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QUEM É ESTE? Copyright © 2021 por Juan Molina Hueso Publicado por Aprisco Capa Marcus Nati Diagramação Luciana Di Iorio Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/02/1998. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (PDFs, eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autorização, por escrito, da editora. CIP-Brasil. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ H887 Hueso, Juan Molina Quem é este? Controvérsias sobre Cristo ao longo da história / Juan Molina Hueso – 1. ed. – Rio de Janeiro: GodBooks, 2021. 120 p. ISBN 978-65-89198-14-7 1. Teologia. 2. Cristologia. 3. Cristianismo. 4. História da Igreja. I. Título CDD: 241 CDU: 242 Categoria: Teologia Publicado no Brasil com todos os direitos reservados por: Aprisco Rua Almirante Tamandaré, 21/1202, Flamengo Rio de Janeiro, RJ, Brasil, CEP 22210-060 Telefone: (21) 2186-6400 Home page: godbooks.com.br/publique-seu-livro 1ª edição: agosto de 2021 Esta obra destina-se não somente aos estudiosos que se aprofundam no conhecimento da Palavra de Deus, mas a todos os genuínos cristãos que anelam por uma maior compreensão de quem é Jesus Cristo, Salvador nosso. Para isso, esforcei-me em utilizar a linguagem mais simples possível, sem, entretanto, prejudicar a profundidade do tema. Sumário Agradecimentos Prefácio 1. O verdadeiro Cristo 2. O falso Cristo no pensamento teológico antigo 3. O falso Cristo no pensamento teológico moderno 4. O legado histórico na construção da cristologia 5. A revelação de Cristo nas Escrituras Conclusão Referências bibliográficas Sobre o autor Agradecimentos Primeiramente, minha gratidão a Deus por permitir que me voltasse para o estudo do incomparável Filho, Jesus Cristo. Essa permissão bem que pode ser ampliada em seu significado, como sendo o resultado do despertamento que ele mesmo produziu em mim. Meu especial agradecimento ao reverendo Hermisten Maia Pereira da Costa, dedicado pastor, pesquisador e autor de vários livros teológicos, entre eles, Eu creio, obra de extraordinário conteúdo. Foi extremamente solícito e gentil ao aceitar meu pedido para prefaciar esta obra. Prefácio O livro que você tem em mãos parte de uma questão de grande relevância para a fé cristã: quem é Jesus Cristo? Antes de fazer a sua viagem histórico-teológica, o autor indaga: “Quem está devidamente qualificado para responder a essa pergunta?” Assim, ele percorre a história da Igreja, os principais concílios e chega ao século 20, mostrando interpretações deficientes, incompletas e mesmo heréticas. A sua temática é de essencial importância. Sem a centralidade de Cristo, não há boa-nova. O evangelho é precisa e especificamente a apresentação da pessoa de Cristo, de sua obra e seus ensinamentos. A Cristologia se constitui no cerne de toda a teologia cristã. A pessoa de Cristo é o coração de toda a fé cristã. É o eixo da teologia bíblica. Uma visão defeituosa da pessoa e da obra de Cristo determina a existência de uma “teologia” divorciada da plenitude da revelação bíblica. A consciência desse fato deve nortear o nosso labor cristológico e também servir como referência e ponto de partida teológico. Só podemos falar do Cristo salvador, se ele de fato for — como é — o Deus encarnado. A nossa redenção não foi levada a efeito pelo Logos divino, nem pelo “Jesus humano”, mas por Jesus Cristo: Deus-homem. Não somos o senhor do Cristo, antes, seus servos. Não pretendamos apresentá-lo com cores da moda, em “tons pastéis”, tão saborosos em determinadas épocas. A teologia é serva da Escritura. Somente assim ela poderá ser relevante à Igreja e a toda a humanidade na apresentação do Cristo conforme, pela graça, é-nos dado conhecer na Bíblia. A singularidade do cristianismo repousa fundamentalmente na singularidade da pessoa de Cristo, o Deus encarnado. Parece-nos oportuno lembrar a advertência de Calvino: Devemos precaver-nos para que, cedendo ao desejo de adequar Cristo às nossas próprias invenções, não o mudemos tanto (como fazem os papistas), que ele se torne dessemelhante de si próprio. Não nos é permitido inventar tudo ao sabor de nossos gostos pessoais, senão que pertence exclusivamente a Deus instruir-nos segundo o modelo que te foi mostrado [Ex 25.40].[Nota 1] Após a incisiva pergunta de Jesus Cristo feita a seus discípulos, encontramos a narrativa: “Respondendo Simão Pedro, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Então, Jesus lhe afirmou: Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus”(Mt 16.16-17). Na Oração Sacerdotal, diante de seus discípulos, Jesus ora ao Pai, aludindo à sua glória eterna: “Glorifica-me, ó Pai, contigo mesmo, com a glória que eu tive junto de ti, antes que houvesse mundo” (Jo 17.5). Jesus reivindica ser Filho de Deus, eterno e glorioso. Isso ele fez não em ambiente pagão, repleto de deuses, o que passaria despercebido considerando o número de deuses. Na Antiguidade não era raro, ou anormal, um homem ser chamado de “filho de deus”. O mundo estava cheio de homens considerados divinos, semideuses e heróis nascidos de “casamentos” dos deuses com os mortais. Tais homens se diziam filhos de deus e, por isso, eram, em alguns casos, até mesmo adorados, como manifestações da divindade. Mesmo o Novo Testamento apresenta alguns indícios desse costume entre os pagãos (At 8.9-11; 12.21-22; 14.11-12; 28.6). No entanto, ele declara a sua divindade no contexto judeu fortemente monoteísta e que ao longo da história foi ridicularizado e perseguido por causa de sua fé tão exclusivista. E o curioso é que ele conseguiu que pessoas de perfis bastante diversificados — homens, mulheres, jovens, anciãos, sacerdotes e pescadores —, consentissem em segui-lo, convencidos da realidade de seu testemunho. Lewis (1898-1963) escreveu de forma contundente: Um homem que fosse só homem, e dissesse as coisas que Jesus disse, não seria um grande mestre de moral: seria ou um lunático, em pé de igualdade com quem diz ser um ovo cozido, ou então seria o Demônio. Cada um de nós tem que optar por uma das alternativas possíveis. Ou este homem era, e é, Filho de Deus, ou então foi um louco, ou cuspir nele e matá-lo como um demônio; ou podemos cair a seus pés e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas não venhamos com nenhuma bobagem paternalista sobre ser ele um grande mestre humano. Ele não nos deu esta escolha. Nem nunca pretendeu.[Nota 2] De fato. Se formos sinceros em nossa investigação bíblica, não restam muitas alternativas para nós. Ou Jesus Cristo é de fato Deus conforme o seu próprio testemunho e, assim, podemos considerá-lo de forma decorrente como um grande mestre, um bom homem, justo e misericordioso, ou, senão, ele é um farsante que não merece a nossa fé nem mesmo o nosso respeito. A Escritura não nos deixa vagueando em nossa fé ao sabor de hipóteses, opiniões e especulações; antes, quando nos fala de Deus, aponta para Jesus Cristo, em quem nossa atenção e nossos pensamentos devem se concentrar. Portanto, Jesus Cristo não deve ser apenas admirado e respeitado. Como Deus que é, deve ser crido, amado, adorado e obedecido. Esta é a conclusão do autor: somente as Escrituras têm autoridade para nos dizer quem é Jesus Cristo — verdadeiro Deus e verdadeiro homem. O Deus encarnado, nosso Senhor e Salvador. E nós, como servos, compreendendo aspectos dessa complexidade, pelo dom da fé, fazemos ecoar em nossos lábios e nossa vida a mensagem do Apocalipse: “Àquele que está sentado no trono e ao Cordeiro, seja o louvor, e a honra, e a glória, e o domínio pelos séculos dos séculos” (Ap 5.13). Amém. Boa e edificante leitura a todos. HERMISTEN MAIA PEREIRA DA COSTA Pastor e teólogo Notas do Capítulo Nota 1 - Calvino, João. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, p. 209. [Voltar] Nota 2 - Lewis, C. S. A essência do cristianismo. São Paulo: ABU Editora, 1979, p. 29. [Voltar] U 1 O verdadeiro Cristo m indivíduo que de fatotenha existido possui informações precisas e documentais que dão sustentabilidade à sua existência. Além disso, o registro de escritos por pessoas que conviveram com tal indivíduo, ou de historiadores não distantes temporalmente, favorecem como elementos comprobatórios. Jesus de Nazaré de fato existiu? Há um número considerável de estudiosos céticos que afirmam que não há provas suficientes para se confirmar tal suposição. As antigas mitologias egípcia, persa, grega e romana incluem personagens com missão redentora semelhante à de Jesus Cristo. Mas o que dizer do amplo testemunho histórico das Sagradas Escrituras que apresenta o Filho de Deus? Alguém poderá dizer que são relatos fictícios ou duvidosos. Para os verdadeiros cristãos, a Bíblia é suficiente para autenticar a veracidade do Filho de Deus encarnado na pessoa de Jesus Cristo. A história escrita por não cristãos que viveram próximos aos dias de Jesus de Nazaré, na Palestina, passa a ser uma prova incontestável e isenta de parcialidade. A título de exemplo, Plínio, o moço (61-114), orador, jurista, político e administrador romano na Bitínia, escreveu ao imperador Trajano elogiando a elevada integridade moral dos cristãos, dizendo que “entoavam uma canção a Cristo como para um Deus”. Suetônio (69-141), escritor que viveu na era dos cinco imperadores Nerva, Trajano, Adriano, Antonino Pio e Marco Aurélio, foi um minucioso relator das intimidades da corte romana. É autor da célebre obra A vida dos doze césares. Ele fez o seguinte comentário: “Claudio expulsou de Roma os judeus, sublevados constantemente por incitamento a Cresto”[Nota 1]. Apesar de controvertido, vários estudiosos atribuem o personagem Cresto como um referência a Cristo. Luciano de Samósata (115-190), escritor satírico nos dias do imperador Marco Aurélio, em sua obra A passagem de Peregrino, referiu-se a Cristo como o “que foi crucificado na Palestina”,[Nota 2] ridicularizando os cristãos por adorarem um sofista crucificado. O depoimento histórico extrabíblico mais relevante sobre Jesus é o do judeu Flávio Josefo (37- 103). Josefo foi escritor e historiador e combateu os romanos no ano 66. Após ser derrotado por Tito, com o fim da guerra, ganhou a cidadania romana e uma pensão do Estado. Em sua magnífica obra História dos Hebreus, assim assinalou: Nesse mesmo tempo apareceu Jesus, que era um homem sábio, se todavia devemos considerá-lo simplesmente homem, tanto as sua obras eram admiráveis. Ele ensinava os que tinham prazer em ser instruídos na verdade e foi seguido não só por muitos judeus, mas mesmo por muitos gentios. Era o Cristo. Os mais ilustres de nossa nação acusaram-no perante Pilatos, e este fê-lo crucificar. Os que o haviam amado durante a vida não o abandonaram depois da morte. Ele lhes apareceu ressuscitado e vivo no terceiro dia, como os santos profetas o tinham predito e que ele faria muitos outros milagres. É dele que os cristãos, que vemos ainda hoje, tiraram seu nome.[Nota 3] Uma vez tendo fundamentado a real existência de Jesus Cristo, o que na verdade, historicamente, é reconhecido pela maioria de agnósticos, ateus e representantes de outras religiões, o intrigante e misterioso é definir quem ele é. A presente obra tem a missão de narrar os inúmeros desdobramentos dentro da história na tentativa de definir aquele que não pode ser enquadrado pela mente humana. Entretanto, as Sagradas Escrituras fornecem incontáveis passagens que, mediante a iluminação do Espírito Santo, possibilitam compreendermos em parte o mistério da encarnação. QUEM É ESTE? Quem está devidamente qualificado para responder a essa pergunta? Se tal pessoa fosse um mero personagem humano, por mais que fosse elevada sua complexidade intelectiva e emocional, alguém de fato especializado poderia decifrá-la. Mas não é o caso. Essa indagação tem como pano de fundo um relato inusitado do evangelho. Jesus encontra-se em um barco com seus discípulos no lago de Genesaré. Levantou-se grande temporal extremamente aterrador, com fortes ventos, e a água já quase enchia o barco. O Mestre dormia sereno na popa da embarcação, com a cabeça recostada em um travesseiro. Como seria isso possível? Mas, fato é que assim ele se encontrava. Despertado do sono celeste, repreende o vento e ordena ao mar: “Acalma-te, emudece!” (Mc 4.38-39). Imediatamente, o vento se aquietou e uma cal-maria inexplicável permeou o lugar. Os discípulos, possuídos de grande temor, perplexos, perguntavam-se uns aos outros: “Quem é este?” (Mc 4.41). Jesus de Nazaré manifestou uma autoridade que nenhum outro homem jamais manifestou. Não somente as forças da natureza se submetiam a ele, mas também os demônios, as enfermidades, e até a própria morte atendia às suas palavras. Quem é este personagem tão distinto? Ele é filho de José e Maria, carpinteiro de profissão, conhecido desde pequeno na humilde Nazaré. Desde tenra idade exibia uma sabedoria de fazer inveja aos doutores da lei mais experimentados. Ao ensinar, demonstrava uma autoridade jamais vista. E o que dizer do conteúdo de seu ensino? Totalmente novo, com implicações inusitadas, exalando a fragrância da graça e do amor. Quem é este? QUEM DIZ O POVO SER O FILHO DO HOMEM? Na experiência do barco em meio à tempestade, foram os discípulos que fizeram a pergunta a respeito de quem seria tal prodigiosa figura que acalmara os ventos e o mar. Mais adiante, pelos lados de Cesareia de Filipe, é Jesus quem faz a pergunta aos discípulos: “Quem diz o povo ser o Filho do Homem?” (Mt 16.13). Em um primeiro momento, ele procura a resposta daqueles que não o conheciam de fato: o povo de Israel. Apesar de ser a nação escolhida por Deus para trazer em sua descendência o Messias prometido, a maioria não o conheceu. Embora, dentre o povo, houvesse um grupo de homens conhecedores da Lei e dos escritos proféticos do Antigo Testamento, não o reconheceram. Os escribas, fariseus e saduceus formavam esse colegiado especializado em saber a respeito das promessas de Deus. Aprende-se, com isso, que não basta ser sabedor da letra com toda a erudição para professar conhecer as realidades espirituais. A sabedoria do céu nada tem a ver com a letra morta. Respostas inadequadas foram dadas sobre quem ele era: João Batista, Elias, Jeremias ou algum dos profetas. Jesus dá sequência ao assunto e dirige a mesma pergunta aos discípulos: “Mas vós, continuou ele, quem dizeis que eu sou?” (Mt 16.15). Pedro prontamente se antecipou e declarou: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16). Oh, bendita afirmação! Pedro acertou na mosca! Tal confissão extraiu do Mestre palavras que reconheciam a resposta do pescador iletrado da Galileia como algo sobrenatural: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus”(Mt 16.16). O Mestre, ao dizer isso, traz à luz o conceito de que o conhecimento espiritual nada tem a ver com carne e sangue, ou seja, com o mundo natural ou terreno. Para isso, ele emprega a palavra “revelação” a fim de designar o divino conhecimento. A verdadeira sabedoria é ensinada pelo Espírito Santo. Ele é quem produz revelação do alto. O apóstolo Paulo, ao escrever sua primeira carta à igreja de Corinto, articula com maestria este ensino fundamental: “Falamos a sabedoria de Deus em mistério, outrora oculta, a qual Deus preordenou desde a eternidade para a nossa glória; sabedoria essa que nenhum dos poderosos deste século conheceu; porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam crucificado o Senhor da glória; mas como está escrito: ‘Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que Deus tem preparado para aqueles que o amam. Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito’” (1Co 2.7-10). Perceba que, nesse texto, claramente é mostrada a sabedoria do alto vinculada ao Espírito de revelação. Ela definitivamente não é adquirida com talento ou recurso natural. Ao ler os capítulos 1 e 2 da Primeira Carta aos Coríntios, você poderá constatar que Paulo está tratando o assunto da pessoa de Cristo, e esse crucificado.A mente especulativa e perspicaz dos gregos de Corinto não podia discernir quem era Cristo e a razão de sua morte na cruz. Eles careciam da revelação do Espírito de Deus. Ocorre-me, a título de ilustração, citar um humilde personagem bíblico pouco lembrado no tempo em que Jesus nasceu: Simeão. O Evangelho refere-se a ele como justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Note o que diz o texto: “O Espírito Santo estava sobre ele. Revelara-lhe o Espírito Santo que não passaria pela morte antes de ver o Cristo do Senhor” (Lc 2.25-26). Simeão não era um doutor em divindade, muito menos PhD em Teologia. Entretanto, era homem cheio do Espírito Santo e, por isso, recebeu a revelação a respeito de Cristo. Ao tomar no templo o menino Jesus nos braços, exclamou: “Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque os meus olhos já viram a tua salvação, a qual preparaste diante de todos os povos” (Lc 2.29-32). Incrível! Simeão não somente reconheceu o Messias Salvador ainda bebê, como compreendeu que a salvação não ficaria restrita à nação de Isarel, mas se estenderia a todos os povos, raças, línguas e nações da terra. A PESSOA DE CRISTO E A IDENTIDADE DO CRISTIANISMO A identidade do cristianismo está ligada visceralmente à pessoa de Cristo. A fé cristã simplesmente nada significa se Cristo for subtraído. Os primeiros convertidos cristãos, em sua maioria judeus, eram vistos como mais uma seita de cunho judaico. A Igreja estava em processo de se diferenciar de todas as nuances religiosas da época e se firmar como uma comunidade única, que nada tinha a ver com os pressupostos religiosos vigentes. No início, era obscura a caracterização desse novo movimento, chamado de seguidores do Caminho (At 9.2), de invocadores do nome de Jesus (At 9.14) e de seita dos nazarenos (At 24.15). A palavra “cristão” aparece três vezes no Novo Testamento (At 11.26; 26.18; 1Pe 4.16). A primeira vez que os discípulos foram assim chamados está registrada: “E partiu Barnabé para Tarso à procura de Saulo; tendo-o encontrado, levou-o para Antioquia. E, por todo um ano, se reuniram naquela igreja e ensinaram numerosa multidão. Em Antioquia, foram os discípulos, pela primeira vez, chamados cristãos” (At 11.25-26). A história do cristianismo desde o nascedouro se desenvolveu com “dores de parto” no sentido de definir a pessoa de Cristo. Todo o esforço é direcionado para construir a identidade cristã a partir da compreensão da natureza de Jesus Cristo. As perguntas que ainda ecoam até o dia de hoje são: “Quem é este?”, “Quem diz o povo ser o Filho do Homem?”, “E vós, quem dizeis que eu sou?”. A INCOMPREENSÍVEL IDENTIDADE DE CRISTO Percorrendo a história do cristianismo, constata-se o interesse e o fascínio exercidos sobre os cristãos de todas as eras pela pessoa de Cristo. Não é de se admirar a diversidade de postulações concernentes a ele, as variadas posições teológicas, os apaixonados debates, algumas vezes convertidos em combates, até às vias de fato. Em alguns concílios, ameaças, empurrões, a toma- da à força os escritos de alguém enquanto era feita a leitura da tese e sua destruição furiosa, fizeram-se presentes. O defensor de uma ideia era consciente que isso poderia lhe custar o exílio ou a própria vida, caso não fosse compreendido como verdade das Escrituras. O tema mais discutido e que sempre trouxe repercussões altamente significativas no desenvolvimento da Igreja cristã é de ordem cristológica. Relaciona-se com o cerne da identidade dos cristãos, a pessoa do Salvador. Afinal, quem ele é? Ao fazer essa pergunta, tornamo-nos muito pequenos. Que pretensão! Definir o mistério de Deus, o qual é Cristo, conforme diz a Palavra: “Para que o coração deles seja confortado e vinculado juntamente em amor, e eles tenham toda a riqueza da forte convicção do entendimento, para compreenderem plenamente o mistério de Deus, Cristo” (Cl 2.2). O texto bíblico referido fala-nos da forte convicção do entendimento visando compreender plenamente o mistério de Deus, Cristo. O processo de entendimento e compreensão, obviamente, passa pela mente, que é a sede para tal “metabolismo”. Entretanto, ele não é puramente racional e, sim, fruto de algo espiritual, o qual, conforme já dissemos, a Bíblia designa de revelação. Revelação da parte de Deus é um elemento vital. O segundo aspecto, que é compreender plenamente o mistério que o Pai desvenda a seu povo escolhido, transcorre gradualmente até aquele glorioso dia em que o veremos sem nenhum véu: “Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é” (1Jo 3.2). Apesar da encarnação do Verbo, de fato, tratar-se de insondável mistério, é lícito aos crentes em Cristo anelarem pelo conhecimento dele, uma vez que a razão pela qual ele revestiu-se da humanidade diz respeito a nós, diretamente. Logo após a queda de Adão, vê-se o enunciado da promessa de redenção ligada à encarnação do Verbo nas palavras de juízo proferidas por Deus à sepente: “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e o seu descendente. Este te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3.15). O texto apresenta o evangelho embrionário, um minianúncio da redenção que viria com Jesus Cristo. O descendente da mulher é Cristo. Por isso, Paulo reafirma essa verdade escrevendo aos gálatas: “Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei” (Gl 4.4). Todo cristão que ama a Cristo deveria envolver-se com maior interesse no estudo de sua pessoa. Ao tornar-se homem, demonstrou quanto nos amou. Ele se tornou um homem desprezível, humilhando-se a si mesmo para fazer a paz e reconciliar o homem com Deus, por meio de seu sacrifício. Vemos a beleza do Salvador, perfeito Deus, perfeito homem, na primeira carta de Paulo a Timóteo: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus e os homens, Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos: testemunho que se deve prestar em tempos oportunos” (1Tm 2.5-6). Cativante é a forma como Paulo, nesta mesma epístola, se reporta ao doce mistério: “Evidentemente, grande é o mistério da piedade: Aquele que foi manifestado na carne foi justificado em espírito, contemplado por anjos, pregado entre os gentios, crido no mundo, recebido na glória.” (1Tm 3.16). Mais adiante, revisaremos a história dos desacertos e desencontros em torno da formulação de Cristo. Somente após quatro séculos da era cristã que uma luz maior se fez presente no tocante à identidade do Redentor. Os concílios de Niceia, em 325, e mais precisamente o de Calcedônia, em 451, descortinaram algo da grandeza de Cristo. A definição resultante desse apresentou-se como segue: Fiéis aos santos pais, todos nós, perfeitamente unânimes, ensinamos que se deve confessar um só e mesmo Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito quanto à divindade e perfeito quanto à humanidade, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem, constando de alma racional e de corpo; consubstancial [ homoousios] ao Pai, segundo a divindade, e consubstancial a nós, segundo a humanidade; em todas as coisas semelhantes a nós, excetuando o pecado, gerado, segundo a divindade, antes dos séculos pelo Pai e, segundo a humanidade, por nós e para a nossa salvação, gerado da Virgem Maria, mãe de Deus [ Theotókos]. Um só mesmo Cristo, Filho, Senhor, Unigênito, que se deve confessar, em duas naturezas, inconfundíveis e imutáveis, conseparáveis e indivisíveis. A distinção de naturezas de modo algum é anulada pela união, mas, pelo contrário, as propriedades de cada natureza permanecem intactas, concorrendo para formar uma só pessoa e subsistência [ hypóstasis]; não dividido ou separado em duas pessoas, mas um só e mesmo Filho Unigênito, Deus Verbo, Jesus Cristo Senhor, conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam, e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu.[Nota 4] A relevância destse consenso foi tal que, onze séculos mais tarde, João Calvino, o homem que deu “forma”à Reforma, concordou quase que integralmente com a fórmula de Calcedônia. Apesar de um pouco extenso para o que pretende este breve trabalho, vale a pena conhecer o pensamento de Calvino sobre as duas naturezas na pessoa do Mediador em sua obra As institutas da religião cristã, iniciada em 1536: Lemos em João 1.14 que o Verbo se fez carne. Não devemos entender com isso que o Verbo foi transformado em carne ou misturado com carne, e sim que escolheu para si mesmo um templo formado pelo ventre de uma virgem no qual habitar; e aquele que era o Filho de Deus ficou sendo o Filho do homem, não pela confusão da substância, mas sim pela unidade de pessoa. A divindade foi tão juntada e unida com a humanidade que cada uma das duas naturezas retém integralmente tudo quanto lhe pertence, e, mesmo assim, as duas naturezas se constituem em um só Cristo. Se alguma coisa pode ser achada na terra com que possamos comparar tão grande mistério, é o próprio homem, o qual consiste em duas partes distintas, corpo e alma, os quais, porém, não estão misturados a ponto de perderem aquilo que pertence à natureza de cada. Podemos dizer acerca da alma coisas que não poderiam ser ditas sobre o corpo, e a respeito do corpo, coisas que não poderiam ser ditas com referência à alma, e em relação ao homem inteiro, algumas coisas que são inaplicáveis à alma e ao corpo separadamente. Outrossim, declarações que se aplicam, a rigor, somente à alma, às vezes são aplicadas por um tipo de transferência ao corpo e vice- versa. E, mesmo assim, aquele que consiste nestas duas partes é um só homem, e não mais do que um. Exatamente dessa forma as Escrituras falam de Cristo. Às vezes, atribuem a ele coisas que devem ser atribuídas especialmente à sua humanidade; às vezes, coisas que se aplicam especialmente à sua divindade; e, às vezes, coisas que abrangem as duas naturezas e que não podem ser atribuídas apropriadamente a nenhuma das duas naturezas quando consideradas à parte. O todo desta doutrina pode ser comprovado através de muitas passagens das Escrituras e, portanto, não é uma teoria inventada pelo homem. Quando Cristo disse acerca de si mesmo: “Antes que Abraão existisse, Eu Sou”, arrogou para si mesmo alguma coisa muito diferente da natureza humana, algo que claramente pertence somente à Deidade. Quando Paulo fala dele como sendo “o primogênito de toda a criação, que é antes de todas as coisas, e em quem tudo subsiste” (cf. Cl 1.15-17), e quando Cristo fala da glória que ele tinha com o Pai antes que houvesse mundo, percebemos que tais declarações não se aplicam a um mero homem. Daí fica claro que essas passagens e outras semelhantes, referem-se à sua divindade. Quando, porém, é chamado Servo do Pai (Is 42.1), e quando se diz que cresceu em sabedoria e estatura, como também em graça, diante de Deus e dos homens; quando se diz que não procura sua própria glória, e que não sabe quando será o último dia, que não fala pela sua própria autoridade nem pratica sua própria vontade, então fica evidente que isso se aplica somente à sua humanidade.[Nota 5] Um século mais tarde, em 1o de julho de 1643, uma assembleia de teólogos e civis reuniu-se em Westminster, Inglaterra, culminando em fevereiro de 1648. Igualmente embasaram-se nas Escrituras e na definição de Calcedônia, declarando: O Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, sendo vero e eterno Deus, de uma só substância com o Pai e igual a ele, quando chegou a plenitude do tempo, tomou para si a natureza humana, com todas as propriedades essenciais e fraquezas comuns a ela, contudo sem pecado; sendo concebido pelo poder do Espírito Santo, no ventre da virgem Maria, e da substância dela. De modo que as duas naturezas inteiras, perfeitas e distintas, a Deidade e a Humanidade, foram inseparavelmente unidas em uma só pessoa, sem conversão, composição ou confusão. Pessoa esta, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, contudo um só Cristo, o único Mediador entre Deus e o homem.[Nota 6] A. A. Hodge faz o seguinte comentário a respeito da asseveração acima: 1. Que Jesus de Nazaré foi um homem real, possuindo todas as propriedades essenciais a um ser humano, concebido pelo poder do Espírito Santo no ventre da virgem Maria e da substância dela. 2. Que ele era absolutamente sem pecado. 3. Que não era menos que o próprio Deus, o eterno Filho do Pai. 4. Que não obstante ser Deus e ser homem, ele é uma pessoa só. 5. Que essa personalidade é a pessoa eterna do divino filho que, no tempo, tomou uma alma e um corpo humanos numa união pessoal consigo mesmo. 6. Que não obstante ser uma pessoa, as naturezas divinas e humana em Cristo não se misturaram nem se confundiram numa só, senão que permanecem duas naturezas puras e distintas, divina e humana, constituindo uma só pessoa para sempre.[Nota 7] A encarnação é o retrato da sabedoria de Deus na providência de uma salvação ao mesmo tempo justa na punição do pecado e plena de misericordia, graça e amor, com coerência e sem contradições que maculassem seu caráter. Assim ele fez enviando seu Filho, conforme está escrito: Sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar a sua justiça, por ter Deus, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos; tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus. ROMANOS 3.24-26 Seria injusto esquecer do maior teólogo do século 11: Anselmo de Cantuária (1033-1109). Em sua obra Por que Deus se fez homem?, registra o diálogo de Anselmo com seu amigo Dom Boso, e a pergunta fundamental que debatem é: “Por que e para que Deus se tornou homem e redimiu os seres humanos com sua morte, se podia ter cumprido o mesmo propósito por outros meios?” Separei desta magnífica obra justamente o capítulo IX, que apresenta o título: “Que necessário que o Verbo forme uma só pessoa com o homem em Jesus Cristo”: Anselmo — Agora nós devemos investigar acerca de qual das três pessoas, que há em Deus, deve assumir a natureza humana, pois o Espírito Santo no ventre da virgem Maria e de substância dela, pode ser que muitas pessoas assumam a um mesmo homem em unidade de pessoa, mas que é necessário que isto se realize por uma só pessoa. Porém, desta unidade da pessoa de Deus e do homem e em que a pessoa de Deus isto é mais conveniente, já tenho dissertado o suficiente na carta sobre a encarnação do Verbo que dirigi ao papa Urbano Boso. — explica, todavia, brevemente, por que é a pessoa do Filho que deve se encarnar, antes que a do Pai ou a do Espírito. Anselmo — Se qualquer outra pessoa tivesse se encarnado, seriam dois filhos na Trindade, o Filho de Deus, que já é Filho antes da encarnação, e aquele que pela encarnação se torna filho da virgem, e, por fim, haveria desigualdade, segundo a dignidade desses nascimentos, nas pessoas, que sempre devem ser iguais. Além disso, se o Pai tivesse se encarnado, haveria dois netos na Santíssima Trindade, pois o Pai seria o neto dos pais da santíssima virgem pela encarnação, e o Verbo, sem ter nada de homem, seria, no entanto, neto da virgem, pois ele seria filho de seu filho, o que é, tudo isso, muito inconveniente, e não acontece na encarnação do Verbo. Há outra razão pela qual é mais conveniente que seja o Verbo que se encarne do que as outras pessoas; é que soa melhor que o Filho interceda diante do Pai que outra pessoa diante das outras. Além disso, temos que tanto o homem, pelo qual ele haveria de interceder, como ao demônio, a quem ele haveria de vencer, tinham pretendido tornar-se semelhantes a Deus segundo a sua própria vontade, por onde vieram a pecar de um modo especial contra a pessoa do Filho, que é a verdadeira semelhança do Pai. Com justa razão, portanto, tanto o castigo pela culpa, como a indulgência, é incumbência daquele a quem se dirige, de um modo especial, a injúria. Por conseguinte, como a razão nos tem demonstrado inexoravelmente a necessidade de quetanto a natureza humana como a divina se juntem em uma só pessoa, e que isto não pode ser realizado em várias das pessoas divinas, mas que é mais conveniente que se faça na pessoa do Verbo, é necessário que o Verbo divino se una hipostaticamente ao homem.[Nota 8] Anselmo resume no final de sua obra utilizando as palavras de Boso a razão principal da encarnação do Verbo: Em resumo, a questão é esta: por que Deus se fez homem para salvar o homem por sua morte, podendo fazer de outro modo. A qual me respondeste, com muitas e necessárias razões, demonstrando que não podia ser feito menos pela redenção do gênero humano, e que isto não seria possível se o homem não pagasse o que devia pelo pecado, dívida esta tão grande que, não a devendo pagar senão o próprio homem, porque era culpado, no entanto, somente Deus podia fazê-lo, de sorte que o Redentor tinha de ser homem e Deus ao mesmo tempo, e, da mesma forma, era necessário que Deus assumisse natureza humana na unidade de sua pessoa, e, assim, o que o homem em sua simples natureza devia, porém não podia pagar, subsistisse uma pessoa que tivesse este poder. Finalmente, demonstraste-me que esse Deus-homem tinha de ser a pessoa do Filho, que se encarnou na virgem, e como pôde ficar livre do pecado apesar de ter vindo de uma massa pecadora. E quanto à vida deste Homem, tão sublime, tão excelente, já me demonstraste que ela foi mais suficiente para dar satisfação pelos pecados do mundo inteiro, ainda que estes tivessem sido infinitos.[Nota 9] As duas naturezas na única pessoa de Cristo representam a única alternativa possível e perfeita para ocorrer a eterna redenção. Com respeito à necessidade das duas naturezas do Salvador, Heber C. de Campos, com clareza, escreveu: Ele tinha de ser em tudo semelhante a nós para que nos pudesse substituir em todas as coisas nas quais ele agiu como nosso substituto. Nenhum anjo ou qualquer outra criatura poderia fazer o que Jesus fez em nosso lugar. Era necessário ter todas as propriedades de um ser humano para que experimentasse todas as coisas próprias de um homem, a fim de que estivesse no lugar de homens. O Redentor precisava ser um homem verdadeiro e completo para que a justiça punitiva de Deus pudesse ser exercida sobre ele. A ira divina tinha de vir sobre o corpo e sobre a alma de Jesus Cristo. Nenhum outro ser racional poderia substituir-nos. Somente um homem poderia ser castigado em lugar de outro; apenas um ser igual a nós poderia tomar nosso lugar. Do contrário, não seria substituição. A substituição tem de ser feita por um igual, isto é, por alguém que tem a mesma natureza. Se Jesus Cristo fosse somente homem, ele não poderia fazer o que veio fazer em nosso favor e em nosso lugar. Ele apenas teria obedecido e morrido, mas sem poder ganhar o que ganhou para nós, e além disso ele permaneceria no seu estado de morte, porque não tinha poder para voltar a viver pelo seu próprio poder. O nosso Redentor é extremamente poderoso por causa da sua divindade. Se fosse apenas homem, ele não poderia realizar tão grande salvação! (Hb 2.17; Jo 17.2).[Nota 10] As Escrituras tornam evidente a natureza divina e humana unidas em Cristo. Há uma necessidade vital de um retorno à Bíblia, para que, pelo Espírito, cada palavra a seu respeito comunique a verdade, não de forma inteligível, mas perceptível, sem questionamentos vãos e, ao mesmo tempo, reconfortantes para o coração. Na vida de Jesus narrada nos evangelhos, em nenhum momento o vemos extraindo de sua divindade recursos para melhor assistir a sua humanidade. De forma alguma, antes, a beleza da divindade manifestou-se em diversas ocasiões para glorificar o Pai, expor os corações perversos e manifestar sua misericórdia com os desvalidos. John Owen (1616-1683), notável entre os puritanos, foi um dos maiores teólogos de todos os tempos. Em sua obra clássica Comunhão com o Deus Trino, esclarece que o Salvador Jesus Cristo possuía completa adequação para salvar, justamente decorrente da união das naturezas: Um Salvador apropriado, adequado ao trabalho; isso provém de sua graça da união. A união das naturezas de Deus e do homem em uma só pessoa fez dele apto para ser um Salvador perfeito. Ele tem as mãos em Deus ao compartilhar sua natureza (Zc 13.7) e sobre nós ao compartilhar nossa natureza (Hb 2.14,16): assim, torna-se um mediador ou juiz entre ambos. Sendo mediador, preenche toda a distância que foi feita pelo pecado entre Deus e nós – que estávamos distantes e somos aproximados dele. E foi por causa disso que ele ficou com espaço suficiente em seu peito para receber, e poder suficiente em seu espírito para suportar toda a ira que estava preparada para nós. O pecado era infinito somente com respeito ao objeto; a punição foi infinita com respeito ao sujeito. Isso vem da união com ele. A união é a conjunção de duas naturezas, a de Deus e a do homem em uma só pessoa (Jo 1.14; Is 9.6; Rm 1.3; 9.5). [...] A execução de seu ofício de mediação em sua única pessoa, com respeito às duas naturezas: em que é notável, o agente, o próprio Cristo, Deus e homem. Ele é, primeiramente, o princípio que dá vida e eficácia à obra toda; então, em segundo lugar, o que opera, sendo as duas naturezas consideradas distintamente. Em terceiro lugar, a obra em si de cada natureza. E, por último, o efeito produzido, que provém de tudo e se relaciona a todos eles. Então, a virtude de que eu falo relaciona-se à sua união pessoal.[Nota 11] ESTRUTURAS DE PENSAMENTO QUE INFLUENCIARAM A CRISTOLOGIA O ambiente da plenitude de tempo que recebeu o Filho de Deus neste mundo era constituído de uma espiritualidade diversificada. Certamente o helenismo exercia a maior influência no tocante às reflexões mais profundas da existência da vida e de um bem supremo. Platão (427-347 a.C.), filósofo ateniense, apresentou a proposta de que o mundo palpável e as coisas criadas que podemos ver e tocar são figuras de uma realidade invisível e eterna. A ênfase recaía sobre as formas abstratas que poderiam ser dimensionadas pela meditação filosófica. A existência de um ser último e transcendente contrastava com a vulgaridade do corpo animal e passional. Este modelo de pensamento penetrou nos primórdios do cristianismo que apenas dava início no desenvolvimento de sua identidade e fundamentação doutrinária. Em suma, havia uma negação da materialidade considerada como oposição às coisas espirituais. Ela estabelecia ambivalência entre o mundo sensitivo e o intelectivo. A alma era considerada como a natureza superior, a parte racional do homem. Já o corpo representava a natureza inferior. Entre outros dualismos existentes, esse diferia do gnosticismo, que considerava a matéria como algo iníquo (posição extremada). Clemente de Alexandria (150-215), um dos pais alexandrinos, considerava que era possível integrar a fé cristã com o melhor do pensamento filosófico. Sua máxima era: “Toda a verdade é a verdade de Deus, venha de onde vier”. Ele procurava submeter e pôr à prova os diversos sistemas filosóficos platônicos à autoridade suprema das Escrituras. Portanto, apesar de Clemente apresentar uma alta cristologia, esta não escapou à influência de Platão. Em sua obra O Instrutor, ele se referiu a Cristo como segue: Prestem atenção, meus filhos, o nosso instrutor é como Deus, seu Pai, de quem é Filho, impecável, inculpável e com alma destituída de paixões; Deus na forma de homem, imaculado, o ministro da vontade de seu Pai, o Verbo que é Deus, que está no Pai, que está à direita do Pai e que, tendo a forma de Deus, é Deus.[Nota 12] Perceba que a humanidade de Cristo para Clemente é quase que destituída de humanidade: alma sem instintos humanos, tentações, Deus na “forma de homem”, mas não homem integralmente. Orígenes de Alexandria (185-254), autor de vastíssima obra jamais superada, é reconhecido como autêntico cristão, morrendo inclusive em decorrência das torturas sofridas sob a perseguição de Décio. Entretanto, ele deixou dúvidas quanto à sua compreensão a respeito de Cristo. Isso se deve igualmente à forte influênciaque ele recebeu do platonismo. Roger Olson tece o seguinte comentário: Muitas perguntas surgem no tocante à teologia de Orígenes. Uma das mais importantes é: ele realmente tratou a encarnação adequadamente? Jesus Cristo é tratado como “verdadeiro Deus e verdadeiro homem” na teologia de Orígenes? Por um lado, não há dúvida de que Orígenes considerava divino o Logos, o Filho de Deus, que encarnou em Jesus Cristo, mesmo que, de certa forma, subordinado ao Pai desde a eternidade. Por outro lado, não está claro se, e até que ponto, ele realmente considerava que Jesus Cristo era “Deus” na sua existência terrestre. Era um homem em “comunhão íntima com o Verbo Eterno [Logos]”, mas era Deus? O que parece ter impedido Orígenes de afirmar absoluta e inequivocadamente a divindade de Jesus Cristo foi seu compromisso anterior com a ideia grega de a natureza divina ser simples, imutável, impassível e imperturbável pelo tempo ou pela emoção ( apátheia).[Nota 13] Igualmente, Justino Mártir (100-165), considerado o maior apologista da fé cristã do século 2, era voltado intensamente para a filosofia helenística. Ao ler a Bíblia, considerou o cristianismo como a verdadeira filosofia. Ele, anteriormente, cognominava-se filósofo de Platão, mas, após a conversão, filósofo de Cristo. Por causa do amor a Jesus, ele e seis de seus discípulos pagaram com a própria vida, ao sustentar diante de um juiz que a doutrina cristã era verdadeira.[Nota 14] Desenvolveu de forma embrionária a doutrina de Cristo como sendo o “Logos cósmico”, sob a “inspiração”oriunda do platonismo: Nossa religião aparece mais sublime que todo ensinamento humano, pela simples razão de que o Verbo inteiro, que é Cristo, se manifestou por meio de nós, fez-se corpo, razão e alma... Confesso que me orgulho e que, com todas as minha forças, procuro ser considerado cristão; não porque os ensinos de Platão sejam diferentes dos de Cristo, mas porque não são semelhantes em todos os aspectos, assim como também não o são os de outros, estoicos, poetas e historiadores. Pois cada um falou bem conforme a participação que tinha na palavra espermática [ Logos spermatikos], de acordo com o que se relacionava a ela. [...] Tudo o que já disse de correto entre todos os homens é de autoria nossa, dos cristãos. Pois, além de Deus, adoramos e amamos ao Verbo que provém do Deus ingênito e inefável, posto que também se tornou homem por amor a nós, para que, tornando-se participante de nossos sofrimentos, também nos trouxesse a cura.[Nota 15] Outra forma de pensamento helenístico é o estoicismo. Fundado por Zenão (335-263 a.C.), tinha a lógica como fundamento e defendia a vida virtuosa por meio do conhecimento. De maneira semelhante ao platonismo, considerava o plano das emoções um nível secundário. Essa estrutura chegou a seu ápice no século 2, tendo como adepto o imperador romano Marco Aurélio (121-180). Após esse período, caminhou para a paulatina extinção. Entretanto, tratava-se de mais uma forma de pensamento religioso que privilegiava o aspecto subjetivo da espiritualidade, considerando o corpo com suas paixões de cunho inferior. De fato, não é de se estranhar a tendência religiosa nos primórdios do cristianismo de não conceber a ideia de o “Verbo se fazer carne”. Segundo a concepção estoica, é ilógico e contraditório. Filo (20 a.C.–50 d.C.), pensador judeu de Alexandria, adaptou os ensinos de Platão ao judaísmo. No século 3, Plotino (205-269), desenvolveu o neoplatonismo. Agostinho de Hipona sofreu a influência do maniqueísmo[Nota 16] e do neoplatonismo, sendo esse considerado pelo teólogo como a porta que o introduziu no cristianismo. Em Confissões, assim escreveu: Quiseste mostrar-me, antes de tudo, como fazes resistência aos soberbos e concedes tua graça aos humildes, e como em tua misericórdia quiseste indicar o caminho da humildade, visto que o teu Verbo se fez carne e habitou entre os homens. Tu me proporcionaste, através de um homem inflado de orgulho imenso, alguns livros dos platônicos traduzidos do grego para o latim, onde encontrei escrito, se não com as mesmas palavras, certamente com o mesmo significado e com muitas provas convincentes, o seguinte: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus [...]”. No entanto, nesses livros (platônicos) não encontrei escrito que “ele veio para o que era seu, e os seus não o receberam [...]”. Mas esses livros (platônicos) não dizem que ele se “esvaziou a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz!”.[Nota 17] O gnosticismo, termo que deriva da palavra grega gnosis, significando “conhecimento” ou “sabedoria”, provavelmente constituiu-se na principal heresia que se infiltrou na igreja primitiva. Extremamente diversificada, com várias correntes, de vários lugares, de forma geral ensinava o dualismo. Segundo essa filosofia, há uma hierarquia de entes espirituais e a libertação e o desenvolvimento dependem de níveis mais elevados de conhecimento. A ideia de que a matéria é má prevalece em seus ensinos, sendo o corpo uma espécie de cárcere do espírito. Marcião, filho de um bispo de Sinope, no Ponto, fundou no ano 144 a primeira “igreja cristã gnóstica”. Ele estabeleceu um dualismo entre um “deus” inferior, ao qual se refere o Antigo Testamento, responsável por criar o mundo material (Demiurgo), e o Deus verdadeiro, citado no Novo Testamento nas epístolas de Paulo. Demiurgo é vingativo e legalista; o Deus do Novo Testamento é Deus de amor e graça. Como os gnósticos, Marcião não cria na humanidade de Jesus (era docetista). Além disso, estabeleceu seu próprio cânon, apenas formado pelas epístolas de Paulo e o Evangelho de Lucas. Finalmente, o próprio judaísmo apresentou sua face “cristã”, obviamente distorcida, representada por grupos tais como os nazarenos, os elquesaítas e os ebionitas. Em seu tradicional monoteísmo, não podiam admitir a existência de uma segunda pessoa divina. Portanto, para os grupos judaizantes cristãos, Cristo era simplesmente um homem de elevada ética moral. Inserida nessas variadas e confusas concepções religiosas, algumas delas provavelmente combatidas pelos próprios apóstolos nas Escrituras, especialmente as cartas de Paulo aos Gálatas, Efésios, Colossenses e as de 1 e 2João, a igreja cristã pós-apostólica passou a processar aos poucos o entendimento possível da pessoa do Salvador. JESUS NAS ESCRITURAS Toda a Escritura Sagrada tem por propósito fundamental apresentar e revelar a pessoa de Cristo. Jesus, mesmo após curar um cego no sábado e declarar diante dos judeus que Deus era seu Pai, foi hostilizado por esses, a ponto de quererem matá-lo; ele confirmou o propósito da Bíblia: “Examinai as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim” (Jo 5.39). Não é relevante saber o que o povo pensa a seu respeito, e, sim, o que a Bíblia tem a dizer. Na Bíblia, a figura do Redentor é revelada do início ao fim, por todos os lados. Volte-se para o princípio de tudo, no centro do jardim do Éden, e, entre todas as árvores, uma sem igual: a árvore da vida. O que representa essa árvore? Mesmo um adolescente cristão poderia responder: Jesus! Em João 15, lá está ela, como a videira verdadeira, e, ao final, no livro do Apocalipse, a igreja de Éfeso recebe a promessa: “Ao vencedor, dar-lhe-ei que se alimente da árvore da vida que se encontra no paraíso de Deus”(Ap 2.7). No último capítulo desse livro, a árvore da vida é reapresentada outras vezes, ou seja, bem no meio da praça, no novo céu e na nova terra (Ap 22.2); e, no crepúsculo da revelação, João diz: “e, se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus tirará sua parte da árvore da vida” (Ap 22.19). Ainda em Gênesis, após a queda do homem, Deus se dirige à serpente e lhe diz que o descendente da mulher lhe feriria a cabeça (Gn 3.15). Essa afirmação, tal como mencionei logo no começo, já anuncia Cristo como o Salvador do mundo. Em Êxodoé narrada a história do povo judeu escravizado por 400 anos no Egito. Quando Moisés é convocado a liderar a nação judaica para a saída do Egito, sentiu-se incapaz e questionou a Deus: “Eis que, quando eu vier aos filhos de Israel e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós outros; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi? Disse Deus a Moisés: Eu Sou o que Sou. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós outros” (Ex 3.13-14). Que declaração magnífica de Jeová! Eu Sou! Como veremos mais adiante, somente Jesus aplicou a si mesmo essa afirmação. Um jantar ocorreu na noite que precedeu a saída do Egito. Em cada casa das famílias hebraicas, devia-se comer um cordeiro. Era a Páscoa do Senhor. O sangue do cordeiro foi posto nas ombreiras e na verga de cada porta. Cristo é a realidade dessa festa! Ele é o Cordeiro, cujo sangue vertido promove completa libertação. Paulo autentica a figura ao dizer: “Pois também Cristo, nosso cordeiro Pascal, foi imolado” (1Co 5.7). As água amargas de Mara, no deserto de Sur, não podiam ser bebidas, mas Moisés, ao lançar o pedaço de uma árvore nas águas, fez com que se tornassem deliciosamente doces. Preste atenção: novamente, a árvore está presente no cenário. E o que dizer das águas? Pouco mais adiante, mais águas são encontradas, agora em torrentes: as doze fontes de água de Elim. Jesus mesmo atestou o significado das águas na Bíblia. No diálogo com a mulher samaritana: “Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna” (Jo 4.13-14). Por ocasião da festa dos tabernáculos, no último e grande dia da festa, Jesus exclamou: “Se alguém tem sede venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva”(Jo 7.37-38). O Senhor, ao dizer neste verso “como diz a Escritura”, referia-se a Zacarias 14.8: “Naquele dia, também sucederá que correrão de Jerusalém águas vivas, metade delas para o mar oriental, e a outra metade, até ao mar ocidental; no verão e no inverno, sucederá isto”. Nunca mais teremos sede outra vez. Cristo é o manancial de águas a jorrar no deserto do coração daquele que crê. Seguindo a peregrinação pelo deserto, após as fontes de Elim, no deserto de Sim, de estômago vazio, o povo começou a reclamar da situação. Deus proveu pão descido do céu: o maná, porção diária que jamais faltaria. Novamente, no maná, verifica-se uma figura de Cristo como nosso alimento. João escreveu: “Replicou-lhes Jesus: Em verdade, em verdade vos digo: não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede” (Jo 6.32-35). E, novamente no livro de Apocalipse, ressurge a água da vida, brilhante como cristal, saindo do trono de Deus (Ap 22.1), e, no convite do Espírito e da noiva, dizendo: “Vem!Aquele que tem sede venha, e quem quiser receba de graça a água da vida” (Ap 22.17). Cristo é água e pão. Ele é a nossa vida! O livro de Levítico exibe uma infinidade de leis de purificação. Nele se encontra toda a legislação de Deus para orientar seu povo quanto ao modo de viver. Centenas de leis cerimoniais: sacrifícios, ofertas — de holocaustos, de manjares, pacíficas, e pelos pecados —, as festas solenes, os critérios para comida, ritos de purificação da imundícia, trato com a lepra, normas de conduta específicas para os sacerdotes, o dia da expiação, o ano do descanso, o ano do jubileu, leis a favor dos escravos e dos pobres, os castigos por desobediência e assim por diante. Todos esses elementos paliativos e repetitivos têm uma razão de ser. O autor da carta aos Hebreus trata magistralmente da função sacerdotal no Antigo Testamento, que tinha por objetivo principal, por meio do rito sacrificial, a expiação do pecado do povo. Ele esclarece que tudo isso são sombras, figuras e parábolas: “Porque Cristo não entrou em santuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós, diante de Deus” (Hb 9.24); e ainda: “Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros, não a imagem real das coisas, nunca jamais pode tornar perfeitos os ofertantes, com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem”(Hb 10.1). Cristo é o verdadeiro e único sumo sacerdote. E mais: ele é o próprio sacrifício, como também o altar do sacrifício. Por isso está escrito: “Ora, o essencial das coisas que temos dito é que possuímos tal sumo sacerdote, que já se assentou à destra do trono da Majestade nos céus” (Hb 8.1). Vários personagens e patriarcas do Antigo Testamento são tipos de Cristo, ou seja, evidenciam alguns aspectos de sua pessoa e obra. Como exemplos, podemos citar José do Egito, Isaque e o rei Davi. Jesus citou Jonas como figura representativa dele mesmo: “Porque assim como esteve Jonas três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim o Filho do Homem estará três dias e três noites no coração da terra” (Mt 12.40). Encontramos, no livro de Hebreus, um personagem misterioso do Antigo Testamento chamado Melquisedeque — rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo (Gn 14.18) —, como sendo uma representação de Cristo: “[...] sem pai, sem mãe, sem genealogia, ele não teve princípio de dias nem fim de existência, mas, feito semelhante ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre” (Hb 7.3). O salmo 110.1-5 ratifica essa relação ao declarar que o Senhor, que se assenta à direita do trono, é sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque. Acontecimentos inusitados envolvendo o povo de Deus no deserto apontam para Cristo: a rocha ferida por Moisés — da qual saiu água — sugere a figura do Redentor sendo ferido na cruz pela Lei de Deus a nosso favor (Ex 17.6). A serpente de bronze que foi levantada no deserto como fonte de cura para o povo rebelde igualmente aponta para Jesus: “E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado, para que todo o que nele crê tenha a vida eterna” (Jo 3.14). E o que dizer de uma pedra que seguia o povo no deserto? A esse fato, Paulo escreveu aos coríntios: “Todos eles comeram de um só manjar espiritual e beberam da mesma fonte espiritual; porque bebiam de uma pedra espiritual que os seguia. E a pedra era Cristo” (1Co 10.3-4). Cristo é a pedra de esquina, pedra angular, a pedra fundamental (1Co 3.10-11; Ef 2.20; 1Pe 2.4-7). Ele é o verdadeiro santuário, o tabernáculo de Deus encarnado (Jo 1.14; Ap 21.22). E por que não atribuir a Cristo todas as riquezas da boa terra prometida de Canaã, terra que mana leite e mel? Assim como aquele povo entrou na terra, nós fomos postos em Cristo para desfrutar de suas insondáveis riquezas: “porque o Senhor, teu Deus, te faz entrar numa boa terra, terra de ribeiros de águas, de fontes, de mananciais profundos, que saem dos vales e das montanhas; terra de trigo e cevada, de vides, figueiras e romeiras, terra de oliveiras, de azeite e mel; terra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro e de cujos montes cavarás o cobre. Comerás, e te fartarás, e louvarás o Senhor, teu Deus, pela boa terra que te deu” (Dt 8.7-10). Enfim, quem é capaz de esgotar tudo o que Cristo é? Ele é o único que representa fielmente e completamente a realidade do verbo ser. Nosso Senhor é o Eu Sou! João se encarregou no Evangelho de lhe conferir essa prerrogativa: “perguntaram-lhe, pois, os judeus: ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão? Respondeu-lhes Jesus: Em verdade, em verdade eu vos digo: antes que Abraão existisse, Eu Sou” (Jo 8.57-58). O Mestre se apresentou como o “Eu Sou” nas figuras da água, do pão, do trigo (Jo 12.34), da videira (Jo 15.1), da porta (Jo 10.7), do caminho (Jo 14.6). Ele é o cumprimento de realidades espirituais como “Eu Sou a verdade, Eu Sou a ressurreiçãoe a vida! (Jo 14.6; 11.25). Somente a Jesus Cristo são conferidos títulos como a Fiel testemunha, o Primogênito dos mortos e o Soberano dos reis da terra (Ap 1.5), Leão de Judá (Ap 5.5), Rei dos reis e Senhor dos senhores (Ap 19.16), a brilhante Estrela da manhã (Ap 22.16), Sumo e Bom Pastor (1Pe 5.4; Jo 10.11), Maravilhoso, Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz (Is 9.6), Sol da Justiça (Ml 4.2). Portanto, a Igreja de Cristo se curva em gloriosa adoração e admiração diante daquele que é, que era e que há de vir, diante daquele que é tudo! Aqui se encaixa a expressão de Paulo: “Cristo é tudo, e em todos” (Cl 3.11). Que Cristo glorioso temos! Os escolhidos de Deus de todas as eras, unidos, fazem coro à confissão de Pedro com a boca cheia e transbordante de alegria: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”! Notas do Capítulo Nota 1 - Suetônio. A vida dos doze césares. Rio de Janeiro: Editorial Prestígio, 2002, p. 319. [Voltar] Nota 2 - Cairns, Earle E. O cristianismo através dos séculos. São Paulo: Vida Nova, 2008, p. 40. [Voltar] Nota 3 - Josefo, Flávio. História dos Hebreus. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 436. [Voltar] Nota 4 - Bettenson, H. Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: Edições Aste/Simpósio, 1998, p. 101. [Voltar] Nota 5 - Calvino, João. As institutas da religião cristã. São Paulo: PES, 1966, p. 185-187. [Voltar] Nota 6 - Hodge, Alexander A. Confissão de Fé de Westminster Comentada. São Paulo: Os Puritanos, 1999, cap. VIII, seção II, p. 191. [Voltar] Nota 7 - Idem, p. 191-192. [Voltar] Nota 8 - Anselmo. Por que Deus se fez homem? São Paulo: Novo Século, 2003, p. 115. [Voltar] Nota 9 - Idem, p. 143-144. [Voltar] Nota 10 - Campos, Heber C. de. As duas naturezas do Redentor. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 108, 109, 113. [Voltar] Nota 11 - Owen, John. Comunhão com o Deus Trino. São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 113. [Voltar] Nota 12 - Olson, Roger. História da Teologia Cristã. São Paulo: Vida, 2001, p. 90. [Voltar] Nota 13 - Idem., p. 113. [Voltar] Nota 14 - Gonzalez, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo. São Paulo: Vida Nova, 1986, p. 75. [Voltar] Nota 15 - Gomes, C. Folch, Antologia dos Santos Padres, São Paulo: Edições Paulinas, 1985, p. 67. [Voltar] Nota 16 - Religião dualísitca do século 3, fundada por Mani, na Pérsia. Fundiu elementos persas, cristãos e budistas. Era um complexo sistema gnóstico que oferecia a salvação por meio do conhecimento e de práticas ascéticas rigorosas [Voltar] Nota 17 - Agostinho. Confissões. São Paulo: Paulus, 1997, p. 186-191. [Voltar] N 2 O falso Cristo no pensamento teológico antigo esta seção, apresentaremos as principais tentativas equivocadas de definir a pessoa de Jesus Cristo logo nos primeiros séculos da era cristã. As controvérsias deram origem a vários concílios eclesiásticos, para que fossem discutidas e julgadas as diferentes estruturas de pensamento. Várias propostas cristológicas foram catalogadas como heresias, o que resultou em documentos finais cujo conteúdo doutrinário, de grande valor, em boa parte vigoram até os dias de hoje. Cabe dizer que os considerados hereges eram homens da igreja, bem-intencionados e sinceros, porém, errados. EBIONISMO: NEGANDO A DIVINDADE Composto por um grupo de religiosos judeus, representavam uma das seitas judaico-cristãs, provavelmente surgido após a invasão de Jerusalém pelo general Tito no ano 70 e a posterior dispersão. Acredita-se que os ferozes judaizantes que tanto per-seguiram Paulo pertençam a essa categoria. Ebionitas, palavra de-rivada do hebraico, ebyônîm, significa “pobres”. Eles exibiam um alto rigor ascético, despojados, tendo a pobreza como modo de vida. As passagens de Mt 5.3 (pobres de espírito); Lc 4.18 e 7.22 (sobre os pobres) eram muito relevantes para eles.[Nota 1] Ainda em relação ao nome “ebionitas”, há duas hipóteses quanto à origem. A primeira foi proposta por Tertuliano, que defende o nome de Ebion como fundador, uma vez que em seu ponto de vista, “toda heresia começa com um herege que pode ser mencionado”. Tertuliano afirma que os ebionitas se apropriaram do texto de Hebreus 2.7, onde diz que Jesus foi feito um pouco menor do que os anjos, justamente para sustentar que ele é um mero homem descendente de Davi. Entretanto, há uma segunda possibilidade da origem desse grupo e que é mais aceita. Ela é compartilhada por Orígenes, conforme Marcelo Berti escreve em seu artigo “Ebionitas Primitivos”, no qual afirma sobre os ebionitas que eles derivam a apelação de pobres para o próprio nome deles. Orígenes, usando de certo deboche, dizia que eles eram pobres de inteligência e pobres do conhecimento da Lei. Os ebionitas eram vegetarianos, aproveitando-se de dois textos dos evangelhos. A primeira referência é a João Batista que “seu alimento, era mel silvestre, de gosto semelhante ao do maná, como se fosse bolo preparado em azeite” (cf. Mt 3.4; Mc 1.6). A segunda decorre da pergunta dos discípulos a Jesus sobre onde fazer os preparativos da Páscoa, ao que ele respondeu: “Por acaso, desejei comer carne convosco nessa Páscoa?”. Como judeus, amavam a Lei mosaica e criam que Jesus Cristo foi um simples homem, nascido naturalmente de Maria, porém de conduta irretocável, cumpridor da lei. Negavam a divindade de Cristo, devido à sua crença monoteista, temendo afirmar a existência de mais de um Deus ao reconhecer o Salvador como divino. Jesus para eles era o Messias judeu, enviado pelo Deus dos judeus para o povo judeu, em cumprimento às escrituras judaicas. Foram considerados como gnósticos devido à ligação deles com Cerinto, homem de Éfeso no final do século 1 que pregava o dualismo e afirmava que Cristo desceu sobre Jesus em seu batismo e o deixou antes de sua morte. Entendiam que somente os judeus poderiam ser seguidores de Jesus. Nos escritos dos pais da Igreja há registros de que os ebionitas utilizavam somente uma literatura como sendo o “Evangelho de Mateus”, porém menor do que o canônico e que era chamado de “Evangelho dos Hebreus”, segundo o historiador Eusébio de Cesareia em sua obra História Eclesiástica. A tradição relata que o apóstolo João foi ao balneário público com alguns discípulos e, ao saber que Cerinto lá estava, exclamou: “Saiamos depressa para que ao menos o balneário não desabe sobre nós, pois Cerinto, o inimigo da verdade, ali se encontra”.[Nota 2] Irineu de Lião, em sua obra Contra as heresias, após o ano 180, escreveu estabelecendo o vínculo entre o ebionismo e Cerinto: Os assim chamados ebionitas admitem que o mundo foi criado por Deus, mas acerca do Senhor pensam da mesma forma que Cerinto e Carpócrates. Utilizam somente o evangelho segundo Mateus e rejeitam o apóstolo Paulo como apóstata da Lei. Procuram interpretar as profecias de maneira bastante curiosa; praticam a circuncisão e continuam a observar a Lei e os costumes hebraicos da vida e até adoram Jerusalém como se fosse a casa de Deus.[Nota 3] A respeito de Cerinto, Irineu ainda relatou: Igualmente, um certo asiático, Cerinto, pensou que o mundo foi feito não pelo Deus Supremo, mas por alguma Virtude muito afastada e separada do príncipe que está acima de todas as coisas e cuja soberania absoluta não é reconhecida por tal Virtude. Acrescenta que Jesus não nasceu de uma virgem, mas que foi filho de José e Maria, à maneira comum, embora seja superior aos demais em justiça, prudência e sabedoria. Após o batismo de Jesus, Cristo desceu sobre ele em forma de pomba, procedendo do Príncipe que está sobre todas as coisas. Depois disso, Jesus revelou o Pai incógnito, realizando atos de poder. No fim, porém, Cristo retirou-se, deixando Jesus abandonado: o homem Jesus sofreu sozinho e ressuscitou; porém Cristo permaneceu impassível como convinha à sua natureza.[Nota 4] Reafirmando, portanto, os ebionitas negavam a divindade de Jesus Cristo, tendo-o em alta estima apenas como homem, considerando-o como o sucessor de Moisés. Para isto, utilizavam o texto de Deuteronômio 18.15 que diz: “O Senhor, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de teusirmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás [...]”. Os ebionitas exerceram certa influência na igreja cristã, causando problemas até o século 4 além das fronteiras da Palestina. Entretanto, tiveram pouca repercussão, pela pequena representatividade, atendo-se apenas a alguns pequenos grupos espalhados, terminando por sair do cenário como um grupo cristão. DOCETISMO: NEGANDO A HUMANIDADE Representa uma perspectiva teológica que fazia coro com o gnosticismo ao negar a verdadeira humanidade de Jesus Cristo. Docetismo provém da palavra grega dokeô, com significado de “parecer”, argumentando que todos os elementos humanos ligados a Cristo eram irreais. Seus sofrimentos, limitações e demais aspectos ligados à sua humanidade eram imaginários. Essa suposição tinha por finalidade fortalecer o pensamento gnóstico de que não faz o menor sentido a divindade “vestir-se com roupa suja”, ou seja, corpo, matéria. Portanto, para os docetistas, Jesus não passava de um fantasma, já que, se ele sofria, não poderia ser verdadeiro Deus. Inácio de Antioquia, no início do século 2, considerou que, dentre as doutrinas cristãs, a que era mais ameaçada dizia respeito à cristologia, mais precisamente sobre a encarnação do Verbo, verdade central da fé cristã. Ele fez severa oposição ao docetismo. Algumas de suas asseverações são: Há um Médico: tanto carne quanto espírito, gerado e não gerado, em homem, Deus, na morte, verdadeira vida, tanto de Maria quanto de Deus, primeiro passível e então impassível, Jesus Cristo nosso Senhor.[Nota 5] Em outra fonte é notório o seu posicionamento quanto a reafirmar a plena humanidade de Jesus Cristo em oposição ao docetismo: Torna-te surdo quando falam de um Jesus Cristo fora daquele que foi da família de Davi, filho de Maria, [que] nasceu autenticamente, comeu e bebeu, padeceu verdadeiramente sob o poder de Pôncio Pilatos, foi crucificado e morreu verdadeiramente. [...] De que me valeria estar em cadeias se Cristo sofreu somente na aparência, como certos pretendem? Esses, sim, não passam de meras aparências.[Nota 6] Irineu de Lião (120-202) é considerado o pai antignóstico, pois defendeu a doutrina da encarnação como o ponto vital da salvação. Para ele e outros pais da igreja, não seria possível a redenção da humanidade se o Deus eterno, no Filho, não tivesse experimentado uma existência humana. Irineu, acima de tudo, era um pastor, e não tinha interesse em problemas teológicos no sentido intelectual e especulativo. Seus pronunciamentos ocorriam na urgente solicitude pastoral de preservar o rebanho de Deus. Em Contra as heresias, sua obra mais completa, não poupou esforços em denunciar os diversos hereges que maculavam o mistério da encarnação de Cristo, dentre eles, os gnósticos docetas. Irineu declarou: Paulo é do mesmo parecer quando escreve aos romanos: [...] “com maior razão os que recebem a abundância da graça e da justiça pela vida reinarão por obra do único Jesus Cristo. Ele não conhece um Cristo que tenha levantado voo de Jesus, como não conhece um Salvador do alto, incapaz de sofrer, porque se um sofreu e o outro ficou impassível, um nasceu e o outro desceu nele e depois o deixou, evidentemente já não trata de um único indivíduo, mas de dois. E porque o apóstolo reconhece um único Jesus Cristo, que nasceu e sofreu, diz ainda na epístola: “Não sabeis que todos os que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, também nós vivamos vida nova? Outra vez, para indicar que o mesmo Cristo que sofreu é o Filho de Deus que morreu por nós e nos resgatou pelo seu sangue.[Nota 7] Há tantas evidências da plena humanidade de Jesus nas Escrituras que nos levam a pensar como é possível negá-la de maneira convincente. Cristo foi reconhecido na forma de um ser humano (Fp 2.7). Hendriksen, com muita propriedade, enumera características que demonstra o homem Jesus igual aos demais homens: Porventura, vieram a este mundo pelo processo natural? Ele também (Lc 2.7). Foram eles envoltos em panos? (Ez 16.4). Ele também (Lc 2.7). Cresceram? Ele também (Lc 1.80; 2.40,52). Tiveram irmãos e irmãs? Ele também (Mc 6.3). Aprenderam uma profissão? Ele também (Mc 6.3). Experimentaram, algumas vezes, fome, sede, cansaço, sono? Ele também (Mt 4.2; Jo 4.6-7; Mc 4.38). Experimentaram tristezas ou ira? Assim também ele (Mc 3.5). Chorararam algumas vezes? Assim também ele (Jo 11.35). Alegraram-se, por exemplo, em casamento? Ele também participou de um casamento (Jo 2.1-2). Estavam destinados a morrer? Também ele (Jo 10.11). Em sua condição total, portanto, ele foi reconhecido como um ser humano. Seu porte e aspecto eram como dos demais homens. Sua maneira de se vestir, seus costumes e hábitos se assemelhavam aos de seus contemporâneos (Hendriksen, William, Comentário do Novo Testamento: Efésios e Filipenses. São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 481-482). O gnosticismo foi a grande heresia do século 2 e prometia ser uma grande ameaça duradoura ao cristianismo, mas Deus não o permitiu. Conforme Louis Berkhof, muitos foram arrastados por algum tempo pelos seus “engenhosos argumentos de sabedoria”, mas a maioria dos cristãos não se deixou levar por suas astutas falácias. Os ensinos dos apóstolos e dos pais apologistas salvaguardaram a igreja de Cristo. Como exemplo, os escritos de João: “Nisto reconheceis o Espírito de Deus: todo espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus” (1Jo 4.2); “Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo” (2Jo 1.7). MONARQUIANISMO DINÂMICO: NEGANDO A DIVINDADE O monarquianismo seguramente foi a mais proeminente heresia do século 3. A doutrina surgiu visando preservar o monoteísmo, a crença no único Deus, por entender que o Logos, apresentado como pessoa divina, implementava a suposta ideia da existência de mais de um Deus. A fórmula trinitária era, portanto, inconcebível para esta linha de pensamento. Primava por professar a unidade com detrimento da pluralidade. O monarquianismo se apresentou de duas formas: dinâmica (adocianista) e a modalista. O primeiro defensor desta corrente foi Teodoto de Bizâncio, com a ideia ebionita da negação da divindade de Jesus, no ano 190. Ele afirmava que Cristo veio ao homem Jesus no momento de seu batismo dando-lhe poder, o qual passou a acompanhá-lo durante seu ministério terreno. Dessa forma, a pessoa Jesus Cristo, definitivamente, não era divina e tampouco um homem comum. Poder-se-ia dizer um homem dotado com poderes divinos. Teodoto foi excomungado por Vitor, bispo de Roma. Paulo de Samosata, bispo de Antioquia no ano 260, sofisticou o pensamento de Teodoto e tornou-se o principal representante do monarquianismo dinâmico [ dynamis, grego = poder). Ele concordava com a consubstancialidade do Pai com o Logos, mas não como uma hipóstase (pessoa) independente. O elemento pessoal existente era apenas do homem Jesus de Nazaré. Paulatinamente, o poder foi sendo acrescentado a Jesus, em um processo que se poderia denominar de deificação, embora não sendo Deus literalmente. Ele foi coberto de honras divinas e foi considerado filho adotivo de Deus, daí esta forma também ser conhecida como adocianista. Paulo de Samosata foi condenado no sínodo de Antioquia, no ano 268, por insistir no unitarismo em que o Filho foi mero homem, e o Espírito Santo, graça derramada nos apóstolos. Essa parece ser a primeira fórmula racionalista da fé cristã, que somente em tempos mais próximos desaguou no socinianismo e em certas correntes liberais.[Nota 8] MONARQUIANISMO MODALISTA: NEGANDO A TRINDADE O modalismo originou-se na Ásia menor e chegou a Roma por meio de Noeto e seus seguidores. Aqui se insere a disputa entre Tertuliano e Praxeas relativa à doutrina da Trindade. Tertuliano (150-212) era advogado e converteu-se por volta do ano 190. Foi o primeiro teólogo a formular a doutrina da Trindade, introduzindo o conceito de que Deus é uma substância e três pessoas, referindo-seà substância como a essência e pessoa como à identidade de ação que qualifica como distinto. Praxeas negou as relações dentro de um mesmo e único ser divino e a existência de três pessoas na divindade. Uma das importantes obras de Tertuliano se intitula Contra Praxeas, em que ele explanou sua crença no monoteísmo orgânico: Todos (os três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo) provêm de Um, pela unidade (procedente da substância; mas o mistério da dispensação ainda deve ser guardado, que distribui a Unidade em uma Trindade, colocando na devida ordem as três Pessoas: o Pai, o Filho, e o Espírito Santo; três, porém, não em condição, mas em grau, não na substância, mas na forma, não no poder, mas no aspecto e, não obstante, de uma só substância, uma só condição e um só poder.[Nota 9] Sabélio, por volta do ano 200, aprimorou a doutrina de Praxeas, a qual passou a denominar-se de modalismo. Esse homem ensinou que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são um em substância, mas não três pessoas. Eles apenas eram diferenciados um do outro pelo nome. Daí, atribuiu o fato de que o Pai sofreu com o Filho, vindo a receber no ocidente o nome de patripassianisno. No oriente, essa concepção herética denominou-se sabelianismo. O professor de teologia Hermisten Maia, em seu livro Eu creio, citou a forma como Epifanio, bispo de Salamis, no século 4, descreveu o pensamento do sabelianismo: Ensinam que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são uma só e a mesma essência, três nomes apenas dados a uma só e a mesma substância. Tome-se o sol: o sol é uma só substância, mas com tríplice manifestação: luz, calor e globo solar. O calor é análogo ao Espírito; a luz, ao Filho; enquanto o Pai é representado pela verdadeira substância. Em certo momento, o Filho foi emitido como um raio de luz; cumpriu no mundo o que cabia à dispensação do evangelho e à salvação dos homens, e retirou-se para os céus, semelhante ao raio enviado pelo sol que é novamente incorporado a ele. O Espírito Santo é enviado mais sigilosa- mente ao mundo e, sucessivamente, aos indivíduos dignos de o receberem [...].[Nota 10] O sabelianismo foi condenado em 261 por negar a verdadeira humanidade de Cristo e por ser da mesma forma que o monarquianismo dinâmico racionalista, substituindo a revelação pela especulação metafísica.[Nota 11] ARIANISMO: NEGANDO A DIVINDADE Nasce em Alexandria, no norte da África, talvez a maior heresia cristológica, principalmente pelas repercussões causadas posteriormente. Tudo começou quando, em 319, Alexandre — bispo de Alexandria —, reuniu seus presbíteros para compartilhar sobre a Trindade. Ao fazer a distinção entre as três pessoas dentro da unidade divina, um de seus presbíteros, Ário, se opôs veementemente, acusando Alexandre de politeísta. Com isso, Ário pro-pôs uma doutrina, negando a verdadeira divindade do Filho. Ele tornou-se amigo íntimo de Eusébio de Nicomédia (não confundir com Eusébio de Cesareia), que partilhava com ele das mesmas ideias sobre o Verbo. Ambos foram alunos de um influente teólogo de Antioquia, Luciano, que, por sua vez, havia recebido muita influência de Orígenes. Aqui cabe o cuidado para não cometer injustiça com esse gigante do cristianismo, mas, ao que tudo indica, Orígenes cria que o Logos era de certo modo inferior ao Pai (subordinacionismo). Entretanto, ele nunca pormenorizou a esse respeito. A escola alexandrina ressaltava o outro aspecto da teologia cristológica de Orígenes, que afirmava a coigualdade eterna entre o Pai e o Logos. Instalou-se a crise e Ário, que, ao que parece, era carismático e tinha o apoio popular, começou a propagar suas ideias com marchas pelas ruas de Alexandria na companhia de adeptos. Eles compuseram músicas populares e criaram lemas do tipo: “Houve tempo em que o Verbo não era”. Nessa sucinta frase reside a doutrina ariana: que o Filho fora criado. Em uma carta de Ário, endereçada a seu amigo Eusébio, é nítida a afirmação de que o Filho para ele era criatura: Ao seu queridíssimo, homem de Deus, cheio de fé e ortodoxia, Eusébio, saudações no Senhor da parte de Ário, injustamente perseguido pelo Papa Alexandre, sabendo que a verdade que de tudo triunfa tem em Eusébio seu defensor [...]. Mas, antes de ter sido gerado, ou criado, ou nomeado, ou estabelecido, ele não existia, pois ele não era ingênito. Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um início, enquanto Deus é sem início. Eis por que somos perseguidos, e também porque afirmamos que ele é do que não é, justificando essa afirmação, porquanto ele não é da parte de Deus nem deriva de substância alguma. Por isso somos perseguidos. Vós sabeis o resto. Confio, caro Eusébio, fiel discípulo de Luciano, que permaneçais firmes no Senhor e lembrado de nossas aflições. [Nota 12] Com poderosos aliados, Ário ganhou força, contando com o apoio de homens como o historiador cristão Eusébio de Cesareia, autor da conhecida obra História Eclesiástica. Àquela altura, Alexandre — que era homem pacífico — e detestava envolver-se em discussões, não teve alternativa a não ser pronunciar-se contra a posição ariana: E as novidades que inventaram e publicaram contra as Escrituras são as seguintes: Deus não foi sempre Pai, mas houve tempo em que Deus não foi Pai. O Verbo de Deus não existiu sempre, mas se originou de coisas que não existiam, porque o Deus O falso Cristo no pensamento teológico antigo 59 que existe, fez aquele que não existia, a partir daquilo que não existia; portanto, houve tempo quando ele não existia, pois o Filho é uma criatura e uma obra. Ele não é igual ao Pai em essência, não é o verdadeiro e natural Logos do Pai e nem é sua verdadeira Sabedoria, mas ele é uma das coisas feitas e criadas e é chamado Verbo e Sabedoria por um abuso de termos, pois ele mesmo originou-se do verdadeiro Verbo de Deus, e pela Sabedoria que existe em Deus, mediante a qual Deus não apenas criou todas as coisas, mas ele também. Portanto, ele é, por natureza, sujeito a mudanças e variações, assim como o são todas as criaturas racionais.[Nota 13] Em pouco tempo, todo o Oriente estava em efervescência, chegando o assunto até o conhecimento do imperador Constantino. Uma série de confusos sínodos se sucedeu na tentativa de harmonizar as duas frentes eclesiásticas. Em 324, Alexandre convocou um pequeno sínodo e declarou a paz, mas estabeleceu Ário como anátema. Em Antioquia, em 325, Ário foi condenado, mas, nesse interim, Constantino já havia convocado aquele que seria denominado como o primeiro Concílio ecumênico, na cidade de Niceia. O Concílio de Niceia (325) O Concílio de Niceia reuniu em torno de 300 bispos e teve a duração de 60 dias. O imperador Constantino presidiu a reunião, tendo Osio de Córdoba como seu conselheiro, e Eusébio de Cesareia como secretário. Fato curioso foi a ausência de Ário, que foi barrado por não ser bispo. Três partidos se fizeram presentes: a ala radical — com 28 bispos declaradamente arianos, tendo como representante Eusébio de Nicomédia —; o segundo grupo formado pela maioria e liderado por Eusébio de Cesareia — exibindo perfil moderado —, e o grupo de Alexandre, que defendia a posição ortodoxa. Um dos aliados desse último foi o jovem diácono de Alexandre — Atanásio —, que se tornaria, em 328, bispo de Alexandria e o maior opositor do arianismo — um dos “magnos” do cristianismo. Resumidamente, o Concílio manifestou três posições teológicas a respeito do Filho. A palavra-chave do grego posta em discussão foi ousios (“substância”). Para os arianos radicais, o termo usado foi anomoios, ou seja, que o Filho era diferente do Pai quanto à essência ou substância. O grupo moderado defendeu a fórmula homoiousios (semiarianismo), segundo a qual o Verbo tem substância semelhante à do Pai. Alexandre defendeu a posição ortodoxa ao afirmar que o Pai e o Filho são de mesma substância ( homoousios), definição sustentada por Atanásio. Em sua obra teológica De Incarnatione, é possível perceber a lucidez com que Atanásio cria a respeito de Cristo: O Verbo tomou um corpo mortal. Esse corpo, porém, participava do