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SOB CONDIÇÕES DIGITAIS - DELÍRIO DO PODER - MARCIA TIBURI

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Sob condições digitais
Sob condições digitais, nossos afetos, nossos sentidos, nossas percepções são outros. A linguagem humana se transforma em função da mudança das condições. É porque a linguagem é matéria de nossa reinvenção que mudam os nossos valores, as nossas idéias, muda inclusive a própria ideia de verdade. A própria noção do real, ou da realidade como aquilo que afirmamos sobre o “real”, se modifica. Há algo de irreal com o qual aprendemos a conviver nas condições digitais da vida. Há também algo de falso na nova vida. Mas uma falsidade consentida, aceita, promovida e autorizada. Enquanto alguns se escandalizam, outros convivem com facilidade com as mentiras, à medida que elas deixam de ser exceção e se tornam regra. Podemos dizer que nosso tempo prefere a mentira, prefere as chamadas fake News, que sempre existiram com outros nomes em épocas diferentes, mas não de um modo tão potencializado. É evidente que sempre houve mentiras e boatos, fofocas e maledicências, e que as crenças inquestionáveis sempre tiveram defensores particulares, mas também instituições que delas se valeram. Mas em nossa era digital a difusão, que faz parte das potências dos meios, não depende mais de uma carta que demoraria tempos a chegar ao seu destino. Hoje somos um número muito maior de pessoas do que no passado e temos meios muito rápidos de difusão de mensagens.
Contudo, não somos donos dos meios de produção da linguagem. E aquela pessoa que pode se pronunciar nas redes sociais é apenas mais uma caixa de som, mais um megafone ligado, repetindo o que os donos dos meios de produção do pensamento decidem muito antes de essa pessoa vir a falar. Batizei esse fenômeno há tempos com o nome de “ventriloquacidade”. Há uma produção de pensamentos na forma de clichês, de mentiras escancaradas e de falsidades que se apresentam como aceitáveis, que são repetidas e repetidas como um jogo compulsivo, que traz compensações emocionais e afetivas, muitas vezes as mais perturbadas, que são produzidas sem critério algum, por pessoas que, na maioria das vezes, não tem condições de perceber a falsidade e a falta de originalidade de seus próprios dizeres.
Um fenômeno curioso é que as massas são constituídas de pessoas que já não se importam em ser quem são. Mas essa desimportância vem revestida de uma altíssima vontade de ser importante, o que aparece na prepotência e na concordância com qualquer ideia geral exposta nas redes que garanta essa prepotência. O xingamento tem garantido isso para quem tem as ideias muito curtas.
Estou me estendendo ao falar da vida digital. É que talvez não seja mais possível falar de nada sem levar esse novo Lastro no qual estabelecemos nossas existências em conta. O todo da vida, a ética e a política se modificaram em função da internet. E a internet é o novo veículo de difusão inclusive das ideias delirantes. Temos que levar em conta as condições digitais da existência para pensar no todo da experiência humana daqui para a frente. A internet define muito do que vivemos, mas também a relação que estabelecemos hoje com a morte. E por isso também devemos nos ocupar em entender as mudanças da morte diante das condições digitais da vida. Evidentemente, refiro-me a vida aqui em um sentido genérico e político, e não apenas biológico.
Redes digitais são meios de comunicação - ora não violenta, ora violenta - como quaisquer outros, pois a violência está na potencialidade da linguagem. Mas as redes são também grandes mapas, são painéis de exposição, são telas de conhecimentos no sentido de próteses, onde se pode ver o que está em jogo, ora mentira, ora a verdade. Mas a verdade mesma já não é o maior valor de nossa época. Ela cedeu lugar ao valor da exposição, ele sim, o valor de todos os valores dos novos tempos.
Além disso, é visível como a internet e as redes sociais são também necrológios, museus de memórias, inclusive dos mortos. A própria morte não é mais a mesma nas condições dadas pela internet. 
Capítulo Sob Condições Digitais do livro DELÍRIO DO PODER de Márcia Tiburi (págs.145-146)

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