  O conhecimento vai se construindo aos poucos atra- vés das constantes reflexões que você precisa fazer acerca do envolvimento dos alunos nas aulas de Psi- comotricidade.  Observe e registre o que os alunos realizam, tanto in- dividualmente, quanto nos grupos. Como seu aluno caminha, salta, arremessa a bola entre outras práti- cas. Anote tudo para poder acompanhar o processo de desenvolvimento psicomotor. 1º 2º 3º 4º 32 Ludicidade e Psicomotricidade Observe o exemplo de uma aula de Psicomotricidade Fun- cional aplicada em uma turma de alunos da Educação Infantil. Fonte: Acervo da autora. Essa aula de Psicomotricidade Funcional foi planejada utili- zando “estações” do brincar para alunos de seis anos. A aula apresenta as seguintes partes. Parte inicial: os alunos ficam em fila no pátio. O professor explicará como a aula se desenvolverá e fará uma demonstra- ção inicial. Desenvolvimento da aula de Psicomotricidade: Estação (1): correr, pegar a bola e quicar a mesma três vezes no chão. Largar a bola no mesmo lugar e seguir para a corda. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 33 Estação (2): pular corda cinco vezes e seguir para o banco sueco. Estação (3): caminhar sobre o banco sueco e voltar para a fila, recomeçando o circuito. Após um tempo, a aula é encer- rada com volta à calma. Parte Final: os alunos deitam no chão da sala de aula, es- cutam uma música relaxante e fazem exercícios de respiraçãoaté ficarem calmos. Sobre os alunos que não conseguem realizar as atividades propostas no circuito, é muito importante que o professor sirva de ajuda ou que possibilite que um colega também ajude. Importante destacar: as crianças se desenvolvem de ma- neiras diferentes mesmo tendo a mesma idade. Isso acontece por vários motivos, sendo papel do professor incentivar o mo- vimento, o domínio corporal de diferentes maneiras. 34 Ludicidade e Psicomotricidade Resumindo a aula de Psicomotricidade Funcional Referencial Teórico Estrutura da aula Papel do Professor Antes de aplicar uma aula prática, você precisa se apropriar de alguns conteúdos. - Conceitos de funções Equilíbrio estático; Equilíbrio dinâmico; Coordenação motora global; Coordenação motora fina; Coordenação óculo-manual Percepção auditiva; Percepção visual; Recepção auditiva; Recepção visual; Orientação espacial; Esquema corporal; Sensibilidade tátil e Cinestésico-corporal. - Desenvolvimento do esquema corporal. - Desenvolvimento afetivo e relacional. - Desenvolvimento cognitivo. A aula de Psicomotricidade Funcional está organizada a partir de três momentos: - Parte Inicial: professor e alunos conversam sobre como será a aula. São reforçadas as regras de relações interpessoais. - Desenvolvimento da aula: momento em que o professor orienta cada atividade que será realizada pelos alunos. - Parte Final: volta à calma: momento em que o professor oportuniza atividades para os alunos relaxarem. O professor precisa ter a proposta da aula bem estruturada, através de: - um planejamento adequado que oportuniza diferentes vivências corporais aos seus alunos. - uma organização do espaço físico e dos recursos materiais que irá utilizar. - regras de convivência social que favoreçam as relações entre os alunos, as relações entre alunos e professor e os cuidados com os materiais e com o espaço. Como estruturar uma aula de Psicomotricidade Relacional Na psicomotricidade relacional, o lúdico é utilizado como elemento que ajuda a construção de várias aprendizagens. O Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 35 corpo é entendido como o principal instrumento nas aulas de Psicomotricidade Relacional. Objetivo da aula de Psicomotricidade Relacional: o princi- pal objetivo dessa proposta é de oportunizar experiências cor- porais que possibilitem à criança vivenciar seu mundo simbóli- co e expressar-se através da comunicação verbal. Ao contrário da metodologia funcional, a Psicomotricidade Relacional não é dirigida pelo professor. Como assim, aula não é dirigida pelo professor? Logo, estaremos respondendo a esse questionamento e ti- rando várias dúvidas sobre a estrutura e o funcionamento da aula de Psicomotricidade Relacional. - Vamos seguir os seguintes passos para podermos realizar uma aula de Psicomotricidade Relacional: 1º Buscar conhecimento que ajuda a compreender o jogo sim- bólico. 2º Estudar os temas vinculados à Psicologia Interacionista, Só- ciointeracionista e na Psicanálise. 3º Estudar sobre os jogos de exercício e a imitação. A aula de Psicomotricidade Relacional:  Pode ser realizada em espaços fechados (salas, ginásios, tatames), em espaços abetos (praças, campinhos) ou em espaço aquático (piscinas). 36 Ludicidade e Psicomotricidade  Os materiais disponibilizados para aula são organiza- dos pelo professor, sendo que esses materiais podem variar de aula para aula. Se for possível, tenha um es- pelho na sala para que a criança possa explorar sua imagem, interagir com os personagens que simboliza. É importante que tenha uma caixa de disfarces, perucas, óculos de sombra etc. Estrutura de uma aula de Psicomotricidade Relacional Ritual de Entrada - O(a) professor(a) e os alunos sentam em rodinha. Sempre o professor coordena a atividade (é o corpo de comando, de referência). Eles falam o nome, o que estão fazendo naquele espaço, que podem brincar do que desejarem brincar, mas que não podem se machucar, brigar com os colegas, estragar os brinquedos, nem dizer palavrões. Ao término dessas combinações, o(a) professor(a) diz: o jogo começou! Aula Propriamente dita - Este é o momento em que as crianças irão realizar diferentes trajetórias lúdicas, assumir personagens, arrumar parceiros simbólicos, entre tantas outras vivências corporais. Ritual de Saída - Quando o(a) professor(a) avisa que o jogo acabou, é chegado o momento dos alunos ajudarem a guardar os materiais, organizar a sala e formar a rodinha final. Nessa rodinha, o(a) professor(a) coordena a expressividade verbal ou simbólica (através de desenho, de uma representação com argila etc.). As crianças irão falar ou expressar o que fizeram, o que gostaram e/ ou o que não gostaram de fazer. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 37 Papel do(a) professor(a) na Psicomotricidade Relacional Cabe ao professor ao ministrar uma aula relacional:  utilizar diferentes linguagens: de estímulo; para descre- ver uma determinada situação; para dizer que a criança é capaz, que pode fazer muitas coisas; para dizer que é permitido jogar; para dizer que os acordos iniciais foram violados;  manter distância da brincadeira da criança, pois o jogo não é do(a) professor(a). Isso significa que é mui- to comum esses espaços lúdicos se misturarem se o(a) adulto(a) não cuidar;  o(a) professor(a) ficando atento(a) pode fazer interven- ções adequadas que poderão ajudar a observar a traje- tória lúdica que a criança realiza. PSICOMOTRICIDADE FUNCIONAL OU RELACIONAL? Este questionamento é muito importante no momento em que você for planejar sua aula de Psicomotricidade. Nesse sentido, podemos lhe orientar que: a. Só busque trabalhar com as metodologias após se apropriar dos conteúdos teóricos de nosso livro, na disciplina de Ludicidade e Psicomotricidade. b. Os conteúdos trabalhados em outras disciplinas, por exemplo, nas psicologias da aprendizagem, tam- 38 Ludicidade e Psicomotricidade bém auxiliam seu entendimento sobre o que observar nos(as) alunos(as) e como atuar nas aulas de Psicomo- tricidade. c. Independentemente da sua escolha, quanto à utiliza- ção da metodologia, é muito importante que acompa- nhe as trajetórias lúdicas corporais dos(as) alunos(as) e descubra como deverá intervir para potencializar o desenvolvimento de cada um(a). d. Lembre-se de registrar, em um diário, observações realizadas das crianças, pois ao término de um semes- tre terá a evolução do desenvolvimento psicomotor dos(as) alunos(as). e. O registro através de fotografias e/ou vídeos é bem- -vindo, pois pode lhe ajudar a rever determinadas ce- nas ou construir um portfólio a ser entregue para a criança e suas famílias. Recapitulando Ao encerrarmos este capítulo que teve por tema “Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade”, convido você a rever pontos fundamentais abordados em nosso estudo. Em primeiro lugar, saliento a importância da relação entre o lúdico e a psicomotricidade, uma vez que esses dois concei- tos e as respectivas abordagens indicam os aportes teóricos usados e, que irão resultar nas práticas em Psicomotricidade. Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 39 Um segundo ponto a ser retomado refere que, para o es- tudo da Psicomotricidade, brincadeira é coisa séria e está sus- tentada a partir de diferentes teóricos e tendências psicológi- cas. Teóricos como Piaget, Vygostky e Winnicott ajudaram na construção teórica da Psicomotricidade e, consequentemente, nas diferentes práticas pedagógicas psicomotoras. Para finalizar, chamo a atenção para as linhas metodo- lógicas funcional e relacional que precisam ser estudadas à luz de um referencial teórico antes de serem aplicadas nos(as) alunos(as). Referências KISHIMOTO, T. O jogo e a educação infantil. In: KISHIMOTO, T. M. (Org.). jogo, brinquedo, brincadeira e Educação. SP: Cortez, 1997. LUCKESI, Cipriano Carlos. Educação, ludicidade e prevençãodas neuroses futuras: uma proposta pedagógica a partir da Biossíntese. In: LUCKESI, Cipriano Carlos (Org.). Ludope- dagogia – Ensaios 1: Educação e Ludicidade. Salvador: Gepel, 2000. NEGRINE, Airton. Aprendizagem e desenvolvimento in- fantil: perspectivas psicopedagógicas. Porto Alegre: Prodil, 1994. OLIVEIRA, Z. M. Creches: Crianças, Faz de Conta & Cia. Pe- trópolis: Vozes, 1995. 40 Ludicidade e Psicomotricidade PIAGET, J. A Formação do Símbolo na Criança: imitação, jogo e sonho. Rio de Janeiro: Zanar, 1978. RONCA, P. A. C. A aula operatória e a construção do co- nhecimento. São Paulo: Edisplan, 1989. SANTIN, Silvino. Educação Física: da opressão do rendimen- to à alegria do lúdico. Porto Alegre: Edições EST/ESEF – UFRGS, 1994. VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 6. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1998. WINNICOTT, D. W. A Criança e seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ______. O Brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Imagem 1: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/alto-fa- lante-homem-menino-1459128/>. Imagem 2: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/scooby- -doo-scoob-scooby-c%C3%A3o-2063042/>. Imagem 3: Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/ Jean_Piaget>. Imagem 4: Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteu- do/1239/donald-winnicott-o-defensor-da-imaginacao>. Imagem 5: Disponível em: <https://novaescola.org.br/con- teudo/382/lev-vygotsky-o-teorico-do-ensino-como-pro- cesso-social>. https://en.wikipedia.org/wiki/Jean_Piaget https://en.wikipedia.org/wiki/Jean_Piaget https://novaescola.org.br/conteudo/1239/donald-winnicott-o-defensor-da-imaginacao https://novaescola.org.br/conteudo/1239/donald-winnicott-o-defensor-da-imaginacao https://novaescola.org.br/conteudo/382/lev-vygotsky-o-teorico-do-ensino-como-processo-social https://novaescola.org.br/conteudo/382/lev-vygotsky-o-teorico-do-ensino-como-processo-social https://novaescola.org.br/conteudo/382/lev-vygotsky-o-teorico-do-ensino-como-processo-social Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 41 Imagem 6: Disponível em: <https://pixabay.com/ p t / p o n t o - d e - e x c l a m a % C 3 % A 7 % C 3 % A 3 o - -aten%C3%A7%C3%A3o-1421014/>. Imagem 7: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/professo- ra-rato-de-biblioteca-%C3%B3culos-359311/>. Imagem 8: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/ crian%C3%A7as-graffiti-feliz-colorido-1581769/>. Imagem 9: Disponível em: <https://pixabay.com/pt/espanta- do-rob%C3%B4-smiley-surpreendido-1297429/>. Atividades 1) A Psicomotricidade Funcional está dividida em: a) ritual de entrada e ritual de saída; b) ritual de entrada e aula propriamente dita; c) parte inicial, desenvolvimento e parte final; d) parte inicial e aula propriamente dita; e) ritual de entrada e parte final. 2) O papel do professor na aula de Psicomotricidade Funcio- nal é: a) ser um parceiro simbólico; b) não dirigir a aula; https://pixabay.com/pt/ponto-de-exclama%C3%A7%C3%A3o-aten%C3%A7%C3%A3o-1421014/ https://pixabay.com/pt/ponto-de-exclama%C3%A7%C3%A3o-aten%C3%A7%C3%A3o-1421014/ https://pixabay.com/pt/ponto-de-exclama%C3%A7%C3%A3o-aten%C3%A7%C3%A3o-1421014/ https://pixabay.com/pt/professora-rato-de-biblioteca-%C3%B3culos-359311/ https://pixabay.com/pt/professora-rato-de-biblioteca-%C3%B3culos-359311/ https://pixabay.com/pt/crian%C3%A7as-graffiti-feliz-colorido-1581769/ https://pixabay.com/pt/crian%C3%A7as-graffiti-feliz-colorido-1581769/ https://pixabay.com/pt/espantado-rob%C3%B4-smiley-surpreendido-1297429/ https://pixabay.com/pt/espantado-rob%C3%B4-smiley-surpreendido-1297429/ 42 Ludicidade e Psicomotricidade c) oportunizar atividades que provocam o mundo simbó- lico; d) planejar a aula e dirigir a mesma; e) não orientar como os alunos devem realizar as ativida- des corporais. 3) O jogo que precisa ser potencializado (incentivado) nas aulas de Psicomotricidade Relacional é o jogo: a) simbólico; b) de imitação; c) de exercícios; d) sensório-motor; e) competitivo. 4) Ao término de uma aula de Psicomotricidade Relacional, os alunos precisam ser incentivados para: a) relaxar; b) dormir; c) continuar a brincadeira; d) verbalizar sobre o que fizeram, o que gostaram e o que não gostaram; e) planejar o próximo encontro. 5) Nas aulas de Psicomotricidade Relacional, o professor pre- cisa: Capítulo 2 Perspectivas Teóricas da Psicomotricidade 43 a) preparar as atividades e orientar os alunos sobre o que deverão fazer; b) disponibilizar uma caixa de disfarces e um espelho; c) oferecer atividades psicomotoras com muitos exercí- cios de repetição; d) trabalhar com jogos que envolvam a construção dos números; e) oferecer muitas atividades que auxiliem a leitura e a escrita. O Desenvolvimento Humano na Perspectiva Psicomotora1 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 1 Drª em Educação (UFRGS). Fisioterapeuta. Profª. Curso de Graduação em Fisio- terapia (ULBRA/Canoas-RS). Beatriz Junqueira Pereira Paim1 Capítulo 3 Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 45 Não é o homem que constitui o simbólico, é o simbóli- co que constitui o homem. Quando o homem entra no mundo, entra no simbólico que já está ali. E não pode ser homem se não entra no simbólico. (BARTHES, Roland apud LEVIN, 2001) Introdução A educação de uma criança inicia desde muito cedo, até mes- mo antes do nascimento, já no desejo dos pais em ter o filho, e quando este se torna real, começa a constituir-se o filhote humano, através dos laços afetivos iniciados na gestação e estabelecidos nas primeiras relações pais e bebê. Inicia, assim, a entrar em ação a constituição do sujeito psíquico, pois já há um corpo, aquele que os pais imaginam, existem desejos, palavras, um lugar, uma posição, um nome, ficando em jogo o futuro da criança. 1 Sistema nervoso e desenvolvimento psicomotor A evolução do sistema nervoso inicia na concepção, e o de- senvolvimento neuropsicomotor do bebê já é observado na vida intrauterina, aparecendo entre o quarto e o quinto mês de gestação, na etapa bulboespinhal, dos primeiros reflexos proprioceptivos no feto. É nessa etapa que os centros hipotalâ- 46 Ludicidade e Psicomotricidade micos começam a exercer suas funções de controle da vida ve- getativa, hormonal e dos afetos, detectando o que é prazeroso ou não prazeroso. Assim, começa a ser registrado em nível neuronal, as marcas que o ambiente ou as relações com ele deixam nos centros do comportamento. A relação da criança com o Outro e com o mundo, a forma como é acolhida, en- corajada ou reprimida, a relação emocional que se organiza entre os pais e a criança propiciam o aprendizado dos fenô- menos vividos e participam não somente no desenvolvimento neurofisiológico, mas também na constituição psíquica (ROT- TA, 2006). O sistema nervoso central do recém-nascido, do ponto de vista funcional, não está pronto, é imaturo. Esse sistema apre- senta vias chamadas ascendentes (aferentes) que, ao nasci- mento, algumas já estão mielinizadas, enquanto que outras completarão a mielinização após o nascimento. As vias as- cendentes levam informações sensitivas dos receptores sensiti- vos periféricos ao tronco encefálico, tálamo e córtex cerebral do bebê. Enquanto as vias descendentes (eferentes) carregam informações motoras do córtex cerebral para a medula espi- nhal e esta para os músculos, através dos nervos periféricos. As vias descendentes (eferentes) intensificam sua mielinização somente depois do nascimento e têm a função de controlar os músculos relacionados aos movimentos voluntários, que darão a possibilidade de resposta. Não há mielinização das áreas de associação, não conseguindo coordenar e integrar suas res- postas corporais (UMPHRED, 2010; KANDEL, 2003). Assim, os bebês dependem do ponto de vista biológico e subjetivo de outros humanos. Nesse contexto, é necessário estabelecer a diferença entre os processos de maturação e os de desen- Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 47 volvimentoda criança. Maturação se refere aos processos de crescimento que ocorrem devido a questões biológicas e neu- rofisiológicas do bebê. Estas são relativamente independentes do meio exterior, pois são específicas da espécie humana. De- senvolvimento se refere à interação dos processos de matura- ção e às influências ambientais que determinam as variações individuais do aparelho psíquico de cada sujeito. Os fatores de predisposição genética e os ambientais estão interligados de forma indissociável, formando uma unidade etiológica insepa- rável, conforme Zimerman (1999). Além do processo de ma- turação, denominado de mielinização (formação da bainha de mielina nos axônios dos neurônios), do sistema nervoso do bebê, ocorre a sinaptogênese, que também se inicia durante a vida pré-natal e continua no pós-natal. A sinaptogênese é o estabelecimento do contato funcional mediado quimicamente entre os neurônios. Esta aumenta sua intensidade durante a vida pós-natal, porém ocorre um rápido aumento da forma- ção de sinapses, nos dois primeiros anos de vida, sendo que durante estes é três vezes maior do que nas demais fases da vida (UMPHRED, 2010). Conforme Rohde e Halpern (2004), o processo neuroma- turacional do encéfalo tem uma progressão póstero-anterior, ou seja, primeiro a mielinização acontece na região visual, cuja maturação se inicia próximo do nascimento e se completa próximo aos dois anos de idade. E por último a mielinização ocorre nas áreas anteriores do encéfalo. Em função disso, do ponto de vista neuroevolutivo, é aceitável certo nível de “hi- peratividade pura”, em crianças, mesmo sem lesão encefálica até aproximadamente os 4 a 5 anos de idade, devido à região 48 Ludicidade e Psicomotricidade pré-frontal, onde está o “freio motor”, pois esta somente com- pleta seu ciclo mielinogenético nessa faixa etária. Para a organização do sistema nervoso, é necessário um programa genético e fatores epigenéticos (não genéticos, os ambientais) adequados. Os fatores genéticos oferecem possi- bilidades importantes para o desenvolvimento normal, ou não, do sistema nervoso, pois podem ocorrer alterações que culmi- nem em diferentes malformações neuro-anatomo-funcionais. Os fatores epigenéticos influenciam consideravelmente a ex- pressão desse programa. As relações entre estes dois fatores formam a base das diferenças individuais, (LIMA, 2004). 2 Constituição subjetiva e desenvolvimento Psicomotor O bebê humano nasce incompleto, com um potencial em de- senvolvimento e uma plasticidade que vai se organizando e re- organizando frente aos desafios que são lançados pelo Outro. Essas primeiras experiências vão deixando suas marcas, seus traços mnêmicos, imprimindo os signos daquilo que, percebi- do, impactou como prazer ou desprazer. Esse potencial bioló- gico, no qual nasce o bebê humano, é pulsionado pelo desejo do Outro, através da linguagem, do olhar, gestos, palavras e toque propriamente dito. O Outro materno lê e inscreve no corpo do filho os significantes, engatando diversos sentidos, possibilitando o código da cultura, pois estabelece traços e marcas fundantes para constituição do sujeito, humanizando- -o, (CORIAT, 1997; LACAN, 1999). Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 49 Para Lacan (1999), é a partir do Outro que o sujeito nasce. Ainda que o desejo seja a condição de onde se origina toda a escritura fundante, o que resulta inscrito é a marca, que deixa a experiência tal como a mesma é registrada pelo bebê. O Outro arma as condições, porém o registro é por conta da criança e suas possibilidades (CORIAT, 1998). O conceito de função materna foi valorizado na obra de Donald Winnicott, pediatra e psicanalista, britânico. Ele estu- dou e observou as ações que as mães realizavam com seus bebês e chamou de Holding quando a função materna rea- lizava a rotina do cuidado do bebê dia e noite, envolvendo a sustentação, manipulação e manutenção das necessidades do bebê, tais como: alimentação, higiene, vestuário. O Hol- ding significa não apenas o segurar físico do bebê, mas uma forma de amar, tendo relação com a capacidade da mãe de identificar-se com seu bebê, sendo a forma da mãe demons- trar ao lactente seu amor. Winnicott priorizou o papel da mãe especialmente na função de “suficientemente boa” para pos- sibilitar ao bebê a conquista de uma gradativa independência (WINNICOTT, 1999). Para Winnicott (2001), o desenvolvimento é herança de um processo de maturação e de experiências acumuladas e somente pode ocorrer em ambiente propiciador. O bebê, ao nascimento, tem um grande potencial, pois apresenta: audi- ção, gustação, olfação, possibilidades táteis e visuais, mas o bebê não diferencia o seu corpo do mundo exterior, pois o ego ainda não se constituiu. O nascimento fisiológico da crian- ça não coincide com o nascimento do sujeito psíquico. Este se constituirá nos primeiros anos de vida a partir do desejo 50 Ludicidade e Psicomotricidade do Outro materno, que organizará suas respostas exercendo a função materna (geralmente exercida pela mãe). Winnicott (1982 p. 99) diz: “um bebê não pode existir sozinho”. A infân- cia é um período de constituição do ego, sendo que o id clama por atenção e refere Winnicott (1983 p. 41): “normalmente o id se torna aliado, a serviço do ego. E o ego controla o id de modo que as satisfações do id fortalecem o ego”. Segundo esse autor, o surgimento do ego inclui inicialmente uma quase absoluta dependência do ego auxiliar da função materna e da redução gradativa e cuidadosa da mesma visando adaptação (WINNICOTT, 1983). A intensa organização biológica que ocorre na infância coincide com a fase de constituição subjetiva do ser huma- no. A função materna oportuniza ao bebê as primeiras noções de imagem corporal. No Holding, a função materna não so- mente cuida, mas simultaneamente libidiniza o filho, fazendo o mapeamento do corpo, a demarcação das zonas erógenas que são marcadas pelo olhar, pelas palavras e toque; assim, o corpo do bebê vai sendo investido de desejo para que este se constitua como sujeito psíquico, portanto inscrito pela função materna. A função materna é interpretativa, busca significa- dos, sentidos para o olhar, gestos e sons de seu filho. Assim, do ponto de vista neurofisiológico é assegurado o máximo de conexões neuronais, que serão fundamentais para o futuro do desenvolvimento motor e subjetivo da criança (WINNICOTT, 1983). Antes mesmo do nascimento de um bebê, já existe um sujeito em jogo, ou melhor dito, começa a ficar em jogo a constituição subjetiva de uma criança, pois já há um corpo, aquele que os pais imaginam, existem desejos, palavras, há um nome, um lugar, uma posição. Logo após o nascimento, Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 51 os bebês começam de forma singular a se adaptar à nova experiência de estar no mundo, sendo que cada bebê é úni- co com seu próprio ritmo e estilo de resposta (WINNICOTT, 1983; LEVIN, 2001). O bebê humano, esboço inicial de homem, nasce em um estado de “desamparo” fisiológico no sentido de vir-a-ser al- guém, referido por Freud, mas em condições orgânicas para funcionar no campo da linguagem, entretanto essa não é pré- -estabelecida, porém pode ser influenciada por fatores heredi- tários. Este “desamparo” é falado por Lacan (1998) como uma verdadeira prematuração específica do nascimento do filhote humano; devido a isso, as funções parentais para compensar os limites do real “emprestam” os seus desejos para recobrir as insuficiências do bebê. Freud (1920) refere o recém-nascido como um organismo psiquicamente indiferenciado, nascido com um equipamento inato, hereditário, constitucional e apresentando certas ten- dências. Freud (1920) denomina “princípio de prazer” o prin- cípio que rege o funcionamento psíquico com a finalidade de evitar o desprazer e buscar o prazer. E o “princípio de realida- de” rege o funcionamento psíquico e corrige as consequências do princípio do prazer,devido às condições do mundo externo. O “princípio de realidade” é regulador da busca do prazer. O princípio de prazer e o de realidade regem a vida psíquica e interagem ao longo de toda a vida do sujeito. Segundo Freud (1923), o id, instância psíquica inconscien- te, reservatório de energia psíquica, atemporal, regido pelo “princípio de prazer”, representa o palco onde se defrontam as 52 Ludicidade e Psicomotricidade pulsões de vida e de morte. O bebê, para Freud, é puramente id e à medida que se desenvolve é educado pelas funções parentais. Estes vão estabelecendo o “princípio de realidade”, assim a criança percebe que existem limites e convenções que impedem a realização de seus desejos. Freud (1923 p. 40) diz: “o ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é ele próprio, a projeção de uma superfície”. E afirma: “o ego emerge do id, e no início da vida, o id reina sozinho”, sendo que, ao nascer, não existe ego. Para Freud (1923), o ego é a sede da consciência, mas também lugar de manifestações inconscientes. Este considera o ego uma diferenciação do id por influências do meio exterior. Assim, o mundo exterior, composto pelas funções parentais, o social e a cultura impõe à criança proibições que provocam o recalcamento e a transformação das pulsões. Ao longo da infância e da adolescência, forma-se a ins- tância psíquica denominada por Freud de superego, cuja fun- ção é julgar e criticar o ego. O superego inibe nossos atos, provoca remorsos, estando relacionado à moral. É também o responsável pelo sentimento de culpa, tanto em nível cons- ciente, quando pensamos que agimos de forma errada, quan- to inconsciente, pois neste último não identificamos a razão da culpa, (LAPLANCHE; PONTALIS, 1992; FREUD, 1923). O superego se manifesta inicialmente do exterior, sendo o papel interditor dessa instância representada pelas funções paren- tais. A criança pequena não apresenta inibições internas, obe- dece a seus impulsos, pretendendo somente prazer. Renunciar Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 53 a essas satisfações pulsionais será a consequência da angústia produzida pelas funções parentais, assim renuncia às satisfa- ções para não perder o amor dos pais, (CHEMAMA, 1995). Freud (1923) define o superego como herdeiro do complexo de Édipo, sendo constituído pela interiorização das exigências e interdições parentais. A criança, renunciando à satisfação dos seus desejos edipianos marcados de interdição, transfor- ma o seu investimento em identificação com os pais, interiori- zando a interdição. Para Freud (1923), o id é a instância psíquica sede das pulsões (“TRIEB”). Freud (1905) manifestou sua concepção de pulsão como um conceito limite entre o somático e o psíquico, portanto uma fonte de excitações que estimulam o organismo, a partir de necessidades vitais interiores e a dirige para execu- tar a descarga dessa excitação para um determinado alvo. O bebê é governado pela energia pulsional em busca de prazer e encontra este diante do atendimento materno quando suas necessidades são supridas. Zimermann (1999) refere que a natureza dessa força energética só pode ser conhecida por meio de seus representantes psíquicos. Assim, transformando o somático em psíquico, com as respectivas sensações das ex- periências emocionais primitivas, o bebê vai construindo o seu universo interno de representações. Freud (1915), em as Pulsões e suas Vicissitudes, caracteriza o objeto como elemento mediante o qual a pulsão atinge seu alvo, ou seja, a satisfação, referindo que a pulsão é o repre- sentante psíquico dos estímulos que provém do interior do cor- po e alcançam a psique, como uma medida da exigência de trabalho imposta ao psíquico em consequência de sua relação 54 Ludicidade e Psicomotricidade com o corpo. Freud, com essa concepção de pulsão, ligou-a com a necessidade de sobrevivência e a partir daí caracterizou o desejo como um impulso que visa repetir experiências nas quais já tenha previamente acontecido a satisfação de uma necessidade. No nascimento, o bebê é regido pela energia pulsional em busca de prazer e encontra reposta para suas necessida- des quando o Outro materno exerce a função materna. Freud (1920), em Além do Princípio de Prazer, refere sobre a ten- dência natural do psiquismo em manter um nível de excitação suportável. Quando a função materna estabelece os cuidados em relação ao bebê, este se gratifica através das pulsões par- ciais determinadas por áreas do corpo em que a erotização é mais intensa. Nesse período do desenvolvimento psicomotor, o discurso das funções parentais se apresenta com muitas ex- pectativas, instituindo um lugar para esse filho na família. Os filhos reeditam a história do desenvolvimento dos próprios pais e Freud (1914 p. 107) revela: “se prestarmos atenção à atitude dos pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivência e reprodução de seu próprio narci- sismo, que a muito abandonaram”. O Complexo de Édipo não se encontra organizado em um único texto na obra de Freud, pois foi sendo construído, e as noções foram acrescentadas aos poucos à medida que avan- çava em suas pesquisas. Freud, ao ler o mito de Édipo-rei, uma tragédia escrita por Sófocles, fez algumas relações do drama com os desejos infantis inconscientes. O Complexo de Édipo “é o conjunto de investimentos amorosos e hostis que a criança faz sobre os pais, durante a fase fálica. Processo que Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 55 deve conduzir ao desaparecimento desses investimentos e sua substituição por identificações”, conforme Chemama (1995 p. 55). O complexo de Édipo é visível entre os 3 e 5 anos de idade. A organização subjetiva da criança para Lacan (1998) ini- cia no chamado “Estádio do Espelho”, entre os seis e dezoito meses, período que coincide com a imaturidade do sistema nervoso. Antes dos seis meses a criança se vê como fragmenta- da, não fazendo nenhuma diferença entre ela, o corpo de sua mãe e o mundo exterior. O “Estádio do Espelho” foi elaborado por Lacan com a finalidade de explicar o primeiro esboço do eu, que se constitui como eu ideal. Este é uma identificação, isto é a transformação produzida em um sujeito quando ele assume uma imagem, imagem com efeito formador. A partir dos seis meses, a criança começa a conquistar a totalidade de seu corpo através do espelho representado por sua mãe. Nessa fase, a criança se percebe como o desejo da mãe e se identifica como uma extensão do desejo materno, que lhe anuncia as possibilidades de conforto, sobrevivência e com- pletude (LACAN, 1998). Dos doze aos dezoito meses, a criança percebe o pai como a presença da lei que “interdita” a relação com a mãe, for- malizando o ingresso do terceiro na relação. Ao reconhecer a presença paterna que realiza a interdição, ocorre o regis- tro simbólico. Esse estádio progride até a dimensão simbólica com a aquisição da linguagem verbal. O corpo fragmentado se unifica, pois essa unificação só é possível na presença de um Outro, da função materna que o reconheça como Um. Assim, a criança se vê, porque o olhar do Outro a sustenta. O 56 Ludicidade e Psicomotricidade olhar e a voz da mãe, isto é, o desejo da mãe vai configurar essa identificação: “és tu”. Então, reconhece a si mesma e é reconhecida. Esse momento é chamado por Lacan de “Jubi- lação”. A especularidade desperta o interesse, o reconheci- mento para que o próprio eu comece a se instalar. Ocorre a transformação de um corpo partido, em um inteiro e a criança vai se expondo ao mundo, demonstrando o reconhecimento de si. Esse é um fator estruturante da constituição psíquica do sujeito (LACAN, 1998). O sujeito humano se constitui na relação desejante com o Outro, pois este começa a introduzir o bebê no mundo sim- bólico, como nos refere Lacan (1999) no primeiro tempo do Édipo: ser ou não ser o falo. A criança buscasatisfazer o de- sejo da mãe, assim ela introduz a sua demanda. Esse tempo remete às primeiras experiências do recém-nascido e é preciso que a criança ocupe o lugar de falo, isto é, o lugar de objeto de desejo da mãe, com a finalidade de ser introduzida no uni- verso simbólico, no campo do Outro, na lei (Nome-do-Pai). Isso é o que Lacan nomeia de processo de humanização do ser falante que tem como agente a mãe no registro simbólico (Desejo-da-Mãe). Então, menina ou menino, ela quer ser o falo, para captar o desejo de sua mãe. Nesse tempo, a relação da criança não é com a mãe, mas com o desejo da mãe: é um desejo de desejo. A criança se identifica especularmente com aquilo que é objeto de desejo de sua mãe. É necessário e suficiente ser o falo. A primeira experiência de amor marcada pela fantasia de que se é o falo, estrutura, modela e organiza todos os conflitos a serem vividos nos próximos tempos; nesse tempo, o bebê se identifica especularmente com o objeto de desejo de sua mãe, conforme Lacan, (1999). O “Estádio do Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 57 Espelho” ordena-se a partir dessa experiência de identificação fundamental, durante a qual a criança conquista a imagem de seu próprio corpo. A identificação primordial com essa ima- gem irá promover a estruturação do “Eu” (DOR, 1991). A passagem do primeiro tempo para o segundo tempo do Édipo é marcada pela introdução de um elemento na tríade criança, mãe e falo: o pai. E Lacan (1999 p. 198) diz: “o pai intervém efetivamente como privador da mãe, o que significa que a demanda endereçada ao Outro, caso transmitida como convém, será encaminhada a um tribunal superior”. Nesse tempo do Édipo, ter ou não ter o falo; a proibição do incesto deve desalojar a criança da posição ideal de falo materno, e essa proibição é feita pelo pai simbólico, isto é, pela lei, cuja mediação deve ser assegurada pelo discurso da mãe. Então, no plano imaginário, o pai intervém como privador da mãe e, assim, o papel a ser exercido pelo pai é de interditar a mãe, nesse jogo com o falo que se passa em nível imaginário. Essa função de proibição situa o pai no registro real, o que faz com que ele seja aprendido pela criança ao nível imaginário como uma figura terrível e tirânica, o pai como agente da castra- ção. Nesse segundo tempo do processo edípico, a criança é confrontada com a castração, que implica a necessidade de “ter” aquilo que preenche o desejo da mãe e, assim, ingressa na simbolização da lei, que mais tarde permitirá o declínio do complexo. Esse momento é crucial para a criança, pois é só assumindo a castração que se torna possível aspirar a “ter o falo”, isto é, transmitir a lei, para Lacan. Para a psicanálise, a paternidade se trata de uma função simbólica e não real; e é fundamental que a mãe reconheça que está submetida à lei do 58 Ludicidade e Psicomotricidade pai, sendo que Lacan (1999) refere que a função do pai só se realiza se for mediada pela palavra da mãe. No terceiro tempo, intervém o pai real, aquele que tem o falo (mais exatamente aquele que para a criança é suposto tê- -lo). Nesse tempo, onde a criança renuncia à sua condição de “ser” para ingressar na dialética que lhe permitirá “ter”, entra no jogo da identificação: o menino com o pai e a menina com a mãe (assume o “não ter”). Para Lacan, esse processo é estruturante: o ingresso no mundo significante, portanto na constituição do discurso do Inconsciente. A importância da função paterna, segundo Joël Dor, cons- titui o epicentro crucial na estruturação psíquica do sujeito. E diz: o pai simbólico é, antes de mais nada, a referência à lei da proibição do incesto, a qual é, portanto, preva- lente sobre todas as regras concretas que legalizam as relações e trocas entre os sujeitos de uma mesma co- munidade. Em consequência, é porque o pai simbólico é apenas o depositário legal de uma lei que lhe vem de outro lugar, que nenhum pai real pode se vangloriar de ser seu detentor ou fundador. Mas, em compensação, recai sobre ele o ter que se fazer valer de ser seu repre- sentante. (DOR, 1991, p. 16) A função paterna, normalmente exercida pelo pai, produz um corte na relação mãe-filho pela inserção da lei, estabele- cendo limites, possibilitando a circulação de lugares dentro da estrutura familiar e constituindo uma dimensão triangular. Desse modo, mãe e filho tomam uma distância e compreen- Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 59 dem que são seres independentes, que um não basta para preencher o outro, porque possuem necessidades diferentes; é então que aparece a falta. Com o surgimento da falta, eles buscam outros meios de suprir suas necessidades, possibili- tando a realização de trocas e a circulação do conhecimento (LACAN, 1999). This (1987 p. 194) diz: “pai”, essa palavra o representa, o evoca, o chama. Não há pai senão com a palavra, a partir das palavras. Sem palavra, haveria genitores, grandes machos copuladores, mas ninguém poderia dizer-se “pai”, “filho” ou “filha”. A paternidade está, pois, essencialmente ligada ao fato de falar: é a palavra que nos constitui e nos situa como “pai”, “filho” ou “filha”. Lacan (1999 p. 174) diz: “o pai intervém em diversos pla- nos, antes de tudo, interdita a mãe. Esse é o fundamento, o princípio do complexo de Édipo, é aí que o pai se liga à lei pri- mordial da proibição do incesto. É o pai que fica encarregado de representar essa proibição”. Recapitulando O bebê humano nasce incompleto, com um potencial em de- senvolvimento e uma plasticidade que vai se organizando e re- organizando frente aos desafios que são lançados pelo Outro. Essas primeiras experiências vão deixando suas marcas, seus traços mnêmicos, imprimindo os signos daquilo que, percebi- do, impactou como prazer ou desprazer. Esse potencial bioló- 60 Ludicidade e Psicomotricidade gico no qual nasce o bebê humano é pulsionado pelo desejo do Outro, através da linguagem, do olhar, gestos, palavras e toque propriamente dito. O Outro materno lê e inscreve no corpo do filho os significantes, engatando diversos sentidos, possibilitando o código da cultura, pois estabelece traços e marcas fundantes para constituição do sujeito, humanizando- -o, (CORIAT, 1997; LACAN, 1999). A função paterna, normal- mente exercida pelo pai, produz um corte na relação mãe-filho pela inserção da lei, estabelecendo limites, possibilitando a circulação de lugares dentro da estrutura familiar e constituin- do uma dimensão triangular. Desse modo, mãe e filho tomam uma distância e compreendem que são seres independentes, que um não basta para preencher o outro, porque possuem necessidades diferentes; é então que aparece a falta. Com o surgimento da falta, eles buscam outros meios de suprir suas necessidades, possibilitando a realização de trocas e a circula- ção do conhecimento (LACAN, 1999). Referências CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Larousse. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. CORIAT, Elsa. Psicanálise e Clínica de Bebês. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997. DOR, Joël. O Pai e sua Função em Psicanálise. Porto Ale- gre: Artes Médicas, 1991. Capítulo 3 O Desenvolvimento Humano na Perspectiva... 61 FREUD, Sigmund. Obras Completas. Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. (1905) Volume VII. Rio de janeiro: Imago, 1974. FREUD, Sigmund. Obras Completas. Gradiva de Jensen e Outros Trabalhos. (1908) Volume IX. Rio de janeiro: Ima- go, 1974. FREUD, Sigmund. Obras Completas. Uma Introdução ao Narcisismo. (1914). Volume XIV. Rio de janeiro: Imago, 1974. FREUD, Sigmund. Obras Psicológicas. Escritos sobre a Psico- logia do Inconsciente. (1915). Volume I. Rio de janeiro: Imago, 2004. FREUD, Sigmund. Obras Completas. Além do Princípio de Prazer. (1920). Volume XVIII. Rio de janeiro: Imago, 1974. FREUD, Sigmund. Obras Completas. O Ego e o Id. (1923). Volume XIX. Rio de janeiro: Imago, 1974. FREUD, Sigmund. Obras Completas. A Dissolução do Com- plexo
Compartilhar