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Associação Brasileira de Daseinsanalyse Revista da Associação Brasi leira de Daseinsanolyso • N" !J :,J ()OO . Daseinsanalyse I Associação Brasileira de Daseinsanalyse Nº 9 (2000) - São Paulo: A Associação, 2000 Irregular ISSN 1517·445X 1 . Psicologia - Periódicos 2. Psicoterapia- Psicopatologia - Fenomenologia- Existencial CDD 150.5 Associação Brasileira de Daseinsanalyse Rua Cristiano Vian a, 172 - Fones : 3082-9618 · 3081 -6468- CEP 05411-000 - São Pau lo FILIADA À INTERNATIONAL FEDERATION OF DASEINSANALYSIS- ZURICH- SUIÇA ÍNDICE APRESENTAÇÃO .... ................... ....... .......... .... .... .. .. .... .. ...... .. .............. 3 A NATUREZA DA SINGULARIDADE DA PSICANÁLISE Medard Boss ... .. .. ....... .. ................... ... ..... ....... ... .. .................. ......... ........ 4 DASEINSANALYSE E PSICOTERAPIA Ida Elizabeth Cardinalli ............. .... .... ... ....... ...... .. ..11 UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA João Augusto Pompéia .... ...... .. ................................... .. ... 19 DESFECHO - ENCERRAMENTO DE UM PROCESSO João Augusto Pompéia ....... ... .... ....... ... ................................... ....... ....... 31 !\TRAJETÓRIA HUMANA: UMA PERSPECTIVA DASEINSANALYTICA Maria Beatriz Cytrynmvicz ........ .... .............. .. ............ .................... ...... 44 O TEMPO DA INFÂNCIA filiaria Beatriz Cytrynowicz ..... () MUNDO DA CRIANÇA A /(I ria Beatriz Cytrynowicz .. .. .... .. . () ' I ' I ~ MPO DA MATURIDADE ""54 .. ........ .. .. .... .. ....... .. . 74 ,lt11111 !l u.rzusto Pompéia ......................... .. ....... ................. ..... .. ..... .. .. .. ... . 90 A TRAJETÓRIA HUMANA: UMA PERSPECTIVA DASEINSANALÍTICA* MARIA BEATRIZ CYTRYNOWICZ Resumo Este é o primeiro de três miigos que se propõem a uma compreen são da criança, desenvolvida a pmiir da perspectiva daseinsanalítica, que tem como base a fenomenologia existencial. Questiona, primeiramente, o conceito de desenvolvimento infantil, comum à psicologia, que se forma na observação geral da maioria e que propõem parâmetros de normalidade e anormalidade. Aponta, então, a importância de considerar a criança como ser humano em pmiicular,-re levando a sua condição de ser-no-mundo sempre compartilhada com e pelo outro. E, assim, esclarece como a pergunta sobre como ou quem é a criança só pode ser respondida considerando-se o mundo em que ela vive, em cada caso, no qual está também o próprio adulto que faz a per gunta. Neste sentido, esta pergunta não se refere apenas a uma outra pes soa, mas também responde a pergunta "Quem sou eu?" do adulto. Abstract- The Human Trajectory: A Daseinsanalitic Perspective This miicle is the first three, pmpmiing an understanding o f the child from the daseinsanalytical view, which is based on existential phenomenology. Firstly the author questions the concept of child development, common in psychology, formed by observation ofthe majority and which determines standards o f normality and abnormality. He then points out the importance o f considering the child as a par ticular human being, stressing its condition as a being-in-the-world, always shares with and by the other. Apresentado em Abril de 1993, na Associação Brasileira de Daseinsanalyse, SP- Brasil. 44 Finally, he explains that the question ofhow or who the child is can be answered only by taking into consideration the world in which he or she lives and which the adult who asks the question is also present. In this sense, h e question refers not only to another person, but it also answers the adult's question "who am I"? PALAVRAS-CHAVE: Criança, Desenvolvimento, Ser Humano, Daseinsanalyse, Ser-no- mundo. Introdução TRAJETÓRIA HUMANA - com este título tentaremos desenvol ver, à luz da Daseinsanalyse, uma maneira de entender e falar da criança, do adolescente e do adulto, enquanto a própria unidade (Dasein, Existên cia) que eles constituem, mas também e conjuntamente na própria especificidade de cada um. Como compreender a criança, que se toma adolescente e este que se toma adulto, mas que quando é criança é já inteiramente e do jeito dela mesma de ser? Como falar do adolescente que é ele, mas que também não é, mas que este "não é" não é nem a criança nem o adulto, mas justamente ele mesmo? A Daseinsanalyse, entendida aqui, é um método em seu sentido mi ginal (META) de caminho de atuação, desenvolvida inicialmente pelo psi quiatra suíço Medard Boss (1903-1990) fundamentado na obra básica do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) SER E TEMPO (1927) e em suas originais contribuições posteriores, tanto no campo da ontologia e filosofia, como aquelas diretamente ligadas ao campo da psicologia e psi quiatria, como os SEMINÁRIOS DE ZOLLIKON (1959-1969). Na verdade, não organizamos estes encontros apa1iir do título "Traje tória Humana". Ao contrario, este foi um título que smgiu posteriormente, depois de muitos estudos e conversas em tomo do desafio que é trazer para a Psicologia, especialmente para a atuação em psicoterapia, os ensinamentos básicos fenomenológicos e a abertma da compreensão desenvolvidos por Heidegger sobre o existir humano e o próprio Ser. Nestes nossos estudos e conversas estiveram sempre presentes, além daquilo que lemos de Mmiin Heidegger, Medard Boss e outros autores próximos no caminho da 45 fenomenologia e dos temas em questão, a poesia sobretudo de poetas como Fernando Pessoa, e a nossa própria experiência profissional e pessoal. O que podemos falar - e como - que guarde a possibilidade da abrangência para todos e a especificidade de cada um, em cada caso? Isto será possível? Como aproximar a compreensão mais fundamental da essência do existir humano como ser-em-cada-caso e sempre-já-em-to talidade para um campo de atuação que, em sua tradição, viu e continua vendo, o homem segundo princípios gerais e forças comuns, como se fora uma realidade material qualquer ? A compreensão desenvolvida em e apartir de SER E TEMPO sobre Temporalidade, Historicidade, Espacialidade, Cuidado (Sorge), Culpa bilidade, Angustia e Ser Mortal é definitiva para que não mais possamos nos contentar com as explicações teórico-científicas-psicológicas, das mais diversas correntes, para o desenvolvimento e as condutas humanas. A sequência das experiências psicológicas não pode mais, em si, ser vis ta como determinante de tudo que podemos compreender como éondi ção humana. Ao contrário, o acontecer psicológico, sendo histórico e assim temporal e situado, se dá já no humano e é nesta condição que ganha o seu sentido. O que significa então ser-humano? Estamos nos propondo a compreender esta questão na perspectiva da experiência do seu acontecer - que é fundamental em qualquer atua ção na Psicologia. Esta proposta aceita, no fundo, a possibilidade de tor nar conhecida a criança, o adolescente e o adulto, de um modo tal que preserve a fundamental condição humana de ser-si-mesmo. Tornar-co nhecido e deixar-ser é a nossa direção. Dito de outro modo, a possibilidade desta empreitada está compre- endida nesta poesia do poeta Raimundo Gadelha: "Temos no olhar a prisão de imagens e no coração sede de liberdade ... * a emoção do vôo." Gadelha, R. (199 1) Um Estmnho Chamado Horizonte 46 Primeiramente queremos ressaltar que organizamos nossos traba- lhos "Trajetória Humana" em torno de três tempos (épocas): Tempo da Infância (Maria Beatriz Cytrynowicz) Tempo da Adolescência (Carlos Eduardo Carvalho Freire) Tempo da Maturidade (João Augusto Pompéia) Tempo da Infância está dividido em três partes: Trajetória Huma na, Tempo da Infância e Mundo da Criança. Esperamos que esta divisão venha a se tornar clara a medida do desenvolvimento do próprio trabalho. SOBRE O DESENVOLVIMENTO INFANTIL É o mais comum que os estudos sobre o ser humano, feitos na Psi cologia, sejam chamados de DESENVOLVIMENTO quando se referem aos bebês eas crianças. Mas tanto que se fala em desenvolvimento, pouco se pensa sobre isto, na Psicologia. Esta palavra desenvolvimento é usada com diferentes sentidos e em diferentes contextos. Por exemplo: "Esta criança está pouco desenvolvida, necessita de mais exercícios físicos". "O ego ainda não está desenvolvido nesta idade!" "Esta é uma classe para os mais desenvolvidos!" E ainda: "Os países são mais desenvolvidos, não desenvolvidos ou em desenvolvimento". O que significa desenvolvimento em cada uma das frases acima? Há desenvolvimento como crescimento fisico , condição psicológica, fmiale cimento emocional, qualidade intelectual, fator sócio-econômico, padrão cultural, ou simplesmente como surgimento de algo que antes não havia. Ante tal diversidade de uso da expressão desenvolvimento será que ela é a melhor maneira para começarmos a compreender o nosso próprio viver? 47 Vale ainda relembrar que "teorias de desenvolvimento", na Psicolo gia, se ocupam dos humanos até a idade próxima dos doze anos. O que está implícito ai? Além disso, tais leis de desenvolvimento servem como padrão de normalidade, como as que determinam a melhor idade para as crianças entrarem na escola, ou que determinam se elas apresentam con duta normal. Teorias de desenvolvimento cognitivo e emocional, das mais diversas correntes teóricas na psicologia, referem-se a "desenvolvimento normal". Desenvolvimento normal torna-se padrão de crescimento e con duta. A descrição de comportamentos normais gerais atende a um princí pio científico da verdade universal. Assim, com as teorias de desenvolvi mento, a Psicologia tem atendido à busca dos parâmetros gerais que ser vem à comparação e a unificação de todos os humanos. Na Educação institucionalizada, p.ex., o estabelecimento de pa drões e objetivos comuns para todos os alunos é necessário. Pois, uma escola - que represe1~ta o mundo público e geral em certo sentido, como disse Hmmah Arendt - sem o mínimo de organização pré-estabelecida, não funciona. Um exemplo de experiência de escola sem normas prévias foi a inglesa SUMMER HILL. Por volta dos anos 60, alguns educadores acre ditaram que o que estava errado com as escolas tradicionais era a exis tência de normas impostas pelos adultos. Então propuseram uma nova escola em que somente estavam previamente arranjadas as condições gerais básicas como: prédio, subsídio financeiro, professores disponí veis para a nova experiência, etc ... O funcionamento geral, desde a re cepção dos alunos à divisão por classes e a escolha das atividades e au las, era resolvido pelas crianças. A experiência acabou em fracasso. E se disse na época que tinha havido uma completa infantihzação de todo o sistema e conseqüente desmoronar de qualquer sentido educacional. Havia ocorrido falta de metas claras. As metas que se referem ao movimento em direção ao futuro , no caso de uma escola, implicam necessariamente no comprometimento do adulto com o próprio en~ino e educação. So mente depois de estudar, é que alguém pode conhecer mais, refletir e, então, escolher as metas para o ensino. A Crise na Educação em Entre o Passado e o Futuro. 1954. 48 É importante também lembrar que, no campo da Medicina, o cres cimento normal é um parâmetro muito valioso. Mas, devido à própria natureza da prática médica, os padrões são afastados imediatamente nas situações críticas. Quanto mais cuidadoso for o médico, mais atento es tará à observação particular do exame clínico de seu paciente e da histó ria individual do observado. Isto faz pensar que as situações críticas mais iminentes forçam o olhar para uma direção mais singular, deixando de lado o menos significativo em cada caso, ou seja, o geral. Na crise, pare ce que a média se retrai e o singular se acentua. Esta é uma experiência com a qual os médicos estão particularmente em contato. Não nos parece então adequado compreender a criança a pmtir do caráter geral do desenvolvimento que somente aproxima normalidades de crescimento ou conduta, mas que pouco nos diz do modo de ser crian ça e do tempo da infância. Assim, voltamos à pergunta: Como podemos compreender, a partir de uma perspectiva da Daseinsanalyse, a criança, o seu mundo e o tempo da infância? Quando uma criança nasce, ainda na maternidade, no primeiro dia de vida, passado o momento crítico do nascimento (de quando se per gunta "O bebê está bem, é normal?") é muito comum que as visitas ou mesmo os familiares perguntem "Com quem se parece o bebê?" ou que brinquem sobre o futuro da criança "Vai ser engenheiro ? Não, vai ser médico ... Acho que vai ser artista". Nestas horas sempre me ocorre a agonia que as pessoas devem estar sentindo: incomodadas com aquilo que não vêem, se apressam em dar uma cara, uma feição ao bebê. Muitas vezes, a torcida já existe antes do pequeno nascer: "Seria tão bom se ele puxasse o jeito do pai", "Seria fantástico se ele levasse o jeito artístico da mãe", "E se fosse atleta ! " O bebê já nasce com uma cara! Mas ... Logo, logo, já nos primeiros dias, o bebê surpreende: Lembro-me de uma mãe que ficava inconformada com o seu filhinho que dormia quase sem parar e mal acordava para comer. Logo começaram as preocu pações em relação ao bebê: "Será que ele vai ficar subnutrido? Ele vai morrer de inanição?" Outra mãe quase teve um "stress" quando a sua filhinha "chorava sem parar" . A impressão, num primeiro momento, é que algo não estava 49 certo. Algo saiu errado, anormal. Bebês não dormem tanto! Bebês não choram tanto! Mas, quem disse isto? Quem decidiu? Na verdade, foi ninguém. Mas aquelas mães, como todas as mães, esperavam por um filho com uma cara, com um jeitão! E é assim que se inicia a tarefa de todos os bebês, os que ainda são bebês, os que ainda virão e os que já foram: acontecer ele mesmo no seu mais peculiar e único ser. Nesta tarefa já está em jogo um sim e um não, um mostrar e um esconder, um aceitar e um recusar, pois já de início, como humano, o bebê já é constituído pela historicidade, esta que se apresenta tanto em seu caráter de herança, como de se criar ele próprio . Como vemos, logo de início, cabe ao pequeno bebê mostrar, apon tar quem ele é. Esta é uma tarefa que ninguém pode executar por ele. Nem por procuração. Do jeito que ele é, somente ele mesmo. E para isto não é necessário que ele saiba o que está fazendo, que aprenda, nem que decida fazê-lo. A ele cabe apenas e sobretudo realizar a tarefa de ser. Esta não é uma tarefa como as outras: não tem lugar nem hora certa, não trata de alguma coisa ou pessoa específica, não tem objetivo prévio: moto-contínuo de vida! O DESENVOLVIMENTO, no sentido próprio do acontecer huma no, não pode ser descrito por ·um projeto prévio. Podemos melhor descrevê-lo como um CAMINHAR, não como um caminho, mas como o caminhar mesmo. Neste sentido, como se movimentar que abre a pos sibilidade de um certo caminho, pois é quando caminhamos que desco brimos o caminho que trilhamos. ... Este caminhar se dá, em cada caso, descobrindo e encobrindo pos- sibilidades. E esta é uma tarefa que não tem idade: já é dada no nasci mento e nos acompanha até o morrer. Às vezes ele é solitário, outras é compartilhado por pessoas que nele se tornam mais presentes ou que se distanciam. Assim, no próprio caminhar estamos já, desde o início, descortinando o próprio caminho com as possibilidades de convívio com os outros. O caminho que este caminhar trilha às vezes permanece descober to, outras vezes se encobre logo que é descortinado, pelo esquecimento 50 mesmo ou pela desatenção de quem não viu. Isto mostra que nem sempre as experiências descobertas prevalecem em seu sentido primeiro no de correr do caminho, como uma totalidade. Possibilidades inicialmente descobertas nem sempre permanecem, outras são descobertas mas não atentamente. Algumas retornam, outras não. Caminhar não é uma tarefa sempre fácil de ser realizada. Muitas vezes é difícil ir contra o quese espera de nós ou ser considerado "anor mal". Por exemplo, em algumas ocasiões vemos alguém se rebelar. Mui tas vezes, no consultório, percebemos que a rebeldia e a afronta são ten tativas de descobrir ou "manter a própria cara". São como gritos contra o jeitão "normal", contra a "cara que se deve ter", contra a regra. Caminhar pode ser também uma tarefa muito sofrida. Quando é assim, é experimentada com receio e a descoberta das próprias possibili dades e das reais oportunidades que o mundo oferece são ameaças pre sentes em cada tentativa. Quase sempre, também, descobrir-se e descobrir o próprio caminho não se dá em harmonia: crises e desilusões povoam os caminhos. Nem sempre o que descobrimos COlTesponde àquilo que queríamos ou imagi návamos. Cada caminhar se dá em seu ritmo. Cada pessoa segue o seu pró prio, como o próprio batimento cardíaco. Mas, como este, também sofre as interferências de fatores "externos". As condições em torno, as priva ções, as solicitações, as companhias, podem estimular ou inibir (não ex tinguir) o próprio caminhar. Nas relações entre pais e filhos, crianças e adultos, algumas vezes o próprio caminhar das crianças sofre interferências que dificultam a des coberta do próprio caminho. Por exemplo, uma mãe superprotetora que controla todas as atividades do filho, mesmo que seja com a intenção de melhor protegê-lo das ameaças, está dificultando o crescimento do filho , enquanto o impede de descobrir e experimentar suas próprias possibili dades de enfrentar situações adversas. Quando isto acontece, esta criança perde a possibilidade de experi mentar mais livremente a sua tarefa mais original que é descobrir que ela mesma pode ser e como. Assim, o caminho descoberto em seu caminhar 51 estará sempre aquém ou além da medida possível, desde a maior retração provocada pelo temor até a d~smedida e exagero provocados pela falta de familiaridade consigo e com o mundo. Outras vezes, é a desilusão dos pais com os filhos que se torna tão grande, que acarreta maior dificuldade para a criança enfrentar a própria vida. Compreender-se como responsável pela desilusão dos pais pode assumir um caráter extremamente pesado. Nesses casos, os pais não con seguem perceber que há uma diferença entre o filho que eles tanto dese jaram e o filho que nasceu. Não se trata da mesma pessoa, esta é a reali dade. Os pais precisam aprender a conhecer seus filhos, como aos filhos cabe aprender a conhecer os próprios pais. Se os pais não se dispõem nesta aprendizagem, ambos permanecerão iludidos e desiludidos e, as sim, permanecerão sempre distantes uns em relação ao outro e da própria possibilidade de aceitar quem são. Finalmente, é importante ainda relembrar mais um aspecto: "Quem é que se preocupa com a questão do desenvolvimento?". Ceriamente este não é um tema.das conversas entre as crianças. (Mesmo que a criança seja muito intelectualizada, felizmente!) A crian ça pode se preocupar com o próprio crescimento, algumas vezes queren do, outras não, "ficar grande". Mas é o adulto, quando se encontra desencontrado ou desco nhecido para si mesmo que, algumas vezes, substitui a pergunta "Quem sou eu?" ou "Como é a minha vida?" por outra: "O que é ser criança?" Esta forma de perguntar mais distanciada~ parece que se refere unicamente a uma outra pessoa. Isto é um engano. Pois, quem é esta criança senão nós, cada um de nós adultos que fazemos esta pergunta, em nossa máis própria possibilidade de ter sido um dia? Ser criança ou ter sido criança é, pois, a nossa própria possibilidade de já ter sido, um dia. É compreendendo esta possibilidade já realizada, compreendendo a própria realização (desenvolvimento próprio), como caminhar e não como o resultado final ou ponto de chegada, que podemos começar a falar da criança, em seu sentido mais próprio. 52 "Constato triste: enquanto envelheço, todos os dias, renasce mais querido o filho que não tenho". (Raimundo Gadelha) Bibliografia - ARENDT, H.- Entre o Passado e o Presente, "A Crise na Educação" Editora Perspectiva S.A. , São Paulo, 1979. - GADELHA, R. - Um Estreito Chamado Horizonte. Massao Olmo Ed. São Paulo, 1991. - HEIDEGGER, M. - Ser e Tempo.(1927) Editora Vozes, Petrópolis, 1989. - HEIDEGGER, M. - Being and Tim e. Basil Blackwell Oxford, 1973. - HEIDEGGER, M. - Seminários de Zollikon . Tradução ainda não publicada de Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado 53 O TEMPO DA INFÂNCIA* MARIA BEATRIZ CYTRYNOWICZ Resumo Neste segundo artigo que propõem uma compreensão fenomenológico-existencial da criança, o desenvolvimento infantil é visto como um revelar de possibilidades, o que, ao mesmo tempo, apro xima e afasta o ser humano do possível de si mesmo e do mundo de possibilidades. Ressalta que o existir da criança, desde o início, só pode ser com preendido como uma totalidade, por mais que para isto tenhamos que reconhecer a limitação do alcance de nossa compreensão, e a partir dos modos como se apresenta a sua relação com o mundo mais próximo. Com estas considerações iniciais, pode-se ver mais claramente como se dá a temporalidade e a historicidade na infância, com a primazia do imediato e o surgimento conjunto do passado e do futuro, instigado pala curiosidade da criança. Abstract- Childhood This second article presents a phenomenological-existential understanding o f childhood. The development o f the child is regarded as a revealing o f possibilities which at the same time'approaches the human being to, and distances him from the possible in himself and the world o f possibilities. From the beginning the existing child should be understood only as a whole, although to this end we must recognize the limits ofthe reach of our understanding. It should also be understood from the ways in which its relation with the world shows itself. Apresentado em Abril de 1993 na Associação Brasileira de Dase insanalyse. SP - Brasil. 54 These initial considerations lead us to see more clearly how temporality and historicity evolve in childhood, with the precedence of the immediate and the simultaneous appearance of past and future , instigated by the child's curiosity. PALAVRAS-CHAVE: Infância, Tempo, Criança, Crescer, Criar, Descobrir Vamos começar relembrando o poeta Raimundo Gadelha, no livro "Um estreito chamado horizonte" : "Temos no olhar a prisão de imagens e no coração sede de liberdade ... a emoção do vôo." O que nos diz este poema a respeito de nossa questão inicial: "De que DESENVOLVIMENTO falamos, a partir da Daseinsanalyse?" ' Bem, assim como no poema, a prisão de imagens convive com a sede de liberdade na emoção do vôo, assim o DESENVOLVIMENTO e o DESENVOLVER-SE também convivem no existir humano. O existir humano se dá em um movimento que, ao mesmo tempo, abre e fecha que, ao mesmo tempo, mostra e esconde. Este movimento - que é tão bem dito com a palavra DESVELAR é também chamado simultaneamente de DESEVOLVIMENTO e DE SENVOLVER-SE. Ao mesmo tempo em que, cada um de nós, nos desenvolvemos estamos tanto indo na direção de nosso próprio caminhar descortinando o e aproximando as nossas peculiaridades, como estamos também: 1 -Nos afastando de certos modos próprios de ser, alguns dos quais mo dificados tão radicalmente até o ponto de os considerarmos perdidos, como p.ex: o brincar no adulto. 55 2 - Indo na direção dos outros e do mundo comum, isto é, do convívio. Isto é assim, dito de w11 modo bastante simplificado, se compreendemos o existir humano (Dasein, Ser e Tempo) desde a sua origem e sempre como: 1 - Poder- ser que se mostra sempre de um modo tal e não de outro. 2 - Compartilhando em um mundo junto a outras pessoas e coisas. Tais referências são estruturas fundamentais de ser do ser- humano e não aquisições que podem simplesmente deixar de ser, ou serem omiti das, na vida de cada um. Cabe a cada um de nós, aí sim, (e não por simples decisão) desdeque nos constituímos como existência (o nasci mento) articular, ou mesmo reafirmar a cada momento, uma configura çã'? própria de existir. Chamamos tal configuração de história e, nela, podemos encontrar revelados os modos possíveis de cada um existirdes cobertos e desenvolvidos ou não desenvolvidos. Mas, ao mesmo tempo em que se dá tal configuração (história) algo peculiar acontece: permanecemos escorregadios, escapando do já confi gurado na direção de ser para além do que já somos. Por isso não podemos, pela nossa própria condição de ser, sermos compreendidos somente pela nossa história. Somos como o poema diz: "Sede de Liberdade". E tal pecu liaridade também não é uma aquisição ou fi·uto de opção ou desejo. Podemos encontrar alguma dificuldade para compreender o existir humano conjuntamente como dois movimentos diferentes, pois comumente seguimos a tradição de um pensamento que procura acabar com a proximi dade das diferenças sem nenhuma passagem ou ligação entre elas (do ne gro que se opõe ao claro, do justo que se opõe ao injusto) e para o qual, a verdade significa a vigência do absoluto. Estamos mais acostumados a ....... pensar excluindo e não nos provoca o menor espanto a evidência da lei que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Esta dificuldade de compreender dois movimentos ou sentidos con juntos e diferentes, aparece p.ex: com a noção de limites. Comumente compreende-se que o corpo humano é limitado pela pele que o envolve. E que este corpo é o limite físico do homem. Este entendimento sugere limite como um até onde. (Até onde posso ir e até onde pode ir o outro, em relação tanto ao lugar como ao direito de 56 cada um, são demarcados pelo até onde que exclui o outro). A mesma sugestão aparece nas preocupações com a educação: até onde as crianças podem ir? Até onde a sua conduta não desrespeita o outro? Ou até onde a sua conduta é prática de liberdade e não um excesso indesejável? Assim nos acostumamos a pensar nos chamados limites educativos das crianças. O limite, compreendido assim, significa fim, significa impedimento. No entanto, podemos compreender o limite também como o que de-limita. O mesmo limite, quando pode de-limitar, não é aquele que põe um final, que impede ou que encerra, mas é aquilo a partir do que algo é possibilitado. Assim, em nossa experiência mais próxima, compreendemos o nosso corpo e a nossa pele não somente como o que nos impede ou nos encerra, mas como o que nos possibilita compreender e o que nos possibilita irmos de um lugar para outro. Isto é, não somos primeiramente dentro de nosso corpo mas a partir dele. (c f. M. Boss) É a partir de como somos, e isto quer dizer, do modo como existimos, sempre numa relação de abertura, com preendida também a partir de nosso corpo sensível e de nossa história, que estamos abertos ao contato com os outros e as coisas em volta. E é a partir deste contato que nos constituímos do modo como somos. O modo como percebemos e cuidamos concretamente de nosso corpo está intimamente ligado com o que percebemos a partir dele. Assim dizemos nossa existên cia não se encerra nos limites de nosso corpo. E é assim, neste constante e original "jogo" de conter e abrir, ao mesmo tempo, que compreendemos como somos e isto significa também o nosso corpo. Também no campo da educação quando dizemos um não, podemos estar não somente impedindo, mas libertando novas possibilidades para o existir de uma criança. Por exemplo: Se meu filho me pergunta se pode ir a um determinado lugar e eu acho que aquele não é um lugar apropriado para ele, eu não permito. Isto não quer dizer que simplesmente eu esteja cerceando a sua liberdade. Primeiramente se o assunto for importante ele não vai acabar por ai simplesmente com um não. Se acabar, é porque não era tão impor tante ou porque não havia condições para qualquer esclarecimento, no momento. 57 A própria liberdade é uma questão muito mais ampla e mais funda mental para que possa ser extinta simplesmente com um não. Também não podemos esquecer, que a falta de permissão não impede nenhum filho de fazer o que ele quer. (Voltaremos à relação dos adultos com as crianças mais tarde). Um outro exemplo, no campo da psicologia, é o caso da tão conhe cida "necessidade de estabelecer limites" da terapia infantil. Se, de ante mão, já deixamos estabelecido o que a criança pode e o que ela não pode fazer, como podemos esperar que ela possa mais livremente descobrir as suas próprias condições, possibilidades e limitações? Ainda mais quan do a terapia deve ser o lugar para descobertas próprias, pois descobrir as próprias limitações faz parte do próprio crescimento. A compreensão dos significados de limite mostra como algo pode significar simultaneamente A e B. Ainda há um segundo ponto que gostaria de ressaltar à respeito da questão inicial "De que desenvolvimento falamos, a partir da Daseinsanalyse": compreender DESENVOLVER I DESENVOLVIMEN TO como coisa do homem - não adulto não criança, mas tanto adulto como cnança. É curioso como voltamos sempre ao desenvolvimento das crianças. É certo que, no início deste" trabalho, parti da criança mas chegamos depois ao adulto que se pergunta "Quem sou eu?" (Trajetória Humana). O que significa isto? Será que temos a vista tão turva em relação ao modo de ser da cri ança? Ou será que já esquecemos como fomos um dia e queremos relembrar? Será que, ao relembrarmos o desenvolvimento da criança, além de compreendê-la melhor (como os nossos filhos, pacientes e alu nos), não estaremos também clareando a nossa própria visão de adultos? Será que ainda podemos responder tais perguntas sem antes consi derarmos a questão sobre a linguagem que tem sido compreendida, qua se sempre a partir da lingüística, como uma propriedade dos homens, no mesmo sentido como são vistos os homens que possuem um corpo, uma mente e um espírito? Com a fenomenologia, a partir de Heidegger, se 58 abre um caminho que nos leva em outras direções - a meu ver, direções estas muito mais ricas e fascinantes. O nosso desafio é pensar a lingua gem na relação com o crescimento das crianças des-cobrindo estas novas direções. Isto será de grande importância sobretudo para a psicologia pois poderemos então: 1 - Compreender melhor a fala e o falar da criança como possibilidade fundamental de expressar sentido. 2 -A partir do que poderemos nos abrir para os significados das desco bertas articuladas pela fala e pelas palavras no convívio próprio da crian ça com o adulto e para a compreensão deste convívio. E também podere mos compreender melhor as inter-corrências possíveis dos impedimen tos da fala articulada na vida da própria criança e de seus mais próximos, como por exemplo: as afazias. 3- Finalmente poderemos encontrar um caminho novo e mais apropria do para compreendermos e falarmos dos recém-nascidos, bebês e crian ças que ainda não expressam, como fala e palavras, o que compreendem. E, então, também poderemos dizer mais apropriadamente do convívio entre essas crianças e os mais próximos e do significado do brincar. SER CRIANÇA Vamos começar aproximando uma poesia não publicada do poeta, amigo e também psicólogo Miguel Perosa: INFÂNCIA "Quando eu era pequeno Eu jogava bola E o jogo e a bola Eram toda a minha vida Quando eu era pequeno Eu brincava de mãe-de-rua E o brincar e a brincadeira Completavam a minha existência Quando eu era pequeno Cada pequena parte do mundo Absorvia todo o meu esforço Todo o meu 1iso, toda a minl1a tristeza Quando eu era pequeno A minha vida era profundamente vivida Intensamente vivida Absolutamente vivida." 59 Quando leio este poema, sempre sou tomada de uma certa emoção. Nele é dito, com grande simplicidade e beleza, que CRIANÇA TAMBÉM É GENTE. Isto parece óbvio? Quando a gente pára para olhar direitinho o que se diz para as crian ças ~ou sobre elas- a gente vê como elas são vistas. Muitas vezestenho a impressão de que se tratam de figuras muito estranhas, seres diferentes. Quantas vezes a gente não ouve, por aí, " .. . podemos falar. Não se preo cupe. Ela ouve mas não entende nada". Eu também já ouvi assim: "Cri ança não tem querer", "Criança não sabe o que quer". E também já escu tei: "Criança não tem que falar!" Nestas ocasiões, fico imaginando o tipo da criança que seria aquela. Penso numa "espécie" de será, isto é, algum tipo que é (claro que é) mas que, na realidade, não é ainda: que ainda não compreende, que não tem querer e não pode dizer. Como peça incompleta, ela tem que aguardar um momento no futuro em que, aí sim, estará pronta para entrar em ação, como um E. T. Mas também fico imaginando que essas frases podem também ser ditas como uma recriminação. Perdendo a paciência, o adulto saca a sua autoridade e o lugar submisso da criança. Parece que para o E.T. ou para o submisso falta um já é e sobra um vai ser (será)! Mas, há também outros modos de olhar a criança: Tem o "mini-adulto", um adulto em miniatura. Este é criança so mente porque é baixinho. Ele é maduro. Muito responsável. Cumpridor de seus compromissos. Nunca "fura" com suas obrigações. Com ele não tem surpresas. Esta criança é um pequeno ad~lto : Do menino se diz: "É o homem da casa quando o pai não está." Da menina se diz: "É a mamãezinha". Estes não são somente jeitos carinhosos de lidar com estas crianças. Quantas vezes não disfarçam uma exigência em dose exagerada de res ponsabilidades? Certa vez, ouvi de uma mãe: "Eu não agüento quando ele assume compromisso e depois, desiste ... Ele já tem idade. Já tem responsabilida- 60 de para saber o que quer. Como pode desistir tanto?" Ela, a mãe, me falava de seu filho de 10 anos. Outra mãe totalmente fora de si me falava de seu filho de 8 anos: "Como ele pode se descontrolar tanto?" Ela estava saindo de uma série sucessiva de desencontros amorosos e seu filho estava bastante inquieto, arteiro e não obedecia às ordens dela. A dose exagerada também surge no campo das relações "amoro sas" das crianças. Lembro-me de um menino que quase que tinha que ficar de pronti dão para a chegada de qualquer menina. Mesmo quando estava "ligado" num filme de TV ou numa brincadeira qualquer. Inevitavelmente vinha a pergunta-comentário dos pais: "Não era gostosa a gatinha!?" E aquela garota que não podia brincar do que mais gostava: correr, pular e subir em árvores. Ai dela quando se sujava e ralava os joelhos. Vinha o ser mão. "Mocinha tem que se cuidar, garotos não gostam de meninas feias". E a outra garota, que era atazanada pela pergunta: "Quem é o na moradinho na escola?" Estas crianças são vistas como pessoas maduras, prontas para qual quer situação. A maturidade seria algo automático para as crianças. Delas é esperado o que ainda não é e recusado o que elas podem expe1imentar. Neste caso, parece-me que sobra um ter que ser e falta um vai ser. No entanto, apesar de visões aparentemente opostas ~ uma da cri ança que ainda não é gente e a outra da criança que já é adulto, elas tem o mesmo ponto de partida. Tanto a e1iança que ainda não é gente como a que é miniatura de adul to são visões construídas a pm1ir de um modelo de um certo adulto. Temos aqui modelos de crianças construídos a partir de modelos de adultos. Ser adulto, neste universo, é mais um modelo. É uma lente, através da qual, as pessoas enxergam vendo adultos e crianças. Assim as crianças, de um jeito ou de outro, não tem para quem se mostrar. Como elas são, qual é o seu apelo, permanece distante do olhar e do ouvir diretos de um adulto próximo. 61 No entanto, esta "prática das lentes" não é apenas um costume in gênuo das relações familiares cotidianas. Ela permeia também as teorias infantis. Na própria psicologia, a Teoria da Sexualidade Infantil foi de senvolvida por Freucl, segundo ele mesmo, através das observações de seus pacientes adultos. Estes pacientes contavam suas lembranças da infância e Freud analisava. Depois de organizar e selecionar tais rela tos, Freud formulou a sua própria teoria (c f. Freud em Teoria da Sexu alidade Infantil). Não podemos esquecer que Freud fundamentou seu trabalho nos princípios explicativos que chamou de Metapsicologia. A partir da Metapsicologia, formulou o mecanismo de regressão. Este foi o pon to que o levou a acreditar que fazia uma psicologia infantil, a partir do entendimento explicativo dos desvios de conduta e neuroses dos adultos. Não podemos desconsiderar a premissa de Freud: o adulto doente é aquele que não cresceu. Doente, o adulto regride e se torna, neste esta do, criança. Há aí uma confusão. É ce1io que o adulto pode encontrar na infância- como temos algu mas vezes apontado - uma referência para a compreensão de sua própria vida. No entanto, isto não significa que a vida do adulto seja explicada por fatos que ocorreram na infância. Também não significa que aquele adulto que permaneceu imaturo seja uma criança que não cresceu. O imaturo é o adulto que não cresceu. Não é a criança que não cresceu. Há aí um desvio de entendimento: a criança seria como um adul to doente. Diferentemente de buscar causas e explicações, RELEMBRAR A IN FÂNCIA pode nos servir. Relembrar a infância - INFÂNCIA como possi bilidade própria de ter sido um dia - pode servir como busca de referência para a compreensão da vida do adulto. As referências possíveis dizem respeito tanto ao que foi como ao que não pode ser descoberto ou desenvol- 62 vido. Ambas, compreendidas não como um fato, mas como possibilidades de relação, concretizadas ou não, compõem a história de cada um. Esta busca de referência deve ser compreendida no sentido de am pliar as possibilidades existenciais atuais, quando algumas possibilida des fundamentais estão esquecidas para alguém. Isto é, quando este es quecimento significa privação ou redução da realização da própria vida, na perspectiva de compreender e ampliá-la, relembrar a infância torna atuais referências já vividas. Relembrar a infância é assim em 1 o lugar, a possibilidade de uma experiência que aproxima o que foi um dia e também a possibilidade de perceber o esquecimento do que pode ser lembrado ou novamente vivido. É esta a experiência, ela mesma, que amplia as possibilidades de viver. A amplitude de tal experiência nunca poderá se esgotar num único fato passado ou presente. A procura das causas e explicações que acabou sendo, para nós ocidentais, o significado mais comum da palavra com preender, não dá conta de tal amplitude. Retomando os modos como as crianças são compreendidas, além das "ainda não gente" e "miniaturas de adulto" construídas a partir do modelo de adulto, há ainda: "Crianças cronológicas" - São crianças de base estatística que apa recem nas pesquisas. São crianças sem vida: são idades e tipos de com portamento. "Crianças ingênuas"- Uma caracterização mais próxima da moral ou da religião. São aquelas que não tem culpa. São os inocentes, para quem o querer, as artimanhas e transgressões não dizem respeito. Fala-se de fases de desenvolvimento das crianças, descreve-se com portamentos específicos destas fases, indica-se critérios de idade. Mas é importante também dizer: nem sempre as crianças foram compreendidas como as crianças de hoje. Há um livro muito interessante, chamado Metablética, em que seu autor Van Den Berg, nos conta das crianças dos sécs. XV e XVI. Nesta época, até aproximadamente a idade de 4 ou 5 anos, as crianças 63 viviam despreocupadamente em relação a se tornarem adultas. Os adul tos não tinham os cuidados pedagógicos que hoje conhecemos. As cri anças passavam o dia entre elas mesmas e compartilhavam o mundo comum dos adultos. Desde já começavam a aprender o ofício do pai ou da mãe. As crianças nobres ou filhos de ricos mercadores aprendiam também a ler e escrever. Mas não havia a literatura infantil que hoje conhecemos. As crianças aprendiam a ler e escrevernos textos clássi cos de Filosofia e na Bíblia, em grego e latim. Aos doze anos as meni nas casavam e antes dos quinze, o garoto. Criança e adulto viviam em maior proximidade. Havia um mundo de ocupações que era compmiilhado por eles. As noções atuais de desenvolvimento não são adequadas para com preender o que acontecia com as crianças naquela época. As noções atu ais subentendem uma diferença básica de uma fase inicial de desenvolvi mento e que através de um processo é superada até que a criança se torne adulta. Van Den Berg nos relembra e a poesia Infância nos fez pensar: A criança também é gente, não somente os adultos o são. Ela é completa, é inteira. Não necessita que o futuro çhegue para dizer o que quer. (Se ela não sabe dizer, não é porque é criança, mas por outra coisa). A criança não precisa do futuro para, de algum modo, compreender o que se passa. O mundo da criança é inteiro. Ela vive com os outros, brinca com suas coisas. Ocupa-se, fantasia, tem seus medos e seus desejos. (E somente ela mesma pode vivê-los, é importante que se diga). Ela vive seu dia a dia e vê sua vida do seu jeito; às vezes é confusa e às vezes é impressionantemente clara. Ela fala muito ou fica um "túmulo". Mostra-se ou se esconde e, às vezes, engana ou tenta enganar. E também se engana. 64 É mmial! A criança não é menos mortal do que o adulto ou o velho. (Por mais que pensar sobre isto aterrorize). Ela também sente culpa e não gosta de se sentir culpada. Foge do desconforto e da solidão. Não gosta de ficar sozinha no escuro ou no fechado. Vemos aqui que a criança é, como o adulto, gente. Mas , ainda assim, não podemos passar por cima de uma constatação. Eu digo: "Quando eu era criança" ou eu também digo: "Eu não sou mais criança" ou "Estou como uma criança". O que significa isto? O que significa SER CRIANÇA? O que signi fica Tempo de ser criança? Para tentar responder da melhor maneira, vamos brincar com as palavras: A palavra CRIANÇA vem do Latim CREANTIA. CREANTIA é formada do verbo CREO, CREARE. Este verbo significa, ao mesmo tempo, CRESCER e CRIAR. CRESCER é desabrochar. CRIAR é realizar. CRIAÇÃO remete ao crescimento. CRESCIMENTO remete a criação. Assim, na CRIANÇA (que é criatura) encontramos a realização da criação original e o acontecimento do desabrochar. Ser criança é, assim, o desabrochar da criação e é, também, realizar o próprio crescimento. Na criança, como encontrei num antigo dicionário, o ser humano começa a se criar. Neste sentido falamos não de forma, não de fase ou de um certo período que vai passar. Falamos de despontar. 65 O TEMPO DA INFÂNCIA I- TEMPO Movimentação e realização, desabrochar e criação, acontecem sem pre numa ce1ia DURAÇÃO. DURAÇÃO não é fase. Fase é um segmento determinado entre dois pontos e composto pela sucessão de fatos que normalmente são ligados numa relação causal. DURAÇÃO é TEMPO. Assim dizemos: a duração ou o decorrer de uma vida ou o tempo de uma vida. As duas expressões significam o mes mo, o acontecer de uma vida. Assim, chegamos ao ponto mais fundamental. Compreender o que significa SER CRIANÇA leva à experiência humana mais radical que é a do TEMPO. Radical aqui tem o sentido de raiz, não de moderno. Na criança se emaíza o TEMPO. Podemos dizer também que a dura ção ou o decorrer de uma vida está engatado na infância, com a criança. Mas não é a criança que faz o tempo, nem que o possui. Mas é com ela e a pmiir dela que ele se instaura em cada existir humano. Assim, SER TEMPORAL não é uma questão infantil, mas humana. O que significa isto? Que tempo é este do qual estou falando? Como podemos compreender melhor a infância? Para os gregos antigos, o que hoje para nós é apenas tempo consti tuía três experiências distintas: 1 - Havia CRONOS que corresponde ao nosso conceito comum do tempo cronológico: do tempo que se conta, do intratemporal e das coisas do mundo; do tempo de todo mundo: "ninguém vive fora deste tempo: dos dias, das horas, meses e ano." As ciências norteiam-se por este tempo . O homem vive preso nele: nos horários e compromissos. Os prazos e as urgências são me didos pelos cronogramas. É o tempo do convívio geral na seqüência dos fatos. É o tempo que serve para a determinação dos fatos prévios da vida 66 das crianças: a idade certa para entrar na escola ou para o cinema e para sair desacompanhada. Este é aquele tempo que as crianças precisam aprender. Não rara mente podemos observar como para elas é distante esta noção de tempo. Por exemplo: Uma criança deseja muito a chegada de uma pessoa queri da ou de uma coisa ou de um momento especial. Quantas vezes vamos ouvi-la perguntar se já chegou "agora", se "já é amanhã" ou se já é o "dia seguinte". Seria apressado concluir que ela tem uma deficiência de com preensão ou uma mente confusa, uma vez que ela não sabe se já é ou não o "agora", o "amanhã" ou o "dia seguinte" . CRONOS é caracterizado por: - ser igual para todos, geral, - ser dividido em palies, pontual, - ser seqüencial e linear, do antes e do depois A experiência de tempo que privilegia as medidas mais objetivas, as regularidades e as seqüências prévias dos acontecimentos se dá num mundo onde também se privilegia tais características. Assim, podemos compreender que estas noções de tempo cronoló gico são bastante restritas para abarcar a intensidade da chegada do espe rado e a força de algo que só se realizará depois, mas que já se impõem na sua espera. A eternidade dos momentos e a oportunidade da chegada do esperado não são cronológicas. Englobam muito mais. Englobam ex periências que não são comuns ou previsíveis. 2 - Havia também AION. Este era o tempo da eternidade, dos deuses e da imortalidade. O tempo eterno, que não dizia respeito aos homens. Era o tempo da mitologia. 3 - E havia KAIRÓS. Este é o tempo que não pode ser medido, verificado e que não é igual para todos . 67 É o tempo que somente pode se dar como o tempo ce1io, adequado, da oportunidade para a realização. É o momento possível. É o tempo opmiuno para uma certa realização ou para a realização de uma certa possibilidade. Como diria o poeta, é o tempo para o surgir das estrelas e dos tro vões - que somente podem ser percebidos, depois de estarem há muito no firmamento, mas em condições adequadas. Mesmo assim, as condi ções adequadas não fazem com que as estrelas e os trovões sejam perce bidos pelos distraídos e preocupados e também pelos medrosos. Assim é que KAIRÓS é o tempo do possível e da possibilidade: é o tempo existencial. É o tempo em que faz sentido a pergunta da criança: "Agora já é amanhã?" Este "amanhã" não é o dia seguinte, mas é o momento ce1io em que algo já poderia acontecer. É o tempo em que futuro e presente se jun tam e presente e passado se tornam um único .Isto pode ser visto nos tem pos de verbo "poderia acontecer" ou "estou lembrando o que passou". Este é o tempo que permite que se diga: "Nunca mais isto ... " "Já vai!" "Que demora!" "A minha vida inteira ... " "Espera um pouquinho só!" que são expressões sem medidas objetivas mas que expressam clara e intensamente algo. É o tempo do: - em cada caso - da proximidade - da totalidade unida de significado. KAIRÓS não é o tempo da criança. Nem mesmo é uma questão infan til. Mas ele se instaura com e na criança. Ele é humano, de todos os homens. É a partir desta experiência de tempo (que os antigos gregos cha mavam KAIRÓS) que mais amplamente podemos compreender o modo de ser criança e o tempo da infância. IT- INFÂNCIA O que podemos dizer, especialmente, do tempo da infância? Do tempo das crianças? Do tempo das recordações infantis? 68 Vamos lembrar: O bebezinho acorda. Ele chora. Alguém se aproxima, ele pára de chorar. Mais tarde, ele acorda e chora. Alguém se aproxima, ele continua a chorar. Alguém diz: "É wn danadinho. Sabe o que quer. Quer sair do berço". Mas, se elecontinua a chorar, temos uma dica: ele tem algo ( cóli cas, fome, fralda suja). Sabemos que o bebezinho MOSTRA NA HORA o que tem ou o que quer. Isto é tanto verdadeiro que se chegou a formular a TEORIA DO PRINCÍPIO DO PRAZER: as crianças seguem o princípio do prazer. Pensando com cuidado: O que é este tal de PRINCÍPIO DO PRAZER? Princípio do prazer quer dizer: É PRA JÁ! Não há considerações intermediárias. Se está doente, o bebê chora até que a dor passe. Se está com fome, o bebê reclama até que lhe dêem de comida. O bebê MOSTRA LOGO a insatisfação e a satisfação. O bebê cresce um pouco, parece que já entende quando falamos . Mas, nem sempre o bebê quer atender. Está na hora de dormir. Se até ontem o bebê ia para a cama direiti nho sem reclamar, hoje ele não quer mais. Chora sem parar. Não quer mais ficar sozinho no qumio. Nestas ocasiões se diz: "Ele vai chorar até se cansar e dormir". A criança já tem um ano e meio. Ela diz: "Qué chocolate". Mas está na hora do almoço e ela não ganhou. Ela não pára, insiste tanto que ou leva uma bronca e chora ou acaba "vencendo pelo cansaço". Depois começa a gostar de histórias: Incrível! Quer sempre ames ma e sabe ela inteirinha. Vai para a escola e começa a fazer as lições. Aí se não sabe fazer uma, ·o mundo cai sobre a cabeça': "Eu nunca vou conseguir! ". 69 O que vemos? Nas experiências das crianças, prevalece sempre o imediato. O tempo da Infância é o lugar do já, da presença imediata do agora. Nas experiências infantis, a experiência imediata prevalece sobre qual quer aspecto passado ou futuro. Ela é a que vigora, portanto, é mais vigorosa. · Nas experiências infantis não há uma divisão equilibrada de passado, presente e futuro. Assim dizemos: o viver temporal da criança exacerba o presente. A força do imediato é tão grande que chega a poder abarcar toda a vida com igual intensidade, desde o desespero com uma dorzinha "a toa", até o desesperado abandono de uma criança com a saída da mãe. O desespero é uma resposta que, na criança, é provocada facilmen te. (É com o crescimento, com a ampliação temporal, que o desespero vai se tornar mais singularizado). Na criança uma resposta com a intensi dade do desespero é mais comum e, assim, sua importância é mais inespecífica e difusa. Diferente do que se costuma pensar, é o presente que domina o tempo da criança. Costuma-se dizer: "A criança tem todo o futuro pela frente". "O futuro da criança é maior do que o do adulto ou do ancião".Isto não é verdadeiro na perspectiva existencial da criança, que parece ter um futuro muito curto. Que a criança tem "todo o tempo pela frente" somen te é uma constatação distanciada, na perspectiva lógica do outro. O futuro parece ser tão menor quanto for a criança. Assim, a primazia do presente, num sentido vivencial, aponta um caráter especial também do futuro da criança. Este aparece inicialmente de modo mais restrito. O futuro vai se descortinando a medida em que o passado vai sur gindo juntamente às experiências e descobertas de "ter sido", quando também vão surgindo as lembranças, os aprendizados e a descobe1ia de ter que esperar. Assim é que o futuro é tão cmio quanto o passado. O futuro da criança vai se abrindo a medida em que ela vai vivendo e cres cendo, na criação de sua história. Ter paciência e poder prever são pos sibilidades que serão descobertas com a experiência da espera, isto é, de um futuro mais vigoroso. Neste sentido, elas são possibilidades inicial mente veladas para as crianças. 70 (Não estamos aqui falando em qualidade de futuro "aberto" ou "fe chado", como falamos no futuro dos deprimidos. Este já é um futuro descortinado retraído). No que implica a primazia do presente na vida da criança? Diferentemente também do que pode se pensar, a primazia do pre sente na infância NÃO traz imobilidade (o que é diferente com o adulto). A primazia do presente com o envolvimento com o imediato, na infância, é a experiência mais radical da não permanência dos significa dos e não determina uma relação de imobilidade com um mundo restrito, mas uma constante e rica possibilidade de renovação. O que é agora, logo-logo pode não ser mais. O brincar e as brincadeiras mostram espe cialmente esta rica mobilidade com a descoberta e miiculações constan temente diferentes das relações com o mm1do. As descobe1ias podem abranger diversos âmbitos do existir da criança junto às coisas em volta e às pessoas, desde as mais familiares até as mais distantes. Ao mesmo tempo, se dá também a descoberta de seus diferentes modos de humor. . Ouvimos uma criança dizer "te adoro" e, logo depois, não impmia porque motivo, ela diz: "Você é boba, não gosto mais de você!". E, logo depois voltar aos mil amores. Assim, dissemos acima, a infância é também o tempo de impermanência de significados e do fascínio pelas descobertas. E o fas cínio pelas descobertas se confunde com o presente. Mas as descobertas, elas mesmas não são o presente. Cada nova descoberta surge sempre da totalidade das referências significativas que, a cada momento, podem se rearticular. Na criança, esta remiiculação constante se dá como cresci mento, pois implica ampliação dos significados já conhecidos, ante a perspectiva da novidade, das surpresas, dos desafios, isto é, do futuro . Viver intensamente e envolver-se com as próprias descobe1ias é uma constante na infância. Assim, quando a criança é privada de descobertas, dá-se uma restrição em sua vida. Isto pode ocorrer devido a condições sociais, de relacionamento ou ambientais, ou por doença. Há casos de privação que podem levar até a própria mmie, tal o grau de carência de cuidado ou de solicitações e estímulos do mundo próximo. 71 Na infância vivemos no tempo das DESCOBERTAS próprias e do mundo. Quando descobre a si mesmo, aos outros e as coisas, a criança se constitui já, e desde sempre, como um estar-no-mundo que realiza a sua própria história. Podemos, então, compreender outra dimensão de seu próprio existir: a historicidade própria. Não nos referimos aqui a história comumente entendida como uma sequência de fatos ou vivências datadas que determina os acontecimentos do presente ou do futuro , mas , à historicidade, como a condição fundamental apoiada na . temporalidade do existir humano, conforme Heidegger , que explícita "o contexto da vida" ante a provocação do que ainda não é e pode vir a ser, ante o imediato presente e, ao mesmo tempo, ante o retorno ao já possível e vivido. "História significa aqui um conjunto de aconteci mentos e influência que atravessa "passado", "presente" e "futuro". Aqui o passado não tem primazia." Crescer é abrir-se para o futuro. Isto quer dizer: crescer está voltado para a possibilidade do novo, do que ainda não é. Crescimento, assim, é tanto compreendido pela presença do imediato, como do advir que já o penne1a. No crescimento, pleno de possibilidades do novo, de algo que ainda não é, desvela-se um futmo. Dizemos "a criança quer crescer", "criança imita o adulto", "não quer ser criança" ... Sendo já gente, a criança quer deixar para trás suas próprias li mitações, quer deixar de ser quem ela é, pois , como todos os huma nos , existe provocada, chamada, pelo que ainda não é. No entanto, esta provocação aproxima também a experiência de desamparo, uma vez que o mais familiar de suas próprias possibilidades é momenta neamente abandonado pela sua própria condição de crescimento, do advir do que ainda não é. Ser e Tempo parágrafos 55 , 56, 72 e 73. 72 Bibliografia - BOSS, M. -"Medicina Psicossomática: Ciência ou Magia" Revista da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, 11° 8, São Paulo, 1997. - FERREIRA, A. G. - Dicionário de Latim Português. Porto Editora Ltda - FOUCAULT, M. -Doença Mental e Psicologia. Tempo Brasileiro R.J. - FREUD, S. - Tres ensayos para una teoria sexual 2. La Sexualidade Infantil Obras Completas Tomo 11 Biblioteca Nueva, Madrid, 1973 . - GADELHA, R.- Um Estreito Chamado Horizonte. Massao Ohno Ed. São Paulo, 1991. - HEIDEGGER, M. - Ser e Tempo. (1927) Editora Vozes, Petrópolis, 1989. - HEIDEGGER, M.- Being and Time. Basil Blackwell Oxford, 1973. - HEIDEGGER, M. - Seminários de Zollikon. Tradução ainda não publicada de Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida Prado - LIMA, H. e BARROSO, G. - Pequeno Dicionário Brasileiro da Lín gua Portuguesa. Ed. Civilização Brasileira S.A. e Companhia Ed. Nacional, São Paulo, 1957 - VAN DEN BERG, J. H. - Metablética (Psicologia Histórica) Ed. Mestre Jou, 1965, São Paulo 73 O MUNDO DA CRIANÇA* MARIA BEATRIZ CYTRYNOWICZ Resumo Neste terceiro artigo, em que a compreensão do existir da crian ça é desenvolvida a partir da fenomenologia existencial, encontramos na relação com o mundo considerações fundamentais: o descobrir das próprias possibilidades e limitações da criança se torna explícito jun to ao descobrir da significabilidade do mundo. Somente ai é que podemos ver o surgir da angústia fundamental, das implicações do cuidado na relação do adulto com a criança, como a dependência, a simbiose e a representação, e do sentido radical de ser mortal. Por fim, podemos ver como, no mundo do brincar e da fantasia, encontra mos o lugar e a disposição máxima para o descobrir e experimentar das possibilidades próprias e do mundo, intrínsecos ao crescimento de cada criança. Abstract - The World o f the Child The third article develops the understanding o f the existing child based on existential phenomenology. In the relation with the world we find fundamental considerations: the child's discovering ofhis own possibilities and the limitations becomes explicit together with discovering the significability o f the world. Only then can we see the emergence o f fundamental anxiety, o f the implications o f c are in the adult-child relation such as dependence, symbiosis and representation, and ofthe radical meaning ofbeing mortal. Finally, we see how in the world o f play and fantasy we find the place and maximal disposition for discovering and experimenting the possibilities o f the self and the world which are intrinsic in the growth of each child. Apresentado em Abril de 1993. na Associação Brasileira de Daseinsanalyse. SP- Brasil. 74 PALAVRAS-CHAVE: Criança, Mundo, Relação Adulto-Criança, Fan tasia, Brincar, Realidade Há um livro de histórias MANU, A MENINA QUE SABIA OU VIR, de Michael Ende, o mesmo autor de HISTÓRIAS SEM FIM, cuja segunda parte começa assim: "Há na vida um grande mistério que é o Tempo. Existem calendários e relógios que o medem, mas significam pouco, porque às vezes, uma hora parece uma eternidade, ao passo que de outras vezes passa como um relâmpago." Esta passagem da segunda parte: O tempo perdido aproxima de maneira muito feliz o que tem sido, no fundo, a nossa questão. "Afinal, quem somos, como fomos e como seremos?" Pois esta questão não fala mais do que do Tempo, este "algo" misterioso que se instaura desde o início com e na criança. Neste início ele recebe o nome de Infância; de pois vai receber outros nomes. Isto é assim porque o tempo sempre se dá de maneira especial e diferente no decorrer da existência humana e com ela está intimamente imbricado. A palavra Infância é composta em sua origem por In, Fans Fos que significa sem fala, mas também, na luz ou na claridade, conforme consi deramos o prefixo In como de negação ou de relação e os possíveis sig nificados do nominativo Fans,Fos. No entanto, é conjuntamente destes dois modos que primeiramente compreendemos a existência humana no tempo da criança ou na infância: na claridade sem fala! Deste modo ori ginal podemos compreenderá modo também especial da relação entre as crianças e os outros, no qual ela se mostra e é percebida mais no âmbito do cuidado dos outros do que de seu próprio dizer. Encontramos aqui, na etimologia, uma pista importante para uma compreensão mais original e não metafórica do existir humano na infância. Metáforas são criações ou expressões livres de objetividade de que nos servimos para melhor compreender algo, que em nosso caso seria a compreensão mais original da criança e do adulto em seu pecu liar "já sido". Contudo, algumas vezes, o uso delas tem trazido dificul dades quando elas são tomadas como os acontecimentos ou fatos reais, ou a própria realidade, e não mais como a melhor expressão do enten dimento de algo importante no conjunto de acontecimentos. Encontra mos na Psicologia, tanto no campo das teorias como no da prática clí- 75 nica, exemplos de metáforas usadas para interpretar significados de experiências do desenvolvimento das crianças e dos bebês, de suas es truturas internas, do mundo e da realidade. O mito de Édipo é um exem plo de como uma metáfora extremamente rica na descrição da condi ção humana, do ser livre e do ser mortal, se transformou numa estrutu ra determinante e aprisionadora da realidade humana que tem influen ciado toda uma época. Com o método fenomenológico, desenvolvido a partir de SER E TEMPO de Martin Heidegger, procuramos um caminho que nos aproxi me a compreensão da infância e da criança, o que não quer dizer dos significados escondidos de suas experiências internas, às quais não po demos ter acesso. Ao contrário, procuramos não desconsiderar justamente aquilo que aparece e aí nos situamos. E o que da infância podemos inici almente dizer está sempre vinculado ao âmbito de nosso cuidado, da nossa experiência própria e do mundo, isto é, conforme a nossa experiência. Crianças não nascem falando, mas não resta qualquer dúvida que podem ser compreendidas! O mundo da criança, ao qual nos referimos, é aquele compreendido em proximidade com ela e é, somente nesta relação de proximidade, que nós adultos podemos descobrir a importância do mundo próximo para o crescimento das crianças. Esta formulação tem duplo significado. Pri meiramente, o que consideramos como "importância do mundo" signifi ca o que percebemos como mais permanente e que passa a compor a história da criança e, em seguida, que se refere à possibilidade de enten dimento e ao envolvimento. Nesta perspectiva, como já vimos antes em Tempo da Infância, podemos dizer que descobrir o mundo, do mais desconhecido e estranho para o mais familiar e acolhedor, fascina a criança. A criança é curiosa! O tempo da infância é em primeiro lugar o tempo do já, do que se apre senta agora, do imediato. É o tempo da descoberta. As crianças na infância vivem intensamente e se envolvem total mente naquilo que se apresenta. A relação com o mundo é assim sempre rica de novas possibilida des na infância e a mobilidade de significados é uma constante no mun do infantil. É assim que algo que agora é uma coisa, logo não será mais e 76 que as crianças vivem fascinadas nesta permeabilidade. As lembranças e as expectativas que se formam facilmente são reunidas no presente. E é esta reunião que compõe o enredo único de cada brincadeira, numa arti culação constante dos modos presentes possíveis de relação. Isto tam bém ocorre ç;om os acontecimentos ansiosamente esperados que ainda não se deram mas que podemos observar tanto no aguardo impaciente do amanhã que virá, como da chegada de uma pessoa querida que se fez anunciar. Todos estes acontecimentos estão fortemente marcados como presenças imediatas. As crianças parecem sempre aproximar tudo das mais diversas maneiras: elas mexem em tudo- se diz até que "crianças tem olhos nas pontas dos dedos" - esfregam coisas nos cabelos, levam à boca e aos olhos qualquer coisa, se assustam facilmente com barulhos, estranham pessoas diferentes ... É assim, envolvidas totalmente no que aproxima, que as crianças descobrem o mundo e seus significados, isto é, as relações entre as diver sas descobertas. Podemos ver tudo isto acontecer concretamente nas "pesquisas" ou nos enredos das brincadeiras em que elas participam. Nas brincadeiras, quando as histórias vãose alinhando, a criança descobre o mundo e a si mesma, descobre o mundo em que vive e descobre o que pode e o que não pode. Quando brinca, a criança experimenta- relembrando, modifi cando, inventando, atualizando - o que quer e o que não quer ante o que se impõe, de tudo o que aparece. É assim, deste modo que chamamos de criativo, que a criança cresce. Mas, a possibilidade de um futuro mais alargado, mais amplo, nem sempre é descortinada de modo tranqüilo. Isto também é importante ressaltar. Se, por um lado, descobrir um mundo mais rico de significados e a si mesmo mais instrumentado para enfrentá-lo é revigorante, por outro lado, aproxima também o desamparo e a experiência individual e pmii cular da angustia. Exemplos destes momentos são as situações em que as crianças choram com a proximidade de um desconhecido ou a falta do familiar. Nestes momentos dizemos: "Ela está estranhando". Mais tarde, elas se desesperam quando o pai ou a mãe vão sair de casa. E, ainda mais 77 tarde, quando ouvem referências a guerras, explosões, catástrofes ou histórias do extraordinário, podem sentir extrema angústia. Experimen tam aí a própria impotência e a ameaça de destruição, ou seja, aquilo que compreendemos como finitude humana. Nestes momentos o mun do da criança se amplia para além do imediato, numa intensa e nada tranqüila possibilidade vivencial. Esta intensidade do envolvimento com a proximidade de situações desagradáveis de impotência leva a criança a desesperar-se . Medard Boss, em seu livro, ANGUSTIA CULPA E LIBERTA ÇÃO Cap. III, escreve: "Todavia, por mais amparado que tenha sido o lactente, a criança brevemente terá que experimentar a angustia, ora em menor ora em maior medida. Mesmo uma criança de três ou quatro anos pode acordar sobressaltada noite após noite, em virtude de nos seus sonhos ver repe tidamente aproximar-se, a mesma bola gigantesca e escura. Este acon tecimento onírico em-responde a aproximação turbulenta de todo o seu futuro humano. No entanto, na sua fragilidade infantil, ela ainda não sente capacidade para aceitá-lo e suportá-lo. Por isso, sonhando, ela teme sua carga como a uma monstruosidade esmagadora. Nos pesade los infantis com animais ferozes, assaltantes ou incêndios devastado res, que de vez em quando pertúbam as noites de praticamente todas as crianças, elas temem a destruição de sua condição humana regular e conhecida, no caos de forças compressivas, dominantes e incontroláveis de sua vitalidade natural." (pág. 27) Nesta passagem, Boss nos lembra do outro lado das experiências infantis de descoberta. Esta lembrança nos ajuda a ampliar a nossa com preensão da infância: o advir que descobre também o desamparo. Conforme temos exposto, há no tempo da infância uma primazia do presente imediato. Mas não podemos esquecer que a perspectiva do ime diato e do intenso envolvimento com o que se apresenta pode trazer mo mentos de extremo desamparo. Pois, aí também encontramos a perspec tiva de seu crescimento, estando a criança voltada para o futuro, isto é, está atraída, para a possibilidade de algo novo. E quando isto se dá sem o amparo do familiar, a criança experimenta extrema angústia. 78 I -A RELAÇÃO CRIANÇA E ADULTO Vimos anteriormente que, quando uma criança nasce, ainda na ma ternidade, nas primeiras horas de vida, os familiares e amigos, comemo rando o seu nascimento, já sê voltam para o futuro do bebê e perguntam: "O que ele será quando crescer?, Com quem ficará parecido ? Depois, já em casa, quando cuida do bebê e de seu bem estar, o adulto também se volta para o futuro. Ele quer evitar que o bebê fique doente, ele quer manter a saúde do bebê. Este cuidado com o bebê é também cuidado de futuro. Quando acalenta, quando alimenta, quando estimula ou repreende a criança, o adulto tem a vista para além do imediato. Quando se aproxi ma para ver porque o bebê chora, o adulto não espera uma simples constatação. Ele espera poder compreender o choro e, então, resolver um desconforto, cuidando da criança. Isto é o que queremos compreender melhor: o adulto quando é cons tantemente solicitado a cuidar da criança cuida do próprio vir a ser. Heidegger, no parág. 48 de SER E TEMPO diz: "Ao Dasein, enquanto ele é, falta em cada caso ainda algo que ele pode ser e será". Esta é a primeira formulação a respeito do ser mortal do homem e explícita o sentido mais radical da falta que, a cada momento, é incessantemente preenchida em nosso existir, a medida que existir res ponde constantemente a uma dada solicitação. Assim, quando um adulto se depara com a solicitação de cuidar de uma criança, se depara também, ao mesmo tempo, tanto com a sua própria possibilidade de realizar-se como responsável pelo crescimento da criança, como com a condição da criança de ainda não está descoberta para si e para os outros. E, assim, na proximidade com a criança, é que o adulto pode perce ber exatamente tanto a falta, que lhe diz respeito, como a que se refere a própria criança. Neste momento, ele pode se dispor, ou não, a responder à solicitação daquele cuidado e realizá-lo, ou não. Entretanto, é mais comum que a falta -presente já desde o nasci mento- na criança seja compreendida como 'fragilidade infantil', como se fosse uma condição que se extinguirá com o crescimento ou que será substituída pela condição de adulto. Esta interpretação é uma má com preensão tanto do viver da criança, como do viver do adulto. 79 Por um lado, o bebê ainda não desenvolveu uma história própria, ainda está começando a descobrir o mundo e a ele mesmo, neste sentido é um mistério a ser desvendado. Este mistério parece ser tanto para a pequena criança como também para o adulto. Ante a falta, ante o que ainda não é, o adulto continua a ser constan temente solicitado. E, correspondendo à solicitação de cuidar do que ainda é mistério, o adulto pode se sentir até responsável pela própria vida da cnança. Esta responsabilidade é acolhida, às vezes, como uma carga e, às vezes, de bom grado. Mas, de um jeito ou de outro, o adulto responsável é solicitado a cuidar do crescimento da criança. Cuidar aqui tem o senti do do cuidado preocupado que afasta o que atrapalha, abrindo o caminho para o crescimento mais sadio. Mas, esta responsabilidade pode provo car também angústia no adulto a medida que ressalta as suas próprias limitações e possibilidades. Por outro lado, na vida de uma criança há muitas coisas que atrapa lham o seu crescimento. Encontramos aqui desde as condições ambientais gerais até as con dições mais pessoais, como as corpóreas ou de afetividade. Mas, há aquela condição que é a mais radical de todas e presente para todas as crianças e adultos também. Nesta radical condição, o atra palhar tem o sentido definitivo do impedimento. Esta condição é o pró prio ser mortal. Esta condição da falta que, a todo momento, está presente e ausen te, o adulto cuida de afastar. Quando acompanhamos o crescimento de uma criança, não é difícil perceber como frequentemente ela se arrisca e permanece ' inteira'. De um lado, é fácil ver que muitas vezes avaliar algo como perigo é "coisa" do adulto que se retrai mais ante um risco. Mas, por outro lado, há a crença que "as crianças tem muitos anjos da guarda". Isto não está muito distante da realidade!!! Mas, se não podemos aferir se os perigos que o adulto considera como riscos, são riscos de fato para a criança, também sabemos que, na maior parte do tempo, as crianças estão acompanhadas, vigiadas ou controladas por alguém que as impedem de correr maiores 80 riscos. Estas duas últimas considerações conjuntamente talvez nos le vem a prescindir de outras considerações mágicas ou angelicais. A pro funda ligação entre adulto e criança é o que torna mais difícil compreen der e expressar o que e como se origina num ou o que e como vem do outro. E quando não há qualquer preocupação inicial com esta diferença, facilmente o adulto pode passar a se compreendernão mais como res ponsável mas ditador da vida da criança. Isto pode ocorrer de diferentes modos e intensidade desde o ditar necessidades e "vontades" de uma criança até o ditado sobre as crianças em geral. Dizemos, muitas vezes, que o adulto cuida da criança porque esta é dependente. A DEPENDÊNCIA DA CRIANÇA, como aqui estamos vendo, não é uma característica isolada da criança. Mas é um traço da relação entre adultos e crianças. O adulto é solicitado a olhar pela criança. Neste olhar por ela, ele lança a vista na am12litude que a visão da criança não alcança. Pois, de algum modo, ele compreende as delimitações do viver da criança. Na solicitude, ou cuidado preocupado, o adulto existe de um modo que pode antecipar experiências ainda não descobertas pela criança. Para a criança é providencial, em certas situações, que alguém ante cipe o que pode estar para além do imediato. Isto se refere tanto ao reco nhecimento das suas necessidades e o caminho para satisfazê-las, como ao apoio e encorajamento para descobrir o ainda novo. E a criança está sempre muito disponível para receber o que lhe vem ao encontro ou o que lhe falta. E o que lhe vem ao encontro é não somente através do que é feito ou dito, mas também pelo modo do olhar. Uma criança muito pequena, em situações extremas, pode até chegar a morrer pela falta des te olhar. Quando antecipa experiências ainda não descobertas, o adulto está ' representando' a criança na escolha destas experiências. REPRESENTAR é uma possibilidade de ser com o outro, de com paliilhar, em que um torna presente algo para o outro. Isto acontece, por exemplo, quando a criança é representada pelos pais na escolha de uma escola, na procura de um médico ou na decisão de fre- 81 quentar a aula de natação. A possibilidade de representar não se limita à relação entre crianças e adultos. Na relação entre adultos ela também ocorre. Por exemplo, a procuração é um recurso jurídico que reconhece fonnalmen te a representação. Nas relações informais entre adultos, ela também se dá. Nas relações entre adulto e criança, entretanto, a representação é mais original e mais freqüentemente necessária, pois aproxima não uma coisa ou um fato , mas um certo caminho a seguir, cuja decisão não pode ainda ser da própria criança. Apesar de não depender da vontade, não podemos dizer que a re presentação é natural, nem obrigatória e geral. Ela é uma possibilidade que depende de cada caso e da compreensão que se tem deste caso. Este é o 'segredo ' da representação: descobrir quando, como e o que antecipar para, a partir daí, poder bem representar a criança. Assim antecipação e representação se dão em diferentes modos do cuidar. Aqui damos alguns exemplos: Cuidado autoritário: impõe regras que devem ser seguidas e, extre mamente exigente, não olha as condições próprias de cada criança, desconsiderando as suas necessidades e negando as suas possibilidades. Cuidado indiferente: também desconsidera necessidades mas, ao contrário do autoritário, omite p~sições. Cuidado exibicionista: encontra na criança oportunidade para se avaliar, para angariar reconhecimento e aprovações gerais. Cuidado que mima: atrofia possibilidades próprias da criança e di ficulta o seu crescimento, poupando sofrimentos. Cuidado que estimula: de quem está sempre na frente provocando descobertas. Cuidado paciente: de quem sabe esperar pelas oportunidades e pelo possível. Diante de alguns modos, muitas vezes, as crianças se tornam inconformadas, apáticas, teimosas, medrosas ou revoltadas. Neste últi mo caso, parece não aceitar o cuidado do adulto e chega até a mostrar que necessita de algo diferente (Ex.: "Quero morar em outra casa!"). 82 Ter cuidado, cuidar de alguém, não é somente poupar-lhe experiên cias desagradáveis ou fazer que siga um determinado caminho. Esses são somente dois sentidos que o cuidar pode assumir. Ambos tem em comum a falta de paciência, a pressa ou o receio, e não percebem as necessidades, solicitações e possibilidades existenciais das crianças. Necessidades, solicitacões e possibilidades não são abstrações, mas estão sempre presentes nos relacionamentos e podem ser vistas pelo olhar cuidadoso. Assim, o cuidado mais original com a criança cuida das próprias possibilidades. Isto as vezes se dá de modo doloroso pois significa, tam bém, o confronto com as situações de falta e perda, que envolvem sem pre a própria limitação. Outras vezes se dá no sentido da alegria, do riso e do contentamento. Mas o que acontece quando os adultos passam a seguir uma con duta que não admite modelos na educação das crianças? O que acontece quando ' tudo é relativo ', 'tudo pode ', 'a criança é quem decide'? A criança perde a op01iunidade de descobrir um apoio a partir do qual pode se lançar. Este apoio é a clareza de um referencial e é um modo de experimentar propriamente o histórico junto ao outro. Esta experiên cia é pertencente a própria condição humana de estar já sempre lançada num mundo compatiilhado que acolhe de um certo modo, numa certa totalidade significativa de possibilidades humanas já vividas. Assim, as crianças , privadas da clareza de um referencial próximo,que se constitui apmiir de experiências significativas, perma necem perdidas, sem conseguir decidir para onde ir, nem o que podem e o que não podem. Até que, por força das imposições gerais, impessoais, descobrirão que 'tudo não pode', que 'nada é relativo' e que 'não é sem pre que elas decidem'. Quando 6 adulto não se permite dizer o que para ele é imp01iante, a criança percebe a confusão e fica confusa. Assim, não é de estranhar quando vemos crianças e jovens adoles centes chegando aos consultórios de terapia sofrendo por não poderem expressar o que desejam de si nem para si mesmos. 83 Na falta do adulto, a criança perde a oportunidade para experimen tar o já vivido e isto se refere até ao modo como vai perceber a si mesma. Isto se dá porque a presença do adulto aproxima a confiança, isto é, a descoberta da experiência de confiar. Com a presença de alguém mais velho, que já viveu e 'já sabe' , a criança descobre a confiança. Mas não podemos esquecer também que o adulto cuida da criança do modo como pode. Ele não pode tudo, ou qualquer coisa, e não é ele quem decide sobre os limites do possível. Ele não pode nem prever, nem determinar, a vida da criança. É no cuidado com ela, que ele vai desco brir as possibilidades e limitações do próprio cuidado. Assim, no envolvimento entre criança e adulto. tanto criança como adulto encontram oportunidade de desenvolvimento. E, se um dos dois estiver prisioneiro de um processo, o outro também não estará livre para compartilhar outras possibilidades. Neste sentido, cuidar da abertura para as possibilidades futuras de uma criança, implica em cuidar da abertura para as próprias possibilidades futuras. 11 - O MUNDO DO BRINCAR E DA FANTASIA Primeiramente quero lembrar que o brincar aqui não é aquele que comumente se opõe ao falar e que é expressado assim: "O adulto fala, a criança brinca" ou "a linguagem da criança é o brinquedo". Vemos crianças brincando e falando. Ao mesmo tempo. O que sig nifica isto? Afinal, o que é mesmo brincar? Brincar é atuar. É uma forma de atuação. Brincando, interagimos com o mundo, com os outros e com as coisas ao redor. Neste momento, fazemos algo, realizamos, criamos e constmímos. Falar é expressar. Falando expressamos aquilo que compreendemos de nós e do mundo. Isto é, mostramos expressamente, diretamente, co mumcamos. Atuar e expressar, assim, são duas coisas totalmente diferentes e que não se opõem, mas se completam. 84 Dizemos que a criança vive no mundo da brincadeira. Dizemos que a criança é poder brincar e que brincar é ser criança. E, de fato, isto acontece: criança vive brincando. Brinca com as mãos, com a voz, com os brinquedos, com o fiozinho de linha e com a imaginação. As crianças não precisam de brinquedo,