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Associação Brasileira de Daseinsanalyse 
Revista da Associação Brasi leira de Daseinsanolyso • N" !J :,J ()OO . 
Daseinsanalyse I Associação Brasileira de Daseinsanalyse ­
Nº 9 (2000) - São Paulo: A Associação, 2000 
Irregular 
ISSN 1517·445X 
1 . Psicologia - Periódicos 
2. Psicoterapia- Psicopatologia - Fenomenologia- Existencial 
CDD 150.5 
Associação Brasileira de Daseinsanalyse 
Rua Cristiano Vian a, 172 - Fones : 3082-9618 · 3081 -6468-
CEP 05411-000 - São Pau lo 
FILIADA À INTERNATIONAL FEDERATION OF 
DASEINSANALYSIS- ZURICH- SUIÇA 
ÍNDICE 
APRESENTAÇÃO .... ................... ....... .......... .... .... .. .. .... .. ...... .. .............. 3 
A NATUREZA DA SINGULARIDADE DA PSICANÁLISE 
Medard Boss ... .. .. ....... .. ................... ... ..... ....... ... .. .................. ......... ........ 4 
DASEINSANALYSE E PSICOTERAPIA 
Ida Elizabeth Cardinalli ............. .... .... ... ....... ...... .. ..11 
UMA CARACTERIZAÇÃO DA PSICOTERAPIA 
João Augusto Pompéia .... ...... .. ................................... .. ... 19 
DESFECHO - ENCERRAMENTO DE UM PROCESSO 
João Augusto Pompéia ....... ... .... ....... ... ................................... ....... ....... 31 
!\TRAJETÓRIA HUMANA: UMA PERSPECTIVA 
DASEINSANALYTICA 
Maria Beatriz Cytrynmvicz ........ .... .............. .. ............ .................... ...... 44 
O TEMPO DA INFÂNCIA 
filiaria Beatriz Cytrynowicz ..... 
() MUNDO DA CRIANÇA 
A /(I ria Beatriz Cytrynowicz .. .. .... .. . 
() ' I ' I ~ MPO DA MATURIDADE 
""54 
.. ........ .. .. .... .. ....... .. . 74 
,lt11111 !l u.rzusto Pompéia ......................... .. ....... ................. ..... .. ..... .. .. .. ... . 90 
A TRAJETÓRIA HUMANA: UMA PERSPECTIVA 
DASEINSANALÍTICA* 
MARIA BEATRIZ CYTRYNOWICZ 
Resumo 
Este é o primeiro de três miigos que se propõem a uma compreen­
são da criança, desenvolvida a pmiir da perspectiva daseinsanalítica, que 
tem como base a fenomenologia existencial. 
Questiona, primeiramente, o conceito de desenvolvimento infantil, 
comum à psicologia, que se forma na observação geral da maioria e que 
propõem parâmetros de normalidade e anormalidade. Aponta, então, a 
importância de considerar a criança como ser humano em pmiicular,-re­
levando a sua condição de ser-no-mundo sempre compartilhada com e 
pelo outro. E, assim, esclarece como a pergunta sobre como ou quem é a 
criança só pode ser respondida considerando-se o mundo em que ela 
vive, em cada caso, no qual está também o próprio adulto que faz a per­
gunta. Neste sentido, esta pergunta não se refere apenas a uma outra pes­
soa, mas também responde a pergunta "Quem sou eu?" do adulto. 
Abstract- The Human Trajectory: A Daseinsanalitic Perspective 
This miicle is the first three, pmpmiing an understanding o f the child 
from the daseinsanalytical view, which is based on existential phenomenology. 
Firstly the author questions the concept of child development, 
common in psychology, formed by observation ofthe majority and which 
determines standards o f normality and abnormality. 
He then points out the importance o f considering the child as a par­
ticular human being, stressing its condition as a being-in-the-world, always 
shares with and by the other. 
Apresentado em Abril de 1993, na Associação Brasileira de Daseinsanalyse, SP- Brasil. 
44 
Finally, he explains that the question ofhow or who the child is can 
be answered only by taking into consideration the world in which he or 
she lives and which the adult who asks the question is also present. In 
this sense, h e question refers not only to another person, but it also answers 
the adult's question "who am I"? 
PALAVRAS-CHAVE: Criança, Desenvolvimento, Ser Humano, 
Daseinsanalyse, Ser-no- mundo. 
Introdução 
TRAJETÓRIA HUMANA - com este título tentaremos desenvol­
ver, à luz da Daseinsanalyse, uma maneira de entender e falar da criança, 
do adolescente e do adulto, enquanto a própria unidade (Dasein, Existên­
cia) que eles constituem, mas também e conjuntamente na própria 
especificidade de cada um. Como compreender a criança, que se toma 
adolescente e este que se toma adulto, mas que quando é criança é já 
inteiramente e do jeito dela mesma de ser? Como falar do adolescente 
que é ele, mas que também não é, mas que este "não é" não é nem a 
criança nem o adulto, mas justamente ele mesmo? 
A Daseinsanalyse, entendida aqui, é um método em seu sentido mi­
ginal (META) de caminho de atuação, desenvolvida inicialmente pelo psi­
quiatra suíço Medard Boss (1903-1990) fundamentado na obra básica do 
filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) SER E TEMPO (1927) e 
em suas originais contribuições posteriores, tanto no campo da ontologia e 
filosofia, como aquelas diretamente ligadas ao campo da psicologia e psi­
quiatria, como os SEMINÁRIOS DE ZOLLIKON (1959-1969). 
Na verdade, não organizamos estes encontros apa1iir do título "Traje­
tória Humana". Ao contrario, este foi um título que smgiu posteriormente, 
depois de muitos estudos e conversas em tomo do desafio que é trazer para 
a Psicologia, especialmente para a atuação em psicoterapia, os ensinamentos 
básicos fenomenológicos e a abertma da compreensão desenvolvidos por 
Heidegger sobre o existir humano e o próprio Ser. Nestes nossos estudos e 
conversas estiveram sempre presentes, além daquilo que lemos de Mmiin 
Heidegger, Medard Boss e outros autores próximos no caminho da 
45 
fenomenologia e dos temas em questão, a poesia sobretudo de poetas como 
Fernando Pessoa, e a nossa própria experiência profissional e pessoal. 
O que podemos falar - e como - que guarde a possibilidade da 
abrangência para todos e a especificidade de cada um, em cada caso? 
Isto será possível? Como aproximar a compreensão mais fundamental da 
essência do existir humano como ser-em-cada-caso e sempre-já-em-to­
talidade para um campo de atuação que, em sua tradição, viu e continua 
vendo, o homem segundo princípios gerais e forças comuns, como se 
fora uma realidade material qualquer ? 
A compreensão desenvolvida em e apartir de SER E TEMPO sobre 
Temporalidade, Historicidade, Espacialidade, Cuidado (Sorge), Culpa­
bilidade, Angustia e Ser Mortal é definitiva para que não mais possamos 
nos contentar com as explicações teórico-científicas-psicológicas, das 
mais diversas correntes, para o desenvolvimento e as condutas humanas. 
A sequência das experiências psicológicas não pode mais, em si, ser vis­
ta como determinante de tudo que podemos compreender como éondi­
ção humana. Ao contrário, o acontecer psicológico, sendo histórico e 
assim temporal e situado, se dá já no humano e é nesta condição que 
ganha o seu sentido. O que significa então ser-humano? 
Estamos nos propondo a compreender esta questão na perspectiva 
da experiência do seu acontecer - que é fundamental em qualquer atua­
ção na Psicologia. Esta proposta aceita, no fundo, a possibilidade de tor­
nar conhecida a criança, o adolescente e o adulto, de um modo tal que 
preserve a fundamental condição humana de ser-si-mesmo. Tornar-co­
nhecido e deixar-ser é a nossa direção. 
Dito de outro modo, a possibilidade desta empreitada está compre-
endida nesta poesia do poeta Raimundo Gadelha: 
"Temos no olhar 
a prisão de imagens 
e no coração 
sede de liberdade ... 
* 
a emoção do vôo." 
Gadelha, R. (199 1) Um Estmnho Chamado Horizonte 
46 
Primeiramente queremos ressaltar que organizamos nossos traba-
lhos "Trajetória Humana" em torno de três tempos (épocas): 
Tempo da Infância (Maria Beatriz Cytrynowicz) 
Tempo da Adolescência (Carlos Eduardo Carvalho Freire) 
Tempo da Maturidade (João Augusto Pompéia) 
Tempo da Infância está dividido em três partes: Trajetória Huma­
na, Tempo da Infância e Mundo da Criança. 
Esperamos que esta divisão venha a se tornar clara a medida do 
desenvolvimento do próprio trabalho. 
SOBRE O DESENVOLVIMENTO INFANTIL 
É o mais comum que os estudos sobre o ser humano, feitos na Psi­
cologia, sejam chamados de DESENVOLVIMENTO quando se referem 
aos bebês eas crianças. 
Mas tanto que se fala em desenvolvimento, pouco se pensa sobre 
isto, na Psicologia. Esta palavra desenvolvimento é usada com diferentes 
sentidos e em diferentes contextos. Por exemplo: 
"Esta criança está pouco desenvolvida, necessita de mais exercícios 
físicos". 
"O ego ainda não está desenvolvido nesta idade!" 
"Esta é uma classe para os mais desenvolvidos!" 
E ainda: "Os países são mais desenvolvidos, não desenvolvidos ou 
em desenvolvimento". 
O que significa desenvolvimento em cada uma das frases acima? Há 
desenvolvimento como crescimento fisico , condição psicológica, fmiale­
cimento emocional, qualidade intelectual, fator sócio-econômico, padrão 
cultural, ou simplesmente como surgimento de algo que antes não havia. 
Ante tal diversidade de uso da expressão desenvolvimento será que 
ela é a melhor maneira para começarmos a compreender o nosso próprio 
viver? 
47 
Vale ainda relembrar que "teorias de desenvolvimento", na Psicolo­
gia, se ocupam dos humanos até a idade próxima dos doze anos. O que 
está implícito ai? Além disso, tais leis de desenvolvimento servem como 
padrão de normalidade, como as que determinam a melhor idade para as 
crianças entrarem na escola, ou que determinam se elas apresentam con­
duta normal. Teorias de desenvolvimento cognitivo e emocional, das mais 
diversas correntes teóricas na psicologia, referem-se a "desenvolvimento 
normal". Desenvolvimento normal torna-se padrão de crescimento e con­
duta. A descrição de comportamentos normais gerais atende a um princí­
pio científico da verdade universal. Assim, com as teorias de desenvolvi­
mento, a Psicologia tem atendido à busca dos parâmetros gerais que ser­
vem à comparação e a unificação de todos os humanos. 
Na Educação institucionalizada, p.ex., o estabelecimento de pa­
drões e objetivos comuns para todos os alunos é necessário. Pois, uma 
escola - que represe1~ta o mundo público e geral em certo sentido, como 
disse Hmmah Arendt - sem o mínimo de organização pré-estabelecida, 
não funciona. 
Um exemplo de experiência de escola sem normas prévias foi a 
inglesa SUMMER HILL. Por volta dos anos 60, alguns educadores acre­
ditaram que o que estava errado com as escolas tradicionais era a exis­
tência de normas impostas pelos adultos. Então propuseram uma nova 
escola em que somente estavam previamente arranjadas as condições 
gerais básicas como: prédio, subsídio financeiro, professores disponí­
veis para a nova experiência, etc ... O funcionamento geral, desde a re­
cepção dos alunos à divisão por classes e a escolha das atividades e au­
las, era resolvido pelas crianças. A experiência acabou em fracasso. E se 
disse na época que tinha havido uma completa infantihzação de todo o 
sistema e conseqüente desmoronar de qualquer sentido educacional. Havia 
ocorrido falta de metas claras. As metas que se referem ao movimento 
em direção ao futuro , no caso de uma escola, implicam necessariamente 
no comprometimento do adulto com o próprio en~ino e educação. So­
mente depois de estudar, é que alguém pode conhecer mais, refletir e, 
então, escolher as metas para o ensino. 
A Crise na Educação em Entre o Passado e o Futuro. 1954. 
48 
É importante também lembrar que, no campo da Medicina, o cres­
cimento normal é um parâmetro muito valioso. Mas, devido à própria 
natureza da prática médica, os padrões são afastados imediatamente nas 
situações críticas. Quanto mais cuidadoso for o médico, mais atento es­
tará à observação particular do exame clínico de seu paciente e da histó­
ria individual do observado. Isto faz pensar que as situações críticas mais 
iminentes forçam o olhar para uma direção mais singular, deixando de 
lado o menos significativo em cada caso, ou seja, o geral. Na crise, pare­
ce que a média se retrai e o singular se acentua. Esta é uma experiência 
com a qual os médicos estão particularmente em contato. 
Não nos parece então adequado compreender a criança a pmtir do 
caráter geral do desenvolvimento que somente aproxima normalidades 
de crescimento ou conduta, mas que pouco nos diz do modo de ser crian­
ça e do tempo da infância. Assim, voltamos à pergunta: Como podemos 
compreender, a partir de uma perspectiva da Daseinsanalyse, a criança, o 
seu mundo e o tempo da infância? 
Quando uma criança nasce, ainda na maternidade, no primeiro dia 
de vida, passado o momento crítico do nascimento (de quando se per­
gunta "O bebê está bem, é normal?") é muito comum que as visitas ou 
mesmo os familiares perguntem "Com quem se parece o bebê?" ou que 
brinquem sobre o futuro da criança "Vai ser engenheiro ? Não, vai ser 
médico ... Acho que vai ser artista". Nestas horas sempre me ocorre a 
agonia que as pessoas devem estar sentindo: incomodadas com aquilo 
que não vêem, se apressam em dar uma cara, uma feição ao bebê. 
Muitas vezes, a torcida já existe antes do pequeno nascer: "Seria 
tão bom se ele puxasse o jeito do pai", "Seria fantástico se ele levasse o 
jeito artístico da mãe", "E se fosse atleta ! " O bebê já nasce com uma 
cara! Mas ... 
Logo, logo, já nos primeiros dias, o bebê surpreende: Lembro-me 
de uma mãe que ficava inconformada com o seu filhinho que dormia 
quase sem parar e mal acordava para comer. Logo começaram as preocu­
pações em relação ao bebê: "Será que ele vai ficar subnutrido? Ele vai 
morrer de inanição?" 
Outra mãe quase teve um "stress" quando a sua filhinha "chorava 
sem parar" . A impressão, num primeiro momento, é que algo não estava 
49 
certo. Algo saiu errado, anormal. Bebês não dormem tanto! Bebês não 
choram tanto! Mas, quem disse isto? Quem decidiu? 
Na verdade, foi ninguém. Mas aquelas mães, como todas as mães, 
esperavam por um filho com uma cara, com um jeitão! 
E é assim que se inicia a tarefa de todos os bebês, os que ainda 
são bebês, os que ainda virão e os que já foram: acontecer ele mesmo 
no seu mais peculiar e único ser. Nesta tarefa já está em jogo um sim 
e um não, um mostrar e um esconder, um aceitar e um recusar, pois já 
de início, como humano, o bebê já é constituído pela historicidade, 
esta que se apresenta tanto em seu caráter de herança, como de se 
criar ele próprio . 
Como vemos, logo de início, cabe ao pequeno bebê mostrar, apon­
tar quem ele é. Esta é uma tarefa que ninguém pode executar por ele. 
Nem por procuração. Do jeito que ele é, somente ele mesmo. E para isto 
não é necessário que ele saiba o que está fazendo, que aprenda, nem que 
decida fazê-lo. A ele cabe apenas e sobretudo realizar a tarefa de ser. 
Esta não é uma tarefa como as outras: não tem lugar nem hora certa, 
não trata de alguma coisa ou pessoa específica, não tem objetivo prévio: 
moto-contínuo de vida! 
O DESENVOLVIMENTO, no sentido próprio do acontecer huma­
no, não pode ser descrito por ·um projeto prévio. Podemos melhor 
descrevê-lo como um CAMINHAR, não como um caminho, mas como 
o caminhar mesmo. Neste sentido, como se movimentar que abre a pos­
sibilidade de um certo caminho, pois é quando caminhamos que desco­
brimos o caminho que trilhamos. 
... 
Este caminhar se dá, em cada caso, descobrindo e encobrindo pos-
sibilidades. E esta é uma tarefa que não tem idade: já é dada no nasci­
mento e nos acompanha até o morrer. 
Às vezes ele é solitário, outras é compartilhado por pessoas que 
nele se tornam mais presentes ou que se distanciam. Assim, no próprio 
caminhar estamos já, desde o início, descortinando o próprio caminho 
com as possibilidades de convívio com os outros. 
O caminho que este caminhar trilha às vezes permanece descober­
to, outras vezes se encobre logo que é descortinado, pelo esquecimento 
50 
mesmo ou pela desatenção de quem não viu. Isto mostra que nem sempre 
as experiências descobertas prevalecem em seu sentido primeiro no de­
correr do caminho, como uma totalidade. Possibilidades inicialmente 
descobertas nem sempre permanecem, outras são descobertas mas não 
atentamente. Algumas retornam, outras não. 
Caminhar não é uma tarefa sempre fácil de ser realizada. Muitas 
vezes é difícil ir contra o quese espera de nós ou ser considerado "anor­
mal". Por exemplo, em algumas ocasiões vemos alguém se rebelar. Mui­
tas vezes, no consultório, percebemos que a rebeldia e a afronta são ten­
tativas de descobrir ou "manter a própria cara". São como gritos contra o 
jeitão "normal", contra a "cara que se deve ter", contra a regra. 
Caminhar pode ser também uma tarefa muito sofrida. Quando é 
assim, é experimentada com receio e a descoberta das próprias possibili­
dades e das reais oportunidades que o mundo oferece são ameaças pre­
sentes em cada tentativa. 
Quase sempre, também, descobrir-se e descobrir o próprio caminho 
não se dá em harmonia: crises e desilusões povoam os caminhos. Nem 
sempre o que descobrimos COlTesponde àquilo que queríamos ou imagi­
návamos. 
Cada caminhar se dá em seu ritmo. Cada pessoa segue o seu pró­
prio, como o próprio batimento cardíaco. Mas, como este, também sofre 
as interferências de fatores "externos". As condições em torno, as priva­
ções, as solicitações, as companhias, podem estimular ou inibir (não ex­
tinguir) o próprio caminhar. 
Nas relações entre pais e filhos, crianças e adultos, algumas vezes o 
próprio caminhar das crianças sofre interferências que dificultam a des­
coberta do próprio caminho. Por exemplo, uma mãe superprotetora que 
controla todas as atividades do filho, mesmo que seja com a intenção de 
melhor protegê-lo das ameaças, está dificultando o crescimento do filho , 
enquanto o impede de descobrir e experimentar suas próprias possibili­
dades de enfrentar situações adversas. 
Quando isto acontece, esta criança perde a possibilidade de experi­
mentar mais livremente a sua tarefa mais original que é descobrir que ela 
mesma pode ser e como. Assim, o caminho descoberto em seu caminhar 
51 
estará sempre aquém ou além da medida possível, desde a maior retração 
provocada pelo temor até a d~smedida e exagero provocados pela falta 
de familiaridade consigo e com o mundo. 
Outras vezes, é a desilusão dos pais com os filhos que se torna tão 
grande, que acarreta maior dificuldade para a criança enfrentar a própria 
vida. Compreender-se como responsável pela desilusão dos pais pode 
assumir um caráter extremamente pesado. Nesses casos, os pais não con­
seguem perceber que há uma diferença entre o filho que eles tanto dese­
jaram e o filho que nasceu. Não se trata da mesma pessoa, esta é a reali­
dade. Os pais precisam aprender a conhecer seus filhos, como aos filhos 
cabe aprender a conhecer os próprios pais. Se os pais não se dispõem 
nesta aprendizagem, ambos permanecerão iludidos e desiludidos e, as­
sim, permanecerão sempre distantes uns em relação ao outro e da própria 
possibilidade de aceitar quem são. 
Finalmente, é importante ainda relembrar mais um aspecto: 
"Quem é que se preocupa com a questão do desenvolvimento?". 
Ceriamente este não é um tema.das conversas entre as crianças. 
(Mesmo que a criança seja muito intelectualizada, felizmente!) A crian­
ça pode se preocupar com o próprio crescimento, algumas vezes queren­
do, outras não, "ficar grande". 
Mas é o adulto, quando se encontra desencontrado ou desco­
nhecido para si mesmo que, algumas vezes, substitui a pergunta 
"Quem sou eu?" ou "Como é a minha vida?" por outra: "O que é ser 
criança?" 
Esta forma de perguntar mais distanciada~ parece que se refere 
unicamente a uma outra pessoa. Isto é um engano. Pois, quem é esta 
criança senão nós, cada um de nós adultos que fazemos esta pergunta, 
em nossa máis própria possibilidade de ter sido um dia? Ser criança 
ou ter sido criança é, pois, a nossa própria possibilidade de já ter sido, 
um dia. 
É compreendendo esta possibilidade já realizada, compreendendo 
a própria realização (desenvolvimento próprio), como caminhar e não 
como o resultado final ou ponto de chegada, que podemos começar a 
falar da criança, em seu sentido mais próprio. 
52 
"Constato triste: 
enquanto envelheço, 
todos os dias, 
renasce mais querido 
o filho que não tenho". 
(Raimundo Gadelha) 
Bibliografia 
- ARENDT, H.- Entre o Passado e o Presente, "A Crise na Educação" 
Editora Perspectiva S.A. , São Paulo, 1979. 
- GADELHA, R. - Um Estreito Chamado Horizonte. Massao Olmo 
Ed. São Paulo, 1991. 
- HEIDEGGER, M. - Ser e Tempo.(1927) Editora Vozes, Petrópolis, 
1989. 
- HEIDEGGER, M. - Being and Tim e. Basil Blackwell Oxford, 1973. 
- HEIDEGGER, M. - Seminários de Zollikon . Tradução ainda não 
publicada de Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida 
Prado 
53 
O TEMPO DA INFÂNCIA* 
MARIA BEATRIZ CYTRYNOWICZ 
Resumo 
Neste segundo artigo que propõem uma compreensão 
fenomenológico-existencial da criança, o desenvolvimento infantil é 
visto como um revelar de possibilidades, o que, ao mesmo tempo, apro­
xima e afasta o ser humano do possível de si mesmo e do mundo de 
possibilidades. 
Ressalta que o existir da criança, desde o início, só pode ser com­
preendido como uma totalidade, por mais que para isto tenhamos que 
reconhecer a limitação do alcance de nossa compreensão, e a partir dos 
modos como se apresenta a sua relação com o mundo mais próximo. 
Com estas considerações iniciais, pode-se ver mais claramente como 
se dá a temporalidade e a historicidade na infância, com a primazia do 
imediato e o surgimento conjunto do passado e do futuro, instigado pala 
curiosidade da criança. 
Abstract- Childhood 
This second article presents a phenomenological-existential 
understanding o f childhood. The development o f the child is regarded as 
a revealing o f possibilities which at the same time'approaches the human 
being to, and distances him from the possible in himself and the world o f 
possibilities. 
From the beginning the existing child should be understood only as 
a whole, although to this end we must recognize the limits ofthe reach of 
our understanding. It should also be understood from the ways in which 
its relation with the world shows itself. 
Apresentado em Abril de 1993 na Associação Brasileira de Dase insanalyse. SP - Brasil. 
54 
These initial considerations lead us to see more clearly how 
temporality and historicity evolve in childhood, with the precedence of 
the immediate and the simultaneous appearance of past and future , 
instigated by the child's curiosity. 
PALAVRAS-CHAVE: Infância, Tempo, Criança, Crescer, Criar, Descobrir 
Vamos começar relembrando o poeta Raimundo Gadelha, no livro 
"Um estreito chamado horizonte" : 
"Temos no olhar 
a prisão de imagens 
e no coração 
sede de liberdade ... 
a emoção do vôo." 
O que nos diz este poema a respeito de nossa questão inicial: 
"De que DESENVOLVIMENTO falamos, a partir da 
Daseinsanalyse?" 
' Bem, assim como no poema, a prisão de imagens convive com a 
sede de liberdade na emoção do vôo, assim o DESENVOLVIMENTO e 
o DESENVOLVER-SE também convivem no existir humano. 
O existir humano se dá em um movimento que, ao mesmo tempo, 
abre e fecha que, ao mesmo tempo, mostra e esconde. 
Este movimento - que é tão bem dito com a palavra DESVELAR ­
é também chamado simultaneamente de DESEVOLVIMENTO e DE­
SENVOLVER-SE. 
Ao mesmo tempo em que, cada um de nós, nos desenvolvemos 
estamos tanto indo na direção de nosso próprio caminhar descortinando­
o e aproximando as nossas peculiaridades, como estamos também: 
1 -Nos afastando de certos modos próprios de ser, alguns dos quais mo­
dificados tão radicalmente até o ponto de os considerarmos perdidos, 
como p.ex: o brincar no adulto. 
55 
2 - Indo na direção dos outros e do mundo comum, isto é, do convívio. 
Isto é assim, dito de w11 modo bastante simplificado, se compreendemos 
o existir humano (Dasein, Ser e Tempo) desde a sua origem e sempre como: 
1 - Poder- ser que se mostra sempre de um modo tal e não de outro. 
2 - Compartilhando em um mundo junto a outras pessoas e coisas. 
Tais referências são estruturas fundamentais de ser do ser- humano 
e não aquisições que podem simplesmente deixar de ser, ou serem omiti­
das, na vida de cada um. Cabe a cada um de nós, aí sim, (e não por 
simples decisão) desdeque nos constituímos como existência (o nasci­
mento) articular, ou mesmo reafirmar a cada momento, uma configura­
çã'? própria de existir. Chamamos tal configuração de história e, nela, 
podemos encontrar revelados os modos possíveis de cada um existirdes­
cobertos e desenvolvidos ou não desenvolvidos. 
Mas, ao mesmo tempo em que se dá tal configuração (história) algo 
peculiar acontece: permanecemos escorregadios, escapando do já confi­
gurado na direção de ser para além do que já somos. Por isso não podemos, 
pela nossa própria condição de ser, sermos compreendidos somente pela 
nossa história. Somos como o poema diz: "Sede de Liberdade". E tal pecu­
liaridade também não é uma aquisição ou fi·uto de opção ou desejo. 
Podemos encontrar alguma dificuldade para compreender o existir 
humano conjuntamente como dois movimentos diferentes, pois comumente 
seguimos a tradição de um pensamento que procura acabar com a proximi­
dade das diferenças sem nenhuma passagem ou ligação entre elas (do ne­
gro que se opõe ao claro, do justo que se opõe ao injusto) e para o qual, a 
verdade significa a vigência do absoluto. Estamos mais acostumados a 
....... 
pensar excluindo e não nos provoca o menor espanto a evidência da lei que 
diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. 
Esta dificuldade de compreender dois movimentos ou sentidos con­
juntos e diferentes, aparece p.ex: com a noção de limites. 
Comumente compreende-se que o corpo humano é limitado pela 
pele que o envolve. E que este corpo é o limite físico do homem. 
Este entendimento sugere limite como um até onde. (Até onde posso 
ir e até onde pode ir o outro, em relação tanto ao lugar como ao direito de 
56 
cada um, são demarcados pelo até onde que exclui o outro). A mesma 
sugestão aparece nas preocupações com a educação: até onde as crianças 
podem ir? Até onde a sua conduta não desrespeita o outro? Ou até onde a 
sua conduta é prática de liberdade e não um excesso indesejável? Assim 
nos acostumamos a pensar nos chamados limites educativos das crianças. 
O limite, compreendido assim, significa fim, significa impedimento. 
No entanto, podemos compreender o limite também como o que 
de-limita. O mesmo limite, quando pode de-limitar, não é aquele que 
põe um final, que impede ou que encerra, mas é aquilo a partir do que 
algo é possibilitado. 
Assim, em nossa experiência mais próxima, compreendemos o nosso 
corpo e a nossa pele não somente como o que nos impede ou nos encerra, 
mas como o que nos possibilita compreender e o que nos possibilita irmos 
de um lugar para outro. Isto é, não somos primeiramente dentro de nosso 
corpo mas a partir dele. (c f. M. Boss) É a partir de como somos, e isto quer 
dizer, do modo como existimos, sempre numa relação de abertura, com­
preendida também a partir de nosso corpo sensível e de nossa história, que 
estamos abertos ao contato com os outros e as coisas em volta. E é a partir 
deste contato que nos constituímos do modo como somos. O modo como 
percebemos e cuidamos concretamente de nosso corpo está intimamente 
ligado com o que percebemos a partir dele. Assim dizemos nossa existên­
cia não se encerra nos limites de nosso corpo. E é assim, neste constante 
e original "jogo" de conter e abrir, ao mesmo tempo, que compreendemos 
como somos e isto significa também o nosso corpo. 
Também no campo da educação quando dizemos um não, podemos 
estar não somente impedindo, mas libertando novas possibilidades para 
o existir de uma criança. Por exemplo: 
Se meu filho me pergunta se pode ir a um determinado lugar e eu 
acho que aquele não é um lugar apropriado para ele, eu não permito. Isto 
não quer dizer que simplesmente eu esteja cerceando a sua liberdade. 
Primeiramente se o assunto for importante ele não vai acabar por 
ai simplesmente com um não. Se acabar, é porque não era tão impor­
tante ou porque não havia condições para qualquer esclarecimento, no 
momento. 
57 
A própria liberdade é uma questão muito mais ampla e mais funda­
mental para que possa ser extinta simplesmente com um não. Também 
não podemos esquecer, que a falta de permissão não impede nenhum 
filho de fazer o que ele quer. (Voltaremos à relação dos adultos com as 
crianças mais tarde). 
Um outro exemplo, no campo da psicologia, é o caso da tão conhe­
cida "necessidade de estabelecer limites" da terapia infantil. Se, de ante­
mão, já deixamos estabelecido o que a criança pode e o que ela não pode 
fazer, como podemos esperar que ela possa mais livremente descobrir as 
suas próprias condições, possibilidades e limitações? Ainda mais quan­
do a terapia deve ser o lugar para descobertas próprias, pois descobrir as 
próprias limitações faz parte do próprio crescimento. 
A compreensão dos significados de limite mostra como algo pode 
significar simultaneamente A e B. 
Ainda há um segundo ponto que gostaria de ressaltar à respeito da 
questão inicial "De que desenvolvimento falamos, a partir da 
Daseinsanalyse": compreender DESENVOLVER I DESENVOLVIMEN­
TO como coisa do homem - não adulto não criança, mas tanto adulto 
como cnança. 
É curioso como voltamos sempre ao desenvolvimento das crianças. 
É certo que, no início deste" trabalho, parti da criança mas chegamos 
depois ao adulto que se pergunta "Quem sou eu?" (Trajetória Humana). 
O que significa isto? 
Será que temos a vista tão turva em relação ao modo de ser da cri­
ança? Ou será que já esquecemos como fomos um dia e queremos 
relembrar? Será que, ao relembrarmos o desenvolvimento da criança, 
além de compreendê-la melhor (como os nossos filhos, pacientes e alu­
nos), não estaremos também clareando a nossa própria visão de adultos? 
Será que ainda podemos responder tais perguntas sem antes consi­
derarmos a questão sobre a linguagem que tem sido compreendida, qua­
se sempre a partir da lingüística, como uma propriedade dos homens, no 
mesmo sentido como são vistos os homens que possuem um corpo, uma 
mente e um espírito? Com a fenomenologia, a partir de Heidegger, se 
58 
abre um caminho que nos leva em outras direções - a meu ver, direções 
estas muito mais ricas e fascinantes. O nosso desafio é pensar a lingua­
gem na relação com o crescimento das crianças des-cobrindo estas novas 
direções. Isto será de grande importância sobretudo para a psicologia 
pois poderemos então: 
1 - Compreender melhor a fala e o falar da criança como possibilidade 
fundamental de expressar sentido. 
2 -A partir do que poderemos nos abrir para os significados das desco­
bertas articuladas pela fala e pelas palavras no convívio próprio da crian­
ça com o adulto e para a compreensão deste convívio. E também podere­
mos compreender melhor as inter-corrências possíveis dos impedimen­
tos da fala articulada na vida da própria criança e de seus mais próximos, 
como por exemplo: as afazias. 
3- Finalmente poderemos encontrar um caminho novo e mais apropria­
do para compreendermos e falarmos dos recém-nascidos, bebês e crian­
ças que ainda não expressam, como fala e palavras, o que compreendem. 
E, então, também poderemos dizer mais apropriadamente do convívio 
entre essas crianças e os mais próximos e do significado do brincar. 
SER CRIANÇA 
Vamos começar aproximando uma poesia não publicada do poeta, 
amigo e também psicólogo Miguel Perosa: 
INFÂNCIA 
"Quando eu era pequeno 
Eu jogava bola 
E o jogo e a bola 
Eram toda a minha vida 
Quando eu era pequeno 
Eu brincava de mãe-de-rua 
E o brincar e a brincadeira 
Completavam a minha existência 
Quando eu era pequeno 
Cada pequena parte do mundo 
Absorvia todo o meu esforço 
Todo o meu 1iso, toda a minl1a tristeza 
Quando eu era pequeno 
A minha vida era profundamente vivida 
Intensamente vivida 
Absolutamente vivida." 
59 
Quando leio este poema, sempre sou tomada de uma certa emoção. 
Nele é dito, com grande simplicidade e beleza, que CRIANÇA 
TAMBÉM É GENTE. Isto parece óbvio? 
Quando a gente pára para olhar direitinho o que se diz para as crian­
ças ~ou sobre elas- a gente vê como elas são vistas. Muitas vezestenho a 
impressão de que se tratam de figuras muito estranhas, seres diferentes. 
Quantas vezes a gente não ouve, por aí, " .. . podemos falar. Não se preo­
cupe. Ela ouve mas não entende nada". Eu também já ouvi assim: "Cri­
ança não tem querer", "Criança não sabe o que quer". E também já escu­
tei: "Criança não tem que falar!" 
Nestas ocasiões, fico imaginando o tipo da criança que seria aquela. 
Penso numa "espécie" de será, isto é, algum tipo que é (claro que é) mas que, 
na realidade, não é ainda: que ainda não compreende, que não tem querer e 
não pode dizer. Como peça incompleta, ela tem que aguardar um momento 
no futuro em que, aí sim, estará pronta para entrar em ação, como um E. T. 
Mas também fico imaginando que essas frases podem também ser 
ditas como uma recriminação. Perdendo a paciência, o adulto saca a sua 
autoridade e o lugar submisso da criança. 
Parece que para o E.T. ou para o submisso falta um já é e sobra um 
vai ser (será)! 
Mas, há também outros modos de olhar a criança: 
Tem o "mini-adulto", um adulto em miniatura. Este é criança so­
mente porque é baixinho. Ele é maduro. Muito responsável. Cumpridor 
de seus compromissos. Nunca "fura" com suas obrigações. Com ele não 
tem surpresas. Esta criança é um pequeno ad~lto : 
Do menino se diz: "É o homem da casa quando o pai não está." 
Da menina se diz: "É a mamãezinha". 
Estes não são somente jeitos carinhosos de lidar com estas crianças. 
Quantas vezes não disfarçam uma exigência em dose exagerada de res­
ponsabilidades? 
Certa vez, ouvi de uma mãe: "Eu não agüento quando ele assume 
compromisso e depois, desiste ... Ele já tem idade. Já tem responsabilida-
60 
de para saber o que quer. Como pode desistir tanto?" Ela, a mãe, me 
falava de seu filho de 10 anos. 
Outra mãe totalmente fora de si me falava de seu filho de 8 anos: 
"Como ele pode se descontrolar tanto?" Ela estava saindo de uma série 
sucessiva de desencontros amorosos e seu filho estava bastante inquieto, 
arteiro e não obedecia às ordens dela. 
A dose exagerada também surge no campo das relações "amoro­
sas" das crianças. 
Lembro-me de um menino que quase que tinha que ficar de pronti­
dão para a chegada de qualquer menina. Mesmo quando estava "ligado" 
num filme de TV ou numa brincadeira qualquer. Inevitavelmente vinha a 
pergunta-comentário dos pais: "Não era gostosa a gatinha!?" 
E aquela garota que não podia brincar do que mais gostava: correr, pular 
e subir em árvores. Ai dela quando se sujava e ralava os joelhos. Vinha o ser­
mão. "Mocinha tem que se cuidar, garotos não gostam de meninas feias". 
E a outra garota, que era atazanada pela pergunta: "Quem é o na­
moradinho na escola?" 
Estas crianças são vistas como pessoas maduras, prontas para qual­
quer situação. A maturidade seria algo automático para as crianças. Delas 
é esperado o que ainda não é e recusado o que elas podem expe1imentar. 
Neste caso, parece-me que sobra um ter que ser e falta um vai ser. 
No entanto, apesar de visões aparentemente opostas ~ uma da cri­
ança que ainda não é gente e a outra da criança que já é adulto, elas tem 
o mesmo ponto de partida. 
Tanto a e1iança que ainda não é gente como a que é miniatura de adul­
to são visões construídas a pm1ir de um modelo de um certo adulto. Temos 
aqui modelos de crianças construídos a partir de modelos de adultos. 
Ser adulto, neste universo, é mais um modelo. É uma lente, através 
da qual, as pessoas enxergam vendo adultos e crianças. 
Assim as crianças, de um jeito ou de outro, não tem para quem se 
mostrar. Como elas são, qual é o seu apelo, permanece distante do olhar 
e do ouvir diretos de um adulto próximo. 
61 
No entanto, esta "prática das lentes" não é apenas um costume in­
gênuo das relações familiares cotidianas. Ela permeia também as teorias 
infantis. 
Na própria psicologia, a Teoria da Sexualidade Infantil foi de­
senvolvida por Freucl, segundo ele mesmo, através das observações de 
seus pacientes adultos. Estes pacientes contavam suas lembranças da 
infância e Freud analisava. Depois de organizar e selecionar tais rela­
tos, Freud formulou a sua própria teoria (c f. Freud em Teoria da Sexu­
alidade Infantil). 
Não podemos esquecer que Freud fundamentou seu trabalho nos 
princípios explicativos que chamou de Metapsicologia. A partir da 
Metapsicologia, formulou o mecanismo de regressão. Este foi o pon­
to que o levou a acreditar que fazia uma psicologia infantil, a partir 
do entendimento explicativo dos desvios de conduta e neuroses dos 
adultos. 
Não podemos desconsiderar a premissa de Freud: o adulto doente é 
aquele que não cresceu. Doente, o adulto regride e se torna, neste esta­
do, criança. 
Há aí uma confusão. 
É ce1io que o adulto pode encontrar na infância- como temos algu­
mas vezes apontado - uma referência para a compreensão de sua própria 
vida. No entanto, isto não significa que a vida do adulto seja explicada 
por fatos que ocorreram na infância. Também não significa que aquele 
adulto que permaneceu imaturo seja uma criança que não cresceu. 
O imaturo é o adulto que não cresceu. Não é a criança que não 
cresceu. 
Há aí um desvio de entendimento: a criança seria como um adul­
to doente. 
Diferentemente de buscar causas e explicações, RELEMBRAR A IN­
FÂNCIA pode nos servir. Relembrar a infância - INFÂNCIA como possi­
bilidade própria de ter sido um dia - pode servir como busca de referência 
para a compreensão da vida do adulto. As referências possíveis dizem 
respeito tanto ao que foi como ao que não pode ser descoberto ou desenvol-
62 
vido. Ambas, compreendidas não como um fato, mas como possibilidades 
de relação, concretizadas ou não, compõem a história de cada um. 
Esta busca de referência deve ser compreendida no sentido de am­
pliar as possibilidades existenciais atuais, quando algumas possibilida­
des fundamentais estão esquecidas para alguém. Isto é, quando este es­
quecimento significa privação ou redução da realização da própria vida, 
na perspectiva de compreender e ampliá-la, relembrar a infância torna 
atuais referências já vividas. 
Relembrar a infância é assim em 1 o lugar, a possibilidade de uma 
experiência que aproxima o que foi um dia e também a possibilidade de 
perceber o esquecimento do que pode ser lembrado ou novamente vivido. 
É esta a experiência, ela mesma, que amplia as possibilidades de viver. 
A amplitude de tal experiência nunca poderá se esgotar num único 
fato passado ou presente. A procura das causas e explicações que acabou 
sendo, para nós ocidentais, o significado mais comum da palavra com­
preender, não dá conta de tal amplitude. 
Retomando os modos como as crianças são compreendidas, além 
das "ainda não gente" e "miniaturas de adulto" construídas a partir do 
modelo de adulto, há ainda: 
"Crianças cronológicas" - São crianças de base estatística que apa­
recem nas pesquisas. São crianças sem vida: são idades e tipos de com­
portamento. 
"Crianças ingênuas"- Uma caracterização mais próxima da moral 
ou da religião. São aquelas que não tem culpa. São os inocentes, para 
quem o querer, as artimanhas e transgressões não dizem respeito. 
Fala-se de fases de desenvolvimento das crianças, descreve-se com­
portamentos específicos destas fases, indica-se critérios de idade. Mas é 
importante também dizer: nem sempre as crianças foram compreendidas 
como as crianças de hoje. 
Há um livro muito interessante, chamado Metablética, em que 
seu autor Van Den Berg, nos conta das crianças dos sécs. XV e XVI. 
Nesta época, até aproximadamente a idade de 4 ou 5 anos, as crianças 
63 
viviam despreocupadamente em relação a se tornarem adultas. Os adul­
tos não tinham os cuidados pedagógicos que hoje conhecemos. As cri­
anças passavam o dia entre elas mesmas e compartilhavam o mundo 
comum dos adultos. Desde já começavam a aprender o ofício do pai ou 
da mãe. As crianças nobres ou filhos de ricos mercadores aprendiam 
também a ler e escrever. Mas não havia a literatura infantil que hoje 
conhecemos. As crianças aprendiam a ler e escrevernos textos clássi­
cos de Filosofia e na Bíblia, em grego e latim. Aos doze anos as meni­
nas casavam e antes dos quinze, o garoto. 
Criança e adulto viviam em maior proximidade. Havia um mundo 
de ocupações que era compmiilhado por eles. 
As noções atuais de desenvolvimento não são adequadas para com­
preender o que acontecia com as crianças naquela época. As noções atu­
ais subentendem uma diferença básica de uma fase inicial de desenvolvi­
mento e que através de um processo é superada até que a criança se torne 
adulta. 
Van Den Berg nos relembra e a poesia Infância nos fez pensar: 
A criança também é gente, não somente os adultos o são. 
Ela é completa, é inteira. 
Não necessita que o futuro çhegue para dizer o que quer. (Se ela não 
sabe dizer, não é porque é criança, mas por outra coisa). 
A criança não precisa do futuro para, de algum modo, compreender 
o que se passa. 
O mundo da criança é inteiro. 
Ela vive com os outros, brinca com suas coisas. Ocupa-se, fantasia, 
tem seus medos e seus desejos. (E somente ela mesma pode vivê-los, é 
importante que se diga). 
Ela vive seu dia a dia e vê sua vida do seu jeito; às vezes é confusa 
e às vezes é impressionantemente clara. 
Ela fala muito ou fica um "túmulo". 
Mostra-se ou se esconde e, às vezes, engana ou tenta enganar. E 
também se engana. 
64 
É mmial! A criança não é menos mortal do que o adulto ou o velho. 
(Por mais que pensar sobre isto aterrorize). 
Ela também sente culpa e não gosta de se sentir culpada. 
Foge do desconforto e da solidão. 
Não gosta de ficar sozinha no escuro ou no fechado. 
Vemos aqui que a criança é, como o adulto, gente. 
Mas , ainda assim, não podemos passar por cima de uma 
constatação. 
Eu digo: "Quando eu era criança" ou eu também digo: "Eu não sou 
mais criança" ou "Estou como uma criança". 
O que significa isto? O que significa SER CRIANÇA? O que signi­
fica Tempo de ser criança? 
Para tentar responder da melhor maneira, vamos brincar com as 
palavras: 
A palavra CRIANÇA vem do Latim CREANTIA. 
CREANTIA é formada do verbo CREO, CREARE. 
Este verbo significa, ao mesmo tempo, CRESCER e CRIAR. 
CRESCER é desabrochar. 
CRIAR é realizar. 
CRIAÇÃO remete ao crescimento. 
CRESCIMENTO remete a criação. 
Assim, na CRIANÇA (que é criatura) encontramos a realização da 
criação original e o acontecimento do desabrochar. 
Ser criança é, assim, o desabrochar da criação e é, também, realizar 
o próprio crescimento. 
Na criança, como encontrei num antigo dicionário, o ser humano 
começa a se criar. Neste sentido falamos não de forma, não de fase ou de 
um certo período que vai passar. Falamos de despontar. 
65 
O TEMPO DA INFÂNCIA 
I- TEMPO 
Movimentação e realização, desabrochar e criação, acontecem sem­
pre numa ce1ia DURAÇÃO. 
DURAÇÃO não é fase. Fase é um segmento determinado entre dois 
pontos e composto pela sucessão de fatos que normalmente são ligados 
numa relação causal. 
DURAÇÃO é TEMPO. Assim dizemos: a duração ou o decorrer de 
uma vida ou o tempo de uma vida. As duas expressões significam o mes­
mo, o acontecer de uma vida. 
Assim, chegamos ao ponto mais fundamental. Compreender o que 
significa SER CRIANÇA leva à experiência humana mais radical que é 
a do TEMPO. Radical aqui tem o sentido de raiz, não de moderno. 
Na criança se emaíza o TEMPO. Podemos dizer também que a dura­
ção ou o decorrer de uma vida está engatado na infância, com a criança. 
Mas não é a criança que faz o tempo, nem que o possui. Mas é com 
ela e a pmiir dela que ele se instaura em cada existir humano. 
Assim, SER TEMPORAL não é uma questão infantil, mas humana. 
O que significa isto? Que tempo é este do qual estou falando? Como 
podemos compreender melhor a infância? 
Para os gregos antigos, o que hoje para nós é apenas tempo consti­
tuía três experiências distintas: 
1 - Havia CRONOS que corresponde ao nosso conceito comum do 
tempo cronológico: 
do tempo que se conta, do intratemporal e das coisas do mundo; do 
tempo de todo mundo: "ninguém vive fora deste tempo: dos dias, das 
horas, meses e ano." 
As ciências norteiam-se por este tempo . O homem vive preso 
nele: nos horários e compromissos. Os prazos e as urgências são me­
didos pelos cronogramas. É o tempo do convívio geral na seqüência 
dos fatos. 
É o tempo que serve para a determinação dos fatos prévios da vida 
66 
das crianças: a idade certa para entrar na escola ou para o cinema e para 
sair desacompanhada. 
Este é aquele tempo que as crianças precisam aprender. Não rara­
mente podemos observar como para elas é distante esta noção de tempo. 
Por exemplo: Uma criança deseja muito a chegada de uma pessoa queri­
da ou de uma coisa ou de um momento especial. Quantas vezes vamos 
ouvi-la perguntar se já chegou "agora", se "já é amanhã" ou se já é o "dia 
seguinte". Seria apressado concluir que ela tem uma deficiência de com­
preensão ou uma mente confusa, uma vez que ela não sabe se já é ou não 
o "agora", o "amanhã" ou o "dia seguinte" . 
CRONOS é caracterizado por: - ser igual para todos, geral, 
- ser dividido em palies, pontual, 
- ser seqüencial e linear, do antes e 
do depois 
A experiência de tempo que privilegia as medidas mais objetivas, 
as regularidades e as seqüências prévias dos acontecimentos se dá num 
mundo onde também se privilegia tais características. 
Assim, podemos compreender que estas noções de tempo cronoló­
gico são bastante restritas para abarcar a intensidade da chegada do espe­
rado e a força de algo que só se realizará depois, mas que já se impõem 
na sua espera. A eternidade dos momentos e a oportunidade da chegada 
do esperado não são cronológicas. Englobam muito mais. Englobam ex­
periências que não são comuns ou previsíveis. 
2 - Havia também AION. 
Este era o tempo da eternidade, dos deuses e da imortalidade. 
O tempo eterno, que não dizia respeito aos homens. 
Era o tempo da mitologia. 
3 - E havia KAIRÓS. 
Este é o tempo que não pode ser medido, verificado e que não é 
igual para todos . 
67 
É o tempo que somente pode se dar como o tempo ce1io, adequado, 
da oportunidade para a realização. É o momento possível. 
É o tempo opmiuno para uma certa realização ou para a realização 
de uma certa possibilidade. 
Como diria o poeta, é o tempo para o surgir das estrelas e dos tro­
vões - que somente podem ser percebidos, depois de estarem há muito 
no firmamento, mas em condições adequadas. Mesmo assim, as condi­
ções adequadas não fazem com que as estrelas e os trovões sejam perce­
bidos pelos distraídos e preocupados e também pelos medrosos. 
Assim é que KAIRÓS é o tempo do possível e da possibilidade: é o 
tempo existencial. 
É o tempo em que faz sentido a pergunta da criança: "Agora já é 
amanhã?" Este "amanhã" não é o dia seguinte, mas é o momento ce1io em 
que algo já poderia acontecer. É o tempo em que futuro e presente se jun­
tam e presente e passado se tornam um único .Isto pode ser visto nos tem­
pos de verbo "poderia acontecer" ou "estou lembrando o que passou". 
Este é o tempo que permite que se diga: "Nunca mais isto ... " "Já 
vai!" "Que demora!" "A minha vida inteira ... " "Espera um pouquinho 
só!" que são expressões sem medidas objetivas mas que expressam clara 
e intensamente algo. 
É o tempo do: - em cada caso 
- da proximidade 
- da totalidade unida de significado. 
KAIRÓS não é o tempo da criança. Nem mesmo é uma questão infan­
til. Mas ele se instaura com e na criança. Ele é humano, de todos os homens. 
É a partir desta experiência de tempo (que os antigos gregos cha­
mavam KAIRÓS) que mais amplamente podemos compreender o modo 
de ser criança e o tempo da infância. 
IT- INFÂNCIA 
O que podemos dizer, especialmente, do tempo da infância? Do 
tempo das crianças? Do tempo das recordações infantis? 
68 
Vamos lembrar: 
O bebezinho acorda. Ele chora. Alguém se aproxima, ele pára de chorar. 
Mais tarde, ele acorda e chora. Alguém se aproxima, ele continua 
a chorar. 
Alguém diz: "É wn danadinho. Sabe o que quer. Quer sair do berço". 
Mas, se elecontinua a chorar, temos uma dica: ele tem algo ( cóli­
cas, fome, fralda suja). 
Sabemos que o bebezinho MOSTRA NA HORA o que tem ou o 
que quer. Isto é tanto verdadeiro que se chegou a formular a TEORIA 
DO PRINCÍPIO DO PRAZER: as crianças seguem o princípio do 
prazer. 
Pensando com cuidado: O que é este tal de PRINCÍPIO DO PRAZER? 
Princípio do prazer quer dizer: É PRA JÁ! Não há considerações 
intermediárias. Se está doente, o bebê chora até que a dor passe. Se está 
com fome, o bebê reclama até que lhe dêem de comida. 
O bebê MOSTRA LOGO a insatisfação e a satisfação. 
O bebê cresce um pouco, parece que já entende quando falamos . 
Mas, nem sempre o bebê quer atender. 
Está na hora de dormir. Se até ontem o bebê ia para a cama direiti­
nho sem reclamar, hoje ele não quer mais. Chora sem parar. Não quer 
mais ficar sozinho no qumio. 
Nestas ocasiões se diz: "Ele vai chorar até se cansar e dormir". 
A criança já tem um ano e meio. Ela diz: "Qué chocolate". Mas está 
na hora do almoço e ela não ganhou. Ela não pára, insiste tanto que ou 
leva uma bronca e chora ou acaba "vencendo pelo cansaço". 
Depois começa a gostar de histórias: Incrível! Quer sempre ames­
ma e sabe ela inteirinha. 
Vai para a escola e começa a fazer as lições. Aí se não sabe fazer 
uma, ·o mundo cai sobre a cabeça': "Eu nunca vou conseguir! ". 
69 
O que vemos? 
Nas experiências das crianças, prevalece sempre o imediato. O tempo 
da Infância é o lugar do já, da presença imediata do agora. 
Nas experiências infantis, a experiência imediata prevalece sobre qual­
quer aspecto passado ou futuro. Ela é a que vigora, portanto, é mais vigorosa. 
· Nas experiências infantis não há uma divisão equilibrada de passado, 
presente e futuro. Assim dizemos: o viver temporal da criança exacerba o 
presente. A força do imediato é tão grande que chega a poder abarcar toda 
a vida com igual intensidade, desde o desespero com uma dorzinha "a 
toa", até o desesperado abandono de uma criança com a saída da mãe. 
O desespero é uma resposta que, na criança, é provocada facilmen­
te. (É com o crescimento, com a ampliação temporal, que o desespero 
vai se tornar mais singularizado). Na criança uma resposta com a intensi­
dade do desespero é mais comum e, assim, sua importância é mais 
inespecífica e difusa. 
Diferente do que se costuma pensar, é o presente que domina o 
tempo da criança. Costuma-se dizer: "A criança tem todo o futuro pela 
frente". "O futuro da criança é maior do que o do adulto ou do ancião".Isto 
não é verdadeiro na perspectiva existencial da criança, que parece ter um 
futuro muito curto. Que a criança tem "todo o tempo pela frente" somen­
te é uma constatação distanciada, na perspectiva lógica do outro. 
O futuro parece ser tão menor quanto for a criança. 
Assim, a primazia do presente, num sentido vivencial, aponta um 
caráter especial também do futuro da criança. Este aparece inicialmente 
de modo mais restrito. 
O futuro vai se descortinando a medida em que o passado vai sur­
gindo juntamente às experiências e descobertas de "ter sido", quando 
também vão surgindo as lembranças, os aprendizados e a descobe1ia de 
ter que esperar. Assim é que o futuro é tão cmio quanto o passado. O 
futuro da criança vai se abrindo a medida em que ela vai vivendo e cres­
cendo, na criação de sua história. Ter paciência e poder prever são pos­
sibilidades que serão descobertas com a experiência da espera, isto é, de 
um futuro mais vigoroso. Neste sentido, elas são possibilidades inicial­
mente veladas para as crianças. 
70 
(Não estamos aqui falando em qualidade de futuro "aberto" ou "fe­
chado", como falamos no futuro dos deprimidos. Este já é um futuro 
descortinado retraído). 
No que implica a primazia do presente na vida da criança? 
Diferentemente também do que pode se pensar, a primazia do pre­
sente na infância NÃO traz imobilidade (o que é diferente com o adulto). 
A primazia do presente com o envolvimento com o imediato, na 
infância, é a experiência mais radical da não permanência dos significa­
dos e não determina uma relação de imobilidade com um mundo restrito, 
mas uma constante e rica possibilidade de renovação. O que é agora, 
logo-logo pode não ser mais. O brincar e as brincadeiras mostram espe­
cialmente esta rica mobilidade com a descoberta e miiculações constan­
temente diferentes das relações com o mm1do. 
As descobe1ias podem abranger diversos âmbitos do existir da 
criança junto às coisas em volta e às pessoas, desde as mais familiares 
até as mais distantes. Ao mesmo tempo, se dá também a descoberta de 
seus diferentes modos de humor. 
. Ouvimos uma criança dizer "te adoro" e, logo depois, não impmia 
porque motivo, ela diz: "Você é boba, não gosto mais de você!". E, logo 
depois voltar aos mil amores. 
Assim, dissemos acima, a infância é também o tempo de 
impermanência de significados e do fascínio pelas descobertas. E o fas­
cínio pelas descobertas se confunde com o presente. Mas as descobertas, 
elas mesmas não são o presente. Cada nova descoberta surge sempre da 
totalidade das referências significativas que, a cada momento, podem se 
rearticular. Na criança, esta remiiculação constante se dá como cresci­
mento, pois implica ampliação dos significados já conhecidos, ante a 
perspectiva da novidade, das surpresas, dos desafios, isto é, do futuro . 
Viver intensamente e envolver-se com as próprias descobe1ias é uma 
constante na infância. Assim, quando a criança é privada de descobertas, 
dá-se uma restrição em sua vida. Isto pode ocorrer devido a condições 
sociais, de relacionamento ou ambientais, ou por doença. Há casos de 
privação que podem levar até a própria mmie, tal o grau de carência de 
cuidado ou de solicitações e estímulos do mundo próximo. 
71 
Na infância vivemos no tempo das DESCOBERTAS próprias e do 
mundo. 
Quando descobre a si mesmo, aos outros e as coisas, a criança se 
constitui já, e desde sempre, como um estar-no-mundo que realiza a 
sua própria história. Podemos, então, compreender outra dimensão de 
seu próprio existir: a historicidade própria. Não nos referimos aqui a 
história comumente entendida como uma sequência de fatos ou vivências 
datadas que determina os acontecimentos do presente ou do futuro , 
mas , à historicidade, como a condição fundamental apoiada na . 
temporalidade do existir humano, conforme Heidegger , que explícita 
"o contexto da vida" ante a provocação do que ainda não é e pode vir a 
ser, ante o imediato presente e, ao mesmo tempo, ante o retorno ao já 
possível e vivido. "História significa aqui um conjunto de aconteci­
mentos e influência que atravessa "passado", "presente" e "futuro". Aqui 
o passado não tem primazia." 
Crescer é abrir-se para o futuro. Isto quer dizer: crescer está voltado 
para a possibilidade do novo, do que ainda não é. Crescimento, assim, é 
tanto compreendido pela presença do imediato, como do advir que já o 
penne1a. 
No crescimento, pleno de possibilidades do novo, de algo que ainda 
não é, desvela-se um futmo. Dizemos "a criança quer crescer", "criança 
imita o adulto", "não quer ser criança" ... 
Sendo já gente, a criança quer deixar para trás suas próprias li­
mitações, quer deixar de ser quem ela é, pois , como todos os huma­
nos , existe provocada, chamada, pelo que ainda não é. No entanto, 
esta provocação aproxima também a experiência de desamparo, uma 
vez que o mais familiar de suas próprias possibilidades é momenta­
neamente abandonado pela sua própria condição de crescimento, do 
advir do que ainda não é. 
Ser e Tempo parágrafos 55 , 56, 72 e 73. 
72 
Bibliografia 
- BOSS, M. -"Medicina Psicossomática: Ciência ou Magia" Revista 
da Associação Brasileira de Daseinsanalyse, 11° 8, São Paulo, 1997. 
- FERREIRA, A. G. - Dicionário de Latim Português. Porto Editora 
Ltda 
- FOUCAULT, M. -Doença Mental e Psicologia. Tempo Brasileiro R.J. 
- FREUD, S. - Tres ensayos para una teoria sexual 2. La Sexualidade 
Infantil Obras Completas Tomo 11 Biblioteca Nueva, Madrid, 1973 . 
- GADELHA, R.- Um Estreito Chamado Horizonte. Massao Ohno 
Ed. São Paulo, 1991. 
- HEIDEGGER, M. - Ser e Tempo. (1927) Editora Vozes, Petrópolis, 
1989. 
- HEIDEGGER, M.- Being and Time. Basil Blackwell Oxford, 1973. 
- HEIDEGGER, M. - Seminários de Zollikon. Tradução ainda não 
publicada de Gabriela Arnhold e Maria de Fátima de Almeida 
Prado 
- LIMA, H. e BARROSO, G. - Pequeno Dicionário Brasileiro da Lín­
gua Portuguesa. Ed. Civilização Brasileira S.A. e Companhia Ed. 
Nacional, São Paulo, 1957 
- VAN DEN BERG, J. H. - Metablética (Psicologia Histórica) Ed. 
Mestre Jou, 1965, São Paulo 
73 
O MUNDO DA CRIANÇA* 
MARIA BEATRIZ CYTRYNOWICZ 
Resumo 
Neste terceiro artigo, em que a compreensão do existir da crian­
ça é desenvolvida a partir da fenomenologia existencial, encontramos 
na relação com o mundo considerações fundamentais: o descobrir das 
próprias possibilidades e limitações da criança se torna explícito jun­
to ao descobrir da significabilidade do mundo. Somente ai é que 
podemos ver o surgir da angústia fundamental, das implicações do 
cuidado na relação do adulto com a criança, como a dependência, a 
simbiose e a representação, e do sentido radical de ser mortal. Por 
fim, podemos ver como, no mundo do brincar e da fantasia, encontra­
mos o lugar e a disposição máxima para o descobrir e experimentar 
das possibilidades próprias e do mundo, intrínsecos ao crescimento 
de cada criança. 
Abstract - The World o f the Child 
The third article develops the understanding o f the existing child 
based on existential phenomenology. In the relation with the world 
we find fundamental considerations: the child's discovering ofhis own 
possibilities and the limitations becomes explicit together with 
discovering the significability o f the world. Only then can we see the 
emergence o f fundamental anxiety, o f the implications o f c are in the 
adult-child relation such as dependence, symbiosis and representation, 
and ofthe radical meaning ofbeing mortal. Finally, we see how in the 
world o f play and fantasy we find the place and maximal disposition 
for discovering and experimenting the possibilities o f the self and the 
world which are intrinsic in the growth of each child. 
Apresentado em Abril de 1993. na Associação Brasileira de Daseinsanalyse. SP- Brasil. 
74 
PALAVRAS-CHAVE: Criança, Mundo, Relação Adulto-Criança, Fan­
tasia, Brincar, Realidade 
Há um livro de histórias MANU, A MENINA QUE SABIA OU­
VIR, de Michael Ende, o mesmo autor de HISTÓRIAS SEM FIM, 
cuja segunda parte começa assim: "Há na vida um grande mistério que é 
o Tempo. Existem calendários e relógios que o medem, mas significam 
pouco, porque às vezes, uma hora parece uma eternidade, ao passo que 
de outras vezes passa como um relâmpago." 
Esta passagem da segunda parte: O tempo perdido aproxima de 
maneira muito feliz o que tem sido, no fundo, a nossa questão. "Afinal, 
quem somos, como fomos e como seremos?" Pois esta questão não fala 
mais do que do Tempo, este "algo" misterioso que se instaura desde o 
início com e na criança. Neste início ele recebe o nome de Infância; de­
pois vai receber outros nomes. Isto é assim porque o tempo sempre se dá 
de maneira especial e diferente no decorrer da existência humana e com 
ela está intimamente imbricado. 
A palavra Infância é composta em sua origem por In, Fans Fos que 
significa sem fala, mas também, na luz ou na claridade, conforme consi­
deramos o prefixo In como de negação ou de relação e os possíveis sig­
nificados do nominativo Fans,Fos. No entanto, é conjuntamente destes 
dois modos que primeiramente compreendemos a existência humana no 
tempo da criança ou na infância: na claridade sem fala! Deste modo ori­
ginal podemos compreenderá modo também especial da relação entre as 
crianças e os outros, no qual ela se mostra e é percebida mais no âmbito 
do cuidado dos outros do que de seu próprio dizer. Encontramos aqui, na 
etimologia, uma pista importante para uma compreensão mais original e 
não metafórica do existir humano na infância. 
Metáforas são criações ou expressões livres de objetividade de 
que nos servimos para melhor compreender algo, que em nosso caso 
seria a compreensão mais original da criança e do adulto em seu pecu­
liar "já sido". Contudo, algumas vezes, o uso delas tem trazido dificul­
dades quando elas são tomadas como os acontecimentos ou fatos reais, 
ou a própria realidade, e não mais como a melhor expressão do enten­
dimento de algo importante no conjunto de acontecimentos. Encontra­
mos na Psicologia, tanto no campo das teorias como no da prática clí-
75 
nica, exemplos de metáforas usadas para interpretar significados de 
experiências do desenvolvimento das crianças e dos bebês, de suas es­
truturas internas, do mundo e da realidade. O mito de Édipo é um exem­
plo de como uma metáfora extremamente rica na descrição da condi­
ção humana, do ser livre e do ser mortal, se transformou numa estrutu­
ra determinante e aprisionadora da realidade humana que tem influen­
ciado toda uma época. 
Com o método fenomenológico, desenvolvido a partir de SER E 
TEMPO de Martin Heidegger, procuramos um caminho que nos aproxi­
me a compreensão da infância e da criança, o que não quer dizer dos 
significados escondidos de suas experiências internas, às quais não po­
demos ter acesso. Ao contrário, procuramos não desconsiderar justamente 
aquilo que aparece e aí nos situamos. E o que da infância podemos inici­
almente dizer está sempre vinculado ao âmbito de nosso cuidado, da nossa 
experiência própria e do mundo, isto é, conforme a nossa experiência. 
Crianças não nascem falando, mas não resta qualquer dúvida que podem 
ser compreendidas! 
O mundo da criança, ao qual nos referimos, é aquele compreendido 
em proximidade com ela e é, somente nesta relação de proximidade, que 
nós adultos podemos descobrir a importância do mundo próximo para o 
crescimento das crianças. Esta formulação tem duplo significado. Pri­
meiramente, o que consideramos como "importância do mundo" signifi­
ca o que percebemos como mais permanente e que passa a compor a 
história da criança e, em seguida, que se refere à possibilidade de enten­
dimento e ao envolvimento. 
Nesta perspectiva, como já vimos antes em Tempo da Infância, 
podemos dizer que descobrir o mundo, do mais desconhecido e estranho 
para o mais familiar e acolhedor, fascina a criança. A criança é curiosa! 
O tempo da infância é em primeiro lugar o tempo do já, do que se apre­
senta agora, do imediato. É o tempo da descoberta. 
As crianças na infância vivem intensamente e se envolvem total­
mente naquilo que se apresenta. 
A relação com o mundo é assim sempre rica de novas possibilida­
des na infância e a mobilidade de significados é uma constante no mun­
do infantil. É assim que algo que agora é uma coisa, logo não será mais e 
76 
que as crianças vivem fascinadas nesta permeabilidade. As lembranças e 
as expectativas que se formam facilmente são reunidas no presente. E é 
esta reunião que compõe o enredo único de cada brincadeira, numa arti­
culação constante dos modos presentes possíveis de relação. Isto tam­
bém ocorre ç;om os acontecimentos ansiosamente esperados que ainda 
não se deram mas que podemos observar tanto no aguardo impaciente do 
amanhã que virá, como da chegada de uma pessoa querida que se fez 
anunciar. Todos estes acontecimentos estão fortemente marcados como 
presenças imediatas. As crianças parecem sempre aproximar tudo das 
mais diversas maneiras: elas mexem em tudo- se diz até que "crianças 
tem olhos nas pontas dos dedos" - esfregam coisas nos cabelos, levam à 
boca e aos olhos qualquer coisa, se assustam facilmente com barulhos, 
estranham pessoas diferentes ... 
É assim, envolvidas totalmente no que aproxima, que as crianças 
descobrem o mundo e seus significados, isto é, as relações entre as diver­
sas descobertas. 
Podemos ver tudo isto acontecer concretamente nas "pesquisas" ou 
nos enredos das brincadeiras em que elas participam. Nas brincadeiras, 
quando as histórias vãose alinhando, a criança descobre o mundo e a si 
mesma, descobre o mundo em que vive e descobre o que pode e o que 
não pode. Quando brinca, a criança experimenta- relembrando, modifi­
cando, inventando, atualizando - o que quer e o que não quer ante o que 
se impõe, de tudo o que aparece. É assim, deste modo que chamamos de 
criativo, que a criança cresce. 
Mas, a possibilidade de um futuro mais alargado, mais amplo, nem 
sempre é descortinada de modo tranqüilo. Isto também é importante 
ressaltar. 
Se, por um lado, descobrir um mundo mais rico de significados e a 
si mesmo mais instrumentado para enfrentá-lo é revigorante, por outro 
lado, aproxima também o desamparo e a experiência individual e pmii­
cular da angustia. 
Exemplos destes momentos são as situações em que as crianças 
choram com a proximidade de um desconhecido ou a falta do familiar. 
Nestes momentos dizemos: "Ela está estranhando". Mais tarde, elas se 
desesperam quando o pai ou a mãe vão sair de casa. E, ainda mais 
77 
tarde, quando ouvem referências a guerras, explosões, catástrofes ou 
histórias do extraordinário, podem sentir extrema angústia. Experimen­
tam aí a própria impotência e a ameaça de destruição, ou seja, aquilo 
que compreendemos como finitude humana. Nestes momentos o mun­
do da criança se amplia para além do imediato, numa intensa e nada 
tranqüila possibilidade vivencial. Esta intensidade do envolvimento com 
a proximidade de situações desagradáveis de impotência leva a criança 
a desesperar-se . 
Medard Boss, em seu livro, ANGUSTIA CULPA E LIBERTA­
ÇÃO Cap. III, escreve: 
"Todavia, por mais amparado que tenha sido o lactente, a criança 
brevemente terá que experimentar a angustia, ora em menor ora em 
maior medida. Mesmo uma criança de três ou quatro anos pode acordar 
sobressaltada noite após noite, em virtude de nos seus sonhos ver repe­
tidamente aproximar-se, a mesma bola gigantesca e escura. Este acon­
tecimento onírico em-responde a aproximação turbulenta de todo o seu 
futuro humano. No entanto, na sua fragilidade infantil, ela ainda não 
sente capacidade para aceitá-lo e suportá-lo. Por isso, sonhando, ela 
teme sua carga como a uma monstruosidade esmagadora. Nos pesade­
los infantis com animais ferozes, assaltantes ou incêndios devastado­
res, que de vez em quando pertúbam as noites de praticamente todas 
as crianças, elas temem a destruição de sua condição humana regular e 
conhecida, no caos de forças compressivas, dominantes e incontroláveis 
de sua vitalidade natural." (pág. 27) 
Nesta passagem, Boss nos lembra do outro lado das experiências 
infantis de descoberta. Esta lembrança nos ajuda a ampliar a nossa com­
preensão da infância: o advir que descobre também o desamparo. 
Conforme temos exposto, há no tempo da infância uma primazia do 
presente imediato. Mas não podemos esquecer que a perspectiva do ime­
diato e do intenso envolvimento com o que se apresenta pode trazer mo­
mentos de extremo desamparo. Pois, aí também encontramos a perspec­
tiva de seu crescimento, estando a criança voltada para o futuro, isto é, 
está atraída, para a possibilidade de algo novo. E quando isto se dá sem o 
amparo do familiar, a criança experimenta extrema angústia. 
78 
I -A RELAÇÃO CRIANÇA E ADULTO 
Vimos anteriormente que, quando uma criança nasce, ainda na ma­
ternidade, nas primeiras horas de vida, os familiares e amigos, comemo­
rando o seu nascimento, já sê voltam para o futuro do bebê e perguntam: 
"O que ele será quando crescer?, Com quem ficará parecido ? 
Depois, já em casa, quando cuida do bebê e de seu bem estar, o adulto 
também se volta para o futuro. Ele quer evitar que o bebê fique doente, ele quer 
manter a saúde do bebê. Este cuidado com o bebê é também cuidado de futuro. 
Quando acalenta, quando alimenta, quando estimula ou repreende 
a criança, o adulto tem a vista para além do imediato. Quando se aproxi­
ma para ver porque o bebê chora, o adulto não espera uma simples 
constatação. Ele espera poder compreender o choro e, então, resolver um 
desconforto, cuidando da criança. 
Isto é o que queremos compreender melhor: o adulto quando é cons­
tantemente solicitado a cuidar da criança cuida do próprio vir a ser. 
Heidegger, no parág. 48 de SER E TEMPO diz: 
"Ao Dasein, enquanto ele é, falta em cada caso ainda algo que ele 
pode ser e será". Esta é a primeira formulação a respeito do ser mortal do 
homem e explícita o sentido mais radical da falta que, a cada momento, é 
incessantemente preenchida em nosso existir, a medida que existir res­
ponde constantemente a uma dada solicitação. Assim, quando um adulto 
se depara com a solicitação de cuidar de uma criança, se depara também, 
ao mesmo tempo, tanto com a sua própria possibilidade de realizar-se 
como responsável pelo crescimento da criança, como com a condição da 
criança de ainda não está descoberta para si e para os outros. 
E, assim, na proximidade com a criança, é que o adulto pode perce­
ber exatamente tanto a falta, que lhe diz respeito, como a que se refere a 
própria criança. Neste momento, ele pode se dispor, ou não, a responder 
à solicitação daquele cuidado e realizá-lo, ou não. 
Entretanto, é mais comum que a falta -presente já desde o nasci­
mento- na criança seja compreendida como 'fragilidade infantil', como 
se fosse uma condição que se extinguirá com o crescimento ou que será 
substituída pela condição de adulto. Esta interpretação é uma má com­
preensão tanto do viver da criança, como do viver do adulto. 
79 
Por um lado, o bebê ainda não desenvolveu uma história própria, 
ainda está começando a descobrir o mundo e a ele mesmo, neste sentido 
é um mistério a ser desvendado. Este mistério parece ser tanto para a 
pequena criança como também para o adulto. 
Ante a falta, ante o que ainda não é, o adulto continua a ser constan­
temente solicitado. E, correspondendo à solicitação de cuidar do que ainda 
é mistério, o adulto pode se sentir até responsável pela própria vida da 
cnança. 
Esta responsabilidade é acolhida, às vezes, como uma carga e, às 
vezes, de bom grado. Mas, de um jeito ou de outro, o adulto responsável 
é solicitado a cuidar do crescimento da criança. Cuidar aqui tem o senti­
do do cuidado preocupado que afasta o que atrapalha, abrindo o caminho 
para o crescimento mais sadio. Mas, esta responsabilidade pode provo­
car também angústia no adulto a medida que ressalta as suas próprias 
limitações e possibilidades. 
Por outro lado, na vida de uma criança há muitas coisas que atrapa­
lham o seu crescimento. 
Encontramos aqui desde as condições ambientais gerais até as con­
dições mais pessoais, como as corpóreas ou de afetividade. 
Mas, há aquela condição que é a mais radical de todas e presente 
para todas as crianças e adultos também. Nesta radical condição, o atra­
palhar tem o sentido definitivo do impedimento. Esta condição é o pró­
prio ser mortal. 
Esta condição da falta que, a todo momento, está presente e ausen­
te, o adulto cuida de afastar. 
Quando acompanhamos o crescimento de uma criança, não é difícil 
perceber como frequentemente ela se arrisca e permanece ' inteira'. De 
um lado, é fácil ver que muitas vezes avaliar algo como perigo é "coisa" 
do adulto que se retrai mais ante um risco. Mas, por outro lado, há a 
crença que "as crianças tem muitos anjos da guarda". Isto não está muito 
distante da realidade!!! Mas, se não podemos aferir se os perigos que o 
adulto considera como riscos, são riscos de fato para a criança, também 
sabemos que, na maior parte do tempo, as crianças estão acompanhadas, 
vigiadas ou controladas por alguém que as impedem de correr maiores 
80 
riscos. Estas duas últimas considerações conjuntamente talvez nos le­
vem a prescindir de outras considerações mágicas ou angelicais. A pro­
funda ligação entre adulto e criança é o que torna mais difícil compreen­
der e expressar o que e como se origina num ou o que e como vem do 
outro. E quando não há qualquer preocupação inicial com esta diferença, 
facilmente o adulto pode passar a se compreendernão mais como res­
ponsável mas ditador da vida da criança. Isto pode ocorrer de diferentes 
modos e intensidade desde o ditar necessidades e "vontades" de uma 
criança até o ditado sobre as crianças em geral. 
Dizemos, muitas vezes, que o adulto cuida da criança porque esta é 
dependente. 
A DEPENDÊNCIA DA CRIANÇA, como aqui estamos vendo, não 
é uma característica isolada da criança. Mas é um traço da relação entre 
adultos e crianças. 
O adulto é solicitado a olhar pela criança. Neste olhar por ela, ele 
lança a vista na am12litude que a visão da criança não alcança. Pois, de 
algum modo, ele compreende as delimitações do viver da criança. Na 
solicitude, ou cuidado preocupado, o adulto existe de um modo que pode 
antecipar experiências ainda não descobertas pela criança. 
Para a criança é providencial, em certas situações, que alguém ante­
cipe o que pode estar para além do imediato. Isto se refere tanto ao reco­
nhecimento das suas necessidades e o caminho para satisfazê-las, como 
ao apoio e encorajamento para descobrir o ainda novo. E a criança está 
sempre muito disponível para receber o que lhe vem ao encontro ou o 
que lhe falta. E o que lhe vem ao encontro é não somente através do que 
é feito ou dito, mas também pelo modo do olhar. Uma criança muito 
pequena, em situações extremas, pode até chegar a morrer pela falta des­
te olhar. 
Quando antecipa experiências ainda não descobertas, o adulto está 
' representando' a criança na escolha destas experiências. 
REPRESENTAR é uma possibilidade de ser com o outro, de com­
paliilhar, em que um torna presente algo para o outro. 
Isto acontece, por exemplo, quando a criança é representada pelos pais 
na escolha de uma escola, na procura de um médico ou na decisão de fre-
81 
quentar a aula de natação. A possibilidade de representar não se limita à 
relação entre crianças e adultos. Na relação entre adultos ela também ocorre. 
Por exemplo, a procuração é um recurso jurídico que reconhece fonnalmen­
te a representação. Nas relações informais entre adultos, ela também se dá. 
Nas relações entre adulto e criança, entretanto, a representação é 
mais original e mais freqüentemente necessária, pois aproxima não uma 
coisa ou um fato , mas um certo caminho a seguir, cuja decisão não pode 
ainda ser da própria criança. 
Apesar de não depender da vontade, não podemos dizer que a re­
presentação é natural, nem obrigatória e geral. Ela é uma possibilidade 
que depende de cada caso e da compreensão que se tem deste caso. 
Este é o 'segredo ' da representação: descobrir quando, como e o que 
antecipar para, a partir daí, poder bem representar a criança. 
Assim antecipação e representação se dão em diferentes modos do 
cuidar. Aqui damos alguns exemplos: 
Cuidado autoritário: impõe regras que devem ser seguidas e, extre­
mamente exigente, não olha as condições próprias de cada criança, 
desconsiderando as suas necessidades e negando as suas possibilidades. 
Cuidado indiferente: também desconsidera necessidades mas, ao 
contrário do autoritário, omite p~sições. 
Cuidado exibicionista: encontra na criança oportunidade para se 
avaliar, para angariar reconhecimento e aprovações gerais. 
Cuidado que mima: atrofia possibilidades próprias da criança e di­
ficulta o seu crescimento, poupando sofrimentos. 
Cuidado que estimula: de quem está sempre na frente provocando 
descobertas. 
Cuidado paciente: de quem sabe esperar pelas oportunidades e pelo 
possível. 
Diante de alguns modos, muitas vezes, as crianças se tornam 
inconformadas, apáticas, teimosas, medrosas ou revoltadas. Neste últi­
mo caso, parece não aceitar o cuidado do adulto e chega até a mostrar 
que necessita de algo diferente (Ex.: "Quero morar em outra casa!"). 
82 
Ter cuidado, cuidar de alguém, não é somente poupar-lhe experiên­
cias desagradáveis ou fazer que siga um determinado caminho. 
Esses são somente dois sentidos que o cuidar pode assumir. Ambos 
tem em comum a falta de paciência, a pressa ou o receio, e não percebem 
as necessidades, solicitações e possibilidades existenciais das crianças. 
Necessidades, solicitacões e possibilidades não são abstrações, mas 
estão sempre presentes nos relacionamentos e podem ser vistas pelo olhar 
cuidadoso. 
Assim, o cuidado mais original com a criança cuida das próprias 
possibilidades. Isto as vezes se dá de modo doloroso pois significa, tam­
bém, o confronto com as situações de falta e perda, que envolvem sem­
pre a própria limitação. Outras vezes se dá no sentido da alegria, do riso 
e do contentamento. 
Mas o que acontece quando os adultos passam a seguir uma con­
duta que não admite modelos na educação das crianças? O que acontece 
quando ' tudo é relativo ', 'tudo pode ', 'a criança é quem decide'? 
A criança perde a op01iunidade de descobrir um apoio a partir do 
qual pode se lançar. Este apoio é a clareza de um referencial e é um modo 
de experimentar propriamente o histórico junto ao outro. Esta experiên­
cia é pertencente a própria condição humana de estar já sempre lançada 
num mundo compatiilhado que acolhe de um certo modo, numa certa 
totalidade significativa de possibilidades humanas já vividas. 
Assim, as crianças , privadas da clareza de um referencial 
próximo,que se constitui apmiir de experiências significativas, perma­
necem perdidas, sem conseguir decidir para onde ir, nem o que podem e 
o que não podem. Até que, por força das imposições gerais, impessoais, 
descobrirão que 'tudo não pode', que 'nada é relativo' e que 'não é sem­
pre que elas decidem'. 
Quando 6 adulto não se permite dizer o que para ele é imp01iante, a 
criança percebe a confusão e fica confusa. 
Assim, não é de estranhar quando vemos crianças e jovens adoles­
centes chegando aos consultórios de terapia sofrendo por não poderem 
expressar o que desejam de si nem para si mesmos. 
83 
Na falta do adulto, a criança perde a oportunidade para experimen­
tar o já vivido e isto se refere até ao modo como vai perceber a si mesma. 
Isto se dá porque a presença do adulto aproxima a confiança, isto é, a 
descoberta da experiência de confiar. 
Com a presença de alguém mais velho, que já viveu e 'já sabe' , a 
criança descobre a confiança. 
Mas não podemos esquecer também que o adulto cuida da criança 
do modo como pode. Ele não pode tudo, ou qualquer coisa, e não é ele 
quem decide sobre os limites do possível. Ele não pode nem prever, nem 
determinar, a vida da criança. É no cuidado com ela, que ele vai desco­
brir as possibilidades e limitações do próprio cuidado. 
Assim, no envolvimento entre criança e adulto. tanto criança como 
adulto encontram oportunidade de desenvolvimento. E, se um dos dois 
estiver prisioneiro de um processo, o outro também não estará livre para 
compartilhar outras possibilidades. 
Neste sentido, cuidar da abertura para as possibilidades futuras de uma 
criança, implica em cuidar da abertura para as próprias possibilidades futuras. 
11 - O MUNDO DO BRINCAR E DA FANTASIA 
Primeiramente quero lembrar que o brincar aqui não é aquele que 
comumente se opõe ao falar e que é expressado assim: "O adulto fala, a 
criança brinca" ou "a linguagem da criança é o brinquedo". 
Vemos crianças brincando e falando. Ao mesmo tempo. O que sig­
nifica isto? Afinal, o que é mesmo brincar? 
Brincar é atuar. É uma forma de atuação. Brincando, interagimos 
com o mundo, com os outros e com as coisas ao redor. Neste momento, 
fazemos algo, realizamos, criamos e constmímos. 
Falar é expressar. Falando expressamos aquilo que compreendemos 
de nós e do mundo. Isto é, mostramos expressamente, diretamente, co­
mumcamos. 
Atuar e expressar, assim, são duas coisas totalmente diferentes e 
que não se opõem, mas se completam. 
84 
Dizemos que a criança vive no mundo da brincadeira. 
Dizemos que a criança é poder brincar e que brincar é ser criança. 
E, de fato, isto acontece: criança vive brincando. Brinca com as 
mãos, com a voz, com os brinquedos, com o fiozinho de linha e com a 
imaginação. As crianças não precisam de brinquedo,

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