Prévia do material em texto
595 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 DEBATE DEBATE O conceito de espaço em epidemiologia: uma interpretação histórica e epistemológica The co ncept o f space in epidemio lo g y: a histo rical and epistemo lo g ical interpre tatio n 1 Dep artam en to de Ep idem iologia e Métodos Qu an titat ivos em Saú de, Escola Nacion al de Saú de Pú blica, Fu n dação Osw aldo Cru z . Ru a Leop oldo Bu lh ões 1480, 8o an dar, Rio de Jan eiro, RJ 21041-210, Brasil. d in a@en sp.fiocru z .br adriana.ribeiro@m ailbr.com .br Din a Czeresn ia 1 Adrian a Maria Ribeiro 1 Abstract Th is stu dy provides an in terpretation of th e con cep t of space in ep idem iology. Th e au - th ors h igh ligh t th at th e ep istem ological orien tat ion of th e space con cep t in ep idem iology is th e th eory of d isease, em p h asiz in g th e im p ortan ce of th e con cep t of sp ecific et iologic agen ts an d th eir tran sm ission as th e cen tral stru ctu re for grasp in g th e relat ion sh ip betw een sp ace an d th e bod y. Ch aracterizat ion of th e sp ace for circu lat ion of et iologic agen ts w as th e ep istem ological base sh ap in g th e u se of variou s th eoret ica l d evelop m en ts in geograp h y, a llow in g for th e con - stru ction of d ifferen t exp lan atory w atersh eds in th e con cep t of space. Th e article specifically an - alyzes th e Lat in Am erican w atersh ed , rev iew in g th e m ain au th ors orien t in g th ese stu d ies, lik e Pavlovsk y, M ax Sorre, an d Sam u el Pessoa. Th e au th ors h igh ligh t Milton San tos’ th in k in g as a fu n dam en tal referen ce in recen t research on th e social organ izat ion of sp ace an d d isease em er- gen ce or p revalen ce. Th e au th ors also approach con tem porary ch an ges in th e u n derstan d in g of space as th ey are reflected in ep idem iological stu d ies. Key words Medical Geograph y; Geograph ical Space; Spatial An alysis; Ep idem iology Resumo Este trabalh o ap resen ta u m a in terp retação a resp eito da u t ilização do con ceito de es- paço em ep idem iologia. Destaca qu e o qu e orien ta ep istem ologicam en te a con cepção do espaço em ep idem iologia é a teoria da doen ça, assin alan do a im p ortân cia do con ceito de tran sm issão d e agen tes esp ecíficos com o estru tu ra n u clear d a ap reen são d a relação en tre esp aço e corp o. A caracterização do espaço de circu lação de agen tes et iológicos das doen ças foi a base ep istem oló- gica qu e con figu rou a u tilização de su cessivos desen volvim en tos teóricos da geografia, possibili- tan do a con stru ção das d iferen tes verten tes exp licat ivas do con ceito de espaço. O art igo an alisa esp ecificam en te a p rodu ção da verten te lat in o-am erican a, revisan do os p rin cip ais au tores qu e orien tam esses estu d os, com o Pavlovsk y, Max Sorre e Sam u el Pessoa. Ressalta o p en sam en to d e Milton San tos com o referên cia fu n dam en tal das pesqu isas m ais recen tes acerca da organ ização social d o esp aço e em ergên cia ou p revalên cia d e d oen ças. Abord a, ain d a, tran sform ações con - tem porân eas n a apreen são do espaço e seu s reflexos n os estu dos ep idem iológicos. Palavras-chave Geografia Médica; Espaço Geográfico; An álise Espacial; Ep idem iologia Introdução Este t rab a lh o ap resen ta u m a in terp re tação a resp eito d a u t ilização d o con ceito d e esp aço em ep id em io logia . Revisa esp ecificam en te a p rodução da verten te que en fatiza o estudo das relações en tre espaço e doen ça n a Am érica La- t in a , an a lisan d o as p rin cip a is referên cias qu e orien tam esses estudos. Espaço é um con ceito básico em ep idem io- logia. Os estudos ep idem iológicos trad icion ais abordam a categoria “lugar”, que, d iferen ciado das características “tem po” e “pessoas”, con sti- tu i um dos seus p rin cipais elem en tos de an áli- se. Recon h ecem qu e o estu d o d a d istr ib u ição geográfica d a en ferm id ad e é im p ortan te p ara a “form u lação d e h ip óteses et iológicas, a lém d e ser ú t il p ara p rop ósitos ad m in ist ra t ivos” (MacMah on & Pu gh , 1978). O esp aço é com - p reen d id o, sep arad o d o tem p o e d as p essoas, com o o lugar geográfico que p red ispõe a ocor- rên cia de doen ças. No con texto da clássica tría- de ecológica de Leavell & Clarck (1976), o m eio é percebido com o um recip ien te que facilita ou n ão o con tato en tre pessoas, ou hospedeiros, e agen tes etiológicos. Con tu d o, o esp aço n ão é , a priori, cin d id o do tem po e das pessoas. O lugar pode ser com - p reen d ido com o top os em que se dá um acon - tecim en to. Nessa perspectiva, o espaço con sti- tu i-se e d ist in gu e-se d os corp os n o m om en to d a vivên cia con cre ta d os fen ôm en os, a t ravés de u m a in terface qu e se con figu ra n o decorrer da p róp ria experiên cia. O vín cu lo en tre corpo e espaço n ão se ap re- sen ta claram en te, pois o p rocesso de em ergên - cia das ciên cias foi tam bém o de fragm en tação d o m od o d e p en sa r o h om em e as su as re la - ções. No con texto da elaboração dos con ceitos cien tíficos, o espaço foi con cebido, segun do os m ais d iferen tes pon tos de vista , com o algo an - terior, que existe in depen den te da con stitu ição d os seres q u e o h ab itam . A com p reen são d o corpo separado e situado em um espaço e tem - p o con ceb id os com o p reviam en te existen tes, con st ru iu rep resen tações q u e cin d iram o e lo en tre corpo e suas circun stân cias. A ep idem iologia defin e-se com o estu do da d istribu ição e dos determ in an tes das doen ças em p op u lações h u m an as. Con sid eran d o-se que a doen ça ocorre em um a in terface em que corp o e esp aço con stituem -se e d istin guem -se n o decorrer da p rópria experiên cia, pode-se d i- zer que o pen sam en to cien tífico cin diu o elo da in terface em qu e ocorre a d oen ça . A d oen ça é p en sada ten do com o referên cia n ão o corp o e o esp aço con cretos, m as as d istin tas rep resen - tações d e corp o e esp aço q u e, a t ravés d e lin - CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.596 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 gu agen s est ran h as, en tre si fragm en ta ram o hom em e as suas relações. O pon to de vista cen tral deste trabalho é que o n úcleo ep istem ológico que orien ta a ap reen - são d o esp aço em ep id em iologia é a teoria d a d oen ça . Os e lem en tos d o esp aço q u e são in - corporados n a exp licação ep idem iológica in te- gram -se aos que exp licam com o a doença ocor- re n o corpo. A ep idem iologia estru tu rou -se com o d isci- p lin a cien tífica m ed ian te o con ceito d e tran s- m issão de agen tes esp ecíficos de doen ças, de- fin in do a exp licação da p rop agação das ep ide- m ias a través d e u m a d eterm in ad a com p reen - são d a re lação en tre corp o e m eio. O term o tran sm issão refere-se à con cep ção d e corp o en qu an to organ ism o, con ceito b iológico defi- n ido n o sécu lo XIX com o un idade m orfológica com p osta d e p a r tes q u e rea lizam , d e fo rm a coorden ada, d iferen tes fun ções. A com p reen são d o ser vivo com o art icu la- ção en tre estru tu ra , fu n ção e m eio estru tu rou , n a ép oca , u m a n ova rep resen tação d os seres vivos no espaço (Jacob, 1983). O espaço in tern o ao corp o corresp on d eu a estru tu ras an a tôm i- cas e funções fisiológicas, e o espaço externo ao corpo, aos elem en tos que con stituem o p róprio corp o (Fou cau lt , 1995). O m eio fo i con ceb id o com o os flu idos, o ar ou a água em que o orga- n ism o está im erso, con st itu íd o d e con d ições d e ca lo r, lu z, u m id ad e, p ressão, p resen ça d e com postos quím icos, teor de oxigên io e gás car- bôn ico ( Jacob, 1983). Nesse con texto, os m ovi- m entose as articulações do corpo com seu m eio reduziram -se a fen ôm en os físico-qu ím icos. Em ep idem iologia, o espaço foi in icialm en - te com preen dido com o resu ltado de um a in te- ração en tre organ ism o e n atu reza b ru ta , com - p reen d id a in d ep en d en te d a ação e p ercep ção h u m an as. Da m esm a form a, n a geografia clás- sica, o espaço foi en ten dido com o substrato de fen ôm en os n atu rais, com o o clim a, a h idrogra- fia , a top ogra fia , a vegetação, e tc. Porém , n a origem d o d esen volvim en to d o ob jeto d a ep i- dem iologia , assim com o n a da geografia , já se m an ifesta a ten são que in terrogou a lógica des- se con h ecim en to qu e op ôs n atu reza e cu ltu ra , n a tu ra l e a rt ificia l, corp o e m en te, su b jet ivo e ob jetivo, en tre ou tras dualidades clássicas que caracter iza ram a em ergên cia d as ciên cias. A in ad eq u ação d essas d u a lid ad es à ap reen são d os fen ôm en os q u e se p rop u n h am estu d ar é sin alizada n o d iscu rso dessas d iscip lin as, reve- lan do polêm icas que acom pan haram a h istória desde o seu n ascim en to. Duran te o desen volvim en to da h igien e p ú - b lica , qu e floresceu em u m p eríod o im ed ia ta- m en te an terior ao su rgim en to das ciên cias b io- O CO NCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIO LO GIA 597 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 lógicas e h u m an as, p redom in ava u m a ap reen - são d in âm ica e in tegrad a d os fen ôm en os ep i- dêm icos. Ain da n ão h avia am adu recido o p ro- cesso qu e ap rofu n d ou a fragm en tação e d ico- tom ias do con h ecim en to. A h eran ça da Higie- ne Pública m arcou a origem tan to da ep idem io- logia com o da geografia (Urteaga,1980). Vin cu- lad a à essa h eran ça , velh as teorias, com o a d a con st itu ição ep id êm ica , in sp irad a n o p en sa - m en to h ip ocrá t ico, p erm an eceram rep resen - tan do u m a form a de p en sar qu e p ortava valo- res a serem p reservados. Mesm o valen do-se de u m a lin gu agem an acrôn ica em relação ao d is- curso cien tífico que se estrutura a partir do sécu- lo XIX, essa teoria foi sign ificativam ente resgata- da na construção de novos discursos sobre a rea- lidade da saúde e da doen ça (Czeresn ia, 1997). O estran h am en to e a d ificu ld ad e em reco- n h ecer seu ob jeto a p artir das d istin ções d ico- tôm icas, que cin diram ciên cias n atu rais e ciên - cias socia is, rep ercu tiram de m an eira esp ecia l n a geogra fia e tam b ém n a ep id em io logia . As tran sform ações con tem p orân eas n o d iscu rso cien tífico, ao qu estion ar essas d icotom ias, re- tom am con trad ições que se ap resen taram des- de a origem e o desen volvim en to dessas d isci- p lin as (San tos, 1987), estreitam en te vin cu ladas ao con texto dos estudos sobre as relações en tre espaço e doen ça. Em ep idem iologia, o uso do con ceito de es- p aço acom p an h ou o desen volvim en to teórico d a geogra fia , esp ecia lm en te d a ver ten te ch a- m ada geografia m édica. Pen san do a especifici- dade desses estudos, destaca-se, m ais um a vez, a im portân cia da teoria de tran sm issão de ger- m es com o est ru tu ra n u clea r d a ap reen são d a relação en tre esp aço e corp o, con st itu in d o-se tam b ém em lim ite ep istem ológico à in ten ção de com p reen der o esp aço com o u m a totalida- d e in tegrad a . As ten ta t ivas d e red efin ir o con - ce ito d e esp aço em ep id em io logia , acom p a- n han do o desen volvim en to teórico-con ceitual d a geogra fia , b u scaram in clu ir n a com p reen - são do p rocesso da doen ça, d im en sões sociais, cu ltu ra is e sim b ólicas. Porém , tod as essas re- d efin ições esb arraram n o lim ite im p osto p ela teoria da doen ça. Pen sar o h om em com o u m a in tegração biopsicossocial m an ifesta-se através da ten tativa de superpor conceitos que não dia- logam com facilidade. Mesm o ten tan do pen sar o esp aço com o totalidade in tegrada, esta é ex- p ressa através de con ceitos estru tu rados a par- tir de lógicas d istin tas e fragm en tadas en tre si. Con sideran do esses lim ites, ressalta-se que o con ceito d e t ran sm issão, m esm o assim , a l- cança expressar m elhor a articu lação en tre cor- po e m eio do que o con ceito de risco, desen vol- vido posteriorm en te. No con texto do estudo das doen ças tran sm issíveis, por exem plo, foi possí- vel con stru ir m odelos m atem áticos qu e rep re- sen tam relações en tre o in divíduo e o que é ex- tern o a ele – agen tes m icrob iológicos e o m eio. Con ceitos com o suscetib ilidade, resistên cia do hospedeiro, assim com o o de viru lên cia do ger- m e e su a in fecciosid ad e in tegram -se n u m eri- cam en te n o m od elo, con stru in d o u m a rep re- sen tação m atem ática que exp ressa o resu ltado de relações en tre corpo e espaço. O con ceito de im u n id ad e d e gru p o exp ressa o resu ltad o d e tais relações. O con ceito ep idem iológico de risco torn ou essa relação a in da m ais abstra ta . O cálcu lo do risco t rad u z u m a re lação p rob ab ilista en tre even tos. Não se in tegram n o m od elo d o r isco variáveis q u e rep resen tam con ceitos cap azes de expressar um processo que ocorre en tre cor- po e m eio. Se o con ceito de tran sm issão rep re- sen ta a in terface do corp o com o in teração en - tre orgân ico e extra -orgân ico, o d e r isco p res- cin de dessa relação (Ayres, 1997), ap rofun dan - do o n ível de fragm en tação e rarefação do ob - je to d a ep id em io logia . A con cep ção exp ressa p elo con ceito de risco é a de u m corp o virtu al. O h om em é rep resen tad o com o recep tor vigi- lan te de causas que podem lhe trazer dan os ou p ro teção. O esp aço to rn a -se p erceb id o com o com p lexo de estím u los irrad iados e exteriores ao corp o, q u e se im p õe cen tra lm en te a tod os (Teixeira, 1993). O con tato en tre os hom en s e a n atu reza ten deu a ser p rogressivam en te rep re- sen tad o com o vín cu lo in d ire to, m ed iad o p or im agen s cada vez m ais abstratas, tan to do cor- p o, com o d o esp aço, d eixan d o d e ser sim b oli- zado com o vín cu lo d ireto e con creto. É em decorrên cia desse p rocesso em qu e o esp aço, ao ser ab stra íd o com o m u lt ip licid ad e d e cau sas, p erd e tan to m ater ia lid ad e q u an to subjetividade, que a ap rop riação dessa catego- ria em ep idem iologia desen volveu-se p referen - cia lm en te n o con texto d o estu d o d as d oen ças tran sm issíveis. Mais esp ecificam en te, foi a tra- vés do estudo das doen ças tran sm itidas por ve- tores qu e a abordagem esp acia l p ôde ser m ais ob jetiva, exp licitan do elos cap azes de in tegrar m aior n ú m ero de elem en tos e a lcan çan do, as- sim , m aior m ateria lid ad e n a com p reen são d a relação en tre espaço e ocorrên cia de doen ças. A idéia de circu lação de agen tes específicos n o esp aço é fu n d am en ta l a esse d esen volvi- m en to con ceitu al. É bu scan do caracterizar de form a m ais e lab orad a o esp aço d e circu lação de agen tes que, u tilizan do os sucessivos desen - vo lvim en tos teór icos d a geogra fia , con st ru í- ram -se as d iferen tes verten tes exp licativas des- se con ceito em ep id em iologia , com o verem os a segu ir. CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.598 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 Pavlovsky e o conceito de foco natural das doenças Um a d as m ais im p ortan tes elab orações teóri- cas do con ceito de esp aço geográfico vin cu la- do ao estudo de doen ças tran sm issíveis foi fei- ta p or Pavlovsky n a d écad a d e 30. O con ceito de foco n atu ral exp ressa u m a ap reen são esp a- cia l q u e in tegra o con h ecim en to d as d oen ças tran sm issíveis com a geografia e a ecologia. “Um foco n atu ralde doen ça existe qu an do h á u m clim a, vegetação, solo esp ecíficos e m i- cro-clim a favorável n os lu gares on de vivem ve- tores, doadores e recipien tes de in fecção. Em ou - tras palavras, u m foco n atu ral de doen ças é re- lacion ado a u m a paisagem geográfica específi- ca, tais com o a taiga com u m a certa com p osi- ção botân ica, u m qu en te deserto de areia, u m a estepe, etc., isto é, u m a biogeocoen osis. O h om em torn a-se v ít im a de u m a doen ça an im al com foco n atu ral som en te qu an do per- m an ece n o território destes focos n atu rais em u m a estação do an o defin ida e é atacado com o u m a presa por vetores qu e lh e su gam o san gu e” (Pavlovsky, s/ d :19). O con ceito de foco n atu ral é, portan to, ap li- cad o a am b ien tes q u e ap resen tam con d ições favoráveis à circu lação d e agen tes, in d ep en - d en tem en te d a p resen ça e d a ação h u m an as. Pod e ocorrer em p a isagen s geográficas varia - das, desde que h aja um a in teração en tre b ióti- pos específicos. A defin ição de foco n atu ral cir- cu n screve-se a d oen ças t ran sm it id as a t ravés de vetores, n ão se referin do ao estudo de doen - ças que, m esm o ap resen tan do um agen te etio- lógico defin ido, p ropagam -se através do con ta- to d ireto ou m esm o p ela in alação de ar con ta- m in ado, com o d ifteria , saram p o, escarla tin a e doen ças resp iratórias. “A existên cia de qu alqu er doen ça tran sm is- sível depen de do trân sito con tín u o de seu agen - te cau sal, do corpo do an im al doador (an im al doen te, portador assin tom ático, h ospedeiro do parasita) para o corpo do vetor. Essa tran sm is- são geralm en te ocorre qu an do o vetor su ga o san gu e do doador e su bseqü en tem en te tran sm i- te o agen te cau sal p ara o recep tor an im al, fre- qü en tem en te, qu an do su ga seu san gu e tam bém ; o receptor in fectado pode por su a vez, torn ar-se u m doador p ara ou tro gru p o de vetores, etc. Desta m an eira, ocorre, com o dizem os, a circu la- ção”(grifo m eu) (Pavlovsky, s/ d :18). O con ceito d e foco an trop ú rgico, tam b ém desen volvido p or Pavlovsky, in trodu ziu a idéia d a t ran sform ação d o esp aço d e circu lação d e agen tes d e d oen ça p ela ação h u m an a. Porém , d á con ta ap en as d a t ran sform ação in icia l d os focos n a tu ra is n ão ap resen tan d o e lem en tos su ficien tes p a ra o estu d o d as d oen ças t ran s- m issíve is em situ ações on d e a d in âm ica d e m od ificação d o esp aço p e lo h om em ocorreu de form a m ais am pliada e acelerada. Posteriorm en te, realizaram -se estudos que, p a r t in d o d a teor ia d os focos n a tu ra is d e Pa- vlovsky, d ed icaram m ais a ten ção à in flu ên cia (m ilen ar) hum an a n a tran sform ação das paisa- gen s geográficas on de se desen volvem doen ças associadas a focos n atu rais. Rosicky (1967:114) ressa ltou com o, d esd e a o r igem d a socied ad e hum ana baseada na agricu ltu ra e dom esticação de an im ais, um foco n atu ral m an ifesta-se sob a in fluên cia in direta de atividades hum an as. Du- ran te a con strução de trabalhos técn icos de ca- ráter in dustrial e agrícola, as con dições de exis- tên cia de certos vetores e reservatórios an im ais podem ser errad icadas ou acen tuadas. Sin n ecker (1971) p rop ôs o con ceito de ter- r itório n osogên ico , art icu lan d o asp ectos eco- lógicos e sociais. As con dições n atu rais de um a região in tegram esses aspectos, con dicion an do a saúde dos hom en s e dos an im ais. As doen ças têm diferen tes d istribu ições n os d istin tos terri- tórios, e a atividade das popu lações tran sform a as con dições de desen volvim en to das doen ças. As tran sform ações podem rem over as p ré-con - d ições p a ra u m a d oen ça e, ao m esm o tem p o, criar con dições para o su rgim en to de ou tras. O au tor ressalta ain da que a gran de con cen tração das p essoas n as cidades gera n ovas con d ições ecológicas e sociais, p rop ician do a em ergên cia de doen ças vin cu ladas aos p rocessos de u rba- n ização. M ax Sorre e o conceito de complexo patogênico Max Sorre foi além da abordagem de Pavlovsky ao trabalhar a im portân cia da ação hum an a n a form ação e d in âm ica de com p lexos p atogên i- cos. O con ceito d e com p lexo p a togên ico am - p liou o p od er an a lít ico e exp lica t ivo d e u m a con cep ção an tes p ra t icam en te rest r ita à d es- crição do m eio físico (Ferreira , 1991). Ao assu - m ir a ecologia com o eixo cen tral, o con ceito de espaço que Sorre u tiliza é, por um lado, o m es- m o que se form u la através da b iologia: as rela- ções en tre u m m eio extern o q u e va r ia e u m m eio in tern o q u e n ecessita ad ap ta r-se p a ra m an ter su as con stan tes fisiológicas. Por ou tro lado, o au tor exp licita que, ao se tratar de seres hum an os, o con ceito de m eio deve en riquecer- se e in clu ir tam bém o am bien te p roduzido pe- lo hom em . Refere-se, assim , ao con ceito de gê- n ero de vida que con sidera o con jun to da orga- n ização socia l h u m an a em seu s asp ectos m a- O CO NCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIO LO GIA 599 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 te r ia is e esp ir itu a is. É com p reen d id o com o com bin ação de técn icas, cu jo u so e desen vol- vim en to ad ap tam -se às d iferen tes con d ições geográficas on de se in serem gru p os h u m an os. Tran sform a-se com as n ecessidades e a t ivida- des dos grupos, asseguran do sua sobrevivên cia (Sorre, 1984). A con stitu ição do gên ero de vida de grupos h u m an os, a lém de in flu en ciar a form ação p si- co lógica d os in d ivíd u os, p od e m od elar a p ró- p ria ap arên cia física d estes. O gên ero d e vid a tam b ém se exp ressa a t ravés d e va r ian tes d e com p ortam en to n as situ ações cotid ian as, co- m o alim en tação e grau de a tividade física . Es- sas vivên cias, com o ap on ta Sorre, são p ecu lia- res a cad a gru p o, e as ações e costu m es p ra t i- cados n a esfera in d ividual, n a verdade, con sti- tuem a form ação étn ica e cu ltu ral de um povo. A riqu eza do con ceito gên ero de vida, con - tu d o, n ão se exp ressa to ta lm en te n o con ceito d e com p lexo p a togên ico, q u e tam b ém b u sca in tegrar as d im en sões física , qu ím ica, b iológi- ca, econ ôm ica, social e cu ltu ral. O con ceito de com plexo patogên ico tem com o objetivo exp li- cita r u m a com p reen são sin té t ica (Gad elh a , 1995). Com o a id éia d e con st itu ição ep id êm i- ca, esse con ceito trabalh a com um a p ersp ecti- va d in âm ica , referin d o-se ao con ju n to d e cir- cu n stân cias qu e p red isp õem u m lu gar, em de- term in ado período, ao su rgim en to de doen ças. Porém , ap esar d essa in ten ção sin té t ica , Sorre estu da os com p lexos p atogên icos, classifican - do-os de acordo com agen tes m icrob iológicos qu e defin em doen ças esp ecíficas, e coloca seu trabalho sob um a perspectiva an alítica: “... A in terdepen dên cia dos organ ism os pos- tos em jogo n a produ ção de u m a m esm a doen ça in fecciosa perm ite in ferir u m a u n idade biológi- ca de ordem su p erior: o com p lexo p atogên ico. Com preen de, além do h om em e do agen te cau - sal da doen ça, seu s vetores e todos os seres qu e con d icion am ou com p rom etem a su a ex istên - cia...”(Sorre, 1951, apu d Ferreira, 1991:306). A est ru tu ra n u clea r d o con h ecim en to d a doença m edian te a idéia de causa, que se im pôs através da teoria dos germ es, com o foi afirm ado an teriorm en te, torn ou -se um lim ite ep istem o- lógico à in ten ção sin tética de todos os au tores posteriores à elaboração da teoria dos germ es. Samuel Pessoa e a geografia médica no Brasil Sorre e Pavlovsky forn eceram u m a im p ortan te base con ceitual em geografiam édica, que fun - d am en tou o d esen volvim en to d os t rab a lh os posteriores que buscaram um a perspectiva in - terd iscip lin ar. A lin ha de in vestigação con stru í- da p or Sam u el Pessoa in sp irou -se n essas du as con tribu ições, especialm en te n os trabalhos de Pavlovsky. Ele criou u m a escola de estu dos em geogra fia m éd ica n o Brasil, n o con texto d a ch am ada m ed icin a trop ical. Estu dou as en de- m ias p reva len tes n o Brasil, tam b ém , e esp e- cia lm en te, as t ran sm it id as a través d e vetores, com o esqu istossom ose, doen ça de Ch agas, fi- lariose, m alária, etc. “O m eio geográfico cria, in d iscu tivelm en te, con dições con stan tes e n ecessárias para a in ci- dên cia e propagação de in ú m eras m oléstias rei- n an tes n os tróp icos e, prin cipalm en te, em rela- ção às doen ças m etaxên icas, isto é, àqu elas qu e exigem para su a tran sm issão vetores biológicos, com o p or exem p lo, a m alária , a febre am are- la, as filarioses tran sm it idas p or m osqu itos, a esqu istossom oses p or m olu scos. O desen volvi- m en to dos vetores bem com o a m u ltiplicação do agen te patogên ico n estes h ospedeiros estão es- tritam en te ligados ao m eio geográfico e esp e- cialm en te às con d ições clim áticas” (Pessoa , 1978:151). Pessoa (1978) afirm ou a n ecessidade de re- cu p erar “a velh a tradição h ipocrática”. A ên fa- se n a bacteriologia relegou a u m segu n do p la- n o o estu d o acerca d a in flu ên cia d o am b ien te sobre a ocorrên cia das doen ças. Ressalta que o am bien te refere-se ao con ju n to de cau sas qu e atuam sobre o hom em e n ão apen as ao m eio fí- sico. Mesm o assim , é eviden te, tam bém n o d is- cu rso form ulado por este au tor, que o elem en - to qu e se m an tém com o eixo d a ap reen são d a relação en tre h om em e m eio n a exp licação da doença é a sua causa m icrobiológica específica. “Os fatores qu e in tervêm n a in cidên cia e propagação das doen ças in fecciosas e parasitá- rias em u m a região, são n u m erosos e com plexos. Atribu í-los som en te às con d ições geográficas e clim áticas é tão errôn eo com o in crim in ar so- m en te a p resen ça do germ e. É claro qu e, p or exem plo, sem o bacilo ‘virgu la’da cólera n ão po- de ex ist ir esta grave en ferm idade, p orém n in - gu ém n ega a existên cia de u m a geografia da có- lera. Não se deve lim itar, todavia, o term o ‘geo- grafia’de u m a doen ça, n o sen tido estrito qu e se en ten de por esta ciên cia. Se se pode, em u m m a- pa, delim itar as áreas de en dem icidade ou ep i- dem icidade da cólera, da peste, da m alária, das leish m an ioses, etc., é qu e pelo term o geografia deve-se con siderar n ão só a geografia física, o clim a e os dem ais fen ôm en os m eteorológicos, qu e caracterizam geograficam en te a região, m as ain da as geografias h u m an a, social, p olít ica e econ ôm ica. E os fatores qu e m ais in tervêm n a variação e p ropagação das doen ças, são ju sta- m en te os hu m an os”(Pessoa, 1978:153). CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.600 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 M ilton Santos e os estudos epidemiológicos sobre organização do espaço e doença Os con ceitos geográficos p ropostos por Milton San tos con st itu em u m a d as referên cias m a is im p ortan tes p ara as an á lises d a re lação en tre espaço e doen ça, especialm en te as p roduzidas n o Brasil. Esse au tor con ceitu a esp aço com o “u m con ju n to in dissociável de sistem as de obje- tos e sistem as de ações” (San tos, 1996:18); “u m con ju n to de fixos e flu xos qu e in teragem ” (San - tos, 1996:50). O esp aço é aqu ilo qu e resu lta da relação en tre a m aterialidade das coisas e a vi- da que as an im am e tran sform am . A con figura- ção territorial é u m a p rodu ção h istórica resu l- tan te dessas relações. As ações p rovêm das n e- cessid ad es h u m an as: m a ter ia is, esp ir itu a is, econ ôm icas, sociais, cu ltu rais, m orais, afetivas. Sistem as d e ob je tos e d e ações in terligam -se. Não h á com o sep arar n atu ral e artificial: “o es- paço é hoje u m sistem a de objetos cada vez m ais artificiais, povoado de sistem as de ações igu al- m en te im bu ídos de art ificialidade (...) De u m lado, os sistem as de objetos con dicion am a for- m a com o se dão as ações e, de ou tro lado, o sis- tem a de ações leva à criação de objetos n ovos ou se realiza sobre objetos p reex isten tes. É assim qu e o espaço en con tra su a d in âm ica e se tran s- form a” (San tos, 1996:51-52). A técn ica é um elem en to fun dam en tal para com p reen der o p rocesso de organ ização esp a- cia l. É a técn ica q u e in term ed eia a in teração hom em –natureza. Através dela, cria-se um a n a- tu reza h u m an izada. Não se ad icion a técn ica a um pretenso m eio natural. A técn ica produz um esp aço qu e é “u m m isto, u m h íbrido, u m com - posto de form as con teú do” (San tos, 1996:35). Milton San tos caracteriza o espaço do m un - d o con tem p orân eo (ap ós a segu n d a gu erra m u n d ial) com o m eio técn ico-cien tífico-in for- m acion a l, q u an d o as id é ias d e tecn o logia , d e ciên cia e de m ercado globais são en caradas co- m o um con jun to. A partir desse período, os ob- je tos técn icos são ao m esm o tem p o in form a- cion ais. A base e o substrato da p rodução, u tili- zação e fu n cion am en to d o esp aço são a ciên - cia , a técn ica e a in form ação. É p or essa lógica que os espaços são requalificados e in corpora- dos às n ovas corren tes m u n d ia is. “O m eio téc- n ico-cien tífico-in form acion al é a cara geográfi- ca da globalização” (San tos, 1996:191). O con ceito d e red e to rn a -se in d issociável ao de espaço. Defin idas com o con jun to de cen - tros fun cion alm en te articu lados, as redes in te- gram os espaços con figu ran do-se basicam en te em d ois asp ectos: o m ater ia l e o socia l. As re- d es a t ravessam con textos m ater ia is e sócio - cu lturais d iversificados e podem ser com preen - didas com o con stitu in do espaços de circu lação e d ifusão de agen tes de doen ças. Foi tam bém n os estu dos a resp eito das do- en ças en d êm icas e ep id êm icas qu e a elab ora- ção teórica d e Milton San tos a resp eito d o es- p aço fo i m a is u t ilizad a . Bu scou -se estu d ar a su a d istr ib u ição com o resu ltad o d a organ iza- ção socia l d o esp aço. As socied ad es h u m an as p rod u ziram u m a segu n d a n a tu reza p or m eio d as t ran sform ações am b ien ta is o r iu n d as d o p rocesso de trabalh o. O con ceito de m eio am - b ien te, d o p on to d e vista ecológico, en volve o espaço de rep rodução das espécies e a fon te de recu rsos p ara essa rep rodução. Con sideran do- se gru p os h u m an os, o con ceito é su b st itu íd o p elo esp aço socia lm en te organ izad o, ou se ja , “o espaço on de se realizam processos econ ôm i- cos e sociais” (Sabroza & Leal, 1992:53). Ut ilizan d o essa ab ord agem , o t rab a lh o d e Lu iz Jacin tho da Silva Organ ização do Espaço e Doen ça (Silva, 1985a) con segu iu en con trar um elo exp lica t ivo en tre a d im en são b io lógica e a social, n a h istória da doen ça de chagas em São Pau lo. O au tor an alisa com o as tran sform ações d as a t ivid ad es p rod u tivas ligad as à econ om ia cafee ira con d icion aram m u d an ças físicas e b iológicas que con figu raram as con dições m a- teriais de d istribu ição da en dem ia . A estru tu ra ep idem iológica da doen ça se m odificou com a tran sform ação d o esp aço. Com b ase n a teoria de foco n atu ral e an tropúrgico de Pavlovsky, ele estu dou os elem en tos da p aisagem geográfica p rop ícios ao su rgim en to, circu lação e t ran s- m issão do vetor, com o clim a, vegetação e solo. Por m eio d o con ceito d e esp aço socia lm en te organ izad o, con segu iu in tegraresses elem en - tos em um a com preen são m ais com plexa: o es- paço foi organ izado n o con texto da h istória da ocu p ação econ ôm ica , e esta form a d e organ i- zação criou u m sistem a de relações qu e tran s- form aram as con dições físicas do m eio. As con - dições necessárias para o crescim ento e declín io da en dem ia de ch agas su rgiram h istoricam en - te a t ravés d a su p erp osição d e p a isagen s geo- gráficas, que se constru íram no processo de de- sen volvim en to econ ôm ico da região estudada. Barreto (1982) tam bém ressaltou , em estu - d o sob re a p reva lên cia d e esq u istossom ose m an sôn ica em m un icíp ios do estado da Bah ia, as característ icas da organ ização socia l do es- p aço ru ra l n a con figu ração d a en d em ia . A es- qu istossom ose foi in trodu zida n o Brasil com a m igração african a de in divíduos in fectados du- ran te o p eríod o d a escravid ão. A in ten sid ad e do p rocesso en dêm ico e o desen volvim en to de n ovos focos, con tu d o, n ão p u d eram ser exp li- cados apen as pela existên cia de con dições eco- O CO NCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIO LO GIA 601 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 lógicas favoráveis. O au tor an alisou com o a or- gan ização das relações de p rodução e os deslo- cam en tos h u m an os m ed iad os p or estas re la - ções foram fun dam en tais para a reten ção e pa- ra a d issem in ação espacial da en dem ia. A d issem in ação d as en d em ias n ão se res- t r in giu aos am b ien tes ru ra is. A u rb an ização das fron teiras agrícolas e a m igração e m ob ili- dade socia l cidade–cam p o p ossib ilita ram qu e se cr iassem focos em á rea u rb an a . Um exem - p lo d isso fo i a ad ap tação d a esqu istossom ose aos esp aços da p eriferia da cidade de São Pau - lo (Silva, 1985b). Os m igran tes rep resen tam um grupo particu larm en te vu ln erável, por sua p re- cária in serção social n a cidade e p ela ausên cia de im un idade em relação a doen ças existen tes n os cen tros u rban os (Carvalh eiro, 1986). A d i- versidade das form as de in serção social reflete a d esigu a l d ist r ib u ição te rr ito r ia l e, tam b ém , d iferen tes p erfis ep idem iológicos, n os qu ais a p op u lação de baixa ren da é a qu e m ais sofre o im pacto das ep idem ias e en dem ias. A verten te da ep idem iologia social, com ba- se em ab ord agem m arxista , rea lizou estu d os que alcan çaram iden tificar origen s e con dicio- n an tes sociais e econ ôm icos dos p rocessos ep i- dêm icos. Con siderou ep idem ia com o um acon - tecim en to social, e n ão apen as a som a de casos d e u m a m esm a d oen ça . Os au tores en fa t iza - ram a p rob lem ática do subdesen volvim en to e, p rin cip alm en te, das desigu aldades socia is co- m o seus p rin cipais con dicion an tes. A erradica- ção e o con trole das ep idem ias n ão dep en dem apen as de d iagn óstico e in terven ção b iológica, m as de todos os elem en tos qu e p articip am da organ ização social do espaço. A m aior p a r te d esses estu d os associou a em ergên cia de doen ças ao espaço u rban o. A ci- dade é a p rotagon ista da con figuração espacial: o crescim en to, a su p erlotação, a p recária rede de in fra-estru tu ra (em esp ecial n as p eriferias), a in ten sa m ovim en tação d e p essoas, favore- cem a circu lação d e p arasitas. Não só an t igas d oen ças coab itam com n ovas, com o d oen ças an teriorm en te errad icadas ressu rgem . As ep i- dem ias de m en in gite, cólera, den gue, lep tosp i- rose são algum as das apon tadas pelos au tores. Breilh et al. (1983), em estudo sobre a m or- talidade in fan til em cidades latin o-am erican as, a firm aram qu e as p rin cip a is cau sa m ortis são as d oen ças in fecto -con tagiosas e a d esn u tr i- ção, con seqüên cias do subdesen volvim en to la- t in o-am erican o. Mesm o n os p a íses d e m aior crescim en to e m odern ização econ ôm ica, p er- sistem graves desigualdades sociais, e parte da popu lação en con tra-se em péssim as con dições de vida . Os au tores crit icam os estu dos qu e se ap ó iam ap en as em cau sas b io lógicas, n egli- gen cian d o asp ectos econ ôm icos e socia is d as doen ças e m ortes in fan tis. Ao estudar a ep idem ia de doen ça m en in go- cócica n a cidade de São Pau lo n a década de 70, Barata (1988) ap on tou p ara o m om en to h istó- rico em qu e o p aís vivia: o m ilagre econ ôm ico. Ap esa r d o crescim en to econ ôm ico, con stru í- ram -se con d ições socia is favoráveis ao ap are- cim en to e d issem in ação d a ep id em ia , com o a política salarial restritiva, susten tada com base n a rep ressão p olít ica e os m ovim en tos m igra- tórios, qu e im p u seram o crescim en to acelera- d o d a p er ifer ia d os gran d es cen tros u rb an os. Den tro deste con texto, su rgiram os elem en tos que in terferiram no processo ep idêm ico: o des- gaste do trabalhador, e, in d iretam en te, de seus fam iliares, decorren tes dos baixos salários e da in corporação fem in in a n a força de trabalho. Os d ad os an a lisad os p e la au tora d em on stra ram cla ram en te q u e, ap esa r d a ep id em ia a t in gir fo r tem en te tod as as á reas d a cid ad e, a s á reas m ais p ob res ap resen ta ram r iscos m ais a ltos com parados às áreas cen tral e in term ediária da cidade. Nesse m esm o estu d o, Bara ta (1988), com base em Foucau lt, in troduz um a abordagem , a resp eito d a relação en tre esp aço e a ep id em ia m en in gocócica , n ão decorren te da exp licação estritam en te ep idem iológica. Ressalta com o as relações de poder, dom in ação e exclusão n o es- p aço h osp ita lar in terferem n a saú de e recu p e- ração dos in divíduos. As relações de poder, que produzem a exclusão da participação n as deci- sões, n ão ocorrem apen as n o âm bito político e social m ais geral, m as tam bém n as relações co- t id ian as qu e se estab elecem , p or exem p lo, n o hosp ital. Essas relações con stituem -se espaços n orm ativos e rep ressivos qu e acen tu am os as- pectos de in seguran ça e carên cia afetiva carac- terísticos da situ ação de estar doen te. Os fa to- res am b ien ta is qu e in terferem n o p rocesso do ad oecer in d ivid u a l e co le t ivo são físicos, so - ciais, com o tam bém m en tais e afetivos. Transformações recentes na abordagem do espaço e da relação entre espaço e doença A com plexidade das tran sform ações, p rin cipal- m en te n os cen tros u rb an os, im p ôs n ovas for- m as de elaboração teórica acerca do esp aço. A velocidade da tran sform ação das redes que in - tegram os esp aços é u m a d as ca racteríst icas m ais m arcan tes d a ch am ad a con d ição p ós- m odern a. Essas m udan ças in terferem n as rela- ções sociais, n os valores, n os m odos de agir, vi- ver e p en sar. O seu ritm o cada vez m ais acele- CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.602 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 rado p roduziu um a crise n a exp eriên cia do es- p aço e d o tem p o, d esa fian d o a n ossa p róp ria cap acid ad e p ercep tu a l d e acom p an h ar. Os n ossos h áb itos d e p ercep ção esp acia l n ão se est ru tu ra ram p ara lid a r com essa velocid ad e. Torn ou-se ain da m ais eviden te que as idéias do sen so com u m , ap aren tem en te n atu ra is, a res- peito do que é o espaço escon dem am bigü ida- des e con flitos. A experiên cia sub jetiva con duz a cam in h os m u ito d iferen ciados de p ercep ção e im agin ação. Dist in tas cu ltu ras e gru p os so- ciais possuem diferen tes con cepções acerca do espaço (Harvey, 1996). A fragm en tação e a in d ivid u a lização são u m d os lad os d a ca racteríst ica p a rad oxa l d e u m p rocesso qu e m an ifesta sim u ltan eam en te a ten dên cia à h om ogen eização e à m u ltip lica- ção d a exp ressão d e h eterogeneid ad es. A glo- b a lização, com a form ação d o m ercad o m u n - d ia l, red u ziu as b arre iras esp acia is. Facilitou - se o acesso aos m ais d iversificad os p rod u tos oriu n dos de d iferen tes regiões e au m en tou -se o con ta to d ireto en tre os p ovos. A lógica do li- vre m ercad o, p orém , acen tu ou os esp aços d e desigualdade e exclusão. Um exem plo é a con s- trução de espaços fechados e p rotegidos, com o con d om ín ios e sh opp in g-cen ters, p ara classes m édias e, ao m esm o tem po, a expu lsão dos po- bres para “u m a n ova e bem ten ebrosa paisagem p ós-m odern a de falta de h abitação” (Harvey, 1996:79). A d istân cia en tre r icos e p ob res au m en tou de form a desen freada. Os pobres cada vez m ais se con vertem n os p roscritos de um a sociedade organ izada em torn o de um m ercado con sum i- dor cada vez m ais sofisticado. A exclusão social de gru p os p op u lacion ais crescen tes, exp losão dem ográfica , m u dan ça da estru tu ra etária das populações, in tensificação das m igrações, guer- ras torn aram m ais com p lexos os asp ectos h u - m an os das con d ições globais (Bau m an , 1998). Os sérios p roblem as ep idêm icos u rban os u ltra- p assaram a esfera das doen ças tran sm issíveis, n eop lásicas e card iovascu lares. Man ifestaram - se tam bém com o ep idem ia, violên cia , aciden - tes de trân sito, u so de d rogas, doen ças p sicos- som áticas e com portam en tos reativos. Ao m esm o tem p o, reap areceram as am ea- ças de gran des desastres n atu rais: p olu ição do ar e da águ a, p rogressivo aqu ecim en to global, buracos n a cam ada de ozôn io, chuva ácida, sa- lin ização e ressecam en to d o so lo. As con se- q ü ên cias ep id em iológicas d esse in ten so p ro- cesso de tran sform ações são rad icais e im p re- visíveis. A em ergên cia d e n ovas d oen ças, q u e p od em m an ifesta r-se, tam b ém , com o ep id e- m ias fatais e devastadoras, n ão é u m a p ossib i- lidade apen as ficcion al. Nesse con texto, n ovos tem as ap areceram e ou tros se ren ovaram : orien tação sexual e doen - ças sexualm en te tran sm issíveis; gênero e doen - ça; violên cia; tráfico e ad ição de drogas; circu i- tos esp acia is u rb an os d e gru p os esp ecíficos, com o cr ian ças e ve lh os; esp aços d esigu a is e doen ça. O recon h ecim en to de um a m u ltip lici- dade de form as de alteridade, com o gên ero, se- xu alid ad e, raça , classe e ou tras con figu rações d e su b jet ivid ad e e sen sib ilid ad e en con traram exp ressão n o desen volvim en to recen te dos es- tudos ep idem iológicos. Retom ou -se, a lém d isso, o in teresse a res- p e ito d o estu d o d o clim a com o im p ortan te causa de doen ça. Os su rtos de doen ças, com o a feb re h em orrágica cau sad a p e lo víru s Eb ola , m otivaram , m ais u m a vez, o in teresse p elo es- tu d o d os esp aços p ou co a lte rad os p e la ação h u m an a . A p olu ição am b ien ta l, a qu an t id ad e d e rad iação u lt ravio le ta ou in ten sid ad e d e cam po eletrom agn ético vêm sen do abordados, p rin cip alm en te, n o estudo das n eop lasias (Sil- va, 1997). É im p ortan te destacar qu e a teoria e p rá ti- ca cien t ífica tam b ém con stroem rep resen ta - ções sim b ólicas sob re o esp aço e est ru tu ram distin tas form as de ap reen são e de ação sob re a rea lid ad e. A com p reen são d e q u e m ú lt ip los asp ectos m ater ia is e im a ter ia is con figu ram o esp aço, en gen d ran d o p ra t icam en te tod as as d im en sões d a existên cia h u m an a, já está p re- sen te, por exem plo, n o con ceito gên ero de vida de Sorre. O con ceito de com p lexo p atogên ico, con tudo, n ão é su ficien te para exp licar a con fi- guração de gran de parte dos p roblem as de saú- de pública n a sociedade con tem porân ea. Estes dem an dam n ovos d iscu rsos e abordagen s qu e a lcan cem ap rofu n d ar a p ersp ect iva m u lt i ou tran sd iscip lin ar, in corp oran d o d im en sões d o espaço n ão com um en te u tilizadas n os estudos ep idem iológicos. Um a ten ta t iva recen te d e am p lia r os u sos d a ca tegoria esp aço m an ifesta -se a t ravés d o con ceito d e situ ação d e saú d e, q u e b u sca ex- p ressar as con dições específicas dos grupos so- cia is, ob jet iva e su b jet ivam en te con stru íd as e articu ladas à form a com o esses grupos se con - figu ram e se in serem socialm en te em determ i- n ad o m om en to h istórico e circu n stân cias n a- tu rais (Castellan os, 1990). Esse con ceito possi- b ilita a ab ord agem d os p rob lem as d e saú d e e d oen ça d e u m p on to d e vista esp ecífico p a ra cad a gru p o p op u lacion al e, ao m esm o tem p o, d e u m a p ersp ectiva in terd iscip lin ar e in terse- torial (Rojas, 1998). Um d os m ais im p ortan tes exem p los d as perm an ên cias e tran sform ações n as form as de p en sa r a re lação en tre esp aço e d oen ça p od e O CO NCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIO LO GIA 603 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 ser eviden ciado m ed ian te os trabalh os sobre a ep id em ia d e AIDS. O seu su rgim en to, h á d u as d écad as, p rovocou u m p rocesso acelerad o d e elaboração, m obilizan do recu rsos cogn itivos e su b jetivos qu e acrescen taram m u itos elem en - tos p ara a com p reen são da relação en tre esp a- ço e ep idem ia. Essas abordagen s n ão estiveram restr ita s ao cam p o esp ecifico d a ep id em io lo- gia , m an ifestan d o ou tras m ú lt ip las p ossib ili- dades de se p en sar e in tervir sob re o p rocesso ep idêm ico, qu e se in tegram às exp licações es- tritam en te ep idem iológicas. As redes espaciais de d ifusão, in teração (ou circu lação) do víru s da AIDS são h oje p erceb i- d as com o d e d ifícil d e lim itação. Elas n ão se con figu ram d e acord o com as ca racteríst icas geográficas an teriorm en te estudadas n o âm bi- to das doen ças tran sm issíveis (Barcellos & Bas- tos, 1996). A relação en tre tran sm issão da AIDS e sexu a lid ad e ou u so d e d rogas, exp ressa a com plexidade de d im en sões que, em bora con - form ad as cu ltu ra lm en te, se situ am n a esfera das op ções p essoais e in d ividu ais. As redes de lim itação ou facilitação d a t ran sm issão são con dicion adas por características m acroestru - tu ra is qu e con figu ram socia lm en te o acesso a recursos m ateriais e sub jetivos, m as que se de- fin em n os espaços da vida p rivada dos su jeitos. Os cen tros u rban os con cen tram atividades d e troca e in teração socia l. Barcellos & Bastos (1996) estu d aram , p or exem p lo, a s red es so- cia is q u e se a r t icu lam à t ran sm issão d a AIDS en tre u suários de d rogas. Os cam in hos do n ar- cotráfico percorrem espaços de m aior vu ln era- b ilidade e in cidên cia da in fecção. Dessa form a, podem ser iden tificados pon tos em que os flu - xos de d ifusão da ep idem ia são m ais in ten sos. As an álises esp acia is qu e, p or m eio de téc- n icas de geop rocessam en to, visu alizam o des- locam en to da d ifu são dos agen tes e dos even - tos ep idêm icos eviden ciam tam bém a m udan - ça n o perfil sócio-econ ôm ico da ep idem ia. De- tectou-se especificam en te n o Brasil a expan são da ep idem ia p ara os segm en tos de m en or ren - d a e escolarid ad e. Gran geiro (1994) estu d ou a d istribu ição dos casos da doen ça n a cidade de São Pau lo. Nas áreas m ais ricas, p redom in aram os casos de tran sm issão hom ossexual m ascu li- n a , e ap resen tou -se u m a m aior razão d e in ci- d ên cia en tre h om en s e m u lh eres. Nas á reas m ais pobres, ao con trário, houve m aior n úm e- ro de casos de tran sm issão h eterossexu al e re- lacion ada ao uso de drogas. A razão en tre casos em h om en s e m u lh eres fo i m en or (Gran geiro, 1994). O crescen te p rocesso d e p au p erização d a epid em ia d e AIDS d em on stra q u e a d ist r i- bu ição esp acial dos m ais d iversificados recu r- sos m ateriais e im ateriais que favorecem a p ro- teção con tra as doen ças in exoravelm en te ten - dem a acom pan har a lógica m ais geral da desi- gualdade e in iqü idade social. Os trabalh os a resp eito da AIDS, sem dú vi- d a , exp ressam tran sform ações d iscu rsivas re- cen tes sobre a relação en tre espaço e p rodução d e d oen ças. Um exem p lo p od e ser sin a lizad o através da con stru ção dos m odelos d in âm icos de tran sm issão da AIDS, que gan haram um n o- vo destaqu e. O acelerado desen volvim en to da in form ática e do con ju n to das ciên cias p erm i- tiu o ap erfeiçoam en to das técn icas de sim u la- ção e a in corp oração de in úm eras n ovas variá- veis, que m an ifestam as m udan ças do d iscurso cien tífico con tem porân eo. Mesm o m an ten do a m esm a b ase lógica con figu rad a n o in ício d o sécu lo, os m odelos hoje in tegram in form ações esp acia is geográficas a d ad os socia is e in d ivi- duais, tan to com portam en tais com o gen éticos, estab elecen d o red es d e tran sm issão extrem a- m en te com plexas. Conclusão Com o vim os, o n ú cleo ep istem ológico q u e orien ta a ap reen são do espaço do pon to de vis- ta ep id em io lógico é a teoria d a d oen ça . É n e- cessário à exp licação ep idem iológica a lcan çar exp ressar, d e a lgu m a form a, o esp aço em qu e ocorre o p rocesso do adoecer, ou seja, a in terfa- ce en tre corp o e esp aço. Nesse sen tido, a idéia de circu lação de agen tes esp ecíficos, esp ecial- m en te n o con texto d e d oen ças t ran sm it id as p or vetores, fo i fu n d am en ta l à ob jet ivação d e um con jun to de elem en tos, capazes de dar m a- teria lid ad e à re lação en tre esp aço e p rod u ção de doen ças. Isto foi p ossível tan to n o con texto d a ab ord agem estr itam en te ecológica qu an to n o da que con siderou o espaço socialm en te or- gan izado. Essa con figu ração ap resen tou -se lim itada, especialm en te para o estudo das doen ças cha- m adas n ão-tran sm issíveis. Através do con ceito ep idem iológico de risco, a in terface en tre cor- p o e m eio é ab stra íd a , rep resen tad a , d e m od o virtual, com o um a m ultip licidade de estím ulos irrad iados. O con ceito de risco n ão exp licita ar- t icu lações en tre elem en tos m ateria is e im ate- riais que possam exp licar o vín cu lo en tre espa- ço (exp osição) e corp o (even to d e d oen ça). O m od elo d o r isco con st ró i rep resen tações d as relações en tre cau sas e a p robab ilidade destas p rovocarem doen ças qu e p rodu zem u m a des- con exão rad ica l d os e los en tre os h om en s e suas circun stân cias. A t rad ição crít ica n a ep id em io logia , esp e- cia lm en te n a Am érica Latin a , b u scou su p erar CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.604 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 as lim itações d os con ceitos ep id em iológicos, in tegran d o con tr ib u ições d a teor ia socia l à s an á lises d os p rocessos co le t ivos d e saú d e e doença. Porém , os conceitos específicos da ep i- d em iologia foram p ou co p rob lem atizad os n a su a referên cia à b iologia . A corren te h istórico- estru tu ra l qu e fu n d am en tou esse d esen volvi- m en to ten deu a desvalorizar as d im en sões b io- lógica e in d ivid u al d o ad oecer. Ao b u scar am - p liar a con cepção de espaço, deixou-se de lado, caracterizada com o atribuição da clín ica, a con- cepção de corpo que o reduz ao biológico e indi- vidual. Sem repensar a concepção de corpo, res- trin gem -se as p ossib ilidades de en con trar elos que exp liquem a relação en tre espaço e doença. Desen volvim en tos m ais recen tes q u est io - n a ram as ab ord agen s q u e, p or u m lad o, res- tr in giam os p rocessos à u m a d im en são b io lo- gicista e, p or ou tro, a determ in an tes gen éricos e estru tu rais (Fleu ry, 1992). Bu scou -se rein ter- p retar o sign ificado de in d ividu al e de b iológi- co, através de con ceitos com o su jeito e n atu re- za (Costa & Costa, 1990). O recon hecim en to da im p ortân cia d e va lo res, com o su b je t ivid ad e, au ton om ia , d iferen ça , ap resen tou -se n o con - texto das tran sform ações n o d iscu rso cien tífi- co, q u e, h á cerca d e u m a d écad a , m an ifesta - ram -se m ais claram en te n a saúde coletiva. Essas tran sform ações trouxeram n ovos ele- m en tos p ara se p en sar o esp aço e, con seqüen - tem en te, a relação en tre esp aço e d oen ça . Re- tom an do a defin ição de Milton San tos (San tos, 1996) do espaço en quan to sistem a de objetos e de ações, um con jun to de fixos e fluxos, ressal- ta-se, n o con texto dos flu xos, asp ectos qu e fo- ram p ou co trabalh ados em estu dos ep idem io- lógicos. A d im en são da com u n icação n o m eio tecn o-cien tífico-in form acion al p roduz-se tam - b ém a través d a circu lação d e p a lavras, im a- gen s, ru m ores, a fe tos. Os e lem en tos sim b óli- cos con tr ib u em d e m od o sign ifica t ivo p a ra a con figu ração terr ito r ia l e, cer tam en te, p a ra o p rocesso de adoecer, in d ividu al e coletivo. Su - blinhando-se a d im ensão flu ida do espaço, des- tacam -se asp ectos q u e en r iq u ecem e to rn am ain da m ais com p lexa a su a n atu reza. Porém , a ap rop riação d e teor ias a resp eito d o esp aço, p roduzidas em ou tros cam pos do con hecim en - to, ain da n ão con segu iu en con trar um a m edia- ção tão cla ra en tre o esp aço e o fen ôm en o d o ad oecer com o a qu e é a lcan çad a p ela id éia d e circu lação de agen tes específicos de doen ças. Sem dú vida , desde a form u lação da teoria dos germ es, houve um enorm e desenvolvim en- to das ciên cias, da visu alização de estru tu ras b iológicas, da com p reen são de p rocessos so- cia is e sim bólicos, o qu e acrescen tou m u itos elem en tos p ara p en sar o esp aço, o corp o e o surgim en to de doenças. Não há com o negar que o desen volvim en to tecn o-cien tífico em gran de escala trouxe com o con seqüên cia a con strução de rep resen tações da rea lidade cada vez m ais com plexas. O discurso da ep idem iologia, assim com o o da geografia, articulando-se ao de outras áreas de con h ecim en to, d iversifica e am p lia suas p ossib ilidades. A com p lexidade crescen te dos en foqu es con ceitu ais, con tu do, d ificu lta a construção de m étodos capazes de operaciona- lizá-los (Costa & Teixeira, 1999). O esforço d e in tegração en tre d iferen tes ab ord agen s é o ou tro lad o d a ace leração d a p rod u ção d e m ú lt ip las lin gu agen s, q u e frag- m en tam as d im en sões em qu e o corp o e o es- p aço são ap reen d id os. A con stru ção d e im a- gen s e d iscursos sedu toram en te retóricos pode trazer, ao em vez d e sab er, p erp lexid ad e e im - p otên cia . Pode ofu scar, ao in vés de esclarecer, os cam in h os p a ra a reso lu ção d e p rob lem as. Nesse m un do em que se m ultip licam e se frag- m en tam expon en cialm en te im agen s, in form a- ções e rep resen tações da realidade, ressalta-se cada vez m ais a im portân cia de reforçar os elos en tre pen sam en to e sen sib ilidade. Estam os vi- ven do o p aroxism o da ten dên cia sin alizada h á m uito tem po por filósofos e poetas: “o processo de desm em bram en to e decom posição da n atu - reza e do hom em fez com qu e se perdesse a in te- gridade da referên cia em seu p róp rio sen t ido” (Goeth e apu d Cassirer, 1993:225); a visib ilida- de de n ovas estru tu ras n a n atu reza e n a deter- m in ação d os seres im p licou u m a cegu eira em relação ao sen tido do ser (Merleau-Pon ty, 1992); a visu alização p rogressiva d e rea lid ad es an te- riorm en te in im agin áveis ten deu a afastar o ho- m em d e seu p róp rio referen cial d e m ed id a (Aren dt, 1987). A experiência vivida nos acon tecim en tos é a referên cia básica a qualquer perspectiva sin té- tica . No caso da ep idem iologia , é o sofrim en to h u m an o qu e se m an ifesta a través dos even tos ep idêm icos, que m obiliza o pen sam en to a p ro- d u zir sign ificad os e en con tra r, d en tre as m ais variad as p ossib ilid ad es, aqu elas qu e m elh or correspon dem à n ecessidades. A cren ça n a ver- dade cien tífica torn a-se cada vez m ais relativa, colocan do-se em prim eiro p lan o a idéia da u ti- lidade do conhecim en to. O que im porta não é a d isp u ta en tre m étod os e sistem as d e p en sa- m en to defin idos a priori, m as a cap acidade de resolver, da m elh or form a p ossível, p rob lem as concretos. O uso do conceito de espaço em ep i- dem iologia tem um a abertu ra tran sd iscip lin ar, p erm ite u m a m u lt ip licid ad e d e sign ificações, qu e d evem ser m ob ilizad as, ten d o com o refe- rên cia situ ações de saú de defin idas a p artir de in teresses devidam en te exp licitados. O CO NCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIO LO GIA 605 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 Agradecimentos Agradecem os as su gestões de Pau lo Ch agastelles Sa- broza. Referências ARENDT, H., 1987. A Con d ição Hu m an a . Rio d e Ja - n eiro: Foren se-Un iversitária. AYRES, J. R. C. M., 1997. Sobre o Risco: Para Com pre- en der a Ep idem iologia . São Pau lo : Ed ito ra Hu - citec/ Rio de Jan eiro: ABRASCO. BARATA, R., 1988. Men in gite: Um a Doen ça sob Cen - su ra? São Pau lo: Cortez. BARCELLOS, C. & BASTOS, F. I., 1996. Redes sociais e d ifu são d a AIDS n o Brasil. Bolet ín de la Oficin a San itaria Pan am erican a, 121:11-24. BARRETO, M. L., 1982. Esqu istossom ose Man sôn ica: Distribu ição da Doen ça e Organ ização Social do Espaço. Dissertação de Mestrado, Salvador: Un i- versidade Federal da Bah ia. BAUMAN, Z., 1998. O Mal-Estar da Pós-Modern idade. Rio de Jan eiro: Jorge Zahar Editor. BREILH, J.; GRANDA, E.; CAMPANA, A. & BETAN- COURT, O., 1983. Ciu dad y Mu erte In fan til. Qu ito: Edicion es CEAS. CARVALHEIRO, J. R., 1986. Processo m igratório e d is- sem in ação de doen ças. Textos de Apoio: Ciên cias Sociais, 1:29-55. CASSIRER, E., 1993. El Problem a del Con ocim ien to en la Filosofía y en la Cien cia Modern as. Lib ro IV. México, D.F.: Fon do de Cultu ra Econ óm ica. CASTELLANOS, P. L., 1990. Avan ces m etod ológicos en ep idem iología. In : An ais do 1o Con gresso Brasi- leiro de Ep idem iologia , p p . 201-216, São Pau lo : ABRASCO. COSTA, D. C. & COSTA, N. R., 1990. Teoria do con hec- im en to e ep idem iologia . Um con vite à leitu ra de Joh n Sn ow. In : Epidem iologia. Teoria e Objeto (D. C. Costa , o rg.), p p . 167-202, São Pau lo : Ed ito ra Hucitec/ ABRASCO. COSTA, M. C. N. & TEIXEIRA, M. G. L. C., 1999. A con - cepção de ‘espaço’ n a in vestigação ep idem iológi- ca. Cadern os de Saú de Pú blica, 15:271-279. CZERESNIA, D., 1997. Do Con tágio à Tran sm issão: Ciência e Cu ltu ra na Gênese do Conhecim en to Epi- dem iológico. Rio de Jan eiro: Editora Fiocruz. FERREIRA, M. U., 1991. Ep id em io logia , con ceitos e u sos: O com p lexo p a togên ico d e Max Sorre. Ca- dern os de Saú de Pú blica, 7:301-309. FLEURY, S., 1992. Saúde Coletiva? Questionando a Oni- potência do Social. Rio de Janeiro: Relum e-Dum ará. FOUCAULT, M., 1995. As Palavras e as Coisas: Um a Arqu eologia das Ciên cias Hu m an as. São Pau lo : Martin s Fon tes. GADELHA, P., 1995. História de Doen ças: Pon to de En - con tros e de Disp ersões. Tese d e Dou toram en to, Rio de Jan eiro: Escola Nacion al de Saúde Pública, Fun dação Oswaldo Cruz. GRANGEIRO, A., 1994. O p erfil sócio-econ ôm ico dos casos de AIDS n a cidade de São Pau lo. In : A AIDS n o Brasil (R. Parker, C. Bastos, J. Galvão & J. S. Pe- d roza , org.), p p. 91-125, Rio d e Jan eiro : Associa- ção Brasile ira In terd iscip lin ar d e Aid s/ In st itu to d e Med icin a Socia l, Un iversid ad e d o Estad o d o Rio de Jan eiro/ Relum e-Dum ará. HARVEY, D., 1996. A Con d ição Pós-Modern a . São Pau lo: Loyola. JACOB, F., 1983. A Lógica da Vida: Um a História da Hereditariedade. Rio de Jan eiro: Graal. LEAVELL, S. & CLARCK, E. G., 1976. Medicin a Preven - tiva. São Pau lo: McGraw-Hill. MacMAHON, B. & PUGH,T. F., 1978. Prin cip ios e Métodos de Epidem iología . México, D.F.: La Pren - sa Médica Mexican a. MERLEAU-PONTY, M., 1992. O Visível e o In visível. São Pau lo: Perspectiva. PAVLOVSKY, Y. N., s/ d . Natu ral Nidality of Tran sm is- sible Diseases. Moscow: Peace Publishers. PESSOA, S. B., 1978. Ensaios Médico-Sociais. São Paulo: CEBES/ Editora Hucitec. ROSICKY, B., 1967. Natu ral foci of d iseases. In : In fec- t iou s Diseases: Th eir Evolu tion an d Errad ication (T. A. Cockb u rn , o rg.), p p . 108-126, Sp rin gfie ld : Charles C. Thom as. ROJAS, L. I., 1998. Geogra fia y sa lu d : Tem as y p ers- p ect ivas en Am érica La t in a . Cadern os de Saú de Pú blica, 14:701-711. SABROZA, P. C. & LEAL, M. C., 1992. Saúde, am bien te e desen volvim en to. Algun s con ceitos fun dam en - ta is. In : Saú de, Am bien te e Desen volvim en to (M. Leal., P. Sabroza, R. Rodrigues & P. Buss, org.), pp. 45-93, São Pau lo: Editora Hucitec/ Rio de Jan eiro: ABRASCO. SANTOS, B. S., 1987. Um Discu rso sobre as Ciên cias. Porto: Edições Afron tam en to. SANTOS, M., 1996. A Natu reza do Espaço – Técn ica e Tem po, Razão e Em oção. São Pau lo : Ed itora Hu - citec. SILVA, L. J., 1985a. Organ ização do esp aço e doen ça. In : Textos de Apoio: Epidem iologia 1 ( J. R. Carva- lh eiro, o rg.), p p. 159-188, Rio d e Jan eiro : Esco la Nacion al de Saúde Pública/ ABRASCO. SILVA, L. J., 1985b. Crescim en to u rban o e doen ça: Es- qu istossom ose n o Mu n icíp io d e São Pau lo (Bra- sil). Revista de Saú de Pú blica, 19:1-7. SILVA, L. J, 1997. O con ceito de esp aço n a ep idem io- logia das doen ças in fecciosas. Cadern os de Saú de Pú blica, 13:585-593. SINNECKER, H., 1971. Gen eral Ep idem iology. Lon - don : John Wiley & Son s. SORRE, M., 1984. A n oção d e gên ero d e vid a e su a evolu ção. In : Max Sorre: Geografia ( J. F. Mega le, org.), pp. 99-123, Rio de Jan eiro: Editora Ática. TEIXEIRA, R. R., 1993. Epidem ia e Cultura:AIDS e Mun- do Securitário. Dissertação de Mestrado, São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. URTEAGA, L., 1980. Miser ia , m iasm as y m icrob ios. Las top ogra fías m éd icas y e l estu d io d e l m ed io am b ien te en e l siglo XIX. Cu adern os Crít icos de Geografía Hu m an a, 29:5-52. CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.606 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 O art igo ap resen tad o p or Din a Czeresn ia & Adrian a Ribeiro n os in stiga a p en sar, de form a am pliada, o p rocesso saúde-doen ça e os deter- m in an tes su b jet ivos qu e p erm eiam su as re la - ções. As au toras p rop õem u m a d iscu ssão con - ceitual e h istórica, con sideran do d iversas con - cepções e ap licação da categoria de an álise “es- p aço” em ep id em iologia . O con teú d o ab ord a- d o é d e extrem a im p ortân cia n os d ias a tu a is para a saúde pública e, particu larm en te, para o desen volvim en to da ep idem iologia , ten do em vista a p ossib ilidade de ap on tar p ara h orizon - tes exp licativos das n ovas e velhas m azelas que afligem as d iferen tes sociedades, popu lações e in divíduos. O u so d o esp aço en q u an to ca tegoria d e an álise para a com preen são da ocorrên cia e da distribu ição das doen ças n as coletividades su r- ge an tes m esm o da con solidação da ep idem io- logia com o discip lin a cien tífica. De fato, a rela- ção d o m eio geográ fico com o p rocesso saú - de–doen ça e sua h istoricidade já são estudadas d esd e, ap roxim ad am en te, 480 a .C. com o t ra - b a lh o d e Hip ócra tes in t itu lad o Ares, Águ as e Lu gares (Pessoa , 1978),n u m a con cep ção am - b ien ta lista , ten d o u m a ap licação con cre ta n a ep id em io logia a p a r t ir d os estu d os d e Sn ow (1990) sob re o m odo de tran sm issão da cólera em Lon dres, n o in ício da Revolu ção In du stria l e Cien tífica. Certam en te, con cord am os com as au toras quan do apon tam que é a teoria da doen ça que tem gu iado ep istem ologicam en te a con cepção do espaço em ep idem iologia e verificam os que o artigo ap resen ta um a trajetória bastan te per- t in en te q u an d o ob serva q u e, h isto r icam en te, se t rab a lh a u m a con cep ção d e lu gar cen trad a n o n a tu ra l. Essa con cep ção é tam b ém u m a con tribu ição de fu n dam en tal im p ortân cia p a- ra a com p reen são da ep idem iologia das doen - ças in fecciosas, p a r t icu la rm en te as d e t ran s- m issão ve tor ia l, com o exp licitad o p or Silva (1997). Ta lvez isso ocorra p orq u e as d oen ças in fecciosas ap resen tam elos en tre o espaço e o corpo determ in ados extern am en te (vírus, bac- tér ia s, fu n gos, e tc.), t ran sm it id os ou n ão p or vetores, sen d o m ais visíve is p a ra o con h eci- m en to cien tífico adqu irido p elo h om em n este Debate sobre o artigo de Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro Debate o n the paper by Dina Czeresnia & Adriana Maria Ribeiro Dep artam en to de Saú de Colet iva, N ú cleo de Estu dos em Saú de Colet iva, Cen tro de Pesqu isas Aggeu Magalh ães, Fu n dação Osw aldo Cru z . Dep artam en to de Med icin a Social, Un iversidade Federal de Pern am bu co. Edu ardo Maia Freese de Carvalh o sécu lo, fu n d am en tad o n o p arad igm a b io logi- cista. Em con trapartida, em relação às doen ças crôn ico-d egen era t ivas e con sid eran d o o m o- delo m u lticau sal, os elos en tre corp o e esp aço são m en os eviden tes, dado que o elem en to ex- tern o n ão p od e ser recon h ecid o n a fo rm a d e agen tes tran sm issíveis. É com a corren te m arxista da geografia que a ep idem iologia bu sca elem en tos exp licativos d as re lações en tre esp aço e socied ad e, ten d o, con tu do, sem p re a con tribu ição de ep idem io- logistas com o Castellan os (1987), Possas (1989), Lau re ll & Noriega (1989), Bre ilh e t a l. (1990), d en tre ou tros, qu e p rocu raram evid en ciar as- p ectos relacion ados às desigu aldades existen - tes en tre classes e d istin tos gru p os sociais. Es- sas con tribu ições se expressam claram en te pa- ra a lém d aq u elas q u e se en con tram est r ita - m en te n o cam po b iológico, ao con siderarem as con tradições existen tes n o m odelo econ ôm ico, n o p rocesso d e in d u stria lização, n a u rb an iza- ção, n a q u estão agrá r ia e n as m igrações, q u e têm in fluen ciado de form a extrem am en te m ar- can te n a organ ização social do esp aço h ab ita- do (San tos, 1988). Porém , é fa to q u e as vá r ias con cep ções e m od elos acim a refer id os n ão con sid eram a sub jetividade existen te en tre os elos que sep a- ram espaço, en quan to categoria de an álise, e o in d ivíduo. En tretan to, os d iferen tes au tores la- t in o-am erican os, a in d a q u e cen trad os n u m a visão q u e p r ivilegia a d oen ça , têm a lcan çad o avan ços im p ortan tes q u an d o con sid eram o processo de adoecer com o determ in ado social- m en te, en ten d id o en qu an to p rocesso h istóri- co. Estes con sid eram d o is m om en tos fu n d a- m en tais: 1) O m om en to da p rodu ção (trabalh o), co- m o exp lica tivo p ara u m p erfil ep id em iológico de doen ças crôn icas, p articu larm en te do setor secu n dário (in du stria l) e terciário (com ércio e serviços), secun darizados pelas doen ças in fec- ciosas e parasitárias; e 2) O m om en to d a rep rod u ção d a fo rça d e trabalho, que, ten do em vista o in su ficien te sa- lá r io, n ão d á con d ições ao t rab a lh ad or d e su - p rir su as n ecessid ad es b ásicas d e sob revivên - cia , com o a lim en tação e m orad ia ad equ ad as, san eam en to básico, lazer, etc. Em con seqü ên - cia, verificam os um perfil ep idem iológico com p red om in ân cia d as d oen ças in fecciosas e p a- rasitárias, secu n darizadas p elas en ferm idades crôn icas e degen erativas. En ten dem os qu e existe, a in da, u m terceiro ou n ovo padrão ep idem iológico em sociedades em ergen tes, em um con texto de in iqü idade so- cial, que en carn am e espelham as con tradições d a fo rm a d esorgan izad a d e ocu p ação d os es- O CO NCEITO DE ESPAÇO EM EPIDEMIO LO GIA 607 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 p aços u rb an os e ru ra is. Nesses loca is, coexis- tem , em n íveis e levad os , as en ferm id ad es a r- ca icas, (có lera , esq u istossom ose, sa ram p o, h an sen íase, tu bercu lose), p ara as qu ais já d is- pom os de tecn ologia para errad icá-las ou con - tro lá -las, e as en ferm id ad es d a m od ern id ad e, p a r t icu la rm en te as en ferm id ad es crôn icas e d egen era t ivas, b em com o even tos e d an os à saú de, in clu sive as m ortes violen tas (aciden te de trân sito, hom icíd io etc.). Ou tras du as con siderações colocadas p ara discussão são: 1) O em p rego d e técn icas d e georreferen - ciam en to e geop rocessam en to dos dados e in - form ações, qu e m u ito têm con tribu ído p ara o en ten d im en to d o esp aço en q u an to ca tegoria d e an á lise. En tre tan to, essas técn icas n ão d e- vem ser en ten d idas com o ciên cia ou p an acéia p ara exp licar o p rocesso saú de–doen ça, p osto qu e su as p ossib ilidades e p oten cia lidades são am p las, m as tam b ém têm cla ras lim itações, pois são técn icas apen as. 2) A segu n d a con sid eração é a reflexão so- b re os am b ien tes d e t rab a lh o e su as re lações con flitan tes en tre chefes, supervisores e os de- m ais trabalhadores. Relações geradoras de ten - são psicológica e estresse, que debilitam a saú - de dos in d ivíduos e que ain da n ão foram devi- d am en te exp lorad os p e la ep id em io logia , n a m edida que p ouco se con h ece sobre estas e os elos existen tes en tre espaço e corpo. Por ú lt im o, a s au toras n os fazem tam b ém refletir sobre a u tilização do m étodo ep idem io- lógico baseado n a quan tificação e d istribu ição das doen ças in fecciosas e parasitárias e n o m o- delo dos fatores de risco para as doen ças crôn i- co-degen erativas. Parece claro que tal m etodo- logia n ão é ap rop riad a p a ra com p reen d er a su b je t ivid ad e existen te en tre esp aço e corp o. En tre tan to, p a rece, tam b ém , óbvio q u e, p a ra b u sca r com p reen d er a su b je t ivid ad e d o p ro- cesso d e ad oecer, é n ecessário n os ap rop ria r- m os do m étodo qualitativo, este sim possu idor de poten cialidades capazes de exp licar catego- r ia s d e an á lise su b je t ivas. A tão p recon izad a tr ian gu lação m etod ológica en tre a s ciên cias, visan d o a in terd iscip lin a r id ad e e, q u içá , a tran sd icip lin arid ad e, ap aren ta ter gran d e p o- ten cia l d e b u sca r d esven d ar a com p lexid ad e do p rocesso saú de–doen ça, cen trada, p articu - larm en te, n a saúde. BREILH, J., 1990. Deterioro de la Vida. Un In stru m en - to p ara An alisis de Prioridades Region ales en lo Social y la Salu d . Qu ito: Corporación Editora Na- cion al. CASTELLANOS, P. L., 1987. Sob re el con cep to sa lu d - en ferm id ad : Un p on to d e vista ep id em io lógico. In : Con gresso Mun dial de Medicin a Social, An ais, p . 5. Med ellin : Con gresso Mu n d ia l d e Med icin a Social. (m im eo.) LAURELL, A. C. & NORIEGA, M., 1989. Processo de Produ ção e Saú de: Trabalh o e Desgaste Operário. São Pau lo: Editora Hucitec. PESSOA, S. B., 1978. En saios Médico-Sociais. São Pau- lo: CEBES/ Editora Hucitec. POSSAS, C., 1989. Epidem iologia e Sociedade: Hetero- gen eidadeEstru tu ral e Saú de n o Brasil. São Pau lo: Editora Hucitec. SANTOS, M., 1988. Metam orfose do Espaço Habitado: Fu n dam en tos Teóricos e Metodológicos da Geo- grafia. São Pau lo: Editora Hucitec. SILVA, L. J., 1997. O con ceito de espaço n a ep idem io- logia das doen ças in fecciosas. Cadern os de Saú de Pú blica,13:585-593. SNOW, J., 1990. Sobre a Man eira de Tran sm issão do Cólera . 2a Ed . São Pau lo: Ed itora Hu citec/ Rio d e Jan eiro: ABRASCO. Elos entre geografia e epidemiologia O art igo de Din a Czeresn ia & Adrian a Ribeiro apresen ta um a reflexão oportun a sobre o espa- ço n a ep idem iologia. Ou tros artigos com p reo- cu p ações sem elh an tes vêm sen do p u b licados nos p róprios Cadernos de Saúde Pública nos ú l- t im os an os, dem on stran do u m a retom ada de um a abordagem espacial para os p roblem as de saúde. Den tre estes podem ser m en cion adas as con tribu ições de Maria da Con ceição Costa & Maria da Glória Teixeira (Costa & Teixeira, 1999), Lu iza Iñ igez Rojas (Rojas, 1998) e Lu iz Jacin tho da Silva (Silva , 1997). Tam bém em artigo n esta revista, apon tam os van tagens e riscos do uso do geoprocessam en to para an álises de am bien te e saúde, p rocuran do iden tificar p roblem as teóri- co-m etodológicos en con trados n essa p ossível jun ção (Barcellos & Bastos, 1996). Essa série de artigos, en tre os quais se destaca a p resen te re- visão, perm ite hoje recuperar corren tes h istóri- cas e id en t ifica r ten d ên cias d o u so d o esp aço com o ca tegoria d e an á lise d a ep id em io logia . Diversos ou tros artigos, qu e vêm sen do recen - tem ente apresen tados nesta e em outras revistas de saúde pública, con têm m apas ilustrativos ou dem onstrativos da distribuição espacial de agra- vos à saúde, suas fon tes de risco ou determ inan- tes sociais e am bien tais. Felizm en te, a crescen - te u tilização de categorias geográficas n a an áli- se d e saú d e p arece estar sen d o acom p an h ad a por reflexões a cerca de sua form ulação teórica. Com o ap on tad o p elas au toras, geografia e ep idem iologia têm h istórias sem elhan tes, m ar- Dep artam en to de In form ações em Saú de, Cen tro de In form ações em Ciên cia e Tecn ologia, Fu n dação Osw aldo Cru z . Ch ristovam Barcellos CZERESNIA, D. & RIBEIRO , A. M.608 Cad. Saúde Púb lica, Rio de Jane iro , 16(3):595-617, jul-se t, 2000 cad as p or u m a in ten sa t roca com ciên cias d a n a tu reza e d a socied ad e. A ep id em io logia e a geografia talvez ten ham em com um , p rin cipal- m en te, as cr ises qu e costu m am p rod u zir p ela saturação de m odelos ou por sua superação em razão d e n ovas rea lid ad es. A AIDS, lem b rad a p elas au toras, é u m a d essas n ovas rea lid ad es qu e acab aram p or d erru b ar an tigos con ceitos e esquem as de an álise. Foi assim com o m ode- lo p roposto por Pavlovsky, superado pela u rba- n ização d e d oen ças n ão exp licad as p or u m a eco logia ou geogra fia d a p a isagem n a tu ra l. Tan to Pavlovsky quan to Max Sorre trabalharam com a ecologia, n o sen tido de ciên cia das rela- ções en tre am bien te e seres vivos, e talvez, p or isso, se p ren deram aos p rin cíp ios de equ ilíb rio m eio in tern o/ m eio extern o, hom em / m eio, pa- rasita s/ h osp ed eiro. Ta lvez esses m od elos se- jam ad equ ad os p ara o estu d o d e a lgu m as en - dem ias, m as n ão para doen ças n ão tran sm issí- veis e situações ep idêm icas. Algum as vezes te- m os qu e p en sar n o desequ ilíb rio, n o efeito de u m fa to n ovo – u m n ovo agen te in feccioso ou as m igrações – n a d e term in ação d e d oen ças. Tam bém p arece estar em crise a ch am ada ep i- d em io logia d os fa to res d e r isco (Caste llan os, 1990), que freqüen tem en te descon sidera as in - terações en tre in d ivídu os (u n idades de obser- vação) e as con d ições co le t ivas qu e em ergem d estas re lações. Algu m as d as im p ortan tes ex- p ressões d essa colet ivid ad e são as cid ad es, as redes sociais, os grupos sócio-espaciais, locali- zados em guetos ou con dom ín ios residen ciais, ou o rgan izad os em to rn o d e fa to res com u n s q u e u n em p essoas, p rod u zem su b je t ivid ad es coletivas e se m an ifestam n o esp aço; em lu ga- res p a r t icu la res (Sab roza & Lea l, 1992). Essas re lações são n ecessa riam en te co le t ivas e têm expressão espacial, em bora m uitas vezes de d i- fícil ap reen são. O lugar, ao lado de p essoas e tem p o, é um a das três p rin cipais d im en sões de an álise de fe- n ôm en os ep idem iológicos. Essa categorização é m eram en te d id á t ica , u m a vez q u e p essoas, tem p o e lu gares in teragem . O con ju n to lu gar- tem p o-p essoas é, em ou tras p alavras, p recisa- m en te o ob jeto da geografia . A geografia estu - da a relação en tre sociedade e esp aço, ou seja , com o, on de, em qu e con d ições e p or qu e cau - sas se dá o desen volvim en to hum an o (n ão p ro- p r iam en te eq u iva len te ao d esen volvim en to p essoa l) n a su p erfície d a terra (lu gares). Pa ra isso, com p reen de esse p rocesso com o resu lta- do da acum ulação de forças h istóricas (tem po). Nesse sen t id o, o esp aço n ão só viab iliza a circu lação d e agen tes, com o en fa t izad o p elas au toras, m as estabelece um elo, un in do, de um lado, grupos popu lacion ais com características sociais que podem m agn ificar efeitos adversos e, d o ou tro lad o, fon tes d e con tam in ação, lo - ca is d e p ro liferação d e ve to res. Essa ligação acon tece não só no espaço, m as, p rincipalm en- te, se dá a través da organ ização esp acia l. Essa organ ização im põe um a lógica de localização e fun cion am en to, tan to para a p rodução quan to para a rep rodução da sociedade. Esse en con tro sin gu lar en tre con dições de risco e popu lações em risco é d eterm in ad o p or fa tores econ ôm i- cos, cu ltu rais e sociais que atuam n o espaço. O exem p lo da saú de dos trabalh adores é, ta lvez, o m ais gritan te, em que a posição do in d ivíduo n o espaço de trabalho está fortem en te relacio- n ada à fun ção por ele exercida e a toda a estru - tu ra de p rodução, u tilizan do categorias da geo- gra fia su gerid as p or Milton San tos. Esse con - ju n to d e variáveis, q u e é in d issociável, d e ter- m in a as con dições de risco a que estão subm e- tidas p arcelas da p op u lação de trabalh adores. Essas re lações n ão são tão evid en tes n o ch a- m ado am bien te geral, isto é, n o espaço de m o- rad ia, de circu lação e de con sum o. Nesse caso, cabe à in vestigação ep idem iológica e à geogra- fia da saúde restabelecer esse elo. O u so do esp aço n a área de saú de tem sido in crem en tado com o crescen te acesso a bases d e d ad os ep id em io lógicos e p e la d isp on ib ili- d ad e d e ferram en tas ca r tográ ficas e esta t íst i- cas com putadorizadas. O uso dessas ferram en - tas p ressupõe, n o en tan to, m odelos de exp lica- ção d o p rocesso saú d e/ d oen ça b asead os em variáveis espaciais, com o d istân cia e vizin han - ça , e n o in ter-re lacion am en to com d ad os d e caracterização do lu gar. O esp aço é m u itas ve- zes u t ilizad o com o sim p les p lan o geom étrico para a d isposição e an álise de dados ep idem io- lógicos, ten do com o p rem issa os elem en tos es- p acia is p róxim os com p art ilh a rem con d ições sócio-am b ien ta is sem elh an tes. O esp aço tem sido fragm en tado para, n um a segun da aborda- gem , perm itir verificar a d iferen ciação de con - d ições socia is e am bien tais, ten do com o p res- su p ostos a h om ogen eid ad e in tern a e a in d e- p en d ên cia d as u n id ad es esp acia is d e agrega- ção e an á lise d e d ad os. Um a terce ira ab ord a- gem é focada n a visão particu lar do lugar e das circun stân cias em que o espaço pode p roduzir r iscos à saú d