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MANUAL DE PRÁTICAS JURÍDICAS MODELO DE CASOS PRÁTICOS 1.1. Casos práticos de resolução orientada 1.1.1. Estrutura Relativamente aos casos práticos de resolução orientada, na sua estrutura apresentam um texto narrando os factos ocorridos e questões direcionadas. Geralmente, as questões devem ser capazes de levantar todas as situações jurídicas envolvidas no caso, excepto se este não for o objectivo da avaliação. E, cada questão deve terminar com a apresentação da respectiva cotação. Vide o exemplo abaixo: Resolva as questões relativas à hipótese abaixo recorrendo à legislação. No dia 10 de Janeiro de 2022, António celebrou com Bento um contrato de compra e venda de um barco de marca Iate pertencente e na posse deste último, sujeito às condições seguintes: O preço era de 200.000,00 Mts a pagar em 10 prestações mensais e iguais, vencendo-se a primeira no dia 1 de Fevereiro de 2022, contra a entrega do Iate, e as seguintes, no primeiro dia de cada um dos meses subsequentes. Para assegurar o cumprimento, António constituiu hipoteca a favor de Bento, sobre uma vivenda que possuía no 3º Bairro - Ponta Gêa, na Cidade da Beira, avaliada em 250.000,00 Mts. Pergunta-se: 1. Se as partes nada tiverem estipulado a esse respeito, onde deverá ser entregue o Iate? (2,0v) 2. E onde devem ser pagas as prestações do preço? (2,0v) 3. Caso Bento fosse menor e o contrato tivesse sido celebrado pelo seu representante legal, seria válida a entrega do barco feita por Bento, na data aprazada? (3,0v) 4. Se, após terem sido pagas as duas primeiras prestações do preço, António causar inadvertidamente um incêndio na vivenda que hipotecou, provocando uma diminuição do seu valor em 30.000,00 Mts, poderá Bento fazer alguma coisa? E se o incêndio tivesse sido intencionalmente causado por Cardoso, conhecido piromaníaco que fugira do hospital psiquiátrico onde se encontrava internado? (4,0v) 5. Imagine agora que Bento reservou para si a propriedade do Iate até ao pagamento integral do preço e que, após ter liquidado as primeiras oito prestações, António falha o pagamento da nona (vencida em 1 de Outubro de 2022). Em consequência disso, Bento enviou a António uma carta a resolver o contrato, exigindo a imediata restituição do Iate. Como António o não tivesse feito, Bento recusou o recebimento das prestações de Outubro (que António pretendeu pagar no dia 20 deste mês) e de Novembro, afirmando ter direito, não só a conservar tudo o que já recebeu, a título de indemnização, como ainda a ser indemnizado pela mora na devolução do Iate. Tem razão? (4,0v) 6. Dada a recusa de Bento em receber as prestações de Outubro e Novembro, António depositou-as num banco, em conta à ordem daquele. Terá ficado assim liberado da dívida? (2,0v) 7. Suponha que, em Setembro de 2022, o Iate foi destruído por um incêndio que deflagrou no Porto onde estava atracado, ateado por um raio numa noite de trovoada. Aprecie a pretensão de António de não pagar qualquer das prestações vincendas, bem como de reaver todas as já pagas, alegando que o risco do perecimento do bem corria por conta do seu proprietário. (3,0v) 1.1.2. Resolução Para resolver casos de resolução orientada, desenvolvem-se os seguintes passo: a) Leitura do caso: ● Recomenda-se a leitura atenta do texto do caso, mais de uma vez, de modo a entender o que é retratado no caso e quais os problemas a resolver. ● Evitar criar sub-hipóteses, e não consultar a lei nesta fase. b) Esquematização dos factos mais importantes: ● Permite elaborar em forma de esquema a resposta às seguintes questões: quais os sujeitos? O que fazem? O que foi violado? Quais os direitos em causa? E outras questões jurídicas. ● Reler, em função das perguntas patentes no caso, o texto do enunciado. ● É preciso ter em conta que a solução do caso está condicionada pela pergunta feita. Neste caso, tudo o que não contribui para responder à pergunta feita é supérfluo (e assim não servirá para a pontuação). c) Encontrar e definir qual o problema para cada questão: ● O problema varia consoante o caso for de resolução livre ou orientada. Nos casos de resolução orientada, geralmente, os problemas são muito específicos e mais fáceis de identificar. d) Resolução do caso por questão: ● A resolução do caso começa a partir do momento em que se consegue encontrar o tema e o problema em causa. E a base da resposta consiste em identificar o problema, dar uma solução com respectiva base legal, e complementar com doutrina e jurisprudência. Nota: o fundamento legal ou teórico deve ser capaz de justificar o pedido da questão. ● Geralmente segue-se o método dedutivo, ou seja, partindo do geral para o particular, para resolver o caso e fundamentar muito bem as posições adoptadas, fazendo uma relação directa entre o caso e os requisitos, lei, doutrina e jurisprudência. (Nota: é preciso verificar se existem ou não excepções à regra geral e, caso não se verifiquem, então aplicar a regra geral). ● Tendo mais que uma questão, o estudante deve, geralmente, responder às perguntas na ordem em que se apresentam, excepto se o docente autorizar respostas aleatórias. e) Conclusão: ● Frisar a solução ao caso de forma sintética com a respectiva opinião fundamentada de forma sucinta. Neste caso, é necessário subsumir o enunciado e/ou a pergunta ao fundamento legal indicado, para verificar se os pressupostos legais estabelecidos para o direito subjectivo invocado estão ou não preenchidos. 1.1.3. Exemplo de aplicação desta regra Resolução do caso Iate Factos: ● 10/01/2022 - António (comprador) - Bento (vendedor) - Compra e Venda de Iate por 200.000,00Mt. ● Regra de pagamento:10 prestações mensais iguais a partir de 01/02/2022 ● Entrega do Iate - 01/02/2022 ● António hipoteca vivenda de 250.000,00Mt. 1. Se as partes nada tiverem estipulado a esse respeito, onde deverá ser entregue o Iate? (2,0v) Resposta: Aqui estamos perante a figura de cumprimento das obrigações, e especificamente sobre o lugar da prestação, previsto nos artigos 772 e seguintes do Código Civil. Portanto, com base na questão acima, na falta de estipulação das partes, conforme prescreve o nº 1 do art. 773 do C.C, “se a prestação tiver por objecto coisa móvel determinada, a obrigação deve ser cumprida no lugar onde a coisa se encontrava ao tempo da conclusão do negócio”. Neste caso, o Iate deverá ser entregue no lugar onde se encontrava no dia 10 de Janeiro de 2016, que é no domicílio de Bento. 2. E onde devem ser pagas as prestações do preço? (2,0v) Resposta: Nesta questão estamos perante a figura de cumprimento das obrigações, e especificamente sobre o lugar da prestação, previsto nos artigos 772 e seguintes do Código Civil. De acordo com o artigo 774 do CC “se a obrigação tiver por objecto certa quantia em dinheiro, deve a prestação ser efectuada no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento”. A mesma regra é estabelecida também no nº1 do artigo 885 que dispõe: “o preço deve ser pago no momento e no lugar da entrega da coisa vendida”. Assim, as prestações devem ser pagas no domicílio do Bento, conforme onde se encontrava o Iate na data da celebração do contrato, uma vez que se trata de uma obrigação pecuniária. 3. Caso Bento fosse menor e o contrato tivesse sido celebrado pelo seu representante legal, seria válida a entrega do barco feita por Bento, na data aprazada? (3,0v) Resposta: Estamos perante as figuras de incapacidade por menoridade (artigos 122 e seguintes) e cumprimento das obrigações, e especificamente sobre a capacidade do devedor e do credor, prevista no artigo 764 do Código Civil. Há que notar que, legalmente, os actos praticados pelos incapazes são anuláveis - art. 125 (para os menores),art. 148 (para os interditos) e art. 156 (para os inabilitados). Logo, a priori entende- se que a entrega do Iate feita pelo Bento (devedor nessa situação) ao António (credor) é anulável, tomando em conta que se trata de um acto de disposição (nº1 do art. 764 do C.C.). Este artigo dispõe: “o devedor tem de ser capaz,se a prestação constituir um acto de disposição; mas o credor que a haja recebido do devedor incapaz pode opor-se ao pedido de anulação,se o devedor não tiver tido prejuízo como cumprimento”. Mas, quanto a validade deste acto, a segunda parte do nº 1 acima citado, preconiza que o credor (António) que tenha recebido a prestação (o Iate) do Incapaz (Bento) pode opor-se ao pedido de anulação (se o representante do Bento assim o fizer), se o devedor (Bento) não tiver tido prejuízo com o cumprimento (que é o caso da nossa hipótese). Assim a resposta da questão acima será afirmativa. 4. Se, após terem sido pagas as duas primeiras prestações do preço, António causar inadvertidamente um incêndio na vivenda que hipotecou, provocando uma diminuição do seu valor em 30.000,00 Mts poderá Bento fazer alguma coisa? E se o incêndio tiver sido intencionalmente causado por Cardoso, conhecido piromaníaco que fugira do hospital psiquiátrico onde se encontrava internado? (4,0v) Resposta: Esta situação enquadrar-se-ia na figura de garantias especiais das obrigações previstas nos artigos 623 e seguintes. Especificamente trata-se de uma garantia real, hipoteca, prevista nos artigos 686 e seguintes. A sob-hipótese apresentada neste número leva à matéria sobre substituição ou reforço da hipoteca prevista no artigo 701 do C.C., que dispõe no seu nº 1: “quando, por causa não imputável ao credor, a coisa hipotecada perecer ou a hipoteca se tornar insuficiente para a segurança da obrigação, tem o credor o direito de exigir que o devedor a substitua ou reforce; e, não o fazendo este nos termos declarados na lei do processo, pode aquele exigir o imediato cumprimento da obrigação...”. Mas, uma vez que a vivenda não pereceu e a redução do seu valor não prejudica o credor (Bento), na medida em que a diferença entre a prestação devida pelo António (200.000,00 Mts) e o remanescente do valor da vivenda (220.000.00 Mts) beneficia o credor, este não pode exigir, nem a substituição da coisa hipotecada, nem o seu reforço, e muito menos o imediato cumprimento da obrigação. Se Bento quiser recorrer a este artigo só poderá ter como fundamento a conduta duvidosa do António. Quanto à segunda situação aplicar-se-ia o disposto no nº 2, in fine, do mesmo artigo que diz: “... se a diminuição da garantia for devida a culpa de terceiro, o credor tem o direito de exigir deste a substituição ou o reforço...” ficando o mesmo responsável nos mesmos moldes previsto no nº anterior contra o devedor. Mas aqui há que ressalvar duas situações: primeiro, porque a coisa hipotecada não pereceu e o seu valor continua a ser suficiente para proceder com a garantia; segundo, porque Cardoso é um incapaz (interdito) (art. 138/1 do C.C.) e presume-se ser inimputável (art. 488º/2 do C.C.), podendo, excepcionalmente responder nos termos do art. 489 do C.C. 5. Imagine agora que Bento se reservou a propriedade do Iate até ao pagamento integral do preço e que, após ter liquidado as primeiras oito prestações, António falha o pagamento da nona (vencida em 1 de Outubro de 2022). Em consequência disso, Bento enviou a António uma carta a resolver o contrato, exigindo a imediata restituição do Iate. Como António o não tivesse feito, Bento recusou o recebimento das prestações de Outubro (que António pretendeu pagar no dia 20 deste mês) e de Novembro, afirmando ter direito, não só a conservar tudo o que já recebeu, a título de indemnização, como ainda a ser indemnizado pela mora na devolução do Iate. Tem razão? (4,0v) Resposta: Nesta sob-hipótese estamos perante as figuras do contrato de compra e venda, especificamente sobre venda a prestações prevista nos artigos 934 e seguintes, e mora do credor prevista nos artigos 813 e seguintes.. Nos termos do artigo 934 do C.C, “vendida a coisa a prestações com reserva de propriedade, e feita a sua entrega ao comprador, a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço não dá lugar à resolução do contrato...”. Assim, pode se entender que, pelo facto de António falhar apenas uma prestação (nona), havendo reserva de propriedade a favor do Bento, e que a prestação não excede a oitava parte do preço (prestação = 20.000,00Mt < 1/8 de 200.000,00Mt = 25.000,00Mts), este não tem o direito de resolver o contrato. Quanto à não recepção das duas últimas prestações disponibilizadas pelo António, Bento incorre em mora (mora do credor) nos termos do art. 813 do C.C. “o credor incorre em mora quando,sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação” e, ele poderá indemnizar António, se com a tentativa do cumprimento das prestações tiver maiores despesas, conforme dita o artigo 816, “o credor em mora indemnizará o devedor das maiores despesas que este seja obrigado a fazer como oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respectivo objecto”. Logo se conclui que Bento não tem razão, e em nenhum momento ele terá o direito de exigir indemnização ao António. 6. Dada a recusa de Bento em receber as prestações de Outubro e Novembro, António depositou-as num banco, em conta à ordem daquele. Terá ficado assim liberado da dívida? (2,0v) Resposta: Aqui estamos perante causas de extinção das obrigações além do cumprimento previstas nos artigos 837 e seguintes. Especificamente trata-se de consignação em depósito, prevista nos artigos 841 e seguintes do CC. A luz da alínea b) do nº 1 do artigo 841, “o devedor pode livrar-se da obrigação mediante o depósito da coisa devida, nos casos seguintes: b) Quando o credor estiver em mora”. Neste caso, a consignação em depósito só procede quando o credor estiver em mora. Sendo assim, o António pode-se livrar da obrigação, desde que o credor venha aceitar ou quando a própria consignação seja declarada válida pelo tribunal (art. 846 do CC), pois trata-se de uma figura facultativa (n.2 do artigo 837 do CC). 7. Suponha que, em Setembro de 2022, o Iate foi destruído por um incêndio que deflagrou no Porto onde estava atracado, ateado por um raio numa noite de trovoada. Aprecie a pretensão de António de não pagar qualquer das prestações vincendas, bem como de reaver todas as já pagas, alegando que o risco do perecimento do bem corria por conta do seu proprietário. (2,0v) Resposta: Nesta sub-hipótese estamos perante a figura de não cumprimento das obrigações, prevista nos artigos 790 e seguintes. Em termos específicos, a mesma nos leva à questão de riscos, prevista no artigo 796 do CC. A Regra Geral sobre o risco reza: “nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta do adquirente” (nº 1 do art. 796). Assim, uma vez que o Iate foi destruído por causas não imputáveis ao Bento, António suportaria o risco. 1.2. O modelo de caso prático recomendado Para a avaliação três, a Faculdade de Direito recomenda o uso de casos práticos de resolução orientada, na medida que permitem direcionar o estudante ao objectivo da avaliação e reduz o subjetivismo na correcção. 1.3. Advertências na resolução de casos práticos a) A resolução de casos práticos pressupõe rigor e grande conhecimento jurídico. Não basta resolver em poucas linhas ou em responder “sim” ou “não”. A pessoa que os resolve tem que construir uma argumentação jurídica, e explicar como chegou ao resultado que propõe.b) O estudo antecipado das matérias contidas no manual da disciplina e nas obras literárias recomendadas, constitui condição necessária para este exercício. Devem-se observar as regras de caligrafia (se for o caso), ortografia e gramática. As frases devem ter um início e fim bem assinalados. Fazer, de vez em quando, um parágrafo também ajuda para a compreensão de quem tiver de corrigir, em vez de responder tudo num parágrafo apenas. c) Uma boa metodologia de resolução de caso prático permite não esquecer problemas e os instrumentos jurídicos necessários para a resolução do caso prático. Além disso, facilita também o trabalho da pessoa que corrige.