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E ali ficara entre gente pobre, numa aldeia de terra escassa, vivendo de dois pedaços de pão e uma chávena de leite, com uma batina limpa onde os remendos faziam um mapa. [...] padre perfeito no zelo da Igreja; passando horas de estação aos pés do Santíssimo Sacramento; cumprindo com uma felicidade fervente as menores práticas da vida devota; [...] (QUEIRÓS, 2000, p. 863-865) Outro exemplo da influência do meio corrupto no delineamento da psicologia do protagonista frente à vida dupla levada pelo clero pode ser ilustrado pela reação deste na descoberta do relacionamento entre o Cônego Dias e a S. Joaneira, dona da casa onde aluga um quarto e mãe de Amélia: Vinham-lhe então outras reflexões: que gente era aquela, a S. Joaneira e a filha, que viviam assim sustentadas pela lubricidade tardia de um velho cónego? A S. Joaneira fora decerto bonita, bem feita, desejável — outrora! Por quantos braços teria passado até chegar, pelos declives da idade, àqueles amores senis e mal pagos? As duas mulherinhas, que diabo, não eram honestas! Recebiam hospedes, viviam da concubinagem. Amélia ia sozinha à igreja, às compras, á fazenda; e com aqueles olhos tão negros, talvez já tivesse tido um amante! [...] A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando depressa, cheio de uma só ideia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cónego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cónego cheio de dificuldades asmáticas, — Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental, quase doloroso: agora a ideia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua. — Que pechincha de casa! (QUEIROS, 2000, p.291 – grifos nossos) Uma das ideias mais contundentes da obra que chocou o país é a crítica feita ao poderio da Igreja, da influência do clero corrompido que, sob a proteção de um discurso religioso, relativiza as normas sociais e éticas. A explicação de Dr. Gouveia, dada a João Eduardo, personagem perseguido na história, funciona como a voz da razão refletindo sobre a relativização dos conceitos efetuada pela instituição católica, segundo as intenções de manutenção da ordem vigente e da obediência dos fiéis. Nessa conversa, o médico analisa a moral da Igreja em contraposição à moral social: 144