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Reflexões sobre Memórias e Literatura

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a) o caso de um Palma Bravo, um dos mais antigos, não sei qual, ensinando que pelo ladrar dos 
cães se conhece o respeito de casa. Sublinhado pelo ladrar dos cães;
b) padre Benjamim Tarroso, prior da Gafeira, declarando que preferia caçar de salto como o 
criado a levar com ele o mais fino cachorro (apoiava-se em Bergson e, se não estou em erro, tomava 
o instinto como uma forma primária de dedicação);
c) a parábola da filha desobediente, contada pelo Engenheiro com as sábias palavras do tio 
Doutor Gaspar, pai desventurado: "Um homem dá tudo menos os cães e os cavalos";
finalmente d) a definição de Domingos: um indivíduo que tratava as máquinas como se fossem 
animais e que dominava os cães como se fossem máquinas. “A precisão requer um instinto especial, 
e este tipo tem-no. Se formos a ver bem, a fidelidade dos cães avalia-se pela prontidão, i.e., pela 
precisão como reagem aos estímulos” - comentário (aproximado) de Tomás Manuel no dia em que 
Domingos lavava o motor do Jaguar.
Podia juntar mais. Enchi páginas e páginas com lembranças da lagoa, e até pedaços de livros 
antigos copiei, sentado a esta mesa. Mas eis que, quando trago de Lisboa o meu caderno e me 
preparo para recomeçar a preenchê-lo como dantes, com prazer e meditação, eis que o mundo antigo 
desaparece e me deixa a uma janela, de braços caídos, atordoado. Já não tenho Tomás Manuel 
como modelo vivo, como pão da minha curiosidade.
Nem Maria das Mercês. Nem o Domingos, que se transformou em cão-maneta. Nunca mais as 
noitadas da lagoa terão aquele deslizar brando e espesso – o travo macio do gin, como eu dizia 
tantas vezes.
Por isso, se pretender juntar aos meus apontamentos a menor ideia, a menor palavra, serei, 
como o abade da Monografia, narrador de tempos mortos. Falarei obrigatoriamente de ruínas, 
misturarei ditos e provérbios, pondo-os na boca do filho quando pertenciam ao pai ou ao tataravô, 
numa baralhada de espectros em rebelião. E se, para completar, invento uma legenda do tipo Ad 
Usum Delphini, pior. Mais me aproximo da toada dos doutores de água benta, à cabeça dos quais se 
coloca o sempre repeitado Dom Agostinho Saraiva, meu precursor nas memórias da Gafeira. 
Miserere mei. 
LEITURA COMPLEMENTAR
O artigo O Delfim e o Pós-Modernismo (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.), de 
Seleste Michels da Rosa, apresenta uma leitura mais aprofundada desse importante romance de José 
Cardoso Pires. 
FÓRUM
Neste fórum vocês devem postar comentários sobre o que perceberam de diferenças de perspectivas 
e de propostas entre Carlos de Oliveira e José Cardoso Pires a partir dos trechos das obras lidos e de 
pesquisa pessoal. 
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